Maria do Céu Santo SORRIA COM O CORPO INTEIRO AMOR SEM LIMITES 2 50 especialistas e figuras públicas falam dos temas que mais preocupam os homens e as mulheres do século xxi Um guia completo para o seu bem-estar psíquico, físico e social Com a colaboração de Marta F. Reis Índice Introdução ........................................................................................... Do livro ao programa de televisão ................................................. 9 15 CONFISSÕES ..................................................................................... Introdução ........................................................................................... Amar é partilhar ............................................................................ O poder dos lençóis! ...................................................................... O amor construtivo ........................................................................ O amor é culturalmente estranho .................................................. Amor sem sexo, sexo sem amor ..................................................... Educar a Afectividade e a Sexualidade .......................................... Divórcio, e agora? .......................................................................... Vias para o divórcio ....................................................................... 19 21 31 37 41 47 51 57 63 67 SEXUALIDADE E FERTILIDADE ..................................................... 77 Introdução ........................................................................................... 79 Educação sexual, contracepção e fertilidade ....................................... 87 A idade do Amor sem Limites? ...................................................... 89 A Educação Sexual na adolescência ............................................... 105 Educação Sexual em meio escolar .................................................. 111 A contracepção... masculina .......................................................... 119 Acaso e insistência ......................................................................... 125 Filhos ................................................................................................... 129 A psicologia da gravidez ................................................................ 131 Ser mãe: conselhos para a mulher grávida ..................................... 141 Mãe, pai e… bebé. A família cresceu ............................................. 161 A chegada do bebé: As 24 dúvidas mais comuns ........................... 167 A melhor idade ............................................................................... 179 Segurança online de crianças e jovens............................................ 183 Acne: um problema para lá da adolescência .................................. 189 Dentes cuidados desde pequenos.................................................... 195 ENVELHECIMENTO........................................................................ 199 Introdução ........................................................................................... 201 A Fonte da Juventude existe? ......................................................... 207 As comunidades equilibradas são as intergeracionais .................... 213 A estética no envelhecimento ......................................................... 219 Avarias ................................................................................................. 225 Infecções, incontinência urinária e disfunção sexual ..................... 227 Os homens no consultório ............................................................. 235 Dermatologia do envelhecimento na mulher .................................. 241 O sorriso em todas as idades .......................................................... 245 A juventude nos olhos .................................................................... 249 A patologia da anca e a qualidade de vida ..................................... 255 A circulação e os seus problemas ................................................... 261 Avarias dos sentidos ....................................................................... 277 O aparelho digestivo como órgão de choque.................................. 291 Sexualidade e lesões medulares ...................................................... 303 Menopausa .......................................................................................... 309 Menopausa sem medos .................................................................. 311 Alimente bem a sua menopausa ..................................................... 317 Andropausa ......................................................................................... 331 O que é a andropausa? ................................................................... 333 Como melhorar a qualidade de vida na andropausa ...................... 