Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística Rua Barão de Jeremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 3263 - 6256 – Site: www.ppgll.ufba.br – E-mail: [email protected] LUCIELEN PORFIRIO A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE Vol. I SALVADOR 2013 2 LUCIELEN PORFIRIO A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE Vol. I Trabalho de tese apresentado ao Programa de Pósgraduação em Letras e Linguística, do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Letras. Orientadora: Prof. Dra. Serafina Maria de Souza Pondé Coorientadora: Prof. Dra. Denise Maria Oliveira Zoghbi SALVADOR 2013 3 Sistema de Bibliotecas da UFBA Porfírio, Lucielen. A competência comunicativa e o processo de construção de sentidos textuais : a função da palavra-chave / Lucielen Porfírio. - 2013. 2 v.: il. Inclui apêndices e anexos. Orientadora: Profª. Drª. Serafina Pondé. Co-orientadora: Profª. Drª. Denise Zoghbi. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2013. 1. Língua portuguesa (Ensino médio) - Estudo e ensino. 2. Literatura (Ensino médio) - Estudo e ensino. 3. Palavras-chave. 4. Competência comunicativa. I. Pondé, Serafina. II. Zoghbi, Denise. III. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. IV. Título. CDD - 469.8 CDU - 811.134.3(07) iv Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por uma extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras. Clarice Lispector v O cansaço não me abandona. Nos últimos dias ele tem sido meu companheiro de dia todo, mesmo que eu tente dispensar a sua presença. Mergulhada nas palavras e em frente ao computador, as ideias borbulham e por vezes me assustam e me deixam ansiosa e com medo da força com que vêm à mente. Em meio a tantas palavras e possibilidades que elas evocam, eu fico tímida, pequena, com medo de não conseguir concretizar tudo o que penso! Palavras... Como pode algo tão simples causar tantas sensações? São elas que me fazem expressar tudo o que quero em frente a uma página branca. São elas que concretizam o meu desafio de defender um projeto acadêmico. São elas que por um lado explicam quem eu sou, de onde eu vim e o que eu quero! São elas que, quando faltam, causam tristeza, desconforto... São elas que, quando vêm na hora errada, pedem passagem para a expressão de emoções tão fortes que fica difícil concretizar em “simples” palavras. E são elas também que transformam em realidade os sonhos, as carícias, os sentimentos... E são elas... Somente elas que podem me ajudar a alcançar alguns dos desafios que tenho pra mim! Saber usá-las nesse momento é o desafio que se impõe antes de chegar ao ponto final... E será que existe ponto final? Lucielen Porfirio vi Este trabalho é dedicado a: Miguel e Nilva Porfirio, meus pais, pelo exemplo de dedicação, compreensão e apoio constante. Por me ensinarem a buscar meus sonhos e por serem exemplos de honestidade e caráter. Everton D. Porfirio, meu irmão mais velho, pela sua presença constante nas conversas, puxões de orelha, incentivo, apoio e consolo nos momentos mais difíceis. Geison M. Porfirio e Wagner A. Porfirio, meus outros dois irmãos por me incentivarem a aceitar os riscos e a batalhar por meus objetivos, pela presença constante e, por vezes, confortante. Ângela Brandalise Gavazzoni, minha “nona”, pela preocupação contínua e pelo seu jeito simples de achar que sua neta já era uma doutora pelo simples fato de ter escolhido o magistério como profissão. 7 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar a Deus, pelo dom da vida, por me acariciar e sempre estar pertinho de mim em todos os momentos da minha vida. À minha orientadora, Prof. Serafina Pondé, que, ao aceitar se encontrar com aquela menina, ainda um pouco perdida na UNIOESTE – Cascavel – PR, me deu a chance de ter uma orientadora sempre presente, me auxiliando e incentivando nos meus planos, se fazendo sempre disponível para todo o tipo de apoio que eu precisei durante esse longo percurso de quase quatro anos. À minha coorientadora, Prof. Denise Zoghbi, pelas contribuições de suma importância durante o processo de qualificação e por ter abraçado a coorientação de uma forma sempre muito presente, constante, disponível e amiga. À professora Terezinha Costa-Hübes que, ainda em processo inicial do projeto, acalmou a ansiedade daquela menina ávida por realizar um bom trabalho; pelo apoio e orientação durante montagem e envio do projeto junto ao comitê de ética. Aos colegas da turma DINTER UFBA-UNIOESTE, pela troca de experiências, pelos lanches animados que incendiavam e aqueciam nossas manhãs e tardes, pelas conversas amigas, apoio para os momentos difíceis da pesquisa e por proporcionarem momentos de grande crescimento, aprendizagem, diálogo e reflexão, por fazerem parte da minha história e tornarem esse processo inesquecível e um pouco mais alegre e cativante. Em especial, aos colegas Otacílio e Larissa, pela parceria, troca de palavras, apoio, amizade, companheirismo nessa caminhada pessoal e acadêmica. Ao Prof. Sávio Siqueira, pela amizade e apoio demonstrados sempre, pelas inúmeras conversas de incentivo, auxílio e questionamentos. Em especial, por incendiar ainda mais os desejos dessa menina de buscar novas terras, novas possibilidades, novos desafios. Aos professores da UFBA, pela disponibilidade em ir até Cascavel e lecionar módulos intensos, discutir, refletir, orientar, trocar ideias e incentivar os questionamentos da turma DINTER. Pelos momentos de crescimento e aprendizagem proporcionados. Também, aos professores da UFBA que me receberam de braços sempre abertos para auxiliar no que fosse preciso e pela preocupação constante em me fazer sentir sempre em casa. Ao Núcleo de Educação da cidade de Cascavel – PR que prontamente me auxiliou ao contato com as escolas envolvidas na pesquisa. À direção, à coordenação e às professoras das escolas participantes da pesquisa, que não mediram esforços para que as aulas fossem cedidas e os dados pudessem ser coletados de forma tranquila. Aos alunos informantes pelo aceite, envolvimento e participação na pesquisa. 8 Aos colegas e alunos da UNEB – Campus II - que, em meio ao processo de doutoramento, também me receberam de forma aberta e disponível como parte integrante daquele colegiado. Pela paciência demonstrada mediante os momentos finais de construção e defesa desta pesquisa. A todos aqueles que já faziam parte da minha história, amigos queridos, e também às novas amizades que chegaram durante essa trajetória do doutorado, em Salvador ou em Cascavel e que, direta ou indiretamente, estiveram presentes durante momentos importantes de reflexão, afastamentos necessários, conversa ou lazer. [Digite uma citação do 9 documento ou o resumo de uma questão RESUMO interessante. Você pode posicionar a caixa de texto A interpretação de textos é um processo complexo por natureza, que dependeemdequalquer aspectos não apenas linguísticos, mas também cognitivos e extralinguísticos. lugar Para do interpretar um texto, todo leitor deve, inicialmente, identificar quais as informaçõesdocumento. são Use a guia relevantes e formular as representações mentais sobre o que é veiculado como Ferramentas mensagem para estabelecer comunicação. Para tanto, o leitor deve levantar hipóteses, de Caixa de fazer inferências e ativar seus conhecimentos prévios, que incluem tanto conhecimentos Texto para linguísticos que o leitor toma como ponto inicial quanto os de mundo – extralinguísticos (ECO, 1979; KOCH, 2009; KLEIMAN, 2002). E mais, o leitor deve localizaralterar as a formatação da principais ideias contidas num texto, as quais estão expressas nos itens lexicais e nas caixa de texto relações lexicais, semânticas e pragmáticas estabelecidas entre eles. É razoável admitir, da citação.] assim, que a identificação de palavras de um texto e a análise das relações estabelecidas a partir delas constituem elementos de alta relevância para um trabalho de análise interpretativa. Tal identificação leva o leitor a ativar sua competência comunicativa e a estabelecer uma interação mais próxima com o texto, destacando elementos, descartando outros, (re)construindo estratégias de leitura que o levam a produzir sentido textual. Desse modo, a identificação das palavras-chave pode auxiliar o leitor nesse trabalho. Isso porque essas palavras possuem o poder de conduzir a construção de “fios condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 111) que ajudam a identificar o tema principal do texto e as informações dado/novo, ativar conhecimentos de mundo do leitor, auxiliar no estabelecimento de opiniões próprias do leitor, hierarquizar sentidos globais ou macroestruturas (DIJK; KINTSCH, 1983). O que se propõe neste trabalho é que, a partir da localização de palavras-chave e de relações que ocorrem a partir delas, o leitor possa desenvolver a sua competência comunicativa ao interpretar um texto, ancorando-se em marcas linguísticas ali presentes e tecendo relações de sentido com todos os conhecimentos por ele armazenados. Assim, assumindo que as interações entre as palavras de um texto e os conhecimentos prévios do leitor são elementos importantes na interpretação textual, o objetivo desta pesquisa é analisar de que maneira essas relações auxiliam o leitor no desenvolvimento da comunicação com o texto, partindo da identificação das palavras-chave. Para a coleta de dados, duas turmas de 3º Ano de ensino médio de uma escola pública da cidade de Cascavel-PR foram selecionadas e pediu-se aos alunos para identificarem até cinco palavras-chave em três textos com gêneros e temas diferentes, justificando suas escolhas. A análise foi conduzida com o intuito de verificar como as palavras-chave apontadas pelos alunos revelam sentidos e os auxiliam no processo interpretativo. Os dados demonstraram, de forma genérica, que as palavras-chave funcionaram como uma superestratégia (KATO, 1999), ou como um elemento importante da competência estratégica dos leitores (HYMES, 1995) na ancoragem de diversos processos do ato interpretativo, tais como a hierarquização de sentidos, a organização das informações textuais, a ativação de conhecimentos de mundo armazenados pelo leitor, e que influem na produção do sentido, na confirmação ou reformulação das possibilidades de leitura construídas pelo leitor e na negociação de sentidos. PALAVRAS-CHAVE: Interpretação comunicativa, sentidos textuais. de textos, palavras-chave, competência 10 ABSTRACT Text comprehension is a complex process which depends either on linguistic aspects or cognitive and extra linguistic ones. To interpret a text, the reader must, initially, identify which information is relevant and formulate mental representations about what the message is in order to establish communication. So, the reader has to hypothesize, make inferences and activate his previous knowledge, which include either linguistic and text knowledge, which are taken as an initial point, or world knowledge – which means extra linguistic information (ECO, 1979; KOCH, 2009; KLEIMAN, 2002). Also, the reader must locate the main ideas inside the text, which are expressed in the relation among lexical items and its lexical, semantic and pragmatic features. It seems reasonable to admit that the identification of specific words of a text and the analysis of the relation established based on them are considered relevant elements to text comprehension. Such identification makes the reader activate his communicative competence and establish a closer interaction with the text, highlighting some elements, rejecting others, (re)constructing reading strategies which lead to text meaning production. Therefore, keywords identification can help the readers on text interpretation activity. This is so because such words have the power of conducting the semantic guide strings (CAVALCANTI, 1989) which help to recognize main theme or given-new relations on the text, activate reader´s world knowledge, assist on the establishment of readers own opinions, detach global meanings or macrostructures (DIJK; KINTSCH, 1983). What is mainly proposed in this research is that considering the keywords location in a text and the observation of their relations as a primary base, readers can develop their communicative competence in order to interpret a text, getting fixed on linguistic marks and constructing meaning relations with previous knowledge. So, assuming that text words interaction and readers’ previous knowledge are relevant elements in text interpretation, the goal of this research is analyzing the way these relations help readers on developing their communication with the text, based on keywords identification. For the data collect, two groups of third grade students in a public high school in the city of Cascavel – PR were selected. They were requested to identify up to five keywords in three texts with different genders and themes, and explain why they selected such words. Analysis was conducted in order to discuss how the keywords indicated by the students revealed text meaning and helped them on the interpretation process. Data have shown that, in a general way, keywords were used as a super strategy (KATO, 1999), or as an important element of readers strategic competence (HYMES, 1995) on fixing different processes of interpretation acts, such as identifying main meanings, organizing text information, activating readers previous knowledge which influence on the way meanings are constructed, text interpretation possibilities are confirmed or reformulated by the reader, and meanings negotiation are established. KEYWORDS: Text interpretation, keywords, communicative competence, text meanings. 11 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Modelo de interação verbal............................................................................. 82 FIGURA 2 – Divisão dos sintagmas segundo Halliday (1985) ............................................ 84 FIGURA 3 – A função da palavra-chave ............................................................................. 285 12 LISTA DE QUADROS QUADRO 1 – Os níveis de cooperação textual ................................................................... .. 41 QUADRO 2 – Relação entre processos e participantes ........................................................ .. 87 QUADRO 3 – Relações entre função, organização e sistema .............................................. .. 88 QUADRO 4 – Atividades realizadas nas coletas piloto e definitiva .................................... 143 QUADRO 5 – Organização da discussão de dados .............................................................. 146 13 LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 – Expectativas profissionais dos informantes das turmas A e B ................... 135 GRÁFICO 2 – Frequência das leituras das turmas A e B .................................................... 136 GRÁFICO 3 – Tipos de leituras realizados pelas turmas A e B .......................................... ..137 GRÁFICO 4 – As dimensões da competência comunicativa nos extratos da escolha das palavras-chave ....................................................................................................................... 157 GRÁFICO 5 – A classificação da utilização das palavras-chave nas justificativas dos estudantes .............................................................................................................................. 179 GRÁFICO 6 – Palavras-chave indicadas que revelam fatores sociointerculturais .............. 200 14 LISTA DE TABELAS TABELA 1 – A utilização das competências na escolha das palavras-chave ...................... 153 TABELA 2 – A incidência da competência gramatical nas justificativas dos alunos .......... 158 TABELA 3 – A incidência da competência discursiva nas justificativas dos alunos .......... 162 TABELA 4 – Levantamento das palavras-chave – Texto 01 ............................................... 164 TABELA 5 – Levantamento das palavras-chave – Texto 02 ............................................... 169 TABELA 6 – Levantamento das palavras-chave – Texto 03 ............................................... 175 TABELA 7 – A incidência da competência sociointercultural nas justificativas dos alunos ..................................................................................................................................... 182 TABELA 8 – Palavras-chave que indicam a ativação de fatores sociointerculturais........... 198 TABELA 9 – A incidência da competência sociointercultural e discursiva nas justificativas dos alunos ......................................................................................................... 203 TABELA 10 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 1........... 226 TABELA 11 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – texto 1 ............... 228 TABELA 12 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 2........... 239 TABELA 13 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 2 .............. 240 TABELA 14 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – Texto 3 ......... 249 TABELA 15 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 3 .............. 252 15 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS DINTER – Doutorado Interinstitucional UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná UFBA - Universidade Federal da Bahia LC - Linguística de Corpus LA - Linguística Aplicada LE - Língua estrangeira LM - Língua materna A.1.3.4 Classificação dos informantes por turma (turma A), Texto de pesquisa (texto 1), Atividade considerada (atividade 3), leitor (informante 4). Cap. Capítulo 16 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1 LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ....................................................... 1.1 LÍNGUA E SUJEITO LEITOR ...................................................................................... 1.2 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO LINGUÍSTICA................................................. 1.3 A LEITURA E O FUNCIONAMENTO DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO ..... 1.4 OS TIPOS DE CONHECIMENTO E SUA INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO .. 1.4.1 O conhecimento linguístico .......................................................................................... 1.4.2 O conhecimento textual ................................................................................................ 1.4.3 Os conhecimentos de mundo ........................................................................................ 1.4.3.1 Os esquemas de conhecimento .................................................................................. 1.5 ESTRATÉGIAS DE LEITURA ...................................................................................... 18 24 24 29 39 46 47 49 54 64 68 2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ..... 73 2.1 O CONCEITO DE COMPETÊNCIA ............................................................................ 75 2.2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA......................................................................... 77 2.2.1 A competência gramatical ........................................................................................... 81 2.2.2 A competência sociointercultural ................................................................................. 88 2.2.3 A competência discursiva ............................................................................................. 98 2.2.4 A competência estratégica ............................................................................................ 105 2.3 A PALAVRA-CHAVE ................................................................................................... 109 3 PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................................. 128 3.1 AS DATAS E O NÚMERO DE AULAS DA(S) COLETA(S) ...................................... 130 3.2 A ESCOLHA E O PERFIL DAS TURMAS .................................................................. 131 3.3 A SELEÇÃO DOS TEXTOS DE PESQUISA................................................................ 138 3.4 AS ATIVIDADES REALIZADAS ................................................................................. 142 3.5 OS PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE DE DADOS ............................................... 146 3.5.1 A análise do primeiro questionamento de pesquisa ..................................................... 147 3.5.2 A análise do segundo e terceiro questionamentos de pesquisa .................................... 148 4 O USO DA PALAVRA-CHAVE COMO ESTRATÉGIA PARA COMPREENSÃO TEXTUAL – A UTILIZAÇÃO DA COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS .............................................. 151 4.1 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO TEXTUAL ............ 151 4.1.1 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência gramatical. ....... 157 4.1.2 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência discursiva ......... 162 4.1.3 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência sociointercultural. ................................................................................................................. 181 4.1.4 O diálogo entre as competências – a utilização da competência comunicativa como forma de interagir com o texto .................................................................................... 200 5 A PALAVRA-CHAVE COMO GUIA NA LEITURA, CONSTRUÇÃO E NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS ...................................................................................... 223 5.1 A (RE)CONSTRUÇÃO DAS POSSIBILIDADES INICIAIS DE LEITURA E A FOCALIZAÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS .................................................................... 225 5.2 A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS ................................................................................ 261 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 289 17 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 298 Volume II APÊNDICES Apêndice A - Plano de trabalho da coleta piloto ................................................................... 307 Apêndice B - Plano de trabalho da coleta definitiva ............................................................. 311 Apêndice C - Questionário sociocultural aplicado às turmas ................................................ 318 ANEXOS Anexo A - Os dados dos questionários socioculturais .......................................................... 322 Anexo B - Dados das turmas A e B ....................................................................................... 332 Anexo C - Levantamento das palavras-chave indicadas pelos alunos .................................. 405 18 INTRODUÇÃO Interpretar um texto é um processo que envolve diferentes aspectos que não a simples leitura e decodificação das palavras ali presentes. As questões linguísticas presentes no texto levam o leitor a compreender os objetivos do autor com a produção textual e a estabelecer relações com o seu próprio conhecimento para construir a compreensão. Pode-se dizer com isso que o processo interpretativo se inicia nas relações linguísticas entre as palavras em um texto e prossegue na interação com os mais diversos tipos de conhecimento armazenados pelo leitor no contato com a realidade por intermédio da língua. Pesquisadores têm demonstrado a importância de se considerar os níveis de compreensão dos alunos, tais como o conhecimento de mundo ou enciclopédico, o processo de reconstrução das informações presentes na leitura, o conhecimento textual, as capacidades cognitiva e de decodificação linguística envolvidos na interação autorleitor (KLEIMAN, 2001, 2004; KATO, 1999; KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). O que chama a atenção, no entanto, é um ponto em comum entre as pesquisas realizadas em leitura: considerar os aspectos envolvidos no processo de interpretação textual. Argumenta-se a favor de um processo interacional e dialógico entre autor e leitor por meio daquilo que está exposto no texto (KLEIMAN, 2002; COLOMER;CAMPS, 2002; CAVALCANTI, 1989). Nessa relação, o leitor depara-se com o que está linguisticamente exposto na página e movimenta todos os seus conhecimentos prévios que incluem aspectos linguísticos, textuais e de mundo, para formular uma representação do texto. Ou seja, o leitor não é passivo na leitura; ao contrário, ele ativa toda sua carga de conhecimentos e os utiliza de forma estratégica para realizar inferências, conectar informações, procurar marcas linguísticas e, assim, construir sentido(s) para o texto. Desse modo, o processo de compreensão textual é complexo e demanda de uma série de atitudes por parte do leitor para construí-lo. Vários autores afirmam que há pistas linguísticas no texto que servem de apoio para que o leitor estabeleça essa interação durante a leitura (KLEIMAN, 2002, 2004; CAVALCANTI, 1989; ANTUNES, 2012; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Reforça-se, portanto, com base nesses pesquisadores, a ideia de que há, de fato, na manifestação textual, elementos que possibilitam o estabelecimento de uma relação interacional durante a leitura, e que 19 levam à ativação de aspectos já conhecidos pelo leitor que incluem o conhecimento da língua em si, dos gêneros e tipos textuais e dos conhecimentos construídos social e culturalmente que o levam à representação formal do texto. O que se quer dizer com isso é que, ao ler um texto, o leitor ativa a sua competência comunicativa (HYMES, 1995; LLOBERA, 1995; SAVIGNON, 1997) para estabelecer comunicação e construir sentidos. A competência comunicativa inclui a habilidade de usar as formas da língua em contextos adequados para interagir com o outro, neste caso, o autor, a partir de: a) características próprias da língua, tais como as organizações linguísticas de frases, parágrafos, textos e o contexto em que ocorrem; e b) das atitudes a ela relacionadas, tais como construir e negociar sentidos, juízos de valor e características socioculturais (HYMES, 1995). Ou seja, é uma ativação de diferentes dimensões da competência comunicativa que faz com que o usuário estabeleça uma comunicação eficaz com o texto e produza representações a partir dele. Tais dimensões envolvem: a) A competência gramatical: a movimentação dos conhecimentos a respeito dos elementos da língua e a combinação entre eles (HORNBERGER, 1995), tais como aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e lexicais; b) A competência discursiva: a conexão realizada entre o uso da língua e enunciados ou textos previamente conhecidos que levam o leitor a estabelecer laços textuais que ligam os sentidos intra e intertextos (CELCEMURCIA, 2007); c) A competência sociolinguística: a ativação e o desenvolvimento de conhecimentos que envolvem a adequação do uso da língua a fatores e a regras sociais que influem no ato comunicativo (HYMES, 1995). Considerase também, para este trabalho, a ideia de que fatores de contexto (SCOLLON; SCOLLON, 2001) e a movimentação da cultura influenciam na produção de sentidos (KRAMSCH, 1998; MENDES, 2008; 2011). Sendo assim, propõe-se que o leitor desenvolve tanto aspectos sociais, quanto o contexto de vivência e as diferentes culturas movimentadas ao interpretar um texto. (cf. cap. 2.2.2). Com base neste argumento, a competência sociolinguística será, então, renomeada competência sociointercultural; d) A competência estratégica: o domínio das estratégias de comunicação verbal e não verbal que podem ser utilizadas para estabelecer comunicação (CANALE, 1995). 20 Parte-se, assim, nesta pesquisa de tese, do pressuposto de que leitura é um processo interacional entre autor e leitor por meio do texto (KLEIMAN, 2002; 2004), o qual demanda uma atitude estratégica do leitor para a ativação de sua competência comunicativa (HYMES, 1995) na produção de sentidos. Antunes (2012) afirma que o léxico - ou as palavras - é um elemento da composição do texto que apresenta funções de “criar e sinalizar a expressão dos sentidos e intenções, os nexos de coesão, as pistas de coerência” (ANTUNES, 2012, p. 24). Neste mesmo sentido, Cavalcanti (1989) argumenta que, a partir de itens lexicais chave, é possível estabelecer uma interação entre leitor - autor - texto, desenvolvendo-se uma interpretação. A autora explica ainda que há itens considerados “contextualmente relevantes” (CAVALCANTI, 1989, p. 122), os quais refletem o ponto de vista do leitor na compreensão geral. Neste sentido, é possível observar a forma como tais itens se relacionam ou tecem “fios condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 111) que possibilitam ao leitor a construção da interpretação. E, ainda, é importante, na visão da autora, considerar a maneira como os chamados itens lexicais chave e as consequentes relações semânticas podem ser observados pelo leitor na compreensão de um texto. Assim, considera-se que as palavras escolhidas pelo autor para a construção textual não são aleatórias, pois elas estão ali justamente porque produzem sentidos que concretizam o objetivo do autor numa relação de sentidos. Desse modo, o leitor, ao perceber essas relações, encontra no texto um sentido específico e o reconstrói em macroestruturas (DIJK, 1977a; 1997b; DIJK; KINTSCH, 1983) impondo um sentido global que interage com os seus conhecimentos prévios (KLEIMAN, 2002; 2004; KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010; COLOMER; CAMPS, 2002). Há, então, uma relação constante entre: a) marcas linguísticas identificadas pelo leitor em um texto, as quais são denominadas nesse trabalho de palavras-chave; b) os conhecimentos prévios do leitor; e c) a forma estratégica como os dois primeiros elementos interagem na produção de sentidos. Sendo assim, o problema principal que se coloca neste trabalho é pesquisar de que maneira a seleção das palavras-chave pode ajudar o leitor na movimentação de seu conhecimento prévio e funcionar como uma estratégia para estabelecer comunicação durante a leitura e construir interpretação textual. Com base neste problema, três questionamentos norteadores são propostos para esta pesquisa: 1) Ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características diversas tais como gramaticais (ex. a classe gramatical da palavra ou suas 21 relações semânticas), sociointerculturais (ex. um sentido social, ideológico ou cultural construído para a palavra) ou discursivas (ex. a relação temarema na frase ou no texto) relacionadas à competência comunicativa do leitor e que o levam a (re)construir sentido(s) do texto(s)? 2) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais feitas pelo leitor durante o processo de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de sentidos? 3) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si mesmo? Para que se possam responder os questionamentos apresentados, organiza-se este trabalho de tese em cinco capítulos. No primeiro deles, discute-se como o processo de leitura é compreendido e os conhecimentos envolvidos no processo de interpretação. Fala-se sobre o funcionamento da leitura, os fatores envolvidos, a visão de língua e texto, e esclarecem-se pressupostos teóricos que baseiam todo o processo de construção desta pesquisa. No segundo capítulo, fala-se sobre o conceito de competência comunicativa e a maneira como os leitores a desenvolvem para construir comunicação, no caso deste texto, interação durante a leitura. Discute-se também sobre o conceito de palavra-chave e se argumenta a favor do uso dessas palavras como uma estratégia (portanto, também como uma forma de desenvolver a competência estratégica dos leitores) na construção e organização dos sentidos textuais. No terceiro capítulo, descrevem-se os aspectos metodológicos utilizados para a construção da pesquisa. Selecionam-se duas turmas do 3º ano de ensino médio de uma escola pública da cidade de Cascavel – PR e três textos utilizados para a observação das leituras dos estudantes. Também se explica a construção dos planos de trabalho, os quais foram realizados em dois momentos – coleta piloto e definitiva - com atividades escritas para a verificação da maneira como os alunos interagem com o texto durante a leitura e os motivos pelos quais selecionam as palavras-chave. No quarto capítulo, discute-se a seleção das palavras-chave pelos alunos visando responder ao primeiro questionamento da pesquisa. Sendo assim, analisam-se, nos dados, os argumentos dos leitores para a construção da sua interpretação, considerando aspectos discursivos, gramaticais ou sociointerculturais. Busca-se demonstrar, neste 22 capítulo, a maneira com que a maioria dos leitores construiu interpretação e como eles basearam suas escolhas de palavras-chave para desenvolver uma série de aspectos da competência comunicativa envolvidos no processo. No quinto capítulo, discutem-se as atividades apresentadas aos alunos como um todo, procurando responder os segundo e terceiro questionamentos da pesquisa, e demonstrando a maneira como os leitores constroem, fixam e negociam sentidos estabelecendo relações de sentido intra e intertexto. A partir da seleção de informantes participantes da pesquisa, demonstram-se como eles relacionaram os fios semânticos condutores (CAVALCANTI, 1989) da sua interpretação desde o momento da préleitura até o processo de discussão do texto. Nas Considerações Finais, tecem-se discussões a respeito das observações feitas nos dados que embasam as respostas às questões norteadoras e que levam a reflexões mais intensas sobre o processo de leitura, o desenvolvimento da competência comunicativa e a consideração dos diferentes fatores envolvidos quando se fala em compreensão de textos. Além disso, apresentam-se as referências utilizadas para a construção, tessitura das reflexões e propostas realizadas para esse trabalho e ainda, mostram-se, nos apêndices, os planos de trabalho utilizados para as coletas de dados e o questionário sociocultural aplicado aos alunos. Nos anexos, expõem-se os dados classificados e utilizados para a análise. Em suma, nessa pesquisa, investiga-se a maneira como os alunos ancoram seus conhecimentos a partir do desenvolvimento da competência comunicativa para compreender os mais diversos tipos de texto. Nesse sentido, discutiu-se a maneira com que os leitores teceram relações de sentido durante o processo de interação na leitura com o intuito de desvendar alguns dos elementos envolvidos ali que auxiliam professores e leitores no desenvolvimento de um diálogo mais eficaz nas aulas de interpretação textual. É importante destacar que a análise foi realizada tendo como ponto de partida a palavra-chave o que não esgota as possibilidades de discussão sobre a função dessas palavras no desenvolvimento da competência comunicativa e no estabelecimento de guias interpretativos pelos leitores. Ao contrário, esta pesquisa visa fomentar ainda mais discussões em que se possa considerar o processo estratégico que ocorre no momento da leitura, desenvolvendo a competência comunicativa dos alunos leitores e os levando a 23 um processo constante de negociação de sentidos que podem enriquecer ainda mais o trabalho com leitura em contexto pedagógico. 24 1 LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS O processo de ler e interpretar um texto implica no conhecimento, dentre outros aspectos, sobre quais caminhos percorrer para organizar as ideias que nele estão contidas (CASTELLO-PEREIRA, 2003). No entanto, esse processo de procurar e organizar as informações textuais não é uma tarefa das mais fáceis, pois envolve vários aspectos, complexos por natureza, que incluem questões cognitivas, linguísticas e extralinguísticas. A compreensão de um texto representa uma possibilidade de desenvolvimento intelectual, de representação e formulação do conhecimento. Quando um leitor consegue interpretar e compreender as ideias contidas num texto, o exercício mental a que ele se submete envolve múltiplas possibilidades e esquemas, além de exigir aprendizado. Embora ainda não se tenha certeza sobre tudo o que ocorre no nível cognitivo do indivíduo durante a leitura, evidências apontam para vários mecanismos desencadeados no processo, dos quais, provavelmente, nem mesmo o leitor tem consciência. Discutem-se, nesse capítulo, as formas pelas quais o processo de leitura e interpretação é construído. Não se pretende, nesse trabalho, esgotar todas as formas de (re)pensar o processo de leitura, mas fala-se sobre um processo de interação entre leitor e autor via texto, no qual o sentido vai, aos poucos, sendo construído. Assim, divide-se este capítulo em subtópicos que perpassam o conceito de língua e sujeito (leitor), texto, a discussão sobre o processo de leitura e interpretação, os mecanismos envolvidos nele, assim como a apresentação dos vários tipos de conhecimento que devem ser considerados ao trabalhar-se com interpretação textual. 1.1 LÍNGUA E SUJEITO (LEITOR) O ser humano, enquanto ser basicamente social, tem a necessidade de se comunicar com seus pares para transmitir informações, convencer, persuadir, informar. Essa necessidade é satisfeita pela utilização da língua enquanto manifestação verbal, a qual pode se realizar a partir das mais variadas formas de concretização dos signos linguísticos, tais como oral, imagético, gestual ou escrito. Sendo assim, a língua (e suas diferentes formas de manifestação) é um objeto de pesquisa, com muitas possibilidades de discussão e que vem há muito tempo tentando ser explicada por pesquisadores. 25 Destaca-se que não se pretende discutir aqui sobre todas as diferentes formas de pensar a língua. Ao invés disso, vai-se explicá-la, basicamente, como forma de interação verbal entre indivíduos participantes de uma comunidade. Mas como a língua se constitui? Na visão de Bakhtin (2009), a língua só pode ser pensada a partir da interação entre indivíduos de uma comunidade. Isso quer dizer que a língua é produto das relações entre sujeitos inseridos em uma sociedade, organizados de uma determinada maneira, e, ao mesmo tempo, é a partir dela que essas relações se constroem. O autor afirma que a língua ganha vida a partir das interações entre falantes de uma comunidade podendo ser alterada conforme a evolução social dessa comunidade. Para ele, “a língua aparece como uma corrente evolutiva ininterrupta” (BAKHTIN, 2009, p. 93), em que significados sociais são construídos, os signos. Pode-se dizer que, nessa visão, a língua não é apenas um sinal linguístico gráfico ou fonético, mas a produção de uma realidade compartilhada e construída pelos membros de uma sociedade na qual questões ideológicas, sociais, culturais estão inseridas, constituindo também as consciências individuais. Essas consciências são resultado de construções resultantes da interação pela linguagem. Em outros termos, a língua é constituída de signos que resultam de uma interação pela linguagem. Essa interação interfere, por sua vez, na compreensão da língua - em qualquer tipo de compreensão dada por meio da linguagem, no caso desta pesquisa por meio de textos escritos - e na constituição das consciências individuais. Nas palavras de Bakhtin (2009), [...] não basta colocar dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados que formem um grupo (uma unidade social); só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social (BAKHTIN, 2009, p. 35). A língua é, assim, produto de uma construção dos sujeitos de uma comunidade, o que se dá pela interação das consciências individuais, as quais, por sua vez, foram previamente construídas também pela língua. Ou seja, há uma relação constante de construção e reconstrução da língua e da consciência dos indivíduos no processo de interação verbal. Isso significa que quando se usa a língua para interagir verbalmente com membros da comunidade se (re)constroem signos e pode-se estar alterando a forma 26 como as consciências e a própria língua se constituem. Sendo assim, “realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico, e, portanto, também o signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados.” (BAKHTIN, 2009, p. 45). Ao perceber-se como parte da construção da língua o usuário se dá conta que é necessário utilizar o contexto do qual a língua emerge para dar a ela sentido. Isso significa que, na visão bakhtiniana, a língua não pode ser resumida a formas linguísticas utilizadas para comunicação e sim como resultado do processo de construção sígnica ocorrido entre falantes. Na ótica do autor: para o locutor, o que importa é aquilo que permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o locutor a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual em si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível [...] o receptor, pertencente à mesma comunidade linguística, também considera a forma linguística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo (BAKHTIN, 2009, p. 96). Há assim, a participação de um conjunto de contextos possíveis para a construção da enunciação1. É na relação das consciências dos sujeitos com as relações mais diversas ali presentes (sociais, econômicas, culturais) que a língua se constitui como tal. Isso significa que, ao ser utilizada para comunicação, a língua está carregada de sentidos vivenciais. Bakhtin (2009) utiliza o termo ‘palavra2’ para referir-se a essa língua dotada de significado social. Sem essa significação ela é apenas um sinal não compreensível pela comunidade. Para que seja compreendida, a palavra precisa ser transformada em enunciação, que se realiza como resposta a alguma coisa na construção de um diálogo. Assim, a palavra está em um território comum entre o locutor e o interlocutor, fazendo com que os sujeitos da interação dela tomem posse dentro de um contexto social. Em outros termos, a palavra é influenciada pelas relações interacionais entre indivíduos 1 Enunciação, na visão de Bakhtin (2009), é um produto de um ato de fala, com objetivos específicos e concretizado numa situação comunicativa. É de natureza social, isto é, produto de dois indivíduos socialmente organizados. 2 Bakhtin (2009) utiliza o termo ‘palavra’ para referir-se à manifestação da língua como enunciação. Isso significa que o termo ‘palavra’ utilizado aqui está voltado a um contexto mais amplo, como língua ou enunciação. Neste trabalho, mais adiante (cf. cap. 2.2) fala-se mais sobre o conceito de ‘palavra’. Ainda, utiliza-se o termo palavra-chave que se refere às palavras utilizadas pelos leitores para interagir com o texto, carregar e construir sentidos textuais. 27 numa relação dialógica de (re)construção. Nas palavras de Dahlet (1997), “a língua aparece então sob o efeito da dialogização da memória dos locutores como necessariamente ouvida e construída por cada um através de um jogo de signos – palavras instáveis” (DAHLET, 1997, p. 68). Neste trabalho, admite-se que o texto constitui-se como uma enunciação, resultado de um ato de fala, com objetivos estabelecidos e voltados para um interlocutor que deve, por sua vez, compreendê-lo na situação real de produção, ou seja, na comunidade linguística. Nesse sentido, a interpretação de textos seria uma forma de construção na qual o texto (ou a enunciação conforme denominada por Bakhtin, 2009) torna-se meio de expressão e de criação dos interlocutores. Assim, o texto torna-se, de acordo com Koch e Elias (2010), uma forma de manifestação da língua enquanto lugar de interação de sujeitos sociais, os quais dialogicamente se constituem e são constituídos, e que por meio de ações linguísticas e sociocognitivas constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes põe à disposição (KOCH; ELIAS, 2010, p. 07). Em suma, a língua é produto da interação de sujeitos sociais, que numa relação de (re)construção constante nela interferem e ao mesmo tempo são por ela influenciados armazenando para si uma carga de conhecimentos (também socialmente construídos – vide ‘conhecimentos de mundo’ no cap. 1.3.4 e competência comunicativa no cap. 2). Neste trabalho, assume-se que o texto constitui-se como uma das formas de manifestação da língua construída socialmente. Mas qual o papel do sujeito perante o texto? Se tomarmos a visão de leitura enquanto uma interação entre autor e leitor via texto3 (KLEIMAN, 2002; CAVALCANTI, 1989), esse sujeito não apenas recebe o texto como sinal linguístico, mas com ele interage, construindo conhecimento (LENCASTRE, 2003). Na visão de Bakhtin (2009) o sujeito torna-se parte do processo de construção da língua e é o corresponsável pela concretização da palavra enquanto ato enunciativo. É na interação da palavra com os infinitos conhecimentos que o sujeito possui e utiliza durante o processo que significados são construídos. Viu-se que o sujeito tem uma consciência individual construída por meio da utilização da língua e essa consciência, por interferência da língua, tem características 3 Discute-se a concepção do processo de leitura na seção 1.3 deste trabalho. 28 compartilhadas com a comunidade em que ele vive. Ao interagir com outros usuários da língua ele utiliza sua consciência e, ao mesmo tempo, deixa-se (re)construir pelo processo da interação verbal. Ou seja, o sujeito não é nem produto e nem produtor, mas um coprodutor da língua ao trocar enunciações constantes. Neste trabalho, fala-se sobre o processo de interpretação textual, o que permite denominar o sujeito, daqui em diante, como sujeito leitor, ou simplesmente leitor. Este deve ser percebido como aquele que constrói significado, utilizando as pistas do texto e relacionando-as com sua consciência já existente (LENCASTRE, 2003). Isso porque, no ato de compreensão textual o sujeito leitor se coloca na posição de interlocutor e é na interação com as palavras proferidas pelo autor que ele consegue construir compreensão. A interpretação dada ao texto é a contrapalavra. Ou seja, ela não é nem a palavra única dada pelo leitor e nem a palavra única do autor (BAKHTIN, 2009); é, portanto, resultado da interação entre ambos. Neste sentido o sujeito leitor é ativo, utilizando seus conhecimentos, formulando perguntas, criando estratégias de leitura, (re)formulando pensamentos e dialogando com o autor. Ele segue as pistas linguísticas deixadas no texto e com elas interage construindo conhecimento. Sendo assim, as palavras do texto só assumem um sentido4 a partir da construção de uma representação feita pela atividade interativa do sujeito leitor. Em sua atividade de leitura, o sujeito tem uma responsabilidade para com a construção da interação: isso inclui releituras, análise de palavras e frases, inferências, ativação de conhecimentos, construção da representação do sentido global (KLEIMAN, 2002). Para Dijk e Kintsch (1983) o sujeito leitor faz adivinhações a partir de um conjunto de informações textuais iniciais as quais são sustentadas por vários tipos de informação tais como títulos, palavras, sentenças tópico, conhecimento sobre possíveis ações ou eventos subsequentes, e informação contextual (DIJK; KINTSCH, 1983). Assim, o leitor entra não somente com a decodificação do material linguístico do texto, mas com todo o seu sistema cognitivo construído pela utilização da língua na compreensão leitora. Sendo assim, também na visão de Dijk e Kintsch (1983), o sujeito leitor não é um mero observador do discurso, mas um participante ativo na relação comunicativa. O discurso é feito para afetar ações verbais e não verbais ou suas condições tais como conhecimento, crenças, opiniões ou motivações. 4 Fala-se mais sobre o conceito de palavra e significado, sentido no cap. 2.3 deste trabalho de tese. 29 Reitera-se aqui a visão de língua e sujeito (leitor) para este trabalho: língua é compreendida como uma construção de sujeitos inseridos em uma situação social, que auxilia na formação das consciências individuais e ao mesmo tempo é (re)construída por estas. O sujeito (leitor) é aquele que ao deparar-se com a enunciação (no caso deste trabalho o texto escrito), utiliza ativamente sua carga de conhecimentos socialmente construídos para interagir e produzir novos conhecimentos e compreensão. Tendo definido alguns dos conceitos que embasam o processo de construção da leitura (língua e sujeito leitor), trata-se, a partir de agora, do objeto da leitura: o texto. Procura-se explicar como ele é visto nesse processo de interação autor-leitor. 1.2 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO LINGUÍSTICA Conforme foi discutido na seção anterior, a língua pode manifestar-se de diferentes formas a partir da interação entre os indivíduos de uma determinada comunidade. Para os fins do presente trabalho de tese, foca-se a discussão em textos escritos. Assim, antes de falar sobre a leitura e seu processo propriamente dito, faz-se necessário explicar o ponto de partida pelo qual ela se realiza, ou seja, o texto escrito. Este deve apresentar uma série de características para que possa, de fato, transmitir comunicação. De acordo com Koch (2009), o texto escrito deve ser considerado como uma forma de atividade verbal humana que se utiliza de signos linguísticos escritos para demonstrar ações individuais com objetivos e motivados por alguma coisa. Isto é, para que um texto se concretize enquanto tal, parte-se de uma motivação psicossocial que se materializa numa manifestação linguística (KOCH, 2009). Essa pesquisadora procura demonstrar ainda que o objeto textual é caracterizado a partir das intenções do usuário da língua (o autor) que, em uma determinada situação comunicativa, seleciona o que e como vai dizer. Nas palavras da autora: [...] existe em primeiro lugar a necessidade social, para cuja realização se elabora um texto, cujo conteúdo se fixa de acordo com a situação comunicativa e a intenção do falante, passo a passo chega-se ao nível superficial do texto em forma de elementos linguísticos sucessivos [...] (KOCH, 2009, p. 17) Ou seja, para atingir seus objetivos, o autor faz uso de elementos de cunho linguístico em interação com um contexto social e cultural com a intenção de atingir seus interlocutores. Para tanto, ele precisa planejar, escolher o léxico mais adequado e 30 considerar os conhecimentos compartilhados com o leitor. Isto quer dizer que há sempre um determinado objetivo para a produção textual, que só pode tornar-se aparente por meio da utilização do código linguístico. Numa linha de pensamento similar, Beaugrande e Dressler (1981) postulam que um texto funciona como uma ocorrência comunicativa que segue determinados princípios5, os quais funcionam como um conjunto de elementos interligados. Nesse funcionamento, eles tornam-se um sistema real no qual opções foram realizadas dentro de uma estrutura particular para transmitir objetivos de comunicação. Assim, o texto é um sistema de elementos interconectados, no qual se inserem diversos tipos de conhecimento da comunidade linguística dos falantes, e, a partir do qual, o autor faz determinadas escolhas com um objetivo estabelecido. Para Beaugrande e Dressler (1981), a manifestação textual é uma forma global de estabelecimento de sentido por meio de diferentes processos cognitivos e utilizações de diferentes tipos de conhecimentos revelados no uso da língua. Na visão de Dijk (1977a; 2002), o texto é um elemento macroestrutural que fornece subsídios sintáticos, semânticos e pragmáticos para a construção de um sentido. Para este autor, o produtor do texto, tendo uma determinada intenção, vai desdobrando na estrutura linguística uma ideia global e vai construindo sentidos que devem ser recuperados pelo leitor, que, no ato comunicativo, utiliza-se também de elementos sociocognitivos. Kramsch (1993) afirma que geralmente os aprendizes são expostos ao texto como se esse fosse um objeto fechado sobre o qual não se tem o controle do significado. A autora lembra que, ao contrário, é necessário pensar no texto como um ato comunicativo que interage com um contexto específico e nessa interação produz sentidos. Ou seja, o texto é produto da interação entre o que está escrito em uma página e o contexto, principalmente cultural e histórico (KRAMSCH, 1993). Sendo assim, o texto não é simplesmente um conjunto de sequências de frases que se juntam para formar um sentido6 genérico. Antes, ele constitui-se como um elemento linguístico que interage com um contexto social e cognitivo do autor e do leitor e, nessa interação, determinadas proposições são construídas. Em outros termos, há uma concretização de elementos linguísticos no texto que são compreendidos na sua 5 6 Vide os princípios da textualidade na seção 1.2. Fala-se mais sobre o conceito de sentido na seção 2.3 deste trabalho de tese. 31 interação com diversos tipos de conhecimentos extralinguísticos (sociais, culturais, cognitivos) e é a partir dessa relação que eles fazem sentido. Ainda, deve-se dizer que, para que se considere um texto enquanto tal faz-se necessário haver entre leitor e autor a pressuposição de um compartilhamento de conhecimentos da mesma comunidade (KOCH, 2009), isto é, conhecimentos de mundo, convicções, e pressupostos os quais são concretizados por meio das escolhas lexicais do autor. Tal escolha não se dá aleatoriamente, mas é feita especificamente para levar o leitor a ativar esquemas de conhecimentos7 que expressem as intenções do autor ao escrever. Não se quer dizer com isso que o texto baseia-se somente nas intenções do autor. Pelo contrário, essas intenções se caracterizam como uma atividade primária para a realização textual. No entanto, para que haja a concretização do elemento textual, fazse necessário a inserção de ambos, autor e leitor, em uma comunidade, além da organização dos elementos linguísticos, da pressuposição do compartilhamento dos mesmos conhecimentos e da consideração dos conhecimentos de mundo. Koch (2009) argumenta que se deve considerar texto como um elemento que se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros de uma atividade comunicativa global, diante de uma manifestação linguística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional são capazes de construir, para ela, determinado sentido (KOCH, 2009, p. 30) Pode-se dizer, assim, que para que se constitua um texto, é preciso estabelecer para ele um sentido. Do contrário, poderia ser caracterizado somente como um amontoado de palavras que não transmite informação alguma. Na visão de Eco (1993), o texto não é apenas um elemento no qual o autor entra com as palavras e o leitor com o sentido. Para ele, “as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho” (ECO, 1993, p. 28). Isso quer dizer que o texto, na situação de elemento comunicativo, expõe para o leitor alguns sentidos que devem ser observados a partir do léxico selecionado e das suas relações linguísticas. Sendo assim, a interpretação tem limites dentro dessa estrutura linguística. Em outros termos, pode-se dizer que o texto forma-se pelos elementos linguísticos que estão ali presentes e que, também devem ser respeitados na produção de sentido. 7 Vide conceito de esquemas de conhecimento na seção 1.4 32 A partir da discussão dos autores mencionados acima, deve-se enfatizar qual a visão de texto eleita para o presente trabalho. Toma-se como ponto de partida a visão de Koch (2009) de que texto é um elemento comunicativo feito com determinados objetivos para uma situação comunicativa. Ainda, considera-se que, para que se tenha, de fato, um texto, vários tipos de conhecimento sociocognitivo devem se fazer presentes tanto na sua produção quanto na sua leitura, os quais auxiliam na construção de sentidos (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; DIJK, 2002; DIJK; KINTSCH, 1983). E mais, é preciso levar em conta que os elementos linguísticos presentes em um texto limitam a sua interpretação e devem ser ativados com seus significados intrínsecos e textuais e observados pelo leitor para o estabelecimento de compreensão textual (ECO, 1993). Falou-se até aqui sobre o conceito de texto e o que subjaz a esse conceito, e destacou-se que há, para o texto, uma produção de sentidos que não é aleatória – depende dos elementos linguísticos ali presentes – e que interage com diversos tipos de conhecimento – sociais e cognitivos – para que a compreensão se estabeleça. Ou seja, há a influência de uma série de conhecimentos que entram em jogo na produção de sentido textual. Pode-se dizer que os sentidos do texto são construídos a partir da relação entre as palavras formando uma informação global ou uma macroestrutura (DIJK, 1977a; DIJK, 1977b; 2002). Beaugrande e Dressler (1981) elencam dois grupos de elementos que fazem com que a manifestação textual seja concretizada: os elementos linguísticos (ex. coesão e coerência) e os elementos pragmáticos (ex. intencionalidade, aceitabilidade, informatividade, situacionalidade, intertextualidade). Para os autores, esses aspectos constituem o que se pode chamar de “princípios da textualidade”, os quais garantem para o texto a característica de ser comunicativo. Os elementos linguísticos auxiliam no sentido da construção semântica à medida que possibilitam a criação de um determinado retrato para o texto em termos superficiais. Um desses elementos é a coesão, ou seja, a utilização de elementos da língua que têm por função específica estabelecer relações textuais e ir, aos poucos, tecendo a estrutura do texto (KOCH; ELIAS, 2010). Essas relações são internas ao texto e são consideradas semânticas por estabelecer relações de sentido. Nas palavras de Koch e Elias (2010): “A coesão, por estabelecer relações de sentido, diz respeito ao conjunto de recursos semânticos por meio dos quais uma sentença se liga com a que veio antes, aos recursos semânticos mobilizados com o propósito de criar textos” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 16). 33 Beaugrande e Dressler (1981) também concebem a coesão textual como sendo uma interdependência entre os elementos da superfície textual – palavras, frases e orações – e a maneira como estão ligados entre si a partir desses elementos. Para os autores, pode-se dizer que a coesão seria o processo pelo qual uma sequencialização mantém-se no texto por meio da utilização de componentes linguísticos, o que pode ocorrer por diferentes mecanismos, tais como a referência, a substituição, a elipse, a conjunção e a coesão lexical8. No que diz respeito à coerência, Beaugrande e Dressler (1981) a definem como sendo relações não explícitas no texto, mas que são utilizadas pelo leitor para construir sentido. Em outras palavras, coerência é o estabelecimento de uma continuidade de sentidos textuais dados pelas expressões ali presentes em relação com os conhecimentos do leitor. Tais conhecimentos são classificados pelos autores como: a) Conhecimento determinado: aquilo que é aceito para todos os indivíduos de uma mesma comunidade linguística (ex.: todos os humanos são mortais); b) Conhecimento típico: aqueles comuns à maioria dos usuários da língua (ex.: humanos geralmente vivem em comunidades); c) Conhecimento acidental: aqueles que são verdadeiros numa classificação de situações (ex.: alguns humanos podem ser loiros). Ou seja, a coerência não é um elemento dado pelo texto em si mesmo, mas pela relação daquilo que ali está exposto com o que já se conhece dentro de uma cadeia de possibilidades. A coerência é, então, o que permite que os sentidos sejam construídos a partir dos conhecimentos prévios do leitor na interação com a manifestação textual, ou o que permite que o leitor tenha reações do tipo: “este texto faz sentido”. Na visão de Koch e Travaglia (2011) e Beaugrande e Dressler (1981), a coerência é um princípio de interpretabilidade e liga-se ao sentido de forma global. Para os autores a continuidade estabelecida pela coerência se dá num plano conceitual entre os elementos do texto e os processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor e receptor) e não são apenas do tipo lógicos, mas dependem de fatores socioculturais diversos e de fatores interpessoais tais como as intenções da comunicação, as influências do falante, as regras sociais. Nas palavras dos autores: 8 Koch e Travaglia (2011) discutem cada um desses fenômenos separadamente. No entanto, não se atém aqui a eles porque embora façam parte da constituição do texto, não são objetos específicos e principais desse estudo. 34 Considera-se, pois, a coerência como princípio de interpretabilidade, dependente da capacidade dos usuários de recuperar o sentido do texto pelo qual interagem, capacidade essa que pode ter limites variáveis para o mesmo usuário dependendo da situação e para usuários diversos, dependendo de fatores vários (como grau de conhecimento sobre o assunto, grau de conhecimento de um usuário pelo outro, conhecimento dos recursos linguísticos utilizados, grau de integração dos usuários entre si e/ou com o assunto, etc.) (KOCH, TRAVAGLIA, 2011, p. 36) Para Dijk e Kintsch (1983), a coerência também é entendida como o estabelecimento de conexões significativas entre sentenças sucessivas no discurso e é a maior tarefa de compreensão. Para os autores, os usuários da língua estabelecem coerência assim que possível sem esperar pelo resto das orações ou sentenças. Ainda segundo eles, a coerência pode acontecer em diferentes níveis: a) semântico: a relação entre os elementos do texto e seus sentidos. Ou seja, deve haver um respeito com as relações de sentido entre os significados dos termos linguísticos presentes no texto; b) sintático: o uso de meios sintáticos (tais como conectivos, pronomes) para expressar uma coerência semântica. Ou seja, é a utilização de meios sintáticos para (re)estabelecer a continuidade do sentido do texto; c) pragmático: a relação do que está no texto com os atos de fala, ou seja, para a satisfação de necessidades comunicativas, tais como um pedido, uma ordem, uma promessa, uma súplica etc. Deve-se lembrar, no entanto, que a coerência não se dá somente por um desses níveis, mas pela conexão entre eles, o que de uma forma geral auxilia na produção de uma macroestrutura do texto, ou seja, de um sentido geral para ele (DIJK; KINTSCH, 1983). Assim, a coesão e a coerência indicam a maneira pela qual os elementos do texto se juntam para fazer sentido. No entanto, não são capazes, por si mesmas, de garantir a constituição de um texto. Beaugrande e Dressler (1981) elencam, além delas, elementos pragmáticos que também constituem ‘princípios da textualidade’. Tais componentes referem-se às atitudes dos usuários dos textos (tanto produtor9 quanto receptor) e ao contexto de produção e recepção textual. 