341 O NOSSO TEMPO ............................................................................. 347 Introdução ........................................................................................... 349 Nós, os especiais normais .............................................................. 357 As mulheres são metade do mundo ................................................ 361 Amor à distância ............................................................................ 365 Espelho meu, há alguém mais virtual do que eu?! ......................... 369 A imagem e as dietas ...................................................................... 375 Brincadeiras sexuais ....................................................................... 381 Dicas de maquilhagem ................................................................... 387 Em busca do sucesso ...................................................................... 391 A obesidade e o tratamento............................................................ 401 A psicologia da obesidade: cuidar das emoções deste a infância.... 411 Introdução Costumo dizer que a paixão dura seis meses a dois anos e depois passa a amor ou a pesadelo. Cuidar do corpo, da alma e da mente é a única forma de amar sem limites e ser feliz. É raro lembrarmo-nos disto, mas desde 1948 que ser saudável pressupõe muito mais do que idas de rotina ao médico, urgências hospitalares ou cuidar dos febrões e otites dos nossos filhos quando são pequenos. A definição de referência para Saúde foi assinada nesse ano pelos estados-membros das Nações Unidas como um dos princípios da constituição da Organização Mundial de Saúde e mantém-se inalterada desde então: «A saúde é um estado completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.» Em 1948, muito do que nos preocupa hoje e nos faz lutar contra o peso ou os males do envelhecimento eram descobertas ou mesmo, podemos dizê-lo, obrigações recentes. Provavelmente, os mesmos homens e mulheres que assinaram o documento da OMS assistiram ao início das idas à praia por lazer, em que muitas mulheres tiveram o receio (compreensível) de largar finalmente os espartilhos usados desde o Renascimento e mostrar as formas do corpo, com todas as gorduras localizadas que hoje nos incomodam. Impunha-se a força da imagem e da sedução como caminho para o sucesso, fruto do ascendente de 9 maria do céu santo estrelas desses tempos de ouro do cinema, como Marlene Dietrich ou Ava Gardner. As relações começavam a tornar-se mais livres e, curiosamente, pouco se sabia da evolução da sexualidade dos homens, da história das famílias e das paixões – o inventário da vida privada, primeiro por historiadores franceses, só começaria a fazer-se nos anos 50 do século xx. Vinte anos antes da definição de Saúde, pela OMS, o francês Louis Alquier fala pela primeira vez de celulite. Vivia-se o apogeu da moda, com dezenas de publicações francesas a mostrar as novas tendências, e a mulher parisiense era o rosto da mulher moderna. A Vogue chamou à celulite, que tantas mulheres começaram logo a querer amassar com rolos eléctricos, «inimigo público n.o 1». Mas as caminhadas tónicas, hoje tão populares ao ponto de merecerem aplicações nas redes sociais para poder seguir (e roer-se de inveja) a corrida de sete quilómetros que a sua amiga faz ao final do dia, não apareceram só no século xx, nem muito menos por causa da pele casca de laranja. No século xviii, quando se percebe finalmente que beleza é sintoma de saúde e que o cuidado com as fibras e com a firmeza é fulcral, começam a promover-se entre as elites burguesas caminhadas diárias, marchas em passo rápido com direito a indumentária própria e tudo. As caminhantes usavam bengala e um vestido curto, uma ousadia na altura apelidada de tronchina em honra do médico suíço Théodore Tronchin (1709-1781), um dos primeiros defensores do exercício e do desporto ao ar livre. Como escreve Georges Vigarello, investigador francês, autor de uma magnífica História da Beleza que nos mostra como foram evoluindo os cânones de beleza (e de que falarei adiante) – percebe-se neste final de século que o ar livre é essencial para a saúde, que a água é o principal cosmético e que a flexibilidade das peles e dos músculos separa os 10 INTRODUÇÃO homens das mulheres. «A beleza, tal como a educação, passa então a pertencer a uma classe, varia em função de hábitos e saberes. Poder-se-ia aumentar e cultivar colectivamente, tal como diminuir e periclitar por abandono. As formas corporais perder-se-iam por falta de uso, por defeito de regime ou tensão. A aposta incide num modo de vida: substituir o velho modelo aristocrático da postura física por um modelo mas activo, fazer da atitude e do movimento um sinal de vigor e de saúde.» Tantos anos passados, é preciso pensar onde chegámos, que ferramentas nos dão a medicina e essas novas instituições, nascidas no início do século xx – os