9 ‘Produtor’ nesse trabalho está sendo usado como referência a quem produz o texto. ‘Receptor’, por sua vez, está sendo usado como referência ao leitor. Opta-se por essa nomenclatura para não se confundir com o termo ‘autor’ quando utilizado no singular para referir-se aos estudiosos escolhidos para construir a posição teórica deste trabalho. 35 Desses elementos, um trata das atitudes do produtor – a intencionalidade – e o outro, do leitor – a aceitabilidade. A intencionalidade refere-se à atitude do produtor de confirmar suas intenções ou objetivos por meio do texto. Isso quer dizer que, ao produzir um texto, o produtor tem objetivos a cumprir e pretende ser coeso e coerente ao utilizar a língua para que seu receptor compreenda esses objetivos. Toda a produção linguística tem uma intencionalidade e procura alcançar objetivos comunicativos. Ainda na discussão sobre a intencionalidade, os pesquisadores utilizam as máximas de Grice (1978 apud BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981) para demonstrar a forma pela qual a produção linguística visa preencher objetivos e intenções. Assim as seguintes características devem ser apresentadas pelo produtor: 1) cooperação: dar uma contribuição conversacional de maneira cooperativa a partir daquilo que lhe é requisitado com um propósito e uma direção estabelecida; 2) quantidade: contribuir numa quantidade adequada à informação almejada (não deve fornecer mais informação que o necessário); 3) qualidade: não dizer o que acredita ser falso ou aquilo em que não há evidências de verdade; 4) relação: ser relevante e usar tipos de conhecimento relacionados ao tópico, úteis para atingir o seu objetivo; 5) maneira: usar formas adequadas de organizar e entregar textos. Deve ser perspicaz (procurar demonstrar que aquilo que serve aos seus objetivos), evitar obscuridade, evitar ambiguidade, ser breve, ser organizado (apresentar seu material na ordem que lhe for requisitado). A partir da aplicação das máximas de Grice, os usuários da língua planejam sua interação comunicativa para alcançar determinados fins e assim gerenciam a situação (atividade de conduzir a situação a um objetivo específico) e a monitoram (fazem uma descrição ou narração das evidências necessárias para o seu objetivo). Deve-se reiterar aqui que as atitudes do receptor também são importantes na constituição do texto como ato comunicativo (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A aceitabilidade diz respeito à atitude dos receptores da língua na comunicação, ou seja, os receptores devem aceitar um enunciado como sendo coesivo e coerente, o que inclui a sua capacidade de restaurar a continuidade do texto quando houver algum tipo de confusão. É um princípio de cooperação do receptor à construção e à recuperação das informações textuais. 36 De acordo com os princípios da intencionalidade e da aceitabilidade, pode-se dizer que, para que um texto constitua-se enquanto comunicação, o falante monta seu plano, prevê a sua contribuição, estabelece suas estratégias de organização das informações e o interlocutor utiliza sua carga de conhecimentos compartilhados para recuperar essas informações e dar sentido para o texto. Se não houver essa cooperação, a textualidade pode ser prejudicada. Observa-se, então, que outros dados também importantes na constituição do texto são a quantidade e a qualidade das informações ali presentes, o que Beaugrande e Dressler (1981) denominam informatividade. Para os autores, é a partir desse princípio que se pode perceber a extensão pela qual uma manifestação linguística é constituída por informação nova ou inesperada para os interlocutores. Na visão dos autores (ibidem, p. 142-143), há diferentes graus de informatividade: a) de primeira ordem: informações (ou nas palavras do autor, “ocorrências”) que são esperadas e têm alto grau de probabilidade de acontecer no texto, geralmente no que diz respeito ao conteúdo; b) de segunda ordem: informações que ultrapassam a probabilidade de frequência mais óbvia e que são necessárias para compor o cenário das informações de primeira ordem; c) de terceira ordem: informações completamente novas e inesperadas dentro do conteúdo textual e são as mais interessantes, embora exijam do leitor maior grau de atenção e recursos de processamento (buscar informações específicas na estrutura textual, no contexto de ocorrência ou nos conhecimentos prévios). É no princípio da informatividade que o receptor do texto utiliza-se de estratégias – tais como inferências, organização de linguagem, sequencialização de informações, identificação de tipos textuais - para ligar o contexto do texto ao mundo real. Pode-se dizer, assim, que a informatividade exerce uma medida de controle importante na seleção e organização de opções sobre o conteúdo informativo presente na comunicação. Há ainda um princípio que indica os fatores pelos quais um texto torna-se relevante para as situações de ocorrência, chamado situacionalidade (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). Este princípio está relacionado à competência sociolinguística10 10 Fala-se sobre a competência sociolinguística no cap. 2.2.2 37 dos usuários da língua para identificar o momento, o local, o contexto de produção e recepção de um texto. Para os autores há duas formas de adequar a situação de produção/recepção de um texto: 1) monitoramento: a função dominante de um texto é fornecer uma descrição da situação geral de ocorrência; 2) gerenciamento: a função dominante é guiar a situação de maneira a favorecer os objetivos do produtor do texto. Os usuários da língua podem utilizar-se de diferentes estratégias11 para controlar (monitorar ou gerenciar) a situação em que um texto ocorre e atingir objetivos comunicativos. Ressalta-se que os constituintes textuais acima elencados manifestam-se no nível linguístico, mas recebem influências extralinguísticas. No interior do texto (produção ou recepção), várias ligações podem ser estabelecidas, como, por exemplo, quando se retoma outros textos para compor uma determinada manifestação linguística. É o que se chama intertextualidade e que diz respeito à relação de dependência que se estabelece entre os processos de produção/recepção de um texto e o conhecimento que os participantes têm de textos anteriores a ele relacionados. (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A intertextualidade é importante porque a recuperação de leituras prévias é de fundamental relevância para se estabelecer sentido para a produção ou leitura do texto. Nas palavras de Koch e Elias (2010), intertextualidade ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade. [...] é o elemento constituinte e constitutivo do processo de escrita/leitura e compreende as diversas maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende de conhecimentos de outros textos por parte dos interlocutores, ou seja, dos diversos tipos de relações que um texto mantém com outros textos (KOCH; ELIAS, 2010, p. 86). Para as autoras, a retomada de outros textos propicia a construção de novos sentidos, visto que eles estão inseridos em uma nova situação comunicativa, ou seja, precisam ser adaptadas pelo leitor no processo de compreensão textual. A 11 Fala-se mais sobre as estratégias em dois momentos deste trabalho: a) leitura enquanto processamento estratégico em que o leitor lança mão de diferentes ações para compreender um texto (seção 1.4); e b) conhecimento estratégico em que o usuário da língua utiliza ações para moldar sua competência comunicativa à interação estabelecida (cap. 2.1.4). 38 intertextualidade pode ser explícita – quando há citação direta da fonte utilizada – ou implícita – quando cabe ao leitor recuperar a fonte de citação para construir sentido. O que se quer esclarecer com as explicações acima é que vários fatores influenciam na constituição de um texto e que, esse, por sua vez, é um elemento complexo, mas forma-se a partir de uma cadeia de constituintes que, interligados, o constroem. Vê-se, assim, que o texto não é simplesmente a junção de uma palavra com outra respeitando normas ortográficas ou regras impostas pela gramática normativa. Embora as regras e organizações influenciem, para que se torne de fato a concretização de um determinado objetivo, o texto precisa obedecer aos princípios de interação entre falantes de uma mesma comunidade e expor ali um determinado posicionamento, pensamento, ideia. No entanto, deve-se reiterar aqui que é a partir da utilização das palavras dentro de um texto e da interação linguística que elas mantêm entre si que se pode estabelecer as suas possíveis leituras e verificar quais objetivos são pretendidos. Quando se fala em produções de língua, como é o caso do texto escrito, não se pode analisá-las apenas cortando-as em partes pequenas tais como em frases ou sentenças. Deve-se olhar para o texto como uma forma global de estabelecimento de sentido por meio de diferentes processos cognitivos e usos de diferentes tipos de conhecimentos (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). Assim, concebe-se que, para recuperação de sentidos textuais, ou seja, para interpretá-los pela leitura, é necessário considerá-los como parte constituinte de uma situação global de comunicação, em que objetivos e intenções materializam-se numa manifestação linguística concreta, obedecendo a determinados princípios linguísticos e extralinguísticos, os princípios de textualidade (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).12 Falou-se até aqui sobre o texto, um dos elementos de pesquisa deste trabalho, a forma como é constituído, e os princípios a ele subjacentes, os quais são considerados no tratamento dos dados (cap. 4 e 5). Discute-se daqui em diante o processo de leitura propriamente dito e os fatores envolvidos nesse processo. 12 Destaca-se que há trabalhos mais recentes que encaram os princípios da textualidade de forma em que se classifica os elementos do texto propriamente ditos e os elementos que são condições para sua efetivação enquanto texto. Antunes (2010) argumenta a esse respeito: "Nos estudos que tenho feito, na sequência dessa e de outras propostas, optei por fazer uma pequena reordenação no quadro dessas sete propriedades, concedendo certa saliência àquelas que, mais diretamente, pertencem à construção mesma do texto. Assim, proponho, como propriedades do texto, a coesão, a coerência , a informatividade e a intertextualidade. Proponho, como condições de efetivação do texto, a intencionalidade, a aceitabilidade e a situacionalidade.Para justificar essa reordenação, alego que a intencionalidade e a aceitabilidade remetem aos interlocutores e não ao texto propriamente." (ANTUNES, 2010, p. 33-34) 39 1.3 A LEITURA E O FUNCIONAMENTO DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO Assim como o processo de produzir um texto é composto de vários elementos complexos, o processo de interpretá-lo vai muito além da mera decodificação. Tal procedimento implica em saber quais são esses elementos e como organizar as ideias expostas pelo autor. Contudo, saber identificar tais aspectos é uma tarefa também complexa que inclui processos cognitivos, linguísticos e extralinguísticos, os quais são discutidos nesta seção do trabalho. Freire (1983) afirma que “o ato de ler não se esgota na decodificação da palavra escrita pura, ele se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (FREIRE, 1983, p. 11). Ao dizer isso, o autor demonstra que ler um texto vai muito além de decodificar as palavras que ali estão expostas, mas supõe-se saber conectá-las a uma gama de representações que envolvem questões sociais, culturais e pessoais que não deixam de dialogar com as palavras que se encontram ali expostas. O que permite que um leitor, de fato, compreenda um texto é a percepção de que há uma interdependência contínua entre o que se encontra na materialidade linguística do elemento textual e o conhecimento que ele, de fato, já possui sobre questões mais amplas do ambiente em que vive. Ainda, na visão de Freire (1983), “a leitura de um texto, tomado como pura descrição de um objeto e feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura nem dela, portanto, resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala” (FREIRE, 1983, p. 18). Isto quer dizer que não se pode tomar o texto como um objeto passivo de junção de informações codificadas, mas como algo que deve ser construído num processo interativo entre informações linguísticas, mentais e sociais. Lencastre (2003) reforça essa ideia ao conceituar o processo de interpretação como algo dinâmico e construtivo em que os estímulos linguísticos encontrados no texto associam-se a informações pré-existentes dispostas na memória do leitor para que, assim, significados mais globais sejam construídos. Alliende e Condemarin (1987) lembram que a interpretação de textos é uma atividade que depende tanto de quem os produz quanto de quem os lê. Isso porque conforme se discutiu na seção anterior, quando o autor se propõe a escrever um texto, ele adota suas próprias estratégias para indicar seus objetivos. O leitor, por sua vez, ao se deparar com um texto, tem diante de si uma quantidade de novas ideias, as quais precisam ser apreendidas e compreendidas para que haja leitura efetiva. 40 Deve-se ressaltar que, ao se propor a ler um texto, o leitor utiliza sua gama de conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, encontra um código ali exposto que deve ser compreendido. É o que, por exemplo, crianças em fase de alfabetização devem aprender a fazer: decifrar o código linguístico e compreender o que está escrito (KATO, 1999). Assim, pode-se dizer que as ideias veiculadas por um texto requerem do leitor um trabalho cognitivo bastante intenso, em que, no mínimo, duas etapas estão sempre presentes: a decodificação e a compreensão. A decodificação consiste na identificação de um elemento gráfico, ou seja, na decifração do código13 linguístico utilizado pelo escritor. Nessa etapa, os sentidos podem não estar desvelados ainda, pois o leitor pode decifrar o código, mas não ter a devida compreensão da ideia presente no texto. Entretanto, para que o leitor possa desenvolver uma compreensão do texto, esse código deve se apresentar dotado de sentidos. Dessa forma, seria somente na etapa da compreensão que o leitor começaria a montar imagens mentais sobre o conteúdo do texto por meio do levantamento de hipóteses, de inferências e da busca dos significados que vão produzir um sentido completo para o texto lido (ALLIENDE; CONDEMARIN, 1987). As etapas de entendimento de um texto podem abranger ainda outros aspectos, de certa forma, atrelados a esses. Para Eco (1979), a interpretação de textos é resultado de um processo que depende, necessariamente, da cooperação do leitor. De acordo com o autor, que faz uma discussão baseada em textos narrativos, esse processo se desenvolve em duas ramificações principais: a das intensões14 e das extensões. No âmbito das intensões, estariam as informações como a enciclopédia mental do leitor, o conhecimento do código linguístico, o saber do indivíduo a respeito da tipologia e organização dos textos (as estruturas discursiva e narrativa), as estruturas actanciais, isto é, os papéis ocupados pelos personagens presentes no texto, e, ainda, as estruturas ideológicas (julgamentos de valor, tais como a noção de bom e mau). No outro ramo da bifurcação, estariam outros tipos de informação, incluindo aspectos tais como as circunstâncias e o momento em que o texto foi produzido, a formulação de hipóteses e as inferências primárias e, ainda, o conhecimento de mundo, que leitor usaria mais tarde para a reformulação do texto. 13 Entende-se código aqui como os elementos da língua (morfemas, palavras, sintagmas, sentenças) expostos em um texto. 14 Eco (1979) escreve intensões com ‘s’ para expressar o conceito semântico do termo. Intensões seria o conjunto dos traços semânticos que as palavras/sentenças possuem como propriedades inerentes e que podem ser alteradas ou mantidas a partir da combinação com outras (CASTILHO, 2010). 41 Embora Eco apresente seu modelo de processamento como uma composição de vários submódulos (quadro 1), sugerindo um funcionamento sequencial consecutivo, ele observa que não há caminhos obrigatórios na ordem de execução. Para o autor, a ordem depende, fundamentalmente, da proficiência do leitor. O quadro (1) demonstra o funcionamento do sistema de cooperação entre leitor e autor no momento da leitura. QUADRO 1 - Os Níveis de cooperação textual.15 INTENSÕES EXTENSÕES ESTRUTURAS IDEOLÓGICAS ESTRUTURAS DE MUNDOS ESTRUTURAS ACTANCIAIS PREVISÕES E PASSEIOS INFERENCIAIS ESTRUTURAS NARRATIVAS ESTRUTURAS DISCURSIVAS EXTENSÕES PARENTETIZADAS CONTEÚDO ACTUALIZADO EXPRESSÃO Manifestação linear do texto CÓDIGOS E SUBCÓDIGOS CIRCUNSTANCIAS DA ENUNCIAÇÃO Avaliando o diagrama de baixo para cima, verifica-se que o primeiro movimento do leitor é tomar o texto como objeto de leitura (manifestação linear do texto) e aplicar sobre ele todos os seus “códigos e subcódigos”16. Esses são obtidos paralelamente a partir de acessos feitos à sua enciclopédia mental por meio de seleções de contexto e da combinação de quadros textuais (frames ou esquemas), a fim de transformar o texto em um nível primário de conteúdo. 15 In: ECO (1979, p. 76). Segundo Eco (1979), os códigos e subcódigos abrangem o conhecimento linguístico do leitor aplicado ao texto, como, por exemplo, o acesso ao léxico e a localização de propriedades semânticas das palavras. 16 42 Paralelamente, ele também promove a ativação das estruturas do texto que está sendo lido, do tipo de enunciado, da linguagem utilizada, para, com base nisso tudo, fazer suposições sobre o contexto social do texto. Eco denomina essa fase do processamento “circunstâncias da enunciação”17. Todavia, ressalta-se que essas etapas, por assim dizer, básicas de execução não são independentes do restante do processamento. Para o funcionamento do sistema, deve haver uma dinâmica articulação com os níveis superiores do diagrama, representados, de um lado, pelo ramo das intensões, e de outro, pelo das extensões. Ao aplicar o “código linguístico” e as “circunstâncias da enunciação” ao texto, o leitor encontra indícios que lhe permitem fazer inferências primárias: as “extensões parentetizadas”, que são indícios inferenciais ativados pelo leitor, mas deixados em suspenso até que o texto seja melhor atualizado; as inferências são checadas conforme o desdobramento da leitura. Em outras palavras, o leitor espera encontrar os indícios necessários para confirmar as informações iniciais percebidas no material escrito; caso contrário, ele tem de reformulá-las de acordo com as informações do texto. Mediado pelas inferências primárias, o leitor tenta, a partir daí, encontrar uma explicitação semântica de algumas partes do texto que ele já sabe serem essenciais para a sua compreensão. Para tanto, ele vai se basear na “estrutura discursiva” e nos traços semânticos fornecidos pelos itens lexicais, a fim de fazer o reconhecimento do tema – denominado pelo autor de “topic” - do texto. É no módulo das estruturas discursivas, portanto, que o assunto do texto é identificado (ECO, 1979). Esse reconhecimento não se dá de uma única vez, mas vai acontecer em partes, conforme as hipóteses primárias do leitor vão sendo confirmadas ou reconstruídas. Com base nas partes representadas mentalmente a partir do assunto e dos itens lexicais já reconhecidos, o leitor consegue, enfim, ampliar as propriedades semânticas do texto e estabelecer um nível de coerência interpretativa - denominado pelo autor de “isotopia” - ou seja, “um conjunto de categorias semânticas redundantes que tornam possível a leitura uniforme de uma história” (ECO, 1979, p. 97). Conforme o autor, “o reconhecimento do tópico é um movimento cooperativo (pragmático) que orienta o leitor para o reconhecimento das isotopias como propriedades semânticas de um texto.” (ECO, 1979, p. 107). Para que o leitor logre êxito quanto ao reconhecimento das redes semânticas de um texto, é necessário que ele ative os itens lexicais com os quais se depara durante a 17 A utilização de aspas neste trecho de explanação do quadro de Eco (1979) refere-se aos termos utilizados pelo autor. 43 leitura e que ele próprio considera como sendo os mais importantes. A representação desses itens lexicais, segundo Eco (1979), constitui estruturas mentais do tipo frames18, que são quadros de representações ativados pelo leitor durante todo o processo de compreensão de um texto. À medida que a leitura evolui, esses quadros se reorganizam e ocorre um processo de formulação do pensamento. O modo de organização das informações a partir de frames constitui uma característica fundamental para o processo de interpretação de textos. A partir desses esquemas de representação, o leitor deve, na etapa seguinte, ser capaz de sintetizar em uma única estrutura todos os quadros obtidos até o momento, a fim de produzir uma “estrutura da narrativa” da história. Nesse módulo, denominado por Eco “macroposição” de esquemas, o leitor identifica uma sequência de ações percorridas durante o texto e as “encaixa” para formular a representação da narração. Se, no entanto, durante a evolução da leitura, o leitor percebe algo no texto que seja contrário à hipótese que já formulou e que, de alguma maneira, provoque a “quebra” da representação que fez, ele se vê forçado a estabelecer novas expectativas e possibilidades e a fazer disjunções, baseado em seu próprio conhecimento, promovendo novas inferências. Trata-se, segundo Eco (1979), das previsões e dos passeios inferenciais. Ao identificar uma nova ação que não era esperada em sua análise, o leitor é levado a fazer uma previsão sobre qual será o novo curso dos acontecimentos. Para isso, tem de “sair do texto” e fazer passeios sobre as possíveis inferências e, baseandose em seu conhecimento de mundo, estabelecer os chamados “mundos possíveis” para a história. Nessa revisão, o leitor estabelece um mundo cultural com certo número de personagens, que possuem determinadas propriedades e que assumem determinadas atitudes de acordo com o texto, ao mesmo tempo em que se apoia em sua própria cultura, confrontando esses “mundos possíveis” com o seu “mundo real”. Isso é realizado no módulo das “estruturas de mundos”, fase em que o leitor faz julgamentos de valor-verdade que estariam formados no seu léxico mental e no contexto em que vive. Por meio das inferências realizadas com base na narrativa, o leitor passa a construir algumas lacunas abstratas ocupadas pelos “participantes” do texto e por suas respectivas características e funções – as “estruturas actanciais”, na denominação de Eco. O estabelecimento de actantes guia as opções, previsões e macroposições de 18 Na seção 1.4.3.1 deste trabalho, discute-se mais sobre frames, esquemas mentais e as formulações mentais ativadas por meio do código linguístico. 44 quadros feitas pelo leitor no decorrer da leitura. A formulação e o preenchimento dessas lacunas são essenciais no processo interpretativo pois indicam que o leitor foi capaz de reconstruir as informações do texto adequadamente. Sobre estas lacunas formadas a partir do texto, o leitor aplica seus próprios julgamentos, formados por “estruturas ideológicas” presentes no seu código enciclopédico, as quais se manifestam por juízos de valor (tais como a noção de verdadeiro e falso). Assim, o leitor confere às lacunas actanciais marcas ideológicas, que podem ser tanto negativas quanto positivas, presentes no seu conhecimento, e é induzido a conferir perspectivas ideológicas ao texto. Apesar da análise de Eco (1979) estar baseada em textos narrativos, há elementos considerados por ele que são válidos para qualquer processo relativo à interpretação. Para o autor, uma vez que os níveis não ocorrem de maneira hierárquica, mas concomitantemente, todas as estruturas de representações semânticas formuladas tornam-se mais claras conforme a evolução da leitura, ainda que nem sempre de forma completa. Um leitor proficiente não decodifica, mas percebe as palavras, globalmente, guiado pelo seu conhecimento prévio e por suas hipóteses de leitura. Durante o processo, ele faz inferências e levanta hipóteses sobre significados que não estão diretamente presentes no texto e os incorpora ao seu conhecimento. Pode-se dizer, portanto, que o leitor faz um passeio constante entre o que está linguisticamente marcado no texto e os conhecimentos outros que ele utiliza para construir um sentido. É a relação constante entre os vários tipos de conhecimento que fazem com que o processo de interpretação se realize. Ainda, baseando-se nas postulações de Eco (1979), nota-se que o processo de inferenciação e levantamento de hipóteses são essenciais para a interpretação, porque ao testá-las em confronto com o texto, o leitor depreende o conteúdo e reconstrói sentidos textuais e, consequentemente, o seu próprio conhecimento. Quando o objetivo da leitura está claramente definido, as hipóteses são formuladas previamente pelo leitor e a compreensão é facilitada, pois ele percebe mais rapidamente os sentidos presentes no texto por meio da ativação mental dos itens lexicais e da percepção da relação entre eles. Numa visão similar à de Eco (1979), compreendendo a leitura enquanto processo interativo, Colomer e Camps (2002) salientam que 45 o leitor baseia-se em seus conhecimentos para interpretar o texto, para extrair um significado e esse novo significado, por sua vez, permitelhe criar, modificar, elaborar e incorporar novos conhecimentos em seus esquemas mentais (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 23). Em outras palavras, observa-se que o texto escrito propicia converter as interpretações em realidade de conhecimento articulado, o que ocorre numa interação intensa entre pensamento e linguagem (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002). Durante esse processo, o leitor não registra tudo o que lê de forma uniforme; pelo contrário, ele só registra aquilo que julga necessário. Tudo o mais permanece semanticamente latente. Desse modo, o leitor deve perceber as relações entre os itens registrados durante a leitura e formula a representação do texto. Ainda para Colomer e Camps (2002), o leitor tem a possibilidade de apropriar-se de diferentes tipos de conhecimento por meio da leitura e converter suas interpretações em realidade material. É na interação que ocorre durante o processo de leitura que o leitor consegue estruturar suas próprias ideias e operar de forma mais consciente com a realidade linguística para construir sentidos diversos. Nas palavras das autoras: [...] o leitor deve raciocinar e inferir de forma contínua. Isto é, deve captar uma grande quantidade de significados que não aparecem diretamente no texto, mas que são dedutíveis: informações que se pressupõem, conhecimentos compartilhados entre emissor e receptor, relações implícitas (temporais, de causa e efeito, etc) entre os elementos do texto, etc (COLOMER, CAMPS, 2002, p. 31). Para Kleiman (2002), a leitura compreensiva depende da interação à distância entre autor e leitor por meio do texto, que se consolida por meio dos indícios deixados nos textos pelo autor sobre suas intenções, opiniões etc., e que o leitor deverá identificar para, a partir daí, tentar reconstruir o significado que estaria presente no texto. Para a compreensão do que está lendo, então, o leitor precisa lançar mão de itens linguísticos, tais como palavras, conectivos, sintagmas, e, a partir deles, estabelecer ligações que o auxiliam nesse trabalho. De acordo com Kleiman (2002), “o leitor constrói e não apenas recebe um significado global para o texto. Ele procura pistas formais, antecipa essas pistas, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita conclusões” (KLEIMAN, 2002, p. 65). Para a autora, a partir do conhecimento já elaborado, o leitor se vê em condições de transformar os sentidos pretendidos no texto em um novo conhecimento. Para isso, 46 entretanto, é necessário que o leitor aprenda a dominar as estratégias de controle do ato de interpretação, percebendo as marcas formais e estabelecendo relações entre as ideias do texto. Ainda de acordo com Kleiman (2002), o leitor constrói sentidos estabelecidos no texto por meio de um diálogo mental com o autor. Para tanto, o leitor utiliza seus conhecimentos prévios, isto é, seus conhecimentos linguísticos, textuais, e extralinguísticos que, de várias maneiras, contribuem para a interpretação. Percebe-se, assim, que não se pode tratar a leitura de um texto como uma atividade simplificada em que o leitor conhece apenas o código linguístico utilizado. Juntamente às informações linguísticas, diversos tipos de conhecimento são ativados. A próxima seção fala sobre esses conhecimentos e sua influência na forma como os leitores compreendem um texto. 1.4 TIPOS DE CONHECIMENTO E SUA INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO Viu-se até aqui que, para interpretar um texto, há vários tipos de conhecimento que interagem entre si. Pode-se classificá-los em três tipos: a) os conhecimentos que envolvem questões linguísticas propriamente ditas, ou seja, o léxico de acesso ao texto mais as organizações sintáticas e semânticas. Este conjunto é denominado ‘conhecimento linguístico’; b) os conhecimentos que envolvem a estrutura textual, ou seja, conhecimentos relativos à organização do texto, denominados ‘conhecimentos textuais’; e c) os conhecimentos que envolvem questões extralinguísticas e comuns à comunidade da qual o leitor faz parte, tais como a sequência de eventos que envolvem um acidente, por exemplo, ou a ida a um restaurante, denominados ‘conhecimentos de mundo’. Deve-se destacar o fato de que todos estes tipos de conhecimentos se articulam no processo interpretativo. Conforme Kleiman (2002), O conhecimento linguístico, o conhecimento textual, o conhecimento de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao momento da compreensão, momento esse que passa despercebido, em que as partes discretas se juntam para fazer um significado. (KLEIMAN, 2002, p. 26). Isso porque, de acordo com o que já se discutiu na seção anterior, a leitura é um processo interativo em que se reconstroem constantemente representações culturais (FREIRE, 1983). Ainda, destaca-se que essa interação entre leitor e autor não é 47 aparente, mas mental e silenciosa de forma que ela “se dá por meio do interrelacionamento não hierarquizado de diversos níveis de conhecimento do sujeito (desde o conhecimento gráfico até o conhecimento do mundo) utilizados pelo leitor durante a leitura” (KLEIMAN, 2004, p. 31). Ao tratar-se de interpretação textual neste trabalho, considera-se que todos esses tipos de conhecimento devem ser observados no processo de leitura. Discute-se cada um dos conhecimentos em seções separadas desse trabalho. 1.4.1 O conhecimento linguístico Kleiman (2002) refere-se ao conhecimento linguístico como sendo o processo no qual o leitor identifica as palavras, ou unidades linguísticas, e as agrupa em frases (ou unidades maiores) para, em seguida, ativar significados com base em seu conhecimento sintático, lexical e semântico. Sem o domínio do conhecimento linguístico, a compreensão do texto torna-se impossível. Segundo Castello-Pereira (2003), as marcas linguísticas ativam os procedimentos intelectuais do leitor. Tais marcas devem ser observadas para que haja a compreensão do que se está lendo, pois é por meio delas que o leitor seleciona, compara, faz inferências e vai aos poucos tecendo relações de sentido. Isto quer dizer que o leitor parte do conhecimento linguístico como ponto inicial para estabelecer interação com o texto. Em seu estudo, a autora apresenta algumas técnicas de auxílio à interpretação de textos, considerando a ideia de que a boa interpretação depende da localização dos indícios deixados pelo autor e da coleta das informações para construir o sentido do texto. À medida que o leitor percebe as palavras e estabelece para elas conteúdo semântico, sua mente vai construindo e reconstruindo significados gerais, recriando, percebendo e avaliando o texto. Ainda de acordo com a autora, a marcação formal (tais como sublinhados, marcações de parágrafos etc.) auxilia o leitor a concentrar sua atenção em determinadas informações linguísticas e a interagir melhor com o texto a partir da relação estabelecida entre o linguístico e outros conhecimentos do leitor. No que diz respeito ao conhecimento linguístico, vale enfatizar a importância da representação dos itens lexicais em relação ao conhecimento de mundo do leitor como fatores fundamentais no processo interpretativo. Contudo, deve-se ter o cuidado de notar que não é apenas a soma dos itens lexicais isolados e da sua representação 48 mental19 que levará o leitor a uma construção dos sentidos de um texto, mas a identificação das relações estabelecidas entre as palavras, de um lado, e as sentenças, parágrafos e o próprio texto, de outro. Isso porque as palavras, ou ainda, todos os conhecimentos relativos ao código linguístico, não se relacionam apenas estruturalmente, mas também semanticamente. Conforme Colomer e Camps (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 129), “as relações semânticas entre as palavras do texto é uma das bases de compreensão da coerência de um texto e um elemento importante para dar-lhe coesão”. Ou seja, as relações semânticas entre os itens lexicais (e, portanto, armazenadas no conhecimento linguístico) levam o leitor a estabelecer conexões essenciais para o processo interpretativo20. Kleiman (2002) lembra que associados aos conhecimentos linguísticos de construção de sentenças ou frases é que outros tipos de conhecimentos interagem para a compreensão: a compreensão de um texto escrito envolve a compreensão de frases e sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de objetivos, de intenções, muitas vezes de ações e de motivações, isto é, abrange muitas das possíveis dimensões do ato de compreender (KLEIMAN, 2002, p. 10) Ainda de acordo com Kleiman (2004), para que se crie uma atitude de leitura estratégica perante o texto, deve-se sensibilizar o leitor para os indícios linguísticos encontrados na superfície textual, pois são eles que possibilitam a criação de um quadro hierarquizado das informações ali expostas, e auxiliam o leitor a encontrar as referências do autor que dão coesão e funcionam ao nível macroestrutural do texto marcando a linha temática. Em suma, os conhecimentos linguísticos envolvem tudo o que o leitor conhece sobre questões lexicais, sintáticas, semânticas e estruturais do texto que o ajudam a estabelecer um ponto de partida para o estabelecimento dos sentidos mais gerais do texto. Por tratar-se de um dos focos de discussão dos dados - as relações linguísticas e extralinguísticas que acontecem entre palavras-chave e as demais palavras do texto para estabelecer interpretação –, no capítulo 2 deste trabalho fala-se mais sobre o modo como 19 O processo de representação mental é de fato importante na construção da interpretação (ex.: modelo de ECO (1979) e conceitos de frames de DIJK (2002)). O que se procura destacar é que o processo das relações entre palavras auxiliam nessa representação. 20 Discorre-se especificamente sobre as relações linguísticas entre palavras e a maneira como os usuários, a partir da ativação da sua competência comunicativa, codificam significados no sistema linguístico propriamente dito no texto no cap. 2 deste trabalho. 49 o leitor utiliza e organiza o sistema linguístico para que as formas codifiquem diferentes sentidos. Destaca-se uma questão importante: o processo de leitura envolve conhecimentos linguísticos necessários. Tais conhecimentos são possibilitados pelo uso do sistema linguístico o que permite a construção e a codificação de sentidos a partir da competência gramatical e lexical do usuário. (cf. cap. 2.2.1). 1.4.3 O conhecimento textual No que diz respeito aos conhecimentos textuais, esses constituem o “conjunto de noções e conceitos sobre o texto” (KLEIMAN, 2002), ou seja, correspondem à identificação do tipo de texto e da forma de discurso que o leitor está lendo. Quando o leitor tem alguma proficiência, ele já dispõe tanto de uma estrutura formada do tipo do texto (narrativo, informativo, descritivo, expositivo, argumentativo etc.) quanto da manifestação concreta deste tipo, os gêneros, (ex. carta, notícia, artigo científico etc.), e ativa essa estrutura quando se depara com um determinado texto. Quanto maior for seu conhecimento textual e contato com os diferentes tipos de texto, mais fácil será sua compreensão (KLEIMAN, 2002). Em outros termos, os conhecimentos textuais “são aqueles que possuímos acerca dos elementos de textualidade, dos tipos e gêneros textuais” e “não se confundem com os conhecimentos linguísticos, embora estejam estreitamente relacionados a eles” (OLIVEIRA, 2010, p. 60). De fato, tipos textuais e gêneros textuais abarcam conceitos diferentes, mas ambos influenciam a forma como olhamos para um texto e o compreendemos. Koch e Elias (2010) denominam o conhecimento textual de conhecimento superestrutural ou de gêneros textuais21, e afirma que eles são “a distinção das macrocategorias ou unidades globais que distinguem os vários tipos de texto ou que permitem a identificação de texto como exemplares da vida social” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 54) levando a extrair informações mais ou menos esperadas dentro daquela categoria. Por exemplo, se o leitor está diante de uma tirinha, espera encontrar ali alguma forma de humor, ou diante de uma carta, espera encontrar ali o destinatário e o remetente. Os conhecimentos textuais são capazes de influenciar a interpretação porque há uma estrutura esperada para a 21 As autoras classificam esse conhecimento como um subtipo do conhecimento interacional que seriam todos aqueles conhecimentos relacionados às formas de interação por meio da linguagem. 50 retirada de informações que guia o leitor durante a leitura e o faz hierarquizar determinadas informações dentro da estrutura global de sentido do texto. De acordo com Bakhtin (2000), a língua vai-se compondo a partir da interação dos sujeitos de uma comunidade, e nessa interação constitui-se com formatos aparentes – embora possam ser constantemente alterados - que podem ser identificados pelo leitor. Para o autor, “a língua escrita corresponde ao conjunto dinâmico e complexo constituído pelos estilos da língua, cujo peso respectivo e a correlação, dentro do sistema da língua escrita, se encontram num estado de contínua mudança” (BAKHTIN, 2000, p. 285). Nesse sentido, Bakhtin (2000) afirma que os enunciados que se realizam no processo interacional da língua são concretos e pertencentes a uma determinada realidade independente do conteúdo que possuam. Ou seja, de acordo com os objetivos do usuário da língua, ele seleciona o conteúdo e a composição adequados a uma forma mais ou menos constante de apresentação, os gêneros do discurso. Para o autor: o discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o conteúdo, a composição, os enunciados sempre possuem, como unidades da comunicação verbal, características estruturais que lhes são comuns, e, acima de tudo, fronteiras claramente delimitadas. (BAKHTIN, 2000, p. 293) Em outros termos, na visão de Bakhtin (2000), ao emitir um enunciado o autor tem um objetivo e leva em conta uma série de situações que interferem no cumprimento desse objetivo, como o grau de informação, os conhecimentos de área, opiniões, convicções, preconceitos. Tudo isso vai determinar a escolha do gênero do enunciado e a sua composição. Nas palavras do autor, “o querer dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. [...] todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301, destaques do autor). Deve-se destacar aqui que os conhecimentos textuais referem-se a duas dimensões diferentes da manifestação linguística do texto: uma com relação à estrutura e à organização linguística textual e outra com relação à realidade sócio-comunicativa do texto em determinada situação de comunicação. Respectivamente, tais dimensões são chamadas de tipos textuais e gêneros textuais. De acordo com Marcuschi (2003), tipos e gêneros textuais são diferenciados conceitualmente da seguinte maneira: 51 a) usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Em geral os tipos textuais abrangem meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. b) usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilos e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia os gêneros textuais podem ser inúmeros, como, por exemplo, telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem [...] (MARCUSCHI, 2003, p. 22-23, destaques do autor). Pode-se perceber, portanto, que um determinado texto apresenta ambas dimensões de formas diferentes. Por um lado, tem-se a manifestação organizacional e linguística, ou seja, as tipologias textuais, que apresentam determinados traços identificados pelo leitor e que o ajudam a estabelecer coesão para o texto. Isso quer dizer que o tipo do texto auxilia no estabelecimento de uma sequência linguística visível o que, por sua vez, auxilia no estabelecimento das relações semânticas no interior do texto. Marcuschi (2003) afirma que: entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles serem definidos por seus traços linguísticos predominantes. Por isso, um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma sequência e não um texto. A rigor, pode-se dizer que o segredo da coesão textual está precisamente na habilidade demonstrada em fazer essa “costura” ou tessitura das sequências tipológicas como uma armação de base, ou seja, uma malha infraestrutural do texto. (MARCUSCHI, 2003, p. 27) Por outro lado há o caso dos gêneros, no qual a influência é das organizações sociais e culturais típicas em que a situação comunicativa geralmente ocorre, ou seja, são os propósitos da comunicação. Para que se caracterize como um determinado gênero, o texto apresenta, de fato, sequências linguísticas (ou tipologias) definidas, mas também apresenta um propósito comunicativo22. De acordo com Marchuschi (2003), os aspectos principais dos gêneros são sócio-comunicativos, o que não significa que a forma (estrutural ou linguística) deva ser descartada. Ou seja, a definição de um gênero é feita tanto pela forma quanto pela função. 22 O propósito comunicativo constitui também um dos princípios da textualidade discutidos na seção 1.2, o que reforça a necessidade da identificação do gênero para a compreensão textual. 52 Para Koch e Elias (2010), os gêneros constituem formas padrão, no entanto maleáveis, de estruturação da linguagem que permitem a comunicação. As autoras, assim como Marcuschi, definem o gênero como uma realidade sócio-comunicativa e dinâmica. Destaca-se aqui um fato importante com relação ao gênero: os autores que trabalham com a sua definição afirmam que eles têm um vínculo profundo com a realidade social e cultural contribuindo para organizar as atividades comunicativas (BAKHTIN, 2000; SWALES, 1990; MARCUSCHI, 2003; KOCH; ELIAS, 2010). Swales (1990), também assumindo a posição do gênero enquanto ato comunicativo, o define como uma formatação que contém uma classe de eventos comunicativos, nos quais se compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Tais propósitos são reconhecidos pelos membros da comunidade discursiva de origem e, portanto, constituem o conjunto de razões (“rationale” – SWALES, 1990, p. 58) para o gênero. Essas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e influenciam e impõem limites à escolha de conteúdo e de estilo. Sendo assim, os gêneros apresentam aos indivíduos da comunidade uma determinada variedade de opções de uso da língua e também fornecem aos usuários da língua um poder preditivo e interpretativo (BAKHTIN, 2000; MARCUSCHI, 2003) das ações humanas nos contextos em que acontecem. Ao mesmo tempo permitem a sua maleabilidade na composição textual. Chega-se, aqui, a mais um apontamento interessante para este trabalho, sobre os gêneros no que diz respeito à leitura: os gêneros recebem influência direta de estruturas sociais recorrentes e típicas da cultura o que faz com que a leitura do texto dependa em grande escala da compreensão da situação comunicativa em que está inserido o texto. Por exemplo, se o leitor depara-se com um texto do gênero propaganda, espera encontrar ali o motivo para que compre o produto anunciado, mesmo que a estrutura do texto seja apresentada diferentemente do gênero proposto, como a de um poema (o que Koch e Elias, 2010, denominam hibridização ou intertextualidade intergêneros). O que faz com que o gênero seja caracterizado como uma propaganda, nesse caso, é sua função de comunicação (convencer o leitor a consumir um determinado produto), e o leitor, ao deparar-se com o gênero, já ativa, mentalmente, expectativas para determinada ocorrência textual (p. ex. o que a propaganda está vendendo?). Bakhtin (2000) procura explicitar a ideia de gênero enquanto base do processo comunicativo, afirmando que: 53 Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume, a dada estrutura composicional, e prever-lhe o fim, ou seja, desde o início somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 2000, p. 301-302). Bonini (2002) faz uma releitura do conceito de superestruturas de Dijk e Kintsch (1983) e procura demonstrar a forma como esse conceito é capaz de demonstrar a identidade do texto na memória do leitor/produtor, objetivando estabelecer um conceito psicolinguístico para a noção de gênero. Para o autor, a partir do modelo de Kintsch e Van Dijk, a identidade do texto passa a ser considerada um elemento importante do processamento, um recurso imprescindível para se obter o seu conteúdo global, seja no processamento de entrada (input) seja no processamento de saída (output) (BONINI, 2002, p. 20) Isto quer dizer que a identidade do texto, ou o seu gênero, é capaz de fornecer aos falantes/leitores uma forma de estabelecer para o texto um conteúdo global (macroestrutura) a partir de categorias convencionadas socialmente que preenchem um propósito comunicativo. Os tipos textuais, que ajudam na composição microestrutural dos textos, ou, como afirma Bonini (2002) na sua identidade, organizam essa ocorrência na mente dos usuários da língua. Em sua pesquisa, o autor chega a alguns resultados interessantes com relação ao estabelecimento do gênero como uma categoria cognitiva. Para o autor, as características microestruturais são apontadas constantemente pelos sujeitos da pesquisa, o que o leva a supor que tenham importância similar às próprias partes do esquema textual do gênero; ainda as sequências textuais (ou como denominamos nesse trabalho os tipos textuais), no geral, não são vistas como gêneros (com uma função social específica). Funcionam assim como aparatos de textualização ao que parece, quase sempre, como conhecimento automático (BONINI, 2002, p. 160). 54 Tudo isso leva a supor que a identificação do gênero influencia fortemente a forma como o leitor interage com o texto. Se ele está diante de um bilhete, por exemplo, ele espera encontrar ali fatores linguísticos que confirmem a expectativa da informação: há um recado importante para alguém. Por meio da identificação do gênero (e das tipologias textuais nele usadas), o leitor é capaz de estabelecer expectativas importantes com relação à leitura do texto que o guiam durante o processo e o auxiliam a estabelecer um sentido. Assim, os gêneros seriam uma manifestação concreta com formas mais ou menos estáveis que se encontram na realidade social e cultural e que ajudam a estabelecer comunicação (BAKHTIN, 2000). Os tipos textuais (ou sequências como denominam alguns autores – Bonini, 2002; Swales, 1990) compõem tais gêneros e estabelecem para eles uma forma linguística de ocorrência. Este trabalho de tese não objetiva falar exaustivamente da influência de tipos e gêneros textuais na interpretação de texto, mas admite que a sua identificação auxilia o leitor na busca de sentidos. Assim, fala-se de gêneros textuais abrangendo o conceito de tipos textuais e considerando que esses fazem parte da constituição dos primeiros, contribuindo para a sua manifestação. Em outros termos, ao usar, aqui, o termo ‘gêneros textuais’, não se desconsidera as tipologias. Ao contrário, admite-se a influência de ambos, gênero e tipo textual, na composição do texto e de seus sentidos, compondo um elemento único a que se vai denominar conhecimento textual. O leitor ativa tal conhecimento a partir da competência discursiva (cap. 2.2.3) e a desenvolve aplicando-a sobre o texto lido e construindo interpretação. 1.4.4 Os conhecimentos de mundo Deve ser lembrado, conforme discussão realizada sobre o processo de leitura até aqui, que, em qualquer trabalho de interpretação, o leitor necessita aplicar conhecimentos previamente adquiridos, que podem ser linguísticos ou extralinguísticos. Esses últimos são denominados conhecimentos de mundo e estruturam-se em quadros mentais, os quais, para serem verbalizados ou escritos, precisam ser ativados. Ao escrever o texto, o autor ativa esses conhecimentos de mundo e utiliza determinado conjunto de palavras para expressar suas ideias; o leitor, por sua vez, ao deparar-se com essas palavras, deve ativar suas próprias estruturas mentais, seus conhecimentos de mundo e as representações semânticas para compreender as informações do texto. 55 Kleiman (2004), citando os trabalhos de Luria (1976), afirma que é através da palavra - que não é apenas portadora de significados, mas também de “unidades de consciência básica que refletem um mundo” (LURIA, 1976 apud KLEIMAN, 2004) - que analisa-se e sintetiza-se a informação externa que chega aos sentidos pessoais; que ordena-se, do ponto de vista perceptual, o mundo; que codifica-se as impressões individuais em sistemas. (KLEIMAN, 2004, p. 192) Assim, os conhecimentos de mundo se organizam de forma relacionada a tudo o que se conhece da realidade, tais como sequências de ações, possibilidades de ocorrência contextual de determinadas palavras, atuando diretamente no estabelecimento de coerência textual e fazendo com que se possa impor um sentido ao texto. A influência do conhecimento de mundo na interpretação está no fato de que, para que o leitor possa dizer que compreendeu o texto, ele precisa deduzir relações entre frases, palavras, parágrafos e complementar com conhecimentos não necessariamente explícitos no texto. Assim, o leitor utiliza todo o conhecimento que não está exposto no texto para perceber indícios reveladores para sua leitura, ou seja, ele utiliza um mecanismo contínuo de antecipação e confirmação para compreender o texto. Koch e Elias (2010) reforçam a necessidade de se considerar o conhecimento de mundo do leitor no momento de realizar leitura e afirmam que: Se, como vimos, a leitura é uma atividade de construção de sentido que pressupõe a interação autor-texto-leitor, é preciso considerar que, nessa atividade, além das pistas e sinalizações que o texto oferece, entram em jogo os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; ELIAS, 2010, p. 37). As autoras denominam os conhecimentos que o leitor tem sobre fatos gerais da sua realidade sociocognitiva de conhecimentos enciclopédicos e os conceituam como: “conhecimentos gerais sobre o mundo – uma espécie de thesaurus mental – bem como a conhecimentos alusivos a vivências pessoais e eventos situados de forma espaçotemporal, permitindo a produção de sentidos” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 42). Isto quer dizer que vários conhecimentos subjacentes ao texto são ativados e interagem com os demais tipos de conhecimento para que o sentido seja produzido. De acordo com Lencastre (2003), “a compreensão é um processo construtivo, em que a informação de um estímulo se associa com informação já existente na 56 memória. O ser humano constrói o conhecimento ao invés de simplesmente o receber” (LENCASTRE, 2003, p. 16). Pode-se dizer, assim, que a interpretação de um texto tem também dimensões subjetivas que dependem dos fatores contextuais, sociais, culturais, o que determina quais significados recebem atenção e quais serão desconsiderados. Nesse sentido, há uma ativação e uma ligação de significados que são pessoais e que auxiliam o leitor a deduzir relações que não estão explícitas no texto, mas se armazenam em um tipo de conhecimento sobre aquilo que o leitor conhece a respeito da sua comunidade e da realidade em que vive. Ou seja, o conhecimento de mundo seria um conjunto de relações extralinguísticas armazenadas pelos falantes previamente que são ativadas durante a leitura e possibilitam ao leitor dizer quando um texto faz ou não sentido na sua realidade. Beaugrande e Dressler (1981) chamam atenção para o fato de que, subjacente às informações linguísticas presentes em um texto, configura-se um mundo textual que se relaciona com os conhecimentos do leitor limitando os sentidos possíveis a serem estabelecidos. Para os autores, o mundo textual é uma configuração do conhecimento que pode ser recuperado ou ativado, e, para defini-los é necessário estabelecer uma série de probabilidades porque é um tipo de conhecimento que não é estanque ou clivado da mesma maneira para todos os falantes da língua. Torna-se necessário assim, que o leitor considere os demais conhecimentos necessários para interpretar um texto. O leitor conhece muito do que pode ou não acontecer em um texto a partir do estabelecimento de possibilidades reais para as sequências linguísticas de um texto. Por exemplo, em um texto narrando um diálogo entre professora e alunos, um dos alunos chega atrasado para a aula e diz: “Havia um congestionamento no caminho”. O leitor que conhece a situação provocada por congestionamentos, já sabe que este é fator causador de trânsito lento, horas de deslocamento e, consequentemente, do atraso para aula. Isso tudo faz parte do conhecimento de vivência do leitor e não está linguisticamente explícito no texto, mas pode ser inferido a partir dele por causa dos conhecimentos de mundo envolvidos. Stubbs (2001) afirma que as interpretações dependem muito do conhecimento não linguístico, ou seja, do conhecimento de mundo. Isso porque as interpretações feitas dependem também de um conhecimento não linguístico sobre ações recorrentes no cotidiano (como p. ex. porque um policial pode estar cavando em um jardim – Stubbs (2001)). A questão principal é que os falantes podem utilizar esse conhecimento para 57 dizer mais do que de fato dizem, pois há conhecimentos sedimentados na língua que subjazem ao ato de comunicação, inclusive na leitura. Em outros termos, pode-se dizer que muito do que está dito em um texto passa por uma avaliação do conhecimento de mundo previamente armazenado e é somente parcialmente especificado por questões linguísticas e gramaticais. As relações entre o linguístico e o não linguístico é que capacitam o leitor a construir sentido e a impor para o texto uma sequência possível de eventos. Dijk (2002) afirma que: Para sermos capazes de interpretar um discurso, isto é, de atribuir-lhe significado e referência, precisamos também de uma avaliação substancial do conhecimento de mundo e este conhecimento pode ser só parcialmente especificado no interior da linguística ou da gramática, precisamente, no léxico (DIJK, 2002, p. 38). O autor procura investigar a maneira como o conhecimento do leitor o auxilia a construir macroestruturas para o texto, ou seu sentido global. Ele afirma que a análise semântica do texto permite investigar como as sentenças presentes em um discurso interagem/relacionam-se entre si para produzir uma representação conceitual. Os aspectos relevantes do conhecimento de mundo são, assim, parte da representação conceitual ou macroestrutura do texto que o leitor constrói na leitura. Em outros termos, há um processo de construção que se inicia a partir das relações semânticas da estrutura linguística do texto, é organizado de forma estratégica pelo leitor e produz as macroestruturas, ou seja, o sentido global. Reitera-se, assim, que há um processo de construção que se dá a partir das relações linguísticas entre as palavras na superfície do texto, o que se chama microestruturas (DIJK; KINTSCH, 1983). Essas interagem com questões extralinguísticas para produzir um resumo mental do sentido textual, ou seja, a macroestrutura do texto. Em outra obra de Dijk, escrita em parceria com Kintsch (DIJK; KINTSCH, 1983), é dito que há uma relação intrínseca entre a microestrutura e a macroestrutura de forma a levar o leitor a construir um sentido global. Colomer e Camps (2002) explicam o modelo de Dijk e Kintsch (1983) da seguinte maneira: para processar o conjunto do texto, o leitor elabora o que esses autores chamam de macroestrutura mental do texto. Esta corresponde à descrição semântica abstrata de seu conteúdo, ao resumo mental que o leitor efetua do tema e das ideias principais. O leitor constrói essa 58 representação aplicando a cada uma das proposições macrorregras que consistem em uma série de estratégias de síntese – operações de supressão, generalização e construção da informação do texto, que atuam da seguinte forma: a partir das primeiras informações, o leitor contrasta a nova informação com a que possui. Se a nova informação lhe parece redundante ou secundária, ele a descarta (macrorregra de omissão); se encontra uma proposição com um conceito capaz de englobar várias informações procede a isso (macrorregra de generalização); e se não há uma proposição capaz de agrupar um mesmo tipo de informação, passa a construir ele próprio a proposição resumo (macrorregra de construção) (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 45). Isto significa que os conhecimentos do leitor, sejam linguísticos ou extralinguísticos, são utilizados por ele de forma estratégica para que interprete um texto. Mesmo sem ter consciência desses conhecimentos, o leitor lança mão daquilo que já está armazenado em sua memória para dar sentido ao texto. Dijk (2002) afirma ainda que os sistemas de conhecimento são responsáveis pela adequação entre os sistemas cognitivos e os atos de fala23 nos contextos de ocorrência. O autor diz que: as condições sociais relevantes envolvidas nas formulações das regras pragmáticas, como nas relações de autoridade, poder, papel e polidez, operam sobre bases cognitivas. Isto é, elas só são relevantes na medida em que os participantes têm conhecimento dessas regras, podem usá-las e são capazes de relacionar suas interpretações sobre o que está ocorrendo na comunicação às características sociais do contexto (DIJK, 2002, p. 76). Isto significa dizer que a compreensão textual envolve não somente o processamento e interpretação de informações do texto – conhecimento linguístico mas também a ativação de informações internas e cognitivas. Reitera-se que, nesse armazenamento, estariam presentes as experiências do leitor, as situações de eventos e os conhecimentos de cultura e sociedade. Assim, as palavras presentes em um texto constituem-se como um gatilho para a ativação de diversos tipos de conhecimento a elas relacionados (armazenados em frames – vide exposição na próxima seção deste trabalho). Isso porque nosso conhecimento sobre a língua não é apenas relacionado às palavras enquanto forma linguística, mas 23 Atos de fala são entendidos nesse trabalho como as relações pragmáticas estabelecidas em um texto, os quais permitem que o leitor compreenda as intenções e objetivos ali presentes tais como uma ordem, um pedido, uma reclamação. (SEARLE, 1995) 59 também às combinações possíveis e previsíveis e de conhecimentos diversos, inclusive os culturais, evocados por tais combinações (STUBBS, 2001)24. Durante o processo de interpretação, a interação entre conhecimento linguístico, textual e de mundo é, assim, recorrente e constante fazendo com que as expectativas do leitor sejam confirmadas ou refutadas (ECO, 1979). Nesse sentido, o leitor vai preenchendo de significados a manifestação linear do texto – realizando uma interpretação semântica –, podendo também explicar o motivo pelo qual determinadas compreensões são ou não possíveis (ECO, 2000). É importante ressaltar que os traços da superfície textual levam a sinalizar e a interpretar informações semânticas importantes na construção de um sentido. Esses traços são as pistas de contextualização que contribuem para a construção de pressuposições com relação ao texto (GUMPERZ, 1992). Dijk (2002) destaca a relação entre questões linguísticas e contextuais, afirmando que, podemos usar palavras, talvez palavras temáticas, para construir as macroestruturas; e podemos ainda, usar macroestruturas na compreensão das palavras (...) partimos da compreensão de palavras para a compreensão de orações nas quais essas palavras tem várias funções, e daí para sentenças complexas, sequências de sentenças e estruturas textuais gerais. Mesmo assim, existe uma realimentação contínua entre unidades menos complexas e unidades mais complexas” (DIJK, 2002, p. 22). É justamente essa possibilidade de interação contínua entre unidades menos e mais complexas e a utilização de palavras temáticas para construir o sentido global do texto que leva à suposição, neste trabalho, de que as palavras-chave concentram mais informação do que dados puramente linguísticos. Elas guiam o leitor na ativação de significados importantes, pessoais, sociais e culturais. Ou seja, além de concentrarem conhecimento linguístico e textual, também auxiliam na ativação dos conhecimentos de mundo. Isso porque, nas palavras de Dijk, figuras de palavra podem chamar a atenção para conceitos importantes, fornecer pistas de coerência global e local, sugerir interpretações pragmáticas plausíveis (p. ex. uma promessa X uma ameaça) e, de forma geral, dar mais estrutura aos elementos da representação semântica para que a recuperação seja mais fácil (DIJK, 2002, p. 33) 24 Fala-se mais no cap. 2 deste trabalho sobre a maneira como o sistema linguístico é capaz de codificar conhecimentos sociais, culturais, linguísticos, discursivos. 