institutos de cuidados de beleza –, para lidar com esta busca por beleza e por um envelhecimento gracioso. É preciso pensar como evoluíram as nossas relações uns com os outros e mesmo com os nossos filhos, e onde ainda falhamos. É necessário refletir sobre para onde caminharam as relações entre cônjuges e o que foi acontecendo ao amor – que do conservadorismo que se manteve até tão tarde em todas as sociedades, e Portugal não é excepção, passou ao amor livre que tantos ainda gozaram nos anos 60, e hoje a uniões que de livres evoluíram para desprendidas e cada vez mais fugazes. Ao mesmo tempo que o peso da carreira nos foi roubando espaço para a vida privada. Nas muitas páginas deste livro, e depois da fantástica experiência de partilha de conhecimento que foi o programa «Amor Sem Limites» na SIC Mulher, médicos e pensadores da nossa praça aceitaram o meu convite para falar abertamente e sem preconceitos dos valores que orientam as suas vidas, da forma como vivem e acham que o amor deve ser repartido, e das principais dúvidas de consultório que atormentam homens e mulheres – problemas às vezes simples, aos quais basta estarem 11 maria do céu santo atentos, mantendo uma postura optimista. Falam da desatenção crónica dos adolescentes, das raízes emocionais da obesidade, dos mitos em torno da menopausa e andropausa e de avarias tão comuns, e por vezes tão mal percebidas, como as varizes. Entre o conhecimento e boa disposição de cada um, intercalei histórias da História. Não fôssemos nós o acumular das experiências e descobertas dos que nos precederam, e não fossem os receios em torno da sexualidade, da fertilidade e do amor – assim como os mitos que propiciam – tão familiares e parecidos ao longo dos últimos séculos. Hoje tenho jovens no consultório que continuam a achar que se lavarem um preservativo podem usá-lo muitas vezes. Entre os inúmeros mitos que ainda persistem, tenho dito e repetido às mulheres que me procuram: o orgasmo não é atingível em qualquer posição – nunca o terão ou proporcionarão sem a estimulação completa do clítoris. Mas os mitos ligados à intimidade não são um mal dos nossos dias: no século xv, quando a maternidade era a missão (e o dever) principal de todas as mulheres, e ao mesmo tempo o maior drama das suas vidas face à elevada mortalidade no parto, pensava-se que um espirro depois do sexo fazia a diferença entre conceber e não conceber. Numa escala ainda mais pequena, nos meus 30 anos como médica, muito mudou na forma como se tenta resolver as dúvidas sobre o lado mais íntimo das nossas vidas. As mulheres, que antes guardavam as difíceis conversas sobre sexo e intimidade para os confessores ou psicólogos, começam a trazer os problemas de disfunção sexual e falta de desejo para a consulta. Quase sempre são dificuldades técnicas, que tentamos resolver com um diagnóstico adequado, posições e receitas de intimidade. 12 INTRODUÇÃO Manter a qualidade da relação ao longo dos anos é uma das maiores dificuldades para um casal. Os filhos mudam naturalmente uma relação a dois, mas não há nenhuma que sobreviva sem tolerância, cedência e tempo para namorar. Costumo dizer que a paixão dura seis meses a dois anos e depois passa a amor ou a pesadelo. É isto que cada vez mais testemunho e que acredito que este livro pode ajudar a combater. Mais bem-estar, mais auto-estima e mais vontade de actuar de forma pragmática sobre a vida poderão não nos garantir a perfeição, mas dar-nos-ão certamente espaço psicológico e físico para amar sem limites. Se no final do dia a casa estiver menos arrumada, paciência! Estou convencida de que metade das coisas com que consumimos o nosso tempo acabam por se resolver sozinhas. Vivemos do passado para o futuro, numa pressa cada vez mais desmedida. Talvez seja tempo de desfrutar mais e melhor do presente. Quando terminar a leitura deste livro, terá conselhos para começar a mudar a sua vida, recuperar o optimismo e enfrentar de cabeça erguida os desafios da conjugalidade, da maternidade, do envelhecimento e do próprio amor. O meu conselho, se ainda não temos uma terapia universal para todas estas angústias que volta e meia nos atormentam, é para si que quer viver melhor e ser mais feliz: todos precisamos de meia hora por dia para pensarmos só em nós, longe dos nossos deveres de pais, companheiros e profissionais. Meia hora no banco de um jardim, numa banheira de água quente, numa esplanada – somente dedicados ao nosso projecto de vida ou a descansar a mente das confusões de sentimentos que nos assaltam no dia-a-dia. Maria do Céu Santo 13 Do livro ao programa de televisão Patrícia Santos, realizadora do programa «Amor sem Limites» na SIC Mulher Em «Amor sem Limites», do livro ao programa de televisão, os temas abordados procuraram ajudar todos aqueles que nos deixaram entrar em sua casa. Falar de sentimentos, afectos e relações é sempre actual, mas nem sempre é fácil, sobretudo se tivermos em conta que somos