60 Ou seja, na escolha das palavras para um texto, o autor e o leitor concentram todos os tipos de conhecimentos de que necessitam para a produção e para a compreensão textual. No caso da leitura, especificamente, é a junção entre o conhecimento das palavras e o conhecimento de mundo que leva o leitor a estabelecer um dos princípios da interpretabilidade – a coerência (BEAUGRANDE E DRESSLER, 1981). A coerência é estabelecida, portanto, como um sentido para o texto (vide cap. 1.1) utilizando-se de elementos contextuais. Assim, sempre que for possível aos interlocutores construir um sentido para o texto, este será, para eles, nessa situação de interação, um texto coerente. Ou seja, sempre que se faz necessário realizar algum cálculo de sentido, com apelo a elementos contextuais – em particular os de ordem sociocognitiva e interacional – já estamos entrando no domínio da coerência. (CHAROLLES 1983 apud KOCH; ELIAS, 2010,p. 189) Deve-se ressaltar ainda que a cultura faz parte desse conhecimento de mundo que ajuda a compreender um texto. Para Kramsch (1993), a cultura de uma sociedade contém previsões para assegurar a compreensão de significados, e os falantes dessa sociedade fazem sua voz previsível para serem compreendidos em atos de comunicação. Ou seja, a inserção de falantes dentro de uma determinada sociedade faz com que eles precisem considerar questões culturais para a compreensão dos significados próprios a tal comunidade linguística. A autora trabalha numa visão de aprendizagem de língua estrangeira e afirma que para que aprendizes possam compreender de fato a língua é necessário visualizar a cultura não só como fatos e como significados, mas também como um lugar em que aprendizes se esforçam para negociar sentidos. Isso porque os usuários da língua podem emitir ecos do ambiente social em que vivem e, nesse caso, é preciso expressar os pensamentos de uma maneira que sejam compreensíveis e originais num processo dialógico. Para a autora, é por meio do diálogo com outros falantes, nativos e não nativos, que aprendizes descobrem quais maneiras de falar e pensar eles compartilham com outros e quais são únicas a eles (KRAMSCH, 1993, p. 27). A autora destaca ainda que por meio da língua, pode-se ter acesso à cultura do outro e é pelos olhos dos outros que se pode conhecer a si mesmo e ao outro. Sendo assim, o conhecimento armazenado pelos falantes inclui aspectos culturais que permitem compreensão entre a comunidade linguística, bem como a reconstrução do próprio pensamento. 61 Embora a autora discuta questões relativas à aprendizagem da cultura de uma língua alvo (não nativa, portanto), o que, de certa forma, distancia-se da perspectiva desse trabalho, percebe-se a importância da compreensão da cultura enquanto significados sociais para a compreensão de qualquer língua, inclusive a língua materna. A cultura faz parte de uma dimensão do uso da língua que se insere na interação entre sujeitos de uma comunidade e, portanto, influi na forma de compreensão de textos escritos25. De acordo com Bakhtin (2009) “nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de sentido permanece isolado: torna-se parte da unidade da consciência verbalmente construída.” (BAKHTIN, 2009, p. 38). Stubbs (2001) faz um estudo baseado em corpus sobre como determinadas palavras (chamadas pelo autor de palavras-chaves26) demonstram formas culturais de compreensão da língua. O autor afirma que as palavras ganham significado cultural a partir de seu uso em determinados contextos, pois, para o autor, o repertório de significados compartilhados que circulam em uma comunidade é justamente parte do significado de cultura (STUBBS, 2001, p. 165). Ele salienta que parece não haver maneiras de separar o conhecimento linguístico do conhecimento cultural (STUBBS, 2001, p. 167) e demonstra como palavras tais como ‘ethnic’, ‘racial’ e ‘care’ ganham conotações específicas devido ao uso frequente em determinados contextos. Em seu estudo as duas primeiras palavras tem uma conotação relativa a algum tipo de violência e a última tem uma conotação política (como em health care, political care etc). Essa conclusão não é aleatória, mas empírica, pois o autor analisa quais os contextos mais frequentes e recorrentes para o aparecimento dessas palavras em corpora significativos27 da língua inglesa. O intuito do autor é demonstrar a forma como as palavras são carregadas de sentidos culturais, os quais são automaticamente ativados pelos falantes ao utilizá-las para a comunicação. O fato é que há uma interface entre língua e cultura expressa nos conhecimentos de mundo do leitor porque “a cultura é forma de ver e perceber o mundo que, de alguma 25 Fala-se mais sobre a maneira como a cultura é capaz de influenciar o uso do sistema linguístico pelos falantes na seção 2.2.2. 26 As palavras-chave (keywords) utilizadas por Stubbs (2001) seriam as palavras núcleo utilizadas, em seu estudo, a partir de uma frequência de ocorrência. O autor fala do campo da linguística de corpus com uma perspectiva probabilística da língua e procura demonstrar a forma como tais palavras carregam significados contextuais da comunidade falante. A perspectiva utilizada para palavra-chave neste trabalho é diferente já que não considera a perspectiva quantitativa em um corpus (vide cap. 2.3) 27 Os corpora utilizados na pesquisa de STUBSS (2001) foram: LOB (Lancaster-Oslo-Bergen) Corpus; FLOB and FROWN corpora; London-Lund Corpus; Longman-Lancaster Corpus; The Bank of English – COBUILD (STUBBS, 2003). 62 forma é manifestada na linguagem, quer verbal quer não verbal” (DOURADO; POSHAR, 2010, p. 44). Para essas autoras, Conceber a cultura como só tendo existência no contexto social implica reconhecer que ela é socioculturalmente construída nas práticas discursivas, nas formas de ser, dizer e agir. Essa cultura, denominada invisível; cultura que se constrói nas e pelas práticas discursivas, sendo, portanto, constitutiva da língua (DOURADO; POSHAR, 2010, p. 42). Assim, as formas de construção de sentidos por meio da língua incluem as formas de se fazer cultura. Ou seja, leitores se deparam com uma série de sentidos culturais construídos a partir das palavras utilizadas por eles que estão, de algum modo, implícitos no texto e são ativados pelo conhecimento de mundo. Kramsch (1993) destaca a relação próxima entre língua e cultura e afirma que a última tem implicações na forma como se produz conhecimento (e, consequentemente, interpretação textual). A autora afirma ainda que a maneira como os leitores produzem e partilham significados na língua são também codificados pela cultura numa interface entre cultura e relações semântico-pragmáticas. Almeida Filho (2011), de certa forma, concorda com esse ponto de vista ao afirmar que “a capacidade de desempenhar comunicativamente numa língua inclui a incorporação dos sentidos culturais que criaram o esteio invisível de sustentação de tudo o que se diz ou ouve nessa língua” (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 168). Nesse sentido, língua e cultura encontram-se em um espaço comum para a produção de sentidos e aos poucos permitem a construção de uma rede coletiva de conhecimentos dos usuários que possibilita a comunicação. Kramsch (1993) destaca que ao se estabelecer interação comunicativa em uma língua aparecem não somente vozes individuais, mas conhecimentos históricos armazenados em uma sociedade - um estoque de metáforas vividas pelos sujeitos –, além de categorias que os falantes de uma comunidade usam para representar experiências previamente armazenadas. É como se os interlocutores possuíssem uma memória comunitária socializada que lhes permitissem a previsão, a construção, e a manutenção de sentidos. Na visão de Lakoff e Johnson (1980) os falantes estruturam a língua e os conceitos de forma metafórica fazendo com que todos os usuários da língua armazenem conhecimentos comuns. Eles citam como exemplo a metáfora: “Discussão é guerra”. O fato de se usar palavras tais como ganhar ou perder uma discussão, derrubar um 63 argumento, usar estratégias de convencimento, defender um ponto de vista, levam a crer que isso só é possível porque o conhecimento do leitor está culturalmente ligado à metáfora discussão=guerra (logo há ganhadores, perdedores, estratégias de combate e de defesa etc). Caso haja culturas em que as discussões não sejam vistas como uma guerra, os usuários deverão estruturar a língua de forma diferente. Isso significa que na visão dos autores, a cultura vivida pelos usuários da língua influenciam nas formas que armazenam os conhecimentos de mundo e automaticamente nas formas de (re)utilizar a própria língua. Assim, pode-se dizer que há um ciclo em que as metáforas, construídas culturalmente, são armazenadas na mente dos falantes (que compartilham esses conhecimentos entre si) e criam novas formas de produção da língua e, consequentemente, geram novas interpretações dos sentidos produzidos. Isso quer dizer que, para compreensão de textos escritos, os quais são o foco deste trabalho de tese, o leitor precisa ativar todos os conhecimentos relativos a interações comunicativas prévias que interferem na forma de ler e compreender o que inclui fatores culturais, sociais e experiências individuais. Solé (1998) argumenta que: a leitura nos aproxima da cultura, ou melhor de múltiplas culturas e, neste sentido sempre é uma contribuição essencial para a cultura própria do leitor. Talvez pudéssemos dizer que na leitura ocorre um processo de aprendizagem não intencional, mesmo quando os objetivos do leitor possuem outras características, como no caso de ler por prazer (SOLÉ, 1998, p. 46). Reitera-se com isso que o conhecimento cultural que se acumula na vida em sociedade, armazenado pelo leitor a partir da utilização da língua, é também ativado durante o processo de interpretação textual. É uma rede de sentidos socioculturais que extrapolam os limites do linguístico e interagem de forma constante em contextos específicos e que possibilitam o leitor questionar, refletir, imaginar as possibilidades para um determinado texto. Em suma, considera-se ‘conhecimento de mundo’ todos os tipos de conhecimentos extralinguísticos (discursivos, culturais, sociais e individuais) utilizados pelo leitor para compreender um texto. É esse conhecimento armazenado pelo leitor, o conhecimento de mundo, que o permite “preencher as lacunas do texto, isto é, estabelecer os ‘elos faltantes’ por meio de inferências-ponte” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 66). Durante a compreensão, os leitores ativam tais estruturas puxando alguns pacotes 64 particulares de conhecimento, chamados frames ou esquemas, usando-os para fornecer um quadro geral do texto que estão lendo (DIJK; KINTSCH,1983, p. 46). 1.4.3.1 Os esquemas de conhecimento A partir da discussão exposta na seção anterior, vê-se que o leitor, durante a leitura, aplica ao texto uma carga de conhecimentos previamente armazenados, produzindo sentido. Essa carga de conhecimentos pode ser armazenada em fatias de informação agrupadas de acordo com as possíveis ocorrências, as quais são denominadas esquemas de conhecimento ou frames. De acordo com Koch e Elias (2010): os conjuntos de conhecimento, socioculturalmente determinados e vivencialmente adquiridos, sobre como agir em situações particulares e realizar atividades específicas vêm a constituir o que chamamos de “frames”, “modelos episódicos” ou “modelos de situação” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 56). Para a autora, esses conjuntos de conhecimento permitem criar um quadro de representação para o texto que possibilita avançar na leitura sem a geração de ambiguidades ou estranhamento do conteúdo por parte do leitor. Por exemplo, numa sequência textual em que é narrado um diálogo entre garçom e cliente em um restaurante, o leitor espera encontrar certos tipos de situação e prevê muito daquilo que pode ou não ser dito nessa narração. Seria estranho para ele deparar-se com uma frase do tipo: “O guarda de trânsito pediu os documentos do rapaz” no meio dessa narrativa pois os conjuntos de conhecimento para as situações são diferentes, embora a frase esteja sintaticamente bem construída. Ou seja, o leitor ativa esquemas e subesquemas numa sequência de situações e vai predizendo muito do que pode ou não ser dito no texto (KATO, 1999). Kleiman (2002) afirma que os esquemas permitem que o leitor seja econômico nas possibilidades de representação para um texto. Isso porque eles limitam uma série de eventos, impressões e ocorrências possíveis para a compreensão do texto. A autora exemplifica tal situação a partir da frase: “vimos um acidente na estrada hoje. – Ah! por isso você chegou tarde.” (KLEIMAN, 2002, p. 21). A codificação da palavra ‘acidente’ inclui a sequência de eventos: policiais na rua, trânsito intenso, congestionamento, carros com vidros estilhaçados e amassados etc. Ou seja, acidente inclui aí uma série de 65 informações que dizem respeito à realidade que temos e estão armazenadas em esquemas de conhecimento, os quais são acionados para a palavra ‘acidente’. A interpretação do atraso é dada por esse compartilhamento de informações intrínsecas em que, se houve acidente, houve também essa série de elementos que possibilitam a interpretação de que o atraso é devido ao tempo perdido no trânsito por causa do acidente. Assim, para a autora, os itens lexicais motivam a ativação do conhecimento de mundo do leitor de forma inconsciente. Ou seja, itens lexicais não são simplesmente dados linguísticos. Eles são também insumo para ativações culturais e sociais da mente do indivíduo (KLEIMAN, 2002), o que acontece por meio de um conhecimento “estruturado que temos na memória sobre assuntos, situações, eventos típicos de nossa cultura” e que “é chamado de esquema. O esquema determina em grande parte, as nossas expectativas sobre a ordem natural das coisas” (KLEIMAN, 2002, p. 23). Dijk (1977b) conceitua frames afirmando que são o conjunto de proposições expressas em uma passagem, ou seja, um subsistema de conhecimento sobre algum fenômeno no mundo. Mais especificamente, o frame contém informações sobre estados do componente, ações ou eventos, sobre condições necessárias ou prováveis e consequências. O autor acrescenta, ainda, que frames são “representações de conhecimento sobre o mundo que nos capacitam a desempenhar atos cognitivos básicos como percepção, ação, e compreensão de língua” (DIJK, 1977b, p. 19). Em outra obra produzida com Kintsch (DIJK; KINTSCH, 1983), os autores ressaltam que o esquema fornece ao leitor as bases para interpretar um texto. Uma base textual coerente é obtida pela ligação de unidades semânticas derivadas do texto com o insumo textual para o esqueleto conceitual fornecido pelo esquema de conhecimento. Bases textuais são o resultado do casamento entre esquemas de conhecimento e texto (DIJK;KINTSCH, 1983, p. 48). Nesse sentido, os esquemas de conhecimento parecem codificar aquilo que é convencional na comunidade linguística e auxiliam o leitor na busca de sentidos por meio da estruturação dos conhecimentos em fatias de informação. O nosso conhecimento estaria assim organizado a partir de determinadas possibilidades de comunicação. É necessário ressaltar aqui que os esquemas de conhecimento não são porções arbitrárias organizadas aleatoriamente. Eles são unidades cognitivas que trabalham em 66 paralelo ao conhecimento semântico do discurso e ativam conhecimentos socioculturais, fazendo com que o texto possa ser reconstruído numa macroestrutura. O léxico do texto e as informações mais genéricas sobre o seu uso são armazenados nos esquemas e fornecem relações conceituais que definem parte da coerência semântica de um discurso (DIJK, 2002). A importância dos esquemas mentais na interpretação de textos reside justamente no fato de que podem auxiliar na renovação ou atualização dos modelos mentais previamente formados durante o processo de leitura de um discurso. Ou seja, eles não são estanques, mas são reconstruídos à medida que novas informações possíveis aparecem dentro de um determinado texto, fazendo com que o leitor reconstrua seu conhecimento, ou complete-o. Dijk (2002) explica a importância dos esquemas na compreensão do texto, afirmando que as estratégias e esquemas constituem as bases para os processos normais de interpretação hipotética: dada uma certa estrutura textual e contextual eles permitem suposições sobre possíveis significados e intenções – mesmo que as regras em um momento posterior levem á rejeição daquelas hipóteses (DIJK, 2002, p. 81). Colomer e Camps (2002) comparam o conceito de esquemas a uma tela online na qual é possível inserir e organizar novas e velhas informações de forma que sejam pertinentes e consistentes, ou seja, uma informação deve estar necessariamente conectada à outra. Para as autoras, os esquemas são estruturas mentais que o sujeito constrói à medida que interage com a sua comunidade linguística e auxiliam o leitor a organizar todas as informações que recebe a partir da sua experiência. Nesse sentido, o texto seria um ativador de vários esquemas mentais que se sobrepõem para a produção de um sentido. Beaugrande e Dressler (1981) classificam as formas de armazenamento mental em diferentes conceitos. Para os autores: a) frames28: são padrões globais que contêm um conhecimento de sentido comum sobre o conceito central. Esses padrões afirmam a que pertencem as coisas e os fatos que se encontram na realidade, mas não a ordem de acontecimento; 28 Neste trabalho pode-se encontrar também o termo frames como o termo utilizado por grande parte dos autores (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2010) para referir-se a esse pacote de conhecimentos. Desta forma, em alguns momentos, pode-se encontrar o termo esquemas e em outros frames, referindo-se ao mesmo conceito. 67 b) esquemas: são padrões globais de eventos e estados na ordem de sequências ligadas por proximidade ou causalidade. São usados em progressão e em ordem para o estabelecimento de hipóteses; c) planos: são padrões globais de eventos e declarações que levam a um objetivo geral; d) scripts: são planos estabilizados usados frequentemente para especificar papéis aos participantes e suas ações esperadas. Isto é, eles têm uma rotina específica de acontecimento. Na compreensão de um texto, esses padrões se sobrepõem de forma a explicar como um tópico deve ser desenvolvido (frames), como uma sequência de evento vai progredir (esquemas), como os personagens do mundo textual vão buscar seus objetivos (planos), como situações são organizadas para que certos textos possam ser apresentados no momento oportuno (scripts) (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981, p. 91). No entanto, como todos esses conceitos tratam da forma como o leitor organiza cognitivamente as informações durante a leitura do texto, utiliza-se, neste trabalho, o termo esquemas (e, por vezes, frames) assumindo que essas são as unidades básicas de armazenamento de informações do léxico em correlação com informações extralinguísticas (KATO, 1999; DIJK, 1977a; DIJK; KINTSCH, 1983). Em suma, ao referir-se ao termo esquemas nesse trabalho, assume-se que eles relacionam-se a pacotes de conhecimento previamente armazenados pelo leitor que limitam as possibilidades de aparecimento das situações textuais. Lencastre (2003) afirma que são os esquemas que ajudam o leitor a estabelecer uma filtragem das informações do texto, integrando-as num processo de constante interação aos conceitos já arrolados em sua mente. A partir dessa relação, o leitor faz inferências, organiza informações, (re)constrói hipóteses, ou seja, interpreta o texto. A autora afirma ainda que a quantidade de conhecimento prévio de cada indivíduo influi na maneira pela qual ele retira informações dos textos. Ou seja, há um processo de controle das informações textuais de acordo com o que o leitor já conhece sobre o assunto do texto. Os esquemas de leitores com um grau mais elevado de conhecimento possuem mais variáveis disponíveis, o que pode auxiliá-los na identificação de informações novas ou mais relevantes. Quando o leitor tem maior conhecimento prévio do assunto textual ele antecipa mais informações e consegue perceber mais pormenores no texto porque possui uma classificação de esquemas maior e mais organizada. 68 Em suma, pode-se dizer que os esquemas restringem as interpretações possíveis a partir da ativação de seus possíveis elementos constitutivos, fazendo com que o leitor realize inferências, destacando alguns conhecimentos e diminuindo a importância de outros no interior do texto. Os esquemas são os responsáveis pela organização do conhecimento exposto no texto, pela produção de pressuposições, inferências e hipóteses, e pela atribuição de coerência ao texto. Ou seja, são eles que possibilitam a utilização do conhecimento prévio do leitor sobre a situação textual exposta. No entanto, eles não são utilizados aleatoriamente, mas de forma estratégica pelo leitor para produzir sentido. 1.5 ESTRATÉGIAS DE LEITURA Nota-se, pelo que se discutiu até o momento, que a leitura é um processo ativo em que o leitor decide engajar-se num processo de estabelecimento de sentidos, lançando mão de vários de seus conhecimentos. Em outras palavras, a leitura não é um processo natural que acontece como um ato biológico, como caminhar, olhar etc. Ao contrário, ela é um processo que demanda aprendizado de estratégias específicas para compreender o que o autor diz por meio de um texto. Dijk e Kintsch (1983), ao procurar estabelecer um modelo de trabalho cognitivo para a compreensão do discurso afirma que a leitura é um processo estratégico. De acordo com os autores, o processamento do discurso, assim como outros processamentos de informações complexas, é um processo estratégico no qual uma representação mental é construída do discurso na memória, usando tanto tipos internos quanto externos de informação, com o objetivo de interpretar (compreender) o discurso (DIJK; KINTSCH, 1983, p. 6). Para os autores, uma estratégia envolve a ação humana durante interação comunicativa, um comportamento controlado, consciente e intencional orientado por um objetivo. Solé (1998), ao defender a ideia da leitura como um processo estratégico, afirma que durante tal processo o leitor realiza ações diversas e conscientes, tais como levantar hipóteses, checá-las, reconstruir significados, reler determinados trechos, fazer marcações. Se o leitor percebe que não compreende algo no texto, ele deve repensar suas estratégias29 para tentar resolver o problema de forma que a interpretação possa ser 29 Ou seja, o leitor utiliza sua competência estratégica para estabelecer comunicação com o texto. Tal conceito será melhor explicado no cap. 2.2.4 deste trabalho. 69 construída. Assim, a leitura é sempre guiada pelos objetivos (sejam eles quais forem; até mesmo a leitura por prazer ou como passatempo tem um objetivo) e pela ação do leitor que interage com as palavras do texto para construir sentidos. Pensar em leitura como um processo de elaboração de estratégias demanda que se fale sobre o termo estratégia. O dicionário Houaiss (UAISS, 2009) traz o conceito de estratégia como: Estratégia: s.f. (1836) 1 MIL arte de coordenar a ação das forças militares, políticas, econômicas e morais implicadas na condução de um conflito ou na preparação da defesa de uma nação ou comunidade de nações 2 MIL parte da arte militar que trata das operações e movimentos de um exército, até chegar, em condições vantajosas, à presença do inimigo 3 p.ext. arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos 4 p.ext. ardil engenhoso; estratagema, subterfúgio ETIM gr. stratégía,as 'o cargo do comandante de uma armada, o cargo ou a dignidade de uma espécie de ministro da guerra na antiga Atenas, pretor, em Roma; manobra ou artifício militar' (UAISS, 2009) Percebe-se que os dois primeiros conceitos relacionados ao verbete são de categoria militar (MIL) e referem-se a uma “arte de coordenar ações” para realizar uma organização que chegue “em condições vantajosas” na presença do inimigo. Ou seja, há um objetivo a alcançar, há uma formação de plano para chegar nesse objetivo e há a execução da ação. O terceiro conceito, que é apresentado como uma extensão por derivação (p.ext), está relacionado a uma explicação eficiente de recursos que se utiliza para alcançar um determinado objetivo. Pode-se dizer, a partir disso, que o termo estratégia relaciona-se às ações empenhadas de maneira otimizada para alcançar um determinado objetivo. Transpondo esse conceito para o caso da leitura, interesse dessa pesquisa, pode-se dizer que estratégia de leitura são todas as ações empenhadas pelo leitor e guiadas por um objetivo pré-estabelecido para alcançar a compreensão das ideias presentes em um texto. Na visão de Solé (1998), as estratégias de leitura tendem à obtenção de uma meta; permitem avançar o custo da ação do leitor, embora não a determinem de forma fixa e total; não estão sujeitas de forma exclusiva a um tipo de conteúdo ou a um tipo de texto, podendo adaptar-se a diferentes situações de leitura. Dessa maneira, estabelecer estratégias demanda esforço do leitor, ações que envolvem questões mais automatizadas pelo leitor (cognitivas) e questões mais conscientes (metacognitivas) (KATO, 1999). 70 Kato (1999) afirma que o leitor recorre a mais de uma estratégia durante a leitura, e as classifica em duas grandes ramificações: as cognitivas, que “são princípios que regem um comportamento automático e inconsciente do leitor”, e as metacognitivas, que são as que “regulam a desautomatização consciente das estratégias cognitivas” (KATO, 1999, p. 124). Em sua pesquisa, a autora vai demonstrando a forma como leitores controlam a sua leitura para depreender sentidos dos extratos textuais utilizando elementos sintáticos, lexicais, semânticos, pragmáticos ou seus conhecimentos de mundo para realizar tal tarefa, ou seja, como se dá a utilização de estratégias cognitivas. E também descreve sobre a forma como se controla conscientemente o processo ao estabelecer objetivos, identificar aspectos, alocar a atenção em partes específicas do texto, revisar, avaliar, tomar ações corretivas, o que seriam estratégias metacognitivas. Dijk e Kintsch (1983), ao criarem um modelo de compreensão do discurso de base cognitiva, procuram estabelecer uma série de estratégias necessárias para explicar a maneira pela qual se compreende um texto. Os autores chegam a algumas conclusões sobre as estratégias, as quais podem ser resumidas em: a) são componentes essenciais da nossa habilidade cognitiva para produzir e entender enunciados de fala; b) são partes ordenadas hierarquicamente pelo leitor; c) são flexíveis e operam em vários níveis ao mesmo tempo, usam informações incompletas, e combinam processamentos de leitura ascendentes e descendentes30; d) são sensíveis ao contexto, ou seja, podem ser alteradas de acordo com conhecimento de mundo armazenado pelo leitor. Ainda, na visão dos autores, a utilização de estratégias compreende questões linguísticas e extralinguísticas, as quais são utilizadas constantemente durante a produção de sentidos. Nas palavras dos autores, usuários da língua sempre manipulam estruturas de superfície, palavra, frase e orações, informações pragmáticas do contexto assim como dados interacionais, sociais e culturais. Isto é, um usuário da língua tentará efetivamente avaliar os significados das partes de discurso, corresponder referência, funções pragmáticas ou valores de 30 Processamento descendente, ou top-down, é uma abordagem não linear, que faz uso intensivo e dedutivo de informações não visuais e cuja direção é da macro para a microestrutura e da função para a forma. Processamento ascendente, ou bottom-up, faz uso linear e indutivo das informações visuais, linguísticas, e sua abordagem é composicional, isto é, constrói o significado por meio da análise e síntese do significado, das partes (KATO, 1999, p. 50). 71 atos de fala do discurso assim como outras funções interacionais, sociais e culturais. (DIJK; KINTSCH, 1983, p. 78) Ou seja, as estratégias utilizadas por qualquer leitor ao interagir com um texto envolvem o controle, consciente ou não, de todos os conhecimentos prévios (já explicados na seção anterior do presente trabalho de tese). Isso porque as estratégias representam o conhecimento procedimental que se tem sobre a compreensão do discurso como um conjunto aberto de opções (KINTSCH, DIJK, 1983) das quais o usuário serve-se para estabelecer um conteúdo global para o texto (superestruturas). Para os autores, essas estratégias precisam ser aprendidas e reaprendidas até serem automatizadas. Solé (1998) também argumenta sobre a necessidade da aprendizagem das estratégias em idade escolar. São elas que vão guiar a forma como o leitor realiza a representação dos diversos textos que se propõe a ler. Elas devem ser ensinadas de forma consciente pelo professor, que demonstra a forma pela qual elas são utilizadas para estabelecer sentidos textuais. Para a autora, ainda, o ensino dessas estratégias compreendem a utilização de indicadores linguístico-textuais (como os títulos, subtítulos, palavras específicas) e também de previsões, hipóteses, confirmações baseadas nos conhecimentos extralinguísticos do leitor. Solé (1998) afirma também que tais estratégias não são rígidas como um conjunto fixo de regras que deve ser seguido com rigor no currículo escolar. Ao contrário, são procedimentos de ordem elevada que envolvem o cognitivo e o metacognitivo e não podem ser consideradas como receitas infalíveis, porque são individuais. Ou seja, são construções de procedimentos gerais. Kato (1999) também argumenta sobre a necessidade dos leitores aprenderem questões linguísticas e extralinguísticas associadas à construção de estratégias para a leitura. Para a autora, a leitura pode ser entendida como um conjunto de habilidades que envolvem estratégias de vários tipos. Essas habilidades seriam: a) encontrar parcelas (fatias) significativas do texto; b) estabelecer relações de sentido e de referência entre certas parcelas do texto; c) construir coerência entre as proposições do texto; d) avaliar a verossimilhança e a consistência das informações extraídas; e) inferir o significado e o efeito pretendido pelo autor (KATO, 1999, p. 107). Para que tais atividades sejam realizadas, o leitor cria suas próprias estratégias e aos poucos as automatiza tornando-se um leitor mais proficiente. Em suma, a leitura de um texto para produzir sentidos ou para compreender as ideias ali presentes envolve, de fato, a aprendizagem de estratégias e, 72 consequentemente, o controle de ações do leitor. Deve-se ressaltar, porém, que as estratégias são construções individuais que demandam todos os conhecimentos que o leitor tem para a construção de sentido, ou seja, a utilização de conhecimentos prévios (linguísticos, textuais e de mundo) e, portanto, cognitivos, em associação à construção de ações conscientes lideradas por decisões do leitor, as quais são metacognitivas. Neste sentido, destaca-se que, no processo estratégico, não há um sucesso garantido na representação e nem uma única representação do texto. As estratégias aplicadas são como hipóteses de trabalho aplicadas sobre a estrutura e significado de fragmentos de texto, e estas podem ser desconfirmadas por processamentos adicionais (DIJK; KINTSCH, 1983). No capítulo 2 desse trabalho, foca-se a discussão sobre a competência comunicativa que seria a forma como o sistema linguístico é constituído no uso da língua e como ele é codificado. Uma das dimensões da competência comunicativa envolve justamente o uso de estratégias para estabelecer a comunicação e recuperar sentidos, o que se denomina competência estratégica (cap. 2.1.4) e é o que se vai a explicar no próximo capítulo. Destaca-se aqui que nessa pesquisa procura-se considerar tanto estratégias cognitivas quanto metacognitivas para a construção de sentidos, focando-se a maneira pela qual o leitor seleciona marcações linguísticas (palavras-chave) para interagir com o texto e a maneira pela qual ele fornece a essas marcações os mais variados sentidos, procurando concentrar ali sentidos textuais gerais. Admite-se o fato de que leitores podem usar as palavras-chave como uma estratégia de compreensão textual, o que os auxilia na construção de sentido para o texto. Isso porque ao selecionar a palavra-chave o leitor ativa toda a sua carga de conhecimentos prévios (linguísticos, textuais e de mundo) e os utiliza para interagir com o texto. 