condicionados pelos julgamentos dos outros, pela aceitação social e por filtros. Principalmente quando estão em causa as nossas fragilidades e bem-estar. A forma como se discutiram questões tão sensíveis, neste programa, fez com que ele tivesse um papel muito importante de ajuda e esclarecimento, na medida em que utilizou uma linguagem directa, simples, não deixando de ser técnica, abordando temas tabu de uma forma descontraída. Chegou directamente às pessoas, ajudando-as numa reflexão sobre a sua própria vida: conjugal, afectiva e sexual. O foco da atenção dos temas abordados não foi somente o problema, mas sim o diagnóstico e o tratamento, com sugestões e estratégias tão fundamentais para melhorar a vida de cada um de nós. Hoje em dia, um programa de televisão tem um poder de grande importância, uma vez que a sociedade, tal como a conhecemos, tem vindo a sofrer alterações ao longo dos tempos. Actualmente somos muito condicionados por aquilo que 15 maria do céu santo vemos nos meios de comunicação, mais concretamente através das televisões. Os programas ditam modas, influenciam os nossos gostos, mostram-nos o que queremos ver e o que nem sabíamos que queríamos ver. Actualmente, quando nos sentamos à mesa em família, a maioria das casas tem o televisor ligado como pano de fundo. Assim, ficamos a saber o que se passa do outro lado do mundo, através dos telejornais, mas não sabemos o que se passa com a pessoa que temos do outro lado da nossa mesa. A comunicação, tão massificada e abrangente nos nossos dias, tornou-se o grande problema da sociedade actual. Por um lado, temos informação mais completa e esclarecida, acessível a todos em tempo real; por outro, esquecemos e desaprendemos como comunicar com as pessoas com quem partilhamos a vida. Esta é a base de qualquer relacionamento e é talvez a mais esquecida. É absolutamente antagónico, mas na realidade, com as tão avançadas novas tecnologias de comunicação, parece que comunicamos cada vez menos uns com os outros. «Amor sem Limites» promoveu o diálogo e foi muitas vezes fonte de motivação para as pessoas discutirem e partilharem os seus afectos, medos e necessidades. Foi a porta de entrada para o diálogo entre casais, pais e filhos. Se somos condicionados e influenciados por aquilo que vemos, um apresentador, enquanto comunicador que nos entra em casa pela janela mágica, tem um papel fundamental como formador de opiniões, entertainer, educador e comunicador. A apresentadora de «Amor sem Limites», enquanto comunicadora por excelência, criou uma empatia com o público que facilmente transpôs do livro para as câmaras de televisão, fazendo com que as suas palavras e conselhos cintilassem como ouro nos ouvidos dos telespectadores, dizendo as palavras certas, 16 SORRIA COM O CORPO INTEIRO desmistificando medos e fazendo com que as pessoas sentissem que não estavam sozinhas e encurraladas no seu problema. Desta forma, o papel da apresentadora foi muito além do de uma moderadora das boas conversas que por lá passaram. Foi muitas vezes a portadora de mensagens fundamentais, desconstruindo angústias e medos de quem assistia em casa. Um programa para ver a dois em que o mote era lançado e a discussão aberta sem nenhum tipo de constrangimento, que muitas vezes poderá ter funcionado como um desbloqueador para certos casais; que, ao assistirem juntos ao programa, passaram a conseguir discutir ou reflectir sobre determinados temas que poderiam estar a condicionar a vida a dois. O programa era dirigido, à partida, ao público feminino, não só pela sua natureza como pelo canal em que se encontrava, mas facilmente conquistou o público masculino, talvez por estes encontrarem nele uma ajuda concreta para entender um pouco mais do universo das mulheres, e também porque eles próprios não foram esquecidos, não só a nível temático como de imparcialidade. Os temas abordados diziam respeito não só às questões femininas como também às masculinas, até porque numa relação a dois existe uma fusão, uma ajuda mútua, no sentido em que, se um não estiver bem, os dois não poderão estar de certeza. Se os programas de televisão ditam modas e comportamentos, um realizador tem um papel fundamental no sentido em que é ele quem conta a história. Câmaras, luzes, 3, 2, 1… acção… mas, entre a escala dos planos, o tempo, o corte e as reacções, podem transmitir-se diferentes emoções consoante a mensagem que se pretenda passar. Muitas vezes nem nos apercebemos, mas podemos gostar ou não de um programa, dependendo da forma como o realizador optou por nos mostrar as 17 maria do céu santo suas imagens. É um mundo complexo, mas bastante interessante, que nos levaria por uma longa viagem através desta caixinha mágica. Aqui importa abrir a caixinha mágica dos sentimentos e dos afectos, que, tal como as imagens que nos chegam a casa, não tem limites! 18 CONFISSÕES Introdução O que é que atormenta hoje homens e mulheres? O sucesso e o falhanço das relações? A subjectividade do amor? As naturais diferenças entre sexos? Serem pais e mães responsáveis? Desde os nossos antepassados da Antiguidade Clássica que Maternidade e Paternidade são temas centrais da sociedade. Decerto que de forma bastante diferente para mulheres e homens – para as mulheres como destino e justificação biológica e para os homens como símbolo e instrumento de poder. Muito para além da sorte de ser pai, o homem sempre contou socialmente muito mais do que a mulher: basta ver nos recenseamentos dos primeiros séculos depois de Cristo que as mulheres valiam menos do que os homens nas contagens, sendo necessárias várias para somar um. A grande preocupação das mulheres sempre foi o risco mortal do parto. Segundo Georges Duby, na sua História das Mulheres, na sociedade romana e até aos tempos modernos 5% a 10% das mulheres que davam à luz morriam ou no parto ou das sequelas do nascimento. Esta vocação exclusiva da mulher para a maternidade fez com que, até ao século xviii, se usassem espartilhos na infância para condicionar o crescimento das raparigas. Na antiguidade, os médicos das famílias ricas aconselhavam que se ajudasse a moldar o corpo das meninas com a ajuda de ligaduras, ainda em bebés. Duby escreve que as 21 maria do céu santo mães e amas lhes apertavam ligaduras no peito, para que ficasse estreito, deixando as ancas livres para que a bacia crescesse larga, mais apta para parir. Já no século xvii, o parto continuava a ser um drama, e as mulheres recorriam a orações e peregrinações para pedir uma hora fácil. Jean-Louis Flandrin, na sua obra Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga, lembra o conselho de uma madame francesa à filha que acabava de dar à luz, em Dezembro de 1671. «Peço-te, minha querida, que não te fies nos dois leitos, é um motivo de tentação: manda alguém dormir no teu quarto. A sério, tem dó de ti própria, da tua saúde e da minha.» Hoje, da epidural a outras técnicas, o parto pode ser muito mais fácil do que era no tempo das nossas avós. Ainda assim, como também vemos cada vez mais, começam a florir movimentos de mulheres que querem regressar ao parto natural, com recurso a parteiras e muitas vezes com riscos desnecessários para a saúde das crianças – que no hospital, com ou sem anestesia da mãe, têm acesso mais imediato a cuidados especializados em caso de haver alguma complicação inesperada. Passaram muitos séculos até que os filhos passassem a ser vistos com uma reserva de direitos e obrigações, até porque a mortalidade infantil sempre foi elevadíssima. A título de curiosidade, e segundo a pesquisa de Duby, note-se que em Roma, como era exigido para os candidatos a títulos de grande importância social – o caso de senadores e cavaleiros – que fossem pais e mães, contava-se como filho uma criança que tivesse vivido até aos 12 anos no caso das raparigas e até aos 14 no caso dos rapazes. Ter tido duas crianças que morreram com mais de 10 anos e três bebés que tivessem vivido mais de três dias acabou mais tarde por conferir também esse estatuto. Este 22 SORRIA COM O CORPO INTEIRO fantasma da mortalidade infantil, que hoje, com a melhoria generalizada dos cuidados de saúde, nos podemos orgulhar de ter derrotado, não é um aspecto da história longínqua. Portugal é dos países em que a taxa de mortalidade infantil mais caiu nos últimos 40 anos. Em 1965, por cada 1000 crianças nascidas em Portugal, ainda morriam 65. Hoje temos das taxas mais baixas do mundo, com grandes elogios internacionais à melhoria dos cuidados maternos – em 2010 passámos a registar 3,32 mortes por cada 1000 nados-vivos. Os romanos, antes das alterações provocadas pelo cristianismo, só conservavam três filhos, podendo vender ou mesmo matar os restantes. Muito fruto dos princípios da civilização romana, os direitos dos filhos só começaram a evoluir no século xvii, primeiro em matéria de casamento e vocação religiosa – para evitar padres e freiras duvidosos nos mosteiros – e só depois como a emergência do direito da criança enquanto ser humano especial. Veja-se que mesmo no século passado, que a maioria de nós já viveu, a Declaração Universal dos Direitos do Homem só seria assinada nas Nações Unidas em 1948 e a Declaração dos Direitos das Crianças apenas uma década mais tarde, em 1959. Imagine-se como era antigamente... «Na antiga mentalidade, o pai tinha todo o poder sobre os filhos, como o senhor sobre os seus escravos. Eles pertenciam-lhe em propriedade plena, porque os fizera. Ele nada lhes devia. Na nossa mentalidade contemporânea, pelo contrário, o facto de os ter feito confere-lhe mais deveres do que direitos para com eles», conta Flandrin na sua obra. Os primeiros deveres atribuídos aos pais ao longo da História passam pelas obrigações de assistência materna e educação religiosa e moral, e só mais tarde pela educação profissional e modo de vida. À mãe sempre coube mais garantir educação e maneiras e ao pai provir 23