73 2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS. Viu-se pela discussão apresentada no cap. 1, que a língua, por meio de textos, é capaz de demonstrar sentidos que o leitor precisa reconhecer no processo de leitura e interpretação. Assim, procura-se agora discutir as formas pelas quais o sistema linguístico é capaz de construir sentidos a partir das relações estabelecidas entre seus componentes (intra e extra língua). De que maneira as formas escolhidas (palavras, frases, orações, parágrafos e discurso) por um autor para produção de um texto constroem e revelam sentido textual? Ou seja, quais seriam os aspectos presentes na língua e dominados pelos usuários que os levam a compreender e produzir expressões linguísticas? Assume-se que a língua, enquanto meio de comunicação entre sujeitos, possui características que permitem a comunicação e que atende aos objetivos dos usuários na interação (vide seção 1.1). Isso significa que, por meio da língua, os usuários realizam ações, tais como convencer, reclamar, pedir, desculpar-se etc., as quais se efetivam a partir de um sistema que codifica várias dimensões – tanto linguísticas quanto extralinguísticas – dessas ações e da comunicação em si. Para Halliday (1985), a língua é um recurso que os falantes têm para construir significados realizando seleções de determinadas expressões e suas organizações, as quais se enquadram em um ambiente e atendem a um conjunto de possibilidades. Para o autor, os enunciados da língua visam o cumprimento de três objetivos principais de produção da língua(gem)31: a) Ideacional: os enunciados servem para a expressão de um conteúdo e um objetivo específicos. A organização estrutural das frases permite que se identifique o conteúdo interno e qual o objetivo do autor. É nesse nível que Halliday propõe que sejam identificados quais os processos (ações sendo desenvolvidas) e os participantes (o que e/ou quem está envolvido nas ações); b) Interpessoal ou interacional: enunciados servem para estabelecer e manter relações. Essa função compreende o fato de que os usuários da língua trocam e negociam significados com o intuito de manter a comunicação ativa e alcançar 31 A obra (HALLIDAY, 1995) foi consultada em inglês e as traduções são de minha autoria. O autor utiliza do termo language, o que pode significar tanto língua quanto linguagem. Optou-se, aqui, pelo uso de língua(gem) visto que tanto a língua quanto a linguagem são usadas para cumprir com os objetivos de produção expostos. 74 efetivamente a interação entre dois indivíduos situados em uma comunidade e mediados pela língua; c) Textual: enunciados servem como um suporte para fazer ligações com os próprios enunciados e com as características da situação comunicativa. Isso significa dizer que a estrutura temática32 das orações compõe o caráter de mensagem do texto, indicando de que se fala (tema) e o que se fala (rema) sobre isso. É na composição das ligações entre essas mensagens que o texto se solidifica criando uma unidade de sentido genérico capaz de ser extraído pelos usuários. Sendo assim, a análise linguística de um texto contribui para sua compreensão porque capacita a mostrar como e porque o texto significa o que significa (HALLIDAY, 1985), e ainda capacita a dizer se o texto é bem sucedido ou fracassa em seus objetivos, ou se é capaz de ligar características linguísticas a um contexto de situação e de cultura. Para Halliday (1985), o texto deve ser considerado como uma unidade semântica e não gramatical. No entanto, ele destaca que os significados são construídos por meio das palavras e sem uma gramática – em outros termos sem uma teoria sobre isso - não há maneiras de tornar a interpretação do texto explícita (HALLIDAY, 1985). Nesse sentido, a análise linguística deve permitir o encontro dos sentidos presentes nas palavras de um texto. Savignon (1997) afirma ainda que a Linguística se subdivide em dois itens: a língua e a consciência da língua. Para a autora, o primeiro conceito – a língua - está estritamente ligado às formas de comunicação pertencentes às comunidades. Por sua vez, a comunicação é determinada pelos sentidos construídos socialmente num compartilhamento de significados que, aos poucos, se refletem nas mudanças sociais e, consequentemente, nas formas de interação. Ela afirma que língua é cultura33 em movimento, uma combinação de significados que responde e influencia a mudança social. Sobre o segundo conceito - a consciência linguística - Savignon (1997) afirma que essa extrapola a questão do código e concentra-se no reconhecimento de diferentes aspectos, tais como: os recursos linguísticos e a compreensão de como a língua é usada para negociar e criar sentidos; as formas linguísticas, as maneiras de construção do discurso e compreensão do poder da língua; os direitos numa sociedade multicultural e multilingual. 32 33 Explica-se mais sobre a estrutura temática e na relação tema-rema na seção 2.2.3 deste trabalho de tese. O conceito de cultura será discutido na seção 2.2.2 75 Sendo assim, a língua sofre uma influência direta de fatores sociais, e o usuário precisa desenvolver habilidades que permitam o uso da língua em correlação a tais fatores socioculturais. No entanto, a maneira como essa língua é utilizada pode ser refletida de forma diferenciada dentro dos estudos linguísticos. Uma dessas diferenças de percepção conceitual reside no termo “competência”. A partir dos estudos gerativistas de Chomsky (1965), tal conceito tem se alterado e foi (re)construído diferentemente por outros autores que corroboram ou se opõe à visão gerativa. Visto que esse é um conceito primordial para a construção deste trabalho, expõe-se na seção seguinte qual a visão de competência para este trabalho. 2.1 O CONCEITO DE COMPETÊNCIA Chomsky (1965), ao realizar seus estudos, procurou investigar as intuições e o conhecimento que o falante tem sobre o sistema linguístico que o permite se expressar em qualquer idioma, em qualquer situação de fala, e passou a chamar esse conhecimento de ‘competência’. Ou seja, para o autor, o usuário já nasce com uma marca genética que o capacita a construir a sua competência, já que o aprendizado linguístico é espontâneo, bastando a exposição a uma língua. Para ele, “competência é o conhecimento que o falante-ouvinte possui da sua língua” (CHOMSKY, 1965, p. 84, grifos do autor). Por outro lado, o autor admite que a língua tem um lado pragmático, que permite que os usuários a utilizem de acordo com suas necessidades momentâneas e individuais, o que ele chama de performance e a conceitua como “o uso efetivo da língua em situações concretas” (CHOMSKY, 1965, p. 84). No entanto, ele procura demonstrar que sua preocupação está na determinação de um sistema subjacente de regras dominado pelo falante ouvinte e não elege a performance como objeto de estudos, embora a utilize como forma de observação do sistema 34. Em outros termos, na visão de Chomsky (1965), a competência é uma característica do falante-ouvinte ideal e a preocupação do linguista deve ser a sua descrição a partir das exposições feitas nas combinações das formas linguísticas. Em suas palavras: “a gramática de uma língua particular deve ser completada por uma gramática universal que dê conta do aspecto criativo do uso da linguagem e que formule as regularidades profundas que, por serem universais, são omitidas da gramática 34 Deve-se notar, no entanto, que a definição de competência proposta por Chomsky em 1965 já sofreu várias alterações, estando, no momento, voltada para as questões biológicas da linguagem. 76 propriamente dita” (CHOMSKY, 1975, p. 86). Assim, o pesquisador deve estar preocupado com a descrição do que existe como realidade mental do sujeito que o permite utilizar as formas linguísticas em associação. Hymes (1995), de certa forma, se opõe ao pensamento gerativista proposto por Chomsky (1965), elegendo para seus estudos a maneira como a língua se dá na realidade e estudando, além dos aspectos gramaticais, também os culturais, sociais e discursivos. Para Hymes (1995), a competência do falante está relacionada ao modo como se utiliza a língua para interagir com os outros a partir de características próprias da língua e das atitudes a ela relacionadas. Sendo assim, o usuário não nasce com um dispositivo inato para a aquisição da língua, mas aprende a usá-la e a realizar atos de fala35, tomando parte em interações linguísticas bem sucedidas e avaliando seus avanços por meio de outros. Na visão de Hymes, é esse desenvolvimento da língua em uso que o linguista deve estar preocupado em descrever e compreender. Na oposição a Chomsky, Hymes (1995) constrói o conceito de competência diferentemente da ideia gerativista. Na concepção do autor, o conceito está ligado à noção de habilidade de usar o conhecimento das regras abstratas de uma língua nas correspondências entre sons e significados de forma social e culturalmente apropriada. O autor propõe então o conceito de competência comunicativa que envolve não só um sistema de regras linguísticas, mas também um sistema de regras do uso da língua pelo falante. Hymes (1995) afirma ainda que a participação da língua na vida social é positiva e produtiva, pois existem regras de uso sem as quais as regras gramaticais seriam inúteis (HYMES, 1995). Pode-se dizer, então, que as realizações linguísticas dos falantes compõem-se da forma linguística em si juntamente aos atos por ela realizados. Dentro do processo de aquisição de uma língua, o usuário adquire não somente o conhecimento da organização das orações, mas também um conhecimento de um conjunto de formatos sociais, culturais e discursivos em que elas podem ser utilizadas. Para o autor, a competência comunicativa é então definida como capacidade individual de uso da língua em termos de conhecimento e de habilidade. Elege-se para este trabalho de tese a proposta de competência comunicativa de Hymes (1995), na qual aspectos linguísticos são utilizados em associação a aspectos culturais, sociais e discursivos produzindo sentidos para um texto. 35 Os atos de fala, na visão de Searle (1995), são ações específicas realizadas pela linguagem as quais dependem do objetivo do falante, tais como solicitar, desculpar-se, abrir uma reunião, queixar-se etc. 77 2.2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA Conforme discutido acima, a competência, na visão de Hymes, inclui a habilidade de usar as formas da língua em contextos adequados para produzir comunicação. Assim, competência comunicativa seria o conhecimento que o usuário tem sobre a língua que o capacita a interagir com os outros a partir de características próprias da língua - tais como as organizações linguísticas de frases, parágrafos, textos e o contexto em que ocorrem - e das atitudes a ela relacionadas, construindo e negociando sentidos, juízos de valor e características socioculturais (HYMES, 1995). Savignon (1997) afirma que a língua é comunicação e, nesse sentido, todas as formas de uso da língua - no caso deste trabalho de tese, textos escritos - são meios de se estabelecer comunicação. A autora, mesmo falando mais especificamente de uma perspectiva de aprendizagem de língua estrangeira, admite que o desenvolvimento da competência comunicativa é válida para falantes nativos de uma língua, e que é necessário que se pense nas formas de garantir a sua evolução contínua para aumentar as formas com que os indivíduos se comunicam. Vale lembrar que essa afirmativa é útil também para a questão da leitura, uma vez que, conforme explicado no cap. 01, esse processo é interativo, contextual e depende da negociação e construção dos sentidos para que haja compreensão da informação textual. Sobre a maneira como a língua é capaz de garantir comunicação e construção de sentidos pelos usuários, Canale (1995) afirma que comunicação é a troca e negociação de informações entre pelo menos dois indivíduos por meio do uso de símbolos verbais e não verbais de modos orais, escritos e visuais e de processos de produção e compreensão (CANALE, 1995). O ponto de vista adotado pelo autor é de que tanto o conhecimento quanto a habilidade subjazem à comunicação real de modo sistemático e necessário, sendo que ambos estão incluídos na competência comunicativa. Para ele, a competência comunicativa deve ser desenvolvida no sentido de garantir algumas características básicas da comunicação. O autor afirma que a atividade verbal (CANALE, 1995): a) é uma forma de interação social e, em consequência, é adquirida e usada a partir de tal interação; b) implica um alto grau de imprevisibilidade e criatividade em forma e conteúdo; 78 c) tem lugar em contextos discursivos e socioculturais que regem o uso apropriado da língua – enquanto sistema primordial de comunicação - os quais oferecem referências para a correta interpretação das expressões linguísticas; d) realiza-se sob limitações psicológicas e outras condições como restrições de memória, fatiga e distrações; e) sempre tem um propósito; f) implica em uma linguagem36 autêntica oposta à linguagem inventada dos livros didáticos; g) realiza-se com sucesso ou não a partir da análise de resultados concretos. Percebe-se com isso que, para a comunicação, faz-se necessário a utilização de uma série de conhecimentos e habilidades individuais para interagir com outros falantes. Ou seja, a noção de competência comunicativa compreende o fato de que há conhecimentos particulares os quais se ligam a conhecimentos sociais para construir interação, comunicação e sentidos. Savignon (1997) afirma que a importância de se considerar a competência comunicativa na compreensão do uso das expressões linguísticas está justamente no fato de se garantir aos aprendizes um uso significativo da língua. Para a autora, a produção e interpretação de um discurso estão relacionadas às necessidades dos usuários (e apresentam seus conhecimentos). Além disso, os significados se desenvolvem em uma relação dinâmica entre leitores (ou ouvintes) e suas experiências e expectativas, fazendo com que a construção organizacional do texto seja importante somente dentro de uma perspectiva de demonstrar os sentidos construídos. A autora destaca, ainda, que o usuário da língua37 precisa saber selecionar as expressões linguísticas e respectivos encaixes gramaticais inseridos em um contexto para garantir o alcance de determinados objetivos tanto na compreensão quanto na produção de enunciados durante a interação. Isso garante que os propósitos funcionais e sociais da língua determinem as características semânticas de um enunciado. Hymes (1995) procura pensar o processo de descrição e análise linguística considerando que, dentro dele, as regras de uso social da linguagem devem estar incluídas a fim de garantir uma descrição real para a maneira como os usuários 36 Para este trabalho, assume-se a noção corrente de que linguagem é o sistema mais amplo de comunicação entre os seres humanos, a partir do qual a língua, com seu sistema específico de funcionamento, é organizada (LYONS, 1977). 37 No caso da discussão realizada por Savignon (1997), esses usuários são os aprendizes de uma língua estrangeira. Tal fato não anula a necessidade exposta pela autora de se compreender a seleção das expressões linguísticas ligadas aos objetivos que se pretende com elas. 79 manipulam a língua para atingir determinados objetivos na interação. Para o autor, o estudo comparativo que se faz do papel da língua mostra que a natureza e avaliação da capacidade linguística variam de forma transcultural; inclusive as línguas que se consideram parte de uma mesma língua – tais como as variações linguísticas ou os dialetos - dependem em parte dos fatores sociais (HYMES, 1995). O autor destaca ainda que, ao adquirir a língua, o usuário apreende não apenas o conhecimento sobre suas formas de organização, posições sintáticas, possibilidades de uso em uma determinada estrutura, mas também um conhecimento de um conjunto de padrões e possibilidades em que tais formas podem ser utilizadas. Destaca-se, então, a importância de se refletir, neste trabalho, sobre a utilização do conhecimento do leitor na interpretação textual relacionado à sua competência comunicativa: na identificação e escolha das palavras-chave, o leitor estaria fazendo uma tentativa de usar a competência comunicativa na construção dos sentidos textuais, seja pela posição sintática da palavra, pela posição textual, pelos sentidos discursivos ou pela ativação de conhecimentos genéricos e sociais do aprendiz. Salienta-se também que a noção de competência comunicativa se configura como uma maneira de observar a construção dos sentidos da informação – no caso deste trabalho, informação textual. Isso porque a junção de elementos linguísticos e pragmáticos faz com que as construções de sentenças sejam analisadas de modo a se perceber como os sentidos relacionam-se às formas escolhidas para construir um texto. Tais questões linguísticas e pragmáticas são divididas em 4 dimensões, caracterizando o conhecimento subjacente individual e a habilidade de uso da língua dividindo-se em (HYMES, 1995; LLOBERA, 1995): a) o grau de possibilidade: o que é possível construir usando o sistema linguístico do indivíduo (léxico, sintaxe, morfologia, fonologia etc...). Ou seja, “se e em que grau algo é formalmente possível” (HYMES, 1995, p. 37); b) o grau de viabilidade: o que é possível construir dada a capacidade psicolinguística do indivíduo (ex.: memória e percepção do sujeito). Isto é, “se e em que grau algo é factível a partir dos meios de atuação disponíveis” (HYMES, 1995, p. 37); c) o grau de adequação: o que é conveniente dada a natureza do acontecimento comunicativo (características do lugar, posição dos participantes, fins, ato, instrumentos etc). Em outros termos, “se e em que grau algo é apropriado em relação ao contexto em que se utiliza e se avalia” (HYMES, 1995, p. 37); 80 d) o grau de ocorrência: o que pode ou não ocorrer dada a possibilidade, viabilidade e adequação de ocorrência ou a sua falta. Nas palavras de Hymes, (1995) “se e em que grau algo se dá na realidade e, de fato, efetiva-se e a que consequências ele leva” (HYMES, 1995, p. 37). Percebe-se, assim, que o modelo de Hymes leva em consideração aspectos da competência comunicativa em, pelo menos, quatro pontos diferentes: a habilidade do uso das formas da língua, a dimensão mais ampla do controle do usuário da língua, a viabilidade e a perspectiva etnográfica do contexto. Há uma combinação entre forma, função e contexto social, fazendo com que o uso adequado da língua leve consigo tanto a formulação estrutural de um enunciado para alcançar o objetivo, quanto o reconhecimento das condições (contexto) e da adequação. Autores que trabalham com a perspectiva da competência comunicativa (CANALE, 1995; HYMES, 1995; HORNBERGER, 1995; LLOBERA, 1995; SAVIGNON, 1997) afirmam, a partir dessas quatro dimensões, que a competência comunicativa efetivamente realiza-se, e deve ser observada também, no contexto pedagógico, em quatro componentes: 1) Competência gramatical38: compreensão de como os elementos da língua combinam-se sistematicamente. Essa competência está ligada à habilidade do uso dos componentes linguísticos (lexicais, morfológicos, sintáticos, fonológicos), assim como componentes não verbais que auxiliam na construção das expressões linguísticas; 2) Competência sociolinguística: compreensão do contexto social no qual a língua é usada – papéis dos participantes, informações compartilhadas, funções da interação; 3) Competência discursiva: a conexão realizada pelo uso da língua com uma série de sentenças e enunciados para formar um todo dotado de unidade de sentidos. Aqui estariam incluídas as habilidades de estabelecimento de coesão e coerência para um texto; 4) Competência estratégica: as estratégias utilizadas pelo usuário para compensar o conhecimento deficitário de algumas regras da língua, o que pode incluir a paráfrase, a hesitação, a mudança em estilos e formas de 38 Autores que trabalham com competência comunicativa denominam essa dimensão de competência gramatical. Para esse trabalho, admite-se que tal competência inclui aspectos linguísticos como sintáticos, semânticos e também lexicais. Optou-se pela não utilização do termo competência linguistica para que não se confunda com o termo utilizado por Chomsky na perspectiva gerativista. 81 registro, ou a repetição. Tal competência vai ser dependente do nível das competências anteriores, pois a depender do tipo de conhecimento falho, o usuário cria estratégias de compensação desse conhecimento em particular. Destaca-se, assim, que a noção de competência comunicativa compreende todas as formas de uso da língua que permitem interação, e, consequentemente, a leitura de um texto. É na adequação das formas da língua ao uso permitido por ela que o leitor pode, de fato, construir relações de sentido. Desse modo, Hornberger (1995) explicita que a competência comunicativa é capaz de descrever o conhecimento e a habilidade dos indivíduos para o uso adequado da língua nos acontecimentos comunicativos no interior das comunidades linguísticas. Essa competência é variável dentro das relações entre indivíduos (de acontecimento a acontecimento), através dos indivíduos e por intermédio das comunidades falantes, e inclui tanto regras de uso quanto regras linguísticas. (HORNBERGER, 1995) A produção e compreensão de um texto39 são, de fato, um tipo de ação ou acontecimento comunicativo. Portanto, é necessário que se compreenda como a competência comunicativa é produzida para garantir a construção de sentidos nas relações linguísticas estabelecidas em um texto. Fala-se, na sequência do trabalho, sobre cada uma das dimensões da competência comunicativa, explicando seu funcionamento e sua influência na produção e compreensão de expressões linguísticas em um texto. 2.2.1 A competência gramatical De acordo com Canale (1995) a competência gramatical está relacionada ao domínio do código linguístico verbal e não verbal. Nela estão incluídas as características formais e informais da língua tais como o vocabulário, a formação das palavras e frases, a pronúncia, a ortografia e a semântica. Essa competência centra-se diretamente no conhecimento e na habilidade necessários para se empreender e expressar adequadamente o sentido das expressões. Halliday (1985) propõe uma linguística de base conceitual na qual as formas da língua seriam utilizadas para um determinado fim, e não como um fim em si mesmas. O autor afirma que existe uma multiplicidade funcional que se reflete na organização interna da língua e a investigação da estrutura linguística revela, de algum modo, as 39 Cf. conceito de texto na seção 1.2. 82 várias necessidades a que a linguagem serve. Pode-se dizer que, nessa abordagem, a pluralidade funcional se constrói claramente na estrutura linguística e forma a base de sua organização lexical, semântica e sintática. Há uma percepção, assim, de que o uso das formas é definido também por razões pragmáticas. A organização das palavras na frase é vista na sua função de organização da informação. Segundo Halliday (1985) a gramática codifica o significado sem relacionar pequenas porções uma a uma. Ao contrário essa codificação se dá por meio do isolamento de variáveis e de suas possíveis combinações na consecução de funções semânticas específicas (HALLIDAY, 1985). Para o autor, as escolhas relativas a elementos e posições gramaticais revelam sentidos diferentes. Em outros termos, os sentidos dependem, de certa forma, da escolha de um item particular, do seu lugar no sintagma, da sua combinação com outro elemento ou da sua organização interna. Então, o que a gramática faz é separar todas essas possíveis combinações e ordená-las em suas funções semânticas específicas. Dik (1997), baseado no modelo funcionalista de Halliday, propõe que as expressões linguísticas movem intenções e interpretações dos usuários da língua permitindo interação. O modelo abaixo é proposto por Dik (1997): FIGURA 1: Modelo de interação verbal40. Informação pragmática do falante Informação pragmática do destinatário Formas do falante Construtores do destinatário INTENÇÃO antecipa reconstrói INTERPRETAÇÃO Expressão linguística Para o autor, “a relação entre a intenção do falante e a interpretação do destinatário é mediada, mas não estabelecida pela expressão linguística” (DIK, 1997, p. 08). Com base na figura 1, nota-se que as expressões selecionadas para construir um 40 In: DIK, 1997, p. 08 83 enunciado ativam duas ações diferentes: uma em relação ao objetivo do locutor, ou às suas intenções, e outra em relação à recepção dada pelo interlocutor, ou à sua interpretação. Assim sendo, o processo de produção e compreensão dos enunciados tem uma base comum: a expressão linguística, a qual ativa conhecimentos de ambos usuários em interação, incluindo seus conhecimentos pragmáticos que estabelecem as possibilidades de uso da expressão. Isso quer dizer que as expressões linguísticas e as formas de suas combinações são capazes de ativar representações mentais dos usuários, ou os esquemas de conhecimento e suas relações41. Para Dik (1997), a expressão linguística é uma função da intenção do locutor, sua informação pragmática, e sua antecipação da interpretação do interlocutor, enquanto a interpretação do interlocutor é uma função da expressão linguística, a informação pragmática e a sua conjuntura sobre o que pode ser a intenção comunicativa do falante (DIK, 1997). O uso das expressões linguísticas selecionadas para a comunicação organiza, antecipa, expõe possíveis interpretações entre os usuários da língua, pois ativam, entre outras, informações pragmáticas as quais se encadeiam no sistema linguístico. Tanto a produção quanto a interpretação possuem em comum a expressão linguística, base do conhecimento gramatical dos falantes para que sentidos sejam (re)construídos e a interação aconteça. Moura Neves (1997) destaca que é na percepção das funções dos elementos linguísticos em funcionamento que se pode compreender as relações ali estabelecidas e as possíveis interpretações: o exame dos itens de uma classe, vistos em seu funcionamento (em sentido multifuncionais) leva à explicitação dos diversos processos existentes na língua. O exame dos substantivos, por exemplo, exploraria: a semântica vocabular (referenciação), a semântica das relações (participação em eventos), a sintaxe (posição e função na estrutura), a pragmática (organização da interação em termos de definição de papeis na interlocução), a composição textual (a organização da mensagem com unidades em termos de delimitação e extensão, independem das unidades sintáticas) (MOURA NEVES, 1997, p. 66). Desse modo, para que os sentidos textuais sejam construídos, há uma combinação de pequenos significados construídos e relacionados nas frases, orações, 41 Vide cap. 1.4.3.1 sobre a noção de esquemas 84 parágrafos e discurso. Eles estão entrelaçados em uma teia de conexões, tecendo fios semânticos (CAVALCANTI, 1989), os quais são identificados pelo leitor na compreensão. Para que a competência gramatical seja desenvolvida, tais fios devem ser reconstruídos pelo leitor por meio da identificação dos significados ali expressos e suas ligações. Na organização e construção dos sentidos, as classes das palavras e as posições dos elementos na sentença são fundamentais. Isso porque as palavras têm funções específicas nas frases ou sintagmas em que atuam e classificam-se de acordo com características mais ou menos parecidas, tais como a posição no sintagma e a função que exercem na construção de sentido (HALLIDAY, 1985). Isso significa que o foco principal estaria na estrutura gramatical sendo explicada de acordo com os sentidos por elas produzidos. Halliday (1985) esclarece a sua proposta funcional concentrando-se na explicação de unidades tais como os sintagmas. O autor propõe a figura abaixo para a divisão dos sintagmas: FIGURA 2 - Divisão dos sintagmas segundo Halliday (1985) 42 substantivos Nominais: comuns próprios pronomes adjetivos numerais Determinantes Verbo Verbais: Preposição Adverbiais: advérbio conjunção lexicais auxiliares Formas verbais43 Para o autor, esses grupos de palavras seriam os elementos, (ou, como ele denomina, partes do discurso), da gramática funcional e não podem ser representados na forma de estruturas completas separadas, mas, ao contrário, contribuem parcialmente para uma linha estrutural única da oração. Os grupos expostos na figura 2 devem ser analisados no sentido de perceber as relações lógico-semânticas que mantém com as palavras a que se combinam. Ou seja, 42 43 In: Halliday (1985), p. 191 Do inglês: finite verbs (tradução minha) 85 há um motivo para o qual a organização dos sintagmas é utilizada pelo falante para fazer sentido. Como se percebe na figura acima, Halliday (1985) discute três grupos principais: i) um que se concentra ao redor do substantivo, grupo nominal; ii) outro que se concentra ao redor do verbo, grupo verbal; iii) e outro ainda que se concentra ao redor do advérbio, grupo adverbial. A partir desses três grandes grupos, as classificações e ocorrências linguísticas são analisadas tendo como base a função na sentença e a forma como produzem comunicação. O autor procura demonstrar também que as preposições e conjunções em algum ponto da oração têm sua função demarcada em relação às demais categorias lexicais e também merecem atenção do ponto de vista funcional. Na perspectiva funcionalista, a classificação é sustentada pelas suas funções exercidas pelas palavras e pela forma como essas se posicionam para construir sentidos e informações. Assim, num âmbito mais geral, elementos mais fixos (classe fechada, tais como preposições, artigos, conjunções) se ligam aos elementos mais variáveis (classe aberta, tais como substantivos, adjetivos e advérbios – LYONS, 1977) para organizar os sintagmas e frases. Talvez seja exatamente esse o motivo pelo qual a maioria dos sujeitos estudados neste trabalho tenha escolhido elementos de classe aberta como palavra-chave (palavras que estão categorizadas nos três grupos principais expostos por Halliday, 1985). As palavras de classe aberta auxiliam na organização do conteúdo semântico das sentenças sem excluir a possibilidade de elementos de classe fechada também auxiliarem na construção de sentidos. Ainda, tais palavras ocupam funções sintáticas proeminentes na organização das sentenças, tais como sujeito, objeto, predicado, ou, como veremos adiante no cap. 4, na estrutura tema-rema ou na informação dado-novo. Para Halliday (1985), uma propriedade fundamental da língua é que ela capacita os seres humanos a construir um quadro da realidade, a fim de dar sentido à sua experiência e àquilo que ocorre ao seu redor. A oração é a unidade gramatical mais significante, porque ela corporifica um princípio geral para modelar a experiência, isto é, o princípio de que a realidade é composta de processos. Nesse sentido, os sistemas de significação geram estruturas léxico-gramaticais que são plausíveis: há, então, verbos e substantivos para enquadrar a análise da experiência tanto de processos quanto de participantes, formando um todo integrado entre os elementos e os significados presentes no texto. Os conceitos de processo e participante, na compreensão desse autor, são categorias semânticas que explicam, de 86 maneira bem ampla, como os fenômenos do mundo real são representados como estruturas linguísticas. Ou seja, há um sistema de transitividade em que os processos são as ações que são realizadas pela língua caracterizadas semanticamente no uso de verbos. Já os participantes são aqueles que estão diretamente envolvidos no processo, pois se referem diretamente ao verbo e realizam uma ação por meio desse verbo. É o sistema de transitividade que, para Halliday (1985), constrói o mundo da experiência em um conjunto manejável de tipos de processos que são reconhecidos na língua e a estrutura pela qual eles são expressos. O autor afirma que a estrutura semântica básica para a representação de processos consiste de três componentes: o próprio processo, os tipos particulares de função participante e as circunstâncias associadas ao processo, na oração. Cada um desses acontecimentos deve ser caracterizado de acordo com a sua função e expressam um determinado significado. Os processos geralmente são realizados pelo grupo verbal, os participantes pelo grupo nominal e as circunstâncias pelo grupo adverbial ou preposicional. O autor classifica os processos em: 1) Processos materiais: ato de fazer ou realizar algo como em: a. O prefeito dissolveu o comitê 44 (os participantes são um agente – o prefeito - e um objetivo45 – o comitê); 2) Processos mentais: ato de sentir, pensar, perceber, passar por uma experiência, como em: b. Ela gostou do presente. (o participante que sente o processo precisa ser humano e o outro pode ser tanto um objeto quanto um fato); 3) Processos relacionais – processos de ser, estar, tais como: c. Ela é uma linda mulher. (pode ser intensivo em que o participante é alguém ou algo; circunstancial em que há uma relação de tempo, lugar, maneira, causa, acompanhamento, questão ou papel; possessivo em que há uma relação de posse); 4) Processos comportamentais – processos fisiológicos ou de comportamento psicológico (ex. sonhar, tossir, respirar, sorrir). Ex.: d. Ela estava chorando por mim; 44 Os exemplos foram retirados da obra de Halliday (1985) e foram traduzidos do inglês (traduções de minha autoria). 45 Do inglês: goal. (tradução minha) 87 5) Processos verbais – processos de dizer algo (ex. dizer, falar, proferir etc.), tais como o que segue: e. João disse que estava com fome; 6) Processos existenciais – algo existe ou acontece, como em: f. Tem uma festa hoje à noite46. Para Halliday (1985), é na interposição dos elementos envolvidos no processo que os sentidos são construídos. Ou seja, a organização da frase revela, além de uma combinação de elementos lexicais, uma relação de processos semânticos entre esses elementos que possibilitam a codificação de sentidos ali associados. Esses sentidos constroem a função do ato comunicativo do falante e regulam a interpretação do ouvinte. O autor propõe o seguinte quadro para resumir os processos, significados e participantes: QUADRO 2 - Relação entre processos e participantes47. Tipo de processo Material: Ação Evento Comportamental Significado da categoria Fazer Fazer Acontecer Comportar-se Mental Percepção Afeição Cognição Verbal Sentir Ver Sentir Pensar Dizer Relacional Atribuição Identificação Existencial Ser Atribuir Identificar Existir Participantes Agente Objetivo Aquele que se comporta (behaver) Experienciador Fenômeno Falante Alvo Símbolo (token), alvo Carregador, atributo Identificado, identificador Existente Na visão do autor, os sentidos textuais vão aos poucos sendo construídos por meio da organização que os usuários fornecem à língua. Moura Neves (1997) demonstra que há organizações no nível da frase e no nível do texto que atendem às funções da linguagem propostas por Halliday (1985), tal como explanado no início deste capítulo. Cada uma das funções atende a um nível de organização fazendo com que as relações entre função, organização e sistema linguístico sejam assim estabelecidas: 46 47 O autor propõe isso a partir da estrutura da língua inglesa: verbo there to be. In: HALLIDAY (1985, p. 131). 88 QUADRO 3 - Relações entre função, organização e sistema 48 FUNÇÃO Ideacional Interpessoal Textual ORGANIZAÇÃO Dos significados Da interação Da informação SISTEMA Coesão Relações humanas Estruturação da informação (dado/novo) Percebe-se com os dois últimos quadros acima que há uma ligação constante entre a maneira como os significados são codificados no sistema da língua e a forma como eles organizam os sentidos gerais da comunicação. Ainda, a maneira como as palavras são organizadas na função ideacional (carregar um conteúdo intencionado e se organizar em processos e participantes) auxilia na construção das funções interpessoal e textual da língua numa relação constante e intrínseca formando uma rede de relações. O que se pode observar é que nessa explicação do funcionamento dos elementos linguísticos há um aspecto fundamental: a língua codifica sentidos, intenções e permite interpretações. Essa codificação seria o que os usuários armazenam como conhecimento gramatical e os utilizam para efetuar ações em sua realidade. O conhecimento linguístico seria o ponto de partida para ativar outros tipos de conhecimento a ele atrelados, sejam esses conhecimentos culturais, sociais ou discursivos. 2.2.2 A competência sociointercultural A segunda dimensão da competência comunicativa, na visão dos autores estudados (HYMES, 1995, CANALE, 1995; HORNBERGER, 1995; SAVIGNON, 1997), seria a competência sociolinguística. Canale (1995) propõe que esse conceito relaciona-se à identificação da medida em que as expressões são produzidas e entendidas adequadamente em diferentes contextos sociolinguísticos, tais como a situação social dos participantes, os objetivos, a interação e as normas e convenções da interação. Para o autor, a adequação dos enunciados está relacionada ao equilíbrio entre o significado, a forma e o contexto. Em outros termos, os enunciados devem ser 48 In: Moura Neves (1997 p. 72). 89 compreendidos na medida em que um significado dado - incluindo funções comunicativas, atitudes e proposições/ideias - é representado por meio de uma configuração verbal/não verbal, que é característica em um contexto sociolinguístico. De acordo com Kramsch (1993), o contexto é formado por pessoas em diálogo uma com a outra, dizendo coisas sobre o mundo em que vivem e fazendo declarações sobre elas mesmas e suas relações pessoais. Em meio a esse diálogo, há uma troca e negociação de significados que pertencem ao estoque de conhecimentos gerais comuns da comunidade e que desenham uma variedade de textos presentes e passados. Em outros termos, contexto é a matriz criada pela língua enquanto discurso como uma forma de prática social. Partindo-se do princípio de que o contexto envolve pessoas, mundo em que se inserem, troca de significados, conhecimentos da comunidade, o que, em processo relacional, permite a formação de uma matriz de compreensão, pode-se dizer que o contexto admite uma complexidade de elementos que contribuem para a construção de sentidos na língua. Hornberger (1995) e Hymes (1995) propõem que o contexto seja analisado diante do acrônimo SPEAKING49, sendo assim definidos: S - Setting (lugar): lugar, hora, circunstâncias físicas e definição cultural da ocasião; P - Participants (participantes) - quem são os envolvidos e quais as características e relações dos indivíduos no processo comunicativo; E - Ends (fins): resultados esperados da interação e objetivos; A - Act sequence (sequência dos atos): forma e conteúdo que a mensagem deve ter para carregar sentidos pretendidos; K - Key (entonação) – o tom e a maneira selecionados pelo usuário para comunicar-se; I - Instrumentalities (instrumentos) – canais e formas utilizadas para a realização do ato de fala; N - Norms (normas) – as regras de interação e interpretação necessárias; G - Gender (gênero) – o gênero do texto escolhido para a interação tal como um poema, mito, piada, conversa, conferência. 49 Optou-se por manter o termo original da obra em inglês (SPEAKING) pelo fato das traduções não apresentarem um acrônimo específico no português que mantenha o sentido do termo. Sendo assim, mantém-se o termo em inglês com a respectiva tradução (de minha autoria) para explanações. 90 Conclui-se, com a ideia de Hymes (1995), que contexto envolve tanto fatores sociais (pessoas, lugares, comunidade de fala etc.) quanto fatores culturais (comportamentos, intenções, regras culturais), a partir dos quais se pode propor uma competência sociolinguística. Tal competência é crucial na interpretação de enunciados por seu significado social – a função comunicativa e a atitude do usuário (p. ex. quando uma expressão não está clara pelo seu significado literal pode-se interpretá-la a partir de indicações não verbais, tais como o contexto sociocultural e gestos). Nesse sentido, Scollon e Scollon (2001) indicam que as regras do contexto são tão importantes quanto as regras linguísticas para a produção de sentidos textuais. Eles chamam esse aspecto de ‘gramática de contexto’ e o definem como o elemento utilizado pelos usuários da língua para compreender os sentidos dos atos de fala dentro das circunstâncias em que ocorrem. Os autores procuram explicar as características envolvidas nos fatores contextuais, e desenvolvem, nesse sentido, explicações mais específicas que Hymes (1995) e Hornberger (1995). Eles destacam que a gramática de contexto deve considerar sete elementos: a) Cena: localização – saber que lugar é mais adequado para que determinados objetivos da comunicação sejam atingidos (ex. se for uma reunião de negócios deve acontecer provavelmente numa sala comercial e não no meio de uma praça); tempo - saber qual o horário para a realização de um ato de fala (ex. se for uma reunião de negócios para discutir políticas de empresa ela deve acontecer em horário comercial); espaços - saber os espaços ou o lugar ocupado pelo usuário no ato de fala (ex. o juiz, ao começar um julgamento, deve estar sentado no lugar a ele apropriado. Ele não poderia fazer isso na mesa de um bar); o tópico – criam-se expectativas sobre o que se está falando durante um evento comunicativo (ex. numa reunião de negócios não se espera a discussão do filme que foi assistido na noite anterior. Caso isso aconteça e o chefe da reunião diga “Talvez seja melhor nos concentrarmos nos pontos de pauta de hoje”, é provável que ninguém mais fale no assunto); o gênero – reconhecer o tom e a forma que o ato comunicativo deve tomar (ex. não se pode contar uma piada em meio à discussão das políticas de uma empresa); 91 b) Entonação50 – o tom ou a maneira de uma comunicação (ex. um tom relaxado de muitas risadas combina mais com uma festa do que com uma reunião de negócios); c) Participantes: quem são eles e que papéis eles apresentam; d) Forma da mensagem: decidir o meio em que se veicula a mensagem (televisão, telefone, voz, discurso, email etc.) Isso não é só uma questão de meio utilizado, é também uma questão de conteúdo e estrutura social. (ex. um acordo de negócios feito oralmente ou por telefone não tem valor legal algum); e) Sequência – a ordem em que os eventos devem ocorrer. É ela que define a participação e a alternância dessa participação nos eventos comunicativos. Eventos, principalmente os formais, têm uma agenda de acontecimentos que ocorrem a partir dos atos de fala realizados (p. ex. se estivermos diante de uma crônica que narre a rotina de uma aula de ensino básico, por exemplo, espera-se encontrar ali a sequência dos eventos, tais como sinal de entrada, chegada da professora, início da aula, alternância entre as falas professor e aluno etc. Se essa sequência for quebrada o autor deve apresentar uma intenção clara para isso para que o leitor possa compreender o texto); f) Padrões de coocorrência: componentes contextuais que se associam durante o acontecimento do ato de fala. (p. ex. o componente de gênero ‘piada’ geralmente acontece com a entonação de ‘humor’ (o que é esperado e padronizado). Uma piada pode até ser contada de forma séria – p. ex., se alguém se ofender, o tom de humor pode deixar de existir - mas isso seria um resultado inesperado51). Deve-se destacar que alguns desses componentes contextuais são manifestados de forma explícita e outros permanecem implícitos. O usuário da língua, ao engajar-se no evento comunicativo, procura tais elementos de contexto e os utiliza para construir sentido. Por exemplo, se o leitor está diante da leitura de uma narrativa literária, esperase encontrar ali um tópico sendo narrado, a participação dos personagens em sequência, 50 Do inglês “Key” (chave) – tradução minha. Optou-se pelo uso da palavra ‘entonação’ por representar melhor o sentido do termo nesse contexto. 51 Os autores denominam os fatores esperados de “marked” e os fatores inesperados de “unmarked”. 92 a localização adequada ao tópico discutido, a comunidade em que ela se realiza, entre outros fatores contextuais que devem ser percebidos para que o texto faça sentido52. Bakhtin (2009) afirma também que a língua configura-se de acordo com um conjunto de contextos possíveis, nos quais os elementos linguísticos assumem uma forma social e interacional. Para o autor, “na prática viva da língua a consciência do locutor e do receptor (...tem a ver...) com a linguagem no sentido do conjunto de contextos possíveis de cada forma em particular” (BAKHTIN, 2009 p. 98). Sendo assim, para a construção de um ato comunicativo, há uma relação nítida e necessária entre os elementos utilizados para compor um enunciado (competência gramatical) e o contexto social e cultural em que ocorrem (competência sociolinguística). Viu-se anteriormente que Halliday (1985) propõe que a linguagem tem uma função interacional, ou seja, ela assume o papel de trocar informações, posições, necessidades e objetivos entre os interlocutores. Ao usar a língua, o falante tem um objetivo e um propósito e ele faz uso das expressões para deixar esse propósito claro. No entanto, é na troca das expressões que esses objetivos são expostos e se (re)constroem como uma oferta, uma reclamação, uma declaração, uma necessidade etc. Halliday (1985) afirma que a língua funciona como um meio de alcançar recursos especiais e essencialmente não linguísticos, tais como comandos ou ofertas. Por meio da língua desenvolvem-se recursos léxico-gramaticais para declarações e questões os quais servem como ponto de partida para uma série de funções. Assim, ao interpretar a estrutura das sentenças pode-se ganhar uma compreensão geral da função que ela apresenta na interação. Reitera-se aqui que o contexto envolve tanto fatores sociais quanto culturais. Assim, no interior da competência sociolinguística desenvolvida por Canale (1995), Hymes (1995), Hornberger (1995), há um elemento importante e não trabalhado de forma clara: a cultura. Celce- Murcia (2007) propôs, no mínimo, uma alteração na terminologia de Canale (1995): que a terminologia competência sociolinguística seja modificada para competência sociocultural. A autora faz isso mediante o reconhecimento do fato de que há um conhecimento cultural anterior necessário para interpretar e usar uma língua efetivamente. Na visão da autora, a competência sociocultural refere-se ao conhecimento pragmático do falante inserido em um momento cultural e em um contexto de 52 Cf. seções 1.4.3 e 1.4.3.1 sobre o conhecimento de mundo e a forma como este é formatado cognitivamente em esquemas mentais que interagem durante a leitura. 93 comunidade específicos. Isso inclui o conhecimento de variação linguística com referência às normas socioculturais da comunidade (CELCE-MURCIA, 2007). Ainda, para a autora, os componentes dessa competência seriam: a) Fatores contextuais sociais: idade, gênero, status, distância social e suas relações uns com os outros, poder e afeição; b) Apropriabilidade estilística: estratégias de polidez, adequação, sentido de gêneros e registros; c) Fatores culturais: conhecimento anterior do grupo ou comunidade, diferenças dialetais e regionais, e consciência transcultural. Assim, além daqueles elementos expostos acima por Hymes (1995), deve-se destacar que no interior da competência comunicativa, ou mais especificamente da competência sociolinguística, deve-se considerar a importância do conceito de cultura (CELCE-MURCIA, 2007; SCOLLON;SCOLLON, 2001). Para Almeida Filho (2011), a cultura sempre está em constante movimentação e consiste nas crenças, conhecimentos, comportamentos, pensamentos, concepções de uma comunidade. Nas palavras do autor, cultura é para o homem o seu conjunto de crenças, conhecimentos e técnicas, além de modos de pensar e agir formulados durante a história de seu determinado grupo ou sociedade. Representa, portanto, a interação humana com o meio (a natureza) em que vive e viveu certo grupo de seres humanos. Podemos dizer que cultura é uma eterna catalisadora e que nunca vai se caracterizar como alguma coisa estática ou imutável. Sua mutabilidade é, sem dúvida, alguma coisa inerente à sua existência. Vale lembrar que a cultura nasce com a operação social via linguagem e é nela mantida em constante reajustamento ao longo do tempo. (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 160) Pode-se dizer, portanto, que língua e cultura, juntas, refletem uma forma de compreender e representar a realidade. Para Kramsch (1998), a cultura deve ser entendida como parte de uma comunidade discursiva que compartilha um espaço social, uma história e imaginários comuns53. A autora afirma ainda que seus membros podem reter, nas comunidades onde estiverem, um sistema comum de padrões de percepção, crença, avaliação e ação. A esses padrões a autora denomina cultura. 53 Na seção 1.4.3 discutiu-se a maneira como a cultura faz parte do imaginário comum de uma comunidade e auxilia na construção dos esquemas mentais dos indivíduos os quais são utilizados durante a leitura. 94 Reitera-se, então, que a cultura faz parte de como o usuário da língua percebe o mundo ao seu redor e é codificada no uso que se faz da língua, tanto na fala quanto na escrita. Kramsch (1998) também destaca que, se falantes de línguas diferentes não conseguem se entender, não é porque as línguas que falam não podem traduzir tudo o que se diz uma para outra. Até certo ponto isso pode acontecer de forma mais ou menos adaptável e tranquila. O que acontece é que eles não compartilham alguns conceitos subjacentes às palavras e codificados nelas pela comunidade de fala. Ou seja, eles recortam a realidade e categorizam a experiência de forma diferenciada por pertencerem a culturas diferentes. A autora destaca que a língua apresenta minimamente três aspectos: a) expressão, b) corporificação e c) simbolização da realidade cultural. O primeiro aspecto, da expressão, acontece porque as palavras podem refletir as atitudes e crenças do autor e podem relatar experiências dos usuários dentro da comunidade. O segundo, da corporificação, significa que enunciados permitem que as experiências dos usuários sejam (re)criadas e que novos significados no uso da língua sejam (re)construídos e compreendidos. O terceiro, da simbolização, expressa que a língua é um sistema de signos que tem um valor cultural, pois os usuários identificam a si mesmos e aos outros no uso da língua, como uma identidade social. Nesse sentido, a língua não é um código livre da cultura, distinto da maneira como as pessoas pensam ou se comportam, mas, ao invés disso, ela tem um papel primordial na perpetuação da cultura. Segundo a autora, o uso da língua escrita é também formado e socializado por meio da cultura. Isso significa dizer que se deve pensar tanto no que é apropriado escrever a alguém quanto em quais circunstâncias, quais gêneros textuais devem ser empregados (formulário, carta comercial, panfleto político), pois tais aspectos são sancionados por convenções culturais. As formas de uso da língua e ainda, as normas de interação e interpretação formam parte do ritual invisível imposto pela cultura. Ou seja, seguir tais padrões é uma maneira cultural de trazer ordem e previsibilidade para o uso que as pessoas fazem da língua (KRAMSCH, 1998). Percebe-se, portanto, que em adição ao contexto social (sincrônico) e histórico (diacrônico), existe o imaginário de representação de uma comunidade, ou a cultura, o qual também é mediado pela língua. O fato primordial desse imaginário e representações é que os sentidos são construídos não somente por meio do que os falantes dizem uns aos outros na expressão linguística em si, mas também a partir do 95 que eles fazem com as palavras em sua comunidade para responder a demandas desse meio. Tais representações organizam o conhecimento sobre o mundo dos usuários da língua, o qual é utilizado para prever interpretações, informações, eventos e experiências assim como (re)construir significados sociais e pessoais54. Sendo assim, há um processo de relação entre culturas diferentes para a produção de sentidos. Kramsch (1998) aponta justamente para a necessidade de se produzir conhecimento a partir de uma relação próxima entre língua e cultura. A autora destaca que os termos transcultural ou intercultural podem referir-se tanto a limites políticos de nações-estado, quanto a limites de culturas diferentes dentro de uma mesma comunidade. Para a autora, o termo “intercultural pode referir-se a comunicação entre pessoas de diferentes culturas étnicas, sociais e de gênero dentro dos limites da mesma língua nacional” (KRAMSCH, 1998, p. 82), e essa comunicação pode se dar por meio do diálogo entre classe trabalhadora e classe alta, por exemplo, ou entre as posições de homem e mulher, ou entre gays e heterossexuais. Assim sendo, o termo intercultural considera a comunicação entre pessoas que transitam em diferentes áreas da mesma ou de outras comunidades (MENDES, 2008). A autora também atenta para outro termo que deve ser considerado: o conceito de multicultura. Para ela, “multicultural” (KRAMSCH, 1998) é mais frequentemente usado de duas maneiras: a) em termos de sociedade, indicando a coexistência de pessoas de várias etnias e formações diferentes como uma sociedade multicultural; e b) em um sentido individual, caracterizando que pessoas pertencem a várias comunidades discursivas e, portanto, têm os recursos linguísticos e estratégias sociais para se identificarem como parte de muitas culturas e maneiras de usar a língua. Ainda, a autora indica que a identidade cultural de indivíduos multiculturais não é aquela de falantes nativos múltiplos, mas se realiza a partir de uma multiplicidade de papéis sociais ou posições do sujeito que eles ocupam seletivamente a depender do contexto social no qual eles se encontram no tempo (KRAMSCH, 1998). Isso quer dizer que intercultura e multicultura fazem parte da formação dos sujeitos que se comunicam e interpretam um texto. Assim, ao se falar sobre intercultura, considera-se membros de formações discursivas diferentes em contato para (re)construir 54 Conforme discussão apresentada na seção 1.4.3.1, os esquemas mentais são capazes de (re)codificar relações do mundo (inclusive cultura) no conhecimento individual. 96 um sentido textual e o termo multicultura refere-se a diferentes posições ocupadas pelos sujeitos e que interferem nas suas maneiras de interpretar a realidade. Foca-se a discussão, agora, em uma questão primordial para a compreensão dos dados deste trabalho de tese: i) parte-se da ideia de que, em uma sala de aula, indivíduos com diferentes discursos e culturas encontram-se em um ambiente interacional, no qual a língua é usada como mediadora na construção de conhecimento (ou seja, é um ambiente multi e intercultural por natureza); ii) fala-se sobre leitura como um processo interativo em que se utiliza todos os conhecimentos do leitor para (re)construção dos sentidos textuais (vide cap. 1). Desse modo, os sentidos individuais e sociais das diferentes formações e discursos, interferem, ao mesmo tempo, na forma como, quantos e quais sentidos textuais são construídos. Portanto, considera-se que há uma multiplicidade de culturas que perpassa a linguagem textual e auxilia na interpretação e construção de sentidos, o que poderia ser chamado de abordagem intercultural na compreensão de textos. De acordo com Mendes (2011), a abordagem intercultural considera que a cultura deve ser incorporada em qualquer trabalho com a língua (ou “língua-cultura” nas palavras da autora (MENDES, 2011, p. 148)) a partir de uma visão flexível, constituindo-se de ações, informações, símbolos, práticas os quais só podem ser compreendidos numa visão dialógica. Em trabalho anterior, Mendes (2008), apoiada na visão de Kramsch (1998), defende a necessidade do esforço de professores para promover interação, integração e cooperação entre indivíduos e suas culturas, partilhar experiências, construir diálogos para refazer significados. Para a autora, quando se ensina línguas (materna ou estrangeira), mundos e culturas entram em interação representados na língua. Ela dá a essa interação o nome de abordagem intercultural e afirma que, em um processo de ensino e aprendizagem de línguas, deve haver um ir e vir constante e uma negociação de conflitos entre culturas para a edificação de um novo conhecimento, mais sólido e comum a todos. A autora destaca que: através da criação de um diálogo entre culturas, no qual a troca e análise de experiências, o respeito às diferenças, a intersubjetividade tenham lugar, é possível construir um espaço de um terceiro tipo, formado pela interseção das experiências de professores e aprendizes, formado em parte pelas interpretações de mundo de cada um e de todos ao mesmo tempo, da comunhão de vontades, desejos, anseios; da busca pela descoberta de um lugar no qual (con)viver com a 97 diferença seja a porta para que as diferentes vozes possam ser ouvidas. (MENDES, 2008, p. 73). É a partir da criação de um terceiro espaço, comum entre as diferentes perspectivas dos envolvidos no processo de interação, que os usuários podem construir um diálogo pelo qual é possível reformular a própria cultura e também compreender a do outro. Kramsch (1993) declara que a única maneira de construir compreensão da língua é desenvolver uma terceira perspectiva, ou seja, um espaço comum de negociação entre locutor(es) e interlocutor(es), que os capacita a terem uma visão individual e ao mesmo tempo social. É esse terceiro espaço que uma educação intercultural deve estabelecer (KRAMSCH, 1993; MENDES, 2008). Assim, destaca-se a necessidade de se abordar as diferentes culturas no processo de leitura. Se o processo de leitura é interativo, em que leitor e autor dialogam e constroem sentidos baseados no texto, então seria impossível conceber o ensino da leitura como se somente o que está na página deve ser compreendido. Há sentidos presentes na construção da vida social e cultural do leitor que devem ser utilizados no momento da leitura. Desse modo, utilizar esses conhecimentos na construção da habilidade de realizar comunicação durante a leitura e no desenvolvimento da competência estratégica (vide cap. 2.2.4) nada mais é que priorizar a história de vida do aprendiz e sua cultura para a construção de novos significados que reforcem os seus posicionamentos e o façam dialogar com o texto ao produzir sentidos. Mendes (2010) destaca que de fato, o que está além da língua, ou antes da língua, que não pode ser descartado, com certeza, é toda a rede sociocultural que a envolve e faz com que ela seja usada de um modo específico, em determinado contexto; uma entre tantas outras possibilidades (MENDES, 2010, p. 77). Sendo assim, pode-se dizer que, no uso desses conhecimentos construídos culturalmente e subjacentes à língua, o leitor produz sentidos. Deve-se destacar que neste trabalho considera-se a necessidade de se pensar no uso da língua a partir de uma visão em que aspectos socioculturais subjazem a esse uso. Considera-se, assim, para as análises realizadas nesta pesquisa, que tanto o conceito de multiculturalidade proposto por Kramsch (1998) - em que cada usuário pertence ao mesmo tempo a várias comunidades discursivas - quanto a ideia de interculturalidade no 98 ensino de línguas proposta também por Kramsch (1998) e por Mendes (2008; 2010; 2011) - em que há uma diversidade de culturas étnicas dentro de uma mesma comunidade – contribuem para a posição de que o conhecimento que o usuário tem codificado para a produção de interação comunicativa o auxilia na construção da interação e o faz (re)construir sentidos, tanto individuais quanto sociais. Portanto, para esse trabalho de tese, propõe-se o uso do termo “competência sociointercultural” ao invés de “competência sociolinguística”, considerando: 1) a visão inicial de Hymes (1995) de que há fatores e regras sociais que influenciam no ato comunicativo, o que ele chama de competência sociolinguística; 2) a visão de Scollon e Scollon (2001) de que há uma gramática de contexto (para além da gramática da língua em si) que contribui para a maneira como as interações acontecem produzindo sentidos; 3) a visão de Kramsch (1998) e Mendes (2008) de que há um diálogo constante entre os diferentes discursos, contextos, comportamentos, ações, pensamentos – o que vem a ser a(s) cultura(s) - dos quais o indivíduo faz parte, levando à produção de sentidos e à (re)significação da realidade e do próprio texto. Partindo-se dessa ideia, considera-se que a maneira como os alunos justificam suas escolhas de palavras-chave para a interpretação textual pode estar sendo influenciada por questões de contexto que incluem tanto fatores sociais quanto interculturais. 2.2.3 A competência discursiva Na visão de Canale (1995) a competência discursiva está relacionada ao modo como se combinam formas gramaticais, estruturas e significados para produzir e compreender um texto falado ou escrito em diferentes gêneros. É a partir da competência discursiva que o usuário estabelece relações textuais intra e intertextos. Segundo Halliday (1985), a descrição de uma língua e a análise de textos não são – ou não deveriam ser – duas operações distintas ou não relacionadas. Ao contrário, são dois aspectos da mesma tarefa interpretativa que acontecem lado a lado. Para o autor, textualmente, os elementos da língua organizam-se para a produção de uma mensagem, dividindo-se em dois aspectos55: 55 Moura Neves (2001) explica os termos tema e rema da seguinte forma: “Enquanto mensagem a oração se compõe de tema – o ponto de partida da mensagem – e rema, a mensagem propriamente dita. O tema é geralmente a peça recuperável, ou dada, da informação, enquanto o rema, é em geral, a parte nova, a parte que o usuário apresenta como de impossível recuperação, seja no texto, seja na situação” (MOURA NEVES, 2001, p. 33). 99 1. o tema: que seria o ponto de partida da mensagem, aquele sobre o qual o conteúdo é produzido ou do que se fala. É o elemento com função de foco da sentença (o rótulo é funcional e não depende necessariamente da posição na sentença) numa determinada estrutura organizacional. Assim, parte do sentido da sentença depende do elemento escolhido como tema. Em outros termos, elementos com função de foco da sentença podem assumir a posição de tema, quando é deles que se fala. (p. ex., na frase: “Se a princípio você não for bem sucedido” – o elemento principal aqui, ou o tema, é a condição exposta pela conjunção ‘se’ (HALLIDAY, 1985, p. 51)); 2. o rema: aquilo que se fala sobre o tema ou o que se desenvolve enquanto informação sobre o objeto referido. É o desenvolvimento do tema. De acordo com a proposta do autor, o tema geralmente apresenta-se primeiro na sentença e depois vem o rema organizando a estrutura da sentença em partes para análise. Dentro dessa estrutura, processos semânticos simultâneos ocorrem dando a ela aspectos de experiência, de troca interativa ou de mensagem. Ou seja, a oração acaba sendo identificada com um tema, um sujeito e um agente num complexo que faz com que funções comunicacionais, sintaxe e semântica, estejam em constante interação. A estrutura tema-rema é a base da organização da sentença como mensagem. Essa construção pode-se dar em vários níveis: na frase, no parágrafo, no texto, e todos eles inter-relacionados constroem a ideia de sentido textual. Todos os componentes das metafunções da linguagem expostas por Halliday (1985) – ideacional, textual e interacional – auxiliam na construção total do tema, por vários aspectos: a) o elemento ideacional revela que, no tema, há sempre um conteúdo que pode incluir processos, participantes, ou circunstâncias; b) o elemento textual que pode ter qualquer combinação no tema: i) continuativa – sinais que assinalam que a interação está em percurso tais como sim, agora, oh etc.; ii) estruturais – elementos temáticos tais como pronomes relativos que auxiliam na ligação dos elementos do texto; iii) conjuntivas – elementos que impõe algum sentido dentro da sentença e que são importantes para a sua compreensão, tais como as conjunções; c) o elemento interpessoal que garante a troca de interlocutores tais como vocativos, perguntas simples de sim e não, entre outros. 100 Reitera-se aqui que, para Halliday (1985), a estrutura temática pode ser dar no nível da oração, da sentença ou do texto como um todo. Essas relações entre o elemento de que se fala (tema) e o que se fala sobre isso (rema) se constroem numa relação de continuidade textual. Em outros termos, os temas se interpõem numa cadeia de relações se estendendo e incluindo temas anteriores e posteriores. Dentro da organização de um parágrafo, por exemplo, haveria a sentença tópico – como um tema – e as sentenças de apoio – como um rema. O autor afirma que “a organização temática das orações (e complexos de orações quando relevantes) expressam e também revelam o método de desenvolvimento do texto” (HALLIDAY, 1985, p. 67). Para o autor, há uma conexão contínua entre a estrutura temática e as unidades de informação fazendo com que o discurso se construa na língua. Essas “unidades da informação” são denominadas por Halliday (1985) de relação dado-novo. Para ele, o novo é aquilo que o interlocutor é convidado a perceber como elemento importante ou inesperado, e o dado é aquilo que já foi apresentado ao interlocutor ou que ele já conhece. Essa estrutura tem a especial função de guiar o leitor para interpretar a estrutura do texto da forma pretendida pelo autor. O autor esclarece que as estruturas dado-novo e tema-rema não são a mesma coisa, embora haja uma relação entre elas. O tema é o que eu, falante, escolho como meu ponto de partida. O dado é o que o ouvinte já sabe ou tem acessível quanto a conhecimentos da mensagem. Em suma, para o autor, a relação de tema-rema é orientada pelo falante e a de dado-novo é orientada pelo ouvinte (HALLIDAY, 1985). Pode-se dizer que há um entrelaçamento constante entre os tópicos selecionados pelo autor e aqueles usados para compreensão do leitor. Nessa relação, a interação da leitura se constrói e os fios semânticos são tecidos (CAVALCANTI, 1989), produzindo um sentido global para o texto (macroestrutura56 - DIJK, 1977a; 1977b). Beaugrande e Dressler (1981) também afirmam que o texto se constrói numa cadeia de informações que se relacionam de forma contínua. Para os autores, há uma configuração subjacente ao texto (como elemento linguístico) – o “mundo textual”57 que permite o estabelecimento de laços e possibilidades dentro do texto, os quais podem ou não ligar-se ao mundo real (tome-se o exemplo de textos fictícios: há um mundo textual possível que se distancia do mundo real). Para os autores, a construção de mundos textuais é uma atividade rotineira da comunicação humana porque para 56 57 Vide cap. 1.4.3 sobre explicação do conceito de macroestrutura. Vide cap.1.4.3.1. 101 qualquer ato comunicativo construímos hipóteses, reconstruímos possibilidades, relacionamos elementos. Essa relação de elementos é permitida pela organização dos elementos em si e pelas possibilidades que elas carregam no texto, fazendo com que novas informações sejam sempre adicionadas, formando uma cadeia de relações que levam ao sentido. Dijk (2002) afirma que em cada ponto do discurso deve haver, pelo menos uma nova informação, (nós não podemos repetir a mesma sentença seguidamente), e que esta nova informação deve ser apropriadamente ligada à informação antiga, a qual pode ser textual (introduzida antes no mesmo discurso) ou contextual (derivável do conhecimento do ouvinte sobre o contexto comunicativo e sobre o mundo em geral) (DIJK, 2002, p. 48). A competência discursiva (HYMES, 1995; CANALE, 1995; LLOBERA, 1995) é justamente o elemento desenvolvido pelos usuários que permite que o texto seja construído como uma concatenação de informações que interligam o exposto e o não exposto – que pode ser inferido. Percebe-se, pela discussão acima, que o texto é uma construção que expõe um sentido global pela ligação entre vários elementos, sejam eles linguísticos ou extralinguísticos. Essa junção só é possível pela utilização e engajamento dos interlocutores no (re)estabelecimento desse sentido. No modelo de Celce Murcia (2007), a competência discursiva é um componente central da competência comunicativa pois, para ela, a criação de textos como atos de fala é o coração da linguagem. De acordo com a autora, a competência discursiva refere-se à seleção, à sequenciação e à organização das palavras, estruturas e enunciados para alcançar uma mensagem total. É nesse ponto que o conhecimento sociocultural e o objetivo comunicativo entram em intersecção com os recursos léxico-gramaticais (competência gramatical) para expressar mensagens e atitudes na criação de textos coerentes (CELCE-MURCIA, 2007). A autora descreve algumas subáreas da competência discursiva, tais como o encontro/estabelecimento de: - coesão58: convenções com relação ao uso de referência (anáfora/catáfora), substituição, elipse, conjunções e redes lexicais; 58 Falou-se no cap. 1.2 sobre o conceito de texto e os princípios da textualidade. Dentre tais princípios, as ideias de coesão e coerência foram discutidas com maior especificidade. Admite-se que tais conceitos, enquanto princípios da textualidade, fazem parte da compreensão de texto dos usuários da língua ou da construção de competência discursiva. 102 - dêiticos: base situacional alcançada por meio do uso de pronomes pessoais, termos de espaço, e referências internas do texto (p. ex., ‘na tabela seguinte’, ‘a figura acima’); - coerência: expressão de propósito/objetivo por meio de um conteúdo adequado, esquemas, organização das informações velhas e novas, manutenção da continuidade temporal e outros esquemas de organização por meio de meios reconhecidamente convencionais; - estrutura de gênero: esquema formal que permite ao usuário identificar um segmento do discurso como uma narrativa, uma entrevista, um encontro, uma palestra, um sermão etc. Percebe-se que o discurso pode ser concebido como uma questão de textualidade (coesão, coerência, organização de gênero). No entanto, ele também pode ser percebido como uma questão que envolve aspectos mais amplos de comunidade e formação discursivas das quais um usuário faz parte. Scollon e Scollon (2001) propõem três aspectos diferentes da construção do conceito de discurso: a) a percepção das relações gramaticais e semânticas entre sentenças capazes de construir um texto (p. ex. noção de coesão e coerência); b) a consideração dos usos mais funcionais da língua em contextos sociais, tais como a influência dos aspectos sociais e culturais na construção do sentido textual (p. ex., a formação do gênero e seus aspectos sociais adequados); e c) a consideração de sistemas mais amplos de comunicação os quais contém linguagens específicas de áreas com posições ideológicas bem definidas e com formas de relações interpessoais entre membros bem claras (p. ex., a posição dos sujeitos por meio de relações de poder, ou as questões ideológicas implícitas no discurso). Para os autores, quatro características definem um discurso como um sistema (SCOLLON; SCOLLON, 2001): a) ideologia59: os membros mantêm uma posição ideológica e reconhecem um conjunto de características extra-discursivas que os definem como um grupo; b) socialização: é alcançada primeiramente por meio de formas preferenciais de discurso construídas dentro e fora de casa, em situações públicas, em contextos governamentais e de negócios; 59 A ideologia, para Scollon e Scollon (2001), é vista como as características históricas, sociais e de crenças de um grupo que interferem na forma como as relações sociais são compreendidas pelos indivíduos dessa comunidade. 103 c) formas de discurso: um conjunto de formas preferidas de organização discursiva serve como um guia ou símbolos de pertencimento do indivíduo a um grupo e sua identidade60; d) as relações de face (identidade interpessoal dos indivíduos em comunicação ou, em outros termos, a forma como eles se veem socialmente): são prescritas para o discurso entre os membros da comunidade ou entre tais membros e os de fora61. Todas essas características concatenadas fazem com que o discurso seja uma construção social e necessária para a ideia de comunicação. A partir da ideia das relações semânticas entre palavras e frases, pode-se construir um sentido, o tópico discursivo, que se liga a outros tópicos presentes na sociedade e que ecoam entre falantes durante a interação da leitura. Dijk (1977a) afirma que da mesma maneira que sentenças se combinam com sentenças para produzir discursos, e esses, por sua vez, também se combinam com outros discursos para produzir conversações e diálogos. Se o processo de leitura é concebido como uma interação entre leitor e autor por meio de um texto, pode-se dizer também que ali há um diálogo constante que é capaz de produzir novos sentidos. Tal diálogo se dá, de forma relacional, pela relação entre diferentes discursos e que são utilizados pelo leitor, por meio do uso de sua competência discursiva. Ainda, na visão de Dijk (1977a), a categorização semântica do discurso deve receber um nível de organização: o de macroestruturas, as quais são associações de sentidos de sequências organizados hierarquicamente para formar sentido global. Em particular, mostra-se que condições semânticas de coerência ocorrem em noções como tópico da conversação e tópico do discurso. Estes últimos estariam relacionados ao nosso comportamento linguístico e discursivo, capaz de demonstrar o assunto sobre o qual trata o discurso ou parte dele. Isto é, somos capazes de produzir outros discursos, ou partes de discurso, expressando esse “sobre algo”, assim como se faz quando se estabelece sentido para o texto na produção de resumos, títulos, conclusões ou pronunciamentos (de certa forma, o que se produz durante a interpretação de texto é um novo discurso – ou parte dele -, a partir de um texto lido, permeado pelos sentidos produzidos pelo leitor). Dijk (1977a) se preocupa em desvendar a questão que 60 Scollon e Scollon (2001) concebem identidade como uma construção que o indivíduo faz de si mesmo baseada nas relações sociais que ele mantém. Em outros termos, o indivíduo percebe sua própria identidade como pertencente aos grupos em que atua. 61 Do original: outsiders (tradução minha). A melhor tradução encontrada para o termo foi relacionada a membros de fora de uma determinada comunidade. 104 possibilita que regras semânticas permitam a habilidade dos usuários da língua de resumir um texto em um tópico principal. Embora o autor trabalhe com uma abordagem discursiva e cognitiva para a leitura, e não com a ideia de desenvolvimento da competência comunicativa, pode-se dizer que, para ele, há uma ligação intrínseca e constante entre questões semânticas (o que para Hymes (1995) estaria presente na competência gramatical) e questões discursivas (o que para Hymes (1995) estaria presente na competência discursiva). Para Dijk (1977a), as relações entre proposições e sentenças em um discurso não podem ser descritas somente em termos semânticos e há uma ligação forte entre essas proposições (por meio da repetição, p. ex., ou do uso do conhecimento de mundo do usuário) que permite que conceitos sejam relacionados e uma macroestrutura global do texto seja construída. Há uma organização hierárquica das informações do texto que vai se sobrepondo e possibilitando o estabelecimento de um sentido geral e sentidos a ele relacionados. Em outra obra, Dijk (1977b) afirma que são os fatos linguísticos do texto que apoiam a visão de construção de macroestruturas. Isso porque o texto contém sentenças tópico e porque se usa pronomes e artigos definidos pressupondo a presença de macroproposições. Ainda, pode-se ter macroconectivos no discurso que ligam uma proposição a uma sequência geral ou a sequências gerais62. Essa utilização e possibilidade de formação de macroestruturas são permitidas pela existência dos frames (vide cap. 1.4.4.1) que facilitam a representação do conhecimento e a ligação de relações lógicas de ação e percepção. O fato principal da discussão feita por Dijk (1997a; 1977b) é a percepção de que as macroestruturas indicadas por ele possibilitam que o usuário da língua crie formas textuais mais convencionais, ou discursos, que agem no estabelecimento da comunicação textual. Tal comunicação é dada por meio do uso da competência discursiva do falante, o que é justamente a proposta de Hymes (1995), Canale (1995), Llobera (1995). Tanto Dijk (1977a) quanto Hymes (1995), e ainda Celce-Murcia (2007), indicam a necessidade de se perceber que há estruturas comuns no discurso que se compõem como ações necessárias para o estabelecimento do processo comunicativo. Na visão de 62 É o que pode ter acontecido, por exemplo, na indicação da conjunção “mas” por um aluno como palavra-chave: o intuito da escolha estava em abordar a oposição nítida apresentada entre os personagens do texto. Fala-se mais sobre isso na análise de dados deste trabalho de tese cap. 4.1.1 105 Dijk (1977a; 1997b), essas estruturas são essenciais porque: a) cada texto é um subconjunto do conjunto de ações discursivas que ocorre na comunidade; b) a consideração cognitiva ou filosófica da ação humana deve ser geral em natureza e pertencer a fatores discursivos da sociedade; c) textos são, em essência, ações discursivas; e d) para cada cultura há limites semântico-pragmáticos no estabelecimento de macroestrutura global (ou sentido global), os quais podem se tornar convencionais. Isso significa que participantes não somente reconhecem propriedades específicas do texto, mas também as tornam normativas para as demais ações discursivas que vivenciam. Considera-se, assim, neste trabalho de tese, a ideia inicial de competência discursiva proposta por Hymes (1995), a partir da qual essa competência relaciona-se ao modo em que os usuários combinam formas gramaticais e significados para compreenderem um texto falado ou escrito em diferentes gêneros. Adiciona-se a isso o fato de que há formatos sociais de texto, os gêneros, os quais são reconhecidos e normatizados pelos usuários, fazendo com que se criem superestruturas textuais que permitem a construção de sentido (DIJK, 1977a; 1997b). Ainda, considera-se que todo o texto é um discurso e que com ele outros discursos interagem e envolvem questões tais como cultura e ideologia, que auxiliam na formatação do discurso e interferem em sua interpretação (DIJK, 1977a; SCOLLON; SCOLLON, 2001). A isso, vai-se denominar daqui em diante competência discursiva. 2.2.4 A competência estratégica Canale (1995) destaca que a competência estratégica compõe-se do domínio das estratégias de comunicação verbal e não verbal que podem ser utilizadas para estabelecer comunicação. As duas razões principais indicadas pela autora para a proposição da existência dessa competência são: a) compensar as falhas na comunicação devido a condições limitadoras na comunicação real ou a insuficiente competência em uma ou mais das outras áreas da competência comunicativa; b) favorecer a eficácia da comunicação por meio do uso de recursos retóricos, entonação, manutenção do laço comunicativo etc. Por exemplo, falar de forma lenta e baixa deliberadamente com uma intenção retórica ou então, usar uma paráfrase como estratégia, caso o falante não se lembre de uma palavra ou frase em específico. 106 Celce-Murcia (2007) também conceitua o termo competência estratégica como um mecanismo, composto de diversos elementos, que o usuário da língua utiliza a seu favor para produzir enunciados que cumpram com seus objetivos. Para tanto, alguns tipos de estratégia são descritas: a) cognitivas: essas são as estratégias o usuário faz uso da lógica e da análise para ajudar a si mesmo a aprender a língua delineando, resumindo, destacando, organizando e revisando materiais; b) metacognitivas: envolvem o planejamento da aprendizagem separando tempo de análise e estudo, autoavaliando a produção feita com vistas ao objetivo proposto, e ao progresso alcançado. Ela é alcançada pelo monitoramento e percepção dos erros que os alunos aprendem do professor e do feedback dos colegas. Neste ponto o aprendiz compensa falhas de conhecimentos parciais ou incompletos adivinhando significados de palavras do contexto ou a função gramatical das palavras a partir de pistas formais; c) relacionadas à memória: estratégias que ajudam aprendizes a lembrar ou a recuperar palavras pelo uso de acrônimos, imagens, sons ou outras pistas. Nessa visão, o uso da competência estratégica pode ser tanto algo inconsciente (cognitivamente - automatizado por meio de conhecimentos linguísticos, discursivos ou socilinguísticos) quanto algo realizado de forma consciente (metacognitivamente – em que o leitor seleciona ações planejadas e pensadas para realizar interação com a língua). No que diz respeito à leitura (vide cap. 1.5), Kato (1999) também propõe o uso de estratégias, por parte leitor, para que esse processo seja desenvolvido de forma efetiva. Para a autora, é na aprendizagem de habilidades conscientes (metacognitivas) que o leitor desenvolve proficiência leitora automatizando seus conhecimentos (habilidades cognitivas) e fazendo ligações durante a leitura. Existe, portanto, uma ligação intrínseca entre as estratégias cognitivas e metacognitivas. A proposta de Hymes (1995) considera a competência estratégica como habilidade de compensar falhas de qualquer tipo de conhecimento para não quebrar a comunicação entre usuários da língua. Sendo assim, a aprendizagem das estratégias e a sua automatização fazem parte do desenvolvimento da competência estratégica e auxiliam na efetivação das atividades comunicativas dos usuários da língua. CelceMurcia (2007) também destaca a utilização de estratégias tais como: - realização: aproximação, circunlocução, alternância de códigos, mímicas etc.; 107 - protelar ou ganhar tempo: uso de frases do tipo: “onde eu estava mesmo?”; “você poderia repetir?”; - o auto-monitoramento: usar frases que permitem a auto correção tais como: “quer dizer...”; - interação: apelos para esclarecimento, negociação de significados, ou que envolvam a compreensão e a checagem da confirmação; - social: (no contexto de aprendizagem de língua estrangeira) a procura por falantes nativos para praticar, ativamente procurando oportunidades de usar a língua alvo. Ou seja, a competência estratégica seria o desenvolvimento de formas de utilização da língua que permitem ao usuário manter a comunicação e alcançar seus objetivos. No caso específico da leitura e tendo como pressuposto que este é um processo estratégico (vide cap. 1.5), deve ser lembrado que há um conjunto de habilidades necessárias para utilização dos conhecimentos para que se produza de fato interação com o texto. Dijk e Kintsch (1983) destacam que no processo estratégico não há um sucesso garantido na formulação e nem uma única representação do texto. Para o autor, aplicamse hipóteses de trabalho sobre o ato comunicativo (discursivo na visão do autor) em que estruturas e significados interagem no processamento de construção de sentido. Ainda na visão de Dijk e Kintsch (1983), há várias estratégias usadas na produção, compreensão, e reprodução do discurso. Parte dessas estratégias pode ser chamada de linguísticas especialmente as que ligam a superfície sentencial e textual às representações semânticas subjacentes. Outras envolvem o uso de conhecimento de mundo, conhecimento episódico, opiniões, crenças, atitudes, interesses, planos e objetivos. Hymes (1995), de certa forma, corrobora com essa ideia ao afirmar que a competência estratégica atua em consonância com as competências linguísticas, sociolinguísticas e discursivas, criando mecanismos associados a cada uma dessas habilidades para interagir no ato comunicativo. Percebe-se, portanto, que a construção do conceito de competência estratégica está ligado não a uma habilidade específica, mas às outras três competências (gramatical, sociointercultural e discursiva) de forma constante e não hierárquica. Quando o usuário apreende determinadas formas de compensar conhecimentos não adquiridos para estabelecer comunicação, ele também está atuando sobre seu próprio aprendizado para tornar-se comunicativamente eficiente. 108 Destaca-se aqui que a leitura pode ser entendida como um conjunto de habilidades que envolvem estratégias de vários tipos (ou seja, a leitura é considerada um processo estratégico conforme discutido no cap. 1.5). De acordo com Kato (1999), o leitor constrói mecanismos variados – as estratégias – para ler e restabelecer sentido do texto. Nessa construção, ele pode utilizar fatores linguísticos (destacar sintagmas ou parcelas de informação sintática ou semântica do texto); fatores textuais (p. ex. estabelecer ligações de sentido entre referentes ou construir coerência); fatores extralinguísticos ou pragmáticos (avaliar a consistência das informações de acordo com a realidade). Essa visão de leitura como um processo estratégico (SOLÉ, 1998; DIJK; KINTSCH, 1983; DIJK, 1977a; KATO, 1999) corrobora com a ideia do usuário da língua precisar desenvolver um tipo de competência específica, a estratégica (HYMES, 1995; CANALE, 1995; HORNBERGER, 1995; CELCE-MURCIA, 2007), para criar sentidos na língua, o que no caso deste trabalho, referem-se aos sentidos textuais. Reitera-se que a questão principal estabelecida na noção de competência estratégica como uma das dimensões da competência comunicativa é o fato de que usuários da língua sempre manipulam as estruturas de superfície (palavras, frases, orações), ou então informações pragmáticas do contexto (social e cultural) para avaliar, (re)construir, encontrar sentidos. Solé (1998) destaca que são as estratégias – ensinadas e aprendidas - que ajudam a construir uma interpretação para o texto. Para a autora, elas devem ser desenvolvidas como uma habilidade aprendida (ou como a competência estratégica, na visão de Hymes (1995)) que leva o leitor a criar ações durante a leitura ou a comunicação com o texto. Destaca-se, agora, a importância da competência estratégica como parte integrante da competência comunicativa do usuário, mais especificamente do leitor: quais seriam as estratégias que o permitem utilizar seu acervo de conhecimentos para construir sentido para um texto? Falar sobre todas as estratégias de compreensão utilizadas pelos leitores seria impossível ou, minimamente, cansativo. No entanto, o que se propõe para este trabalho é que o reconhecimento da palavra-chave para um texto pode funcionar como um mecanismo de ativação – ou como uma estratégia - das várias dimensões da competência comunicativa, permitindo ao leitor construir sentidos textuais. Isso porque para que o leitor possa reconhecer uma ou mais palavras-chave do texto, ele deve inserir nessa escolha um conjunto de sentidos construídos durante a leitura. Ou seja, pensa-se que ele usaria a seleção da palavra-chave como uma estratégia 109 para diferentes ações tais como: lembrar-se do assunto abordado pelo texto (estrutura tema-rema), focalizar a relação dado-novo, identificar aspectos culturais e ideológicos do texto, destacar aspectos linguísticos importantes para a construção de um sentido principal (tais como selecionar verbos de um determinado campo semântico ou adjetivos que caracterizem as descrições realizadas no texto), entre outras. No entanto, que aspectos estariam envolvidos no conceito de palavra-chave e o que permite que ela seja considerada como uma estratégia de leitura? Discute-se, assim, na próxima seção, o conceito de palavra-chave para este trabalho de tese. 2.3 A PALAVRA-CHAVE Reiterando: para interpretar um determinado texto, as relações linguísticas e extralinguísticas ali presentes tornam-se cruciais para que o leitor possa estabelecer uma interação com o autor por meio da página escrita, estabelecendo para ela sentidos. Podese concluir que, pela explanação realizada, as palavras de um texto e suas relações com as demais palavras selecionadas pelo autor contribuem para a interpretação. Mas de que maneira algumas palavras de um determinado texto se destacam nessa relação de sentidos e auxiliam na interpretação? O objetivo dessa seção concentra-se na elaboração do conceito de palavras-chave (itens lexicais chave – CAVALCANTI, 1989), as quais são capazes de tecer fios semânticos interpretativos e fornecer as principais ideias presentes em uma manifestação textual. Antes de iniciar a conceituação de palavras-chave, é importante observar o que, convencionalmente, é chamado de palavra e de item lexical. Para Kempson (1980), o termo palavra deve ser reservado para a manifestação concreta de elementos morfológicos, fonológicos e semânticos em combinação fazendo com que tal arranjo produza um determinado elemento verbal. Em outro plano, aquilo que se encontra registrado no léxico com diferentes sentidos particulares seria o item lexical, como o que, por exemplo, acontece com a palavra ‘manga’ que tem, no mínimo, dois registros de itens lexicais: um como a fruta, e outro como parte de uma roupa. Ou seja, para a autora, a caracterização do significado do item lexical é feita em termos de uma única representação semântica para cada item. A autora fornece o exemplo do item lexical ‘correr’, que deve ser representado distintamente, para as sentenças: 1) Ele correu na São Silvestre. 2 ) O carro está correndo bem. 110 Embora em ambas as sentenças possa-se perceber um componente semântico em comum (movimentar-se de um lugar para outro), elas apresentam uma distinção clara quanto à maneira de realização do verbo ‘correr’. Na sentença (1), tem-se característica de movimento corporal do ser humano, e na (2) de um movimento passivo em que o carro recebe uma ação humana. O falante do português consegue estabelecer essa diferença pela manifestação desse item lexical nas sentenças acima. Isto quer dizer que embora o item lexical ‘correr’ tenha um significado - ou vários – intrínseco(s) a ele, a sua manifestação em uma sentença ou texto e as relações com as demais palavras ali encontradas fornecem os componentes semânticos que ele pode ou não ter. Castilho (2010) também procura conceituar ‘palavra’ num âmbito de discussão sobre o léxico do falante. Para o autor, a palavra é tida como um elemento que dispõe de características fonológicas (apresenta um esquema rítmico), morfológicas (apresenta uma organização dada por morfemas), sintáticas (é organizada em um dado sintagma), semânticas (repassam uma ideia) e gráficas (vêm separadas por vírgulas ou espaços em branco). Já os itens lexicais seriam aqueles que, por convenção, estão registrados no léxico, o qual o autor define como: “um conjunto de categorias cognitivas e traços derivados que são representados nas palavras por meio da lexicalização63” (CASTILHO, 2010, p. 110). Assim, há, no léxico, os chamados itens lexicais que são o produto de um inventário de categorizações cognitivas com traços semânticos próprios. Esse inventário é virtual, ocorre anteriormente à sua utilização e, na condição de usuários de uma língua, lança-se mão desse inventário para a criação de palavras, o que o autor chama de lexicalização. Em outras palavras, o léxico, composto de itens lexicais, é pré-verbal e nos permite usar o vocabulário, ou palavras, as quais são usadas como elementos concretos pós-verbais. Deve-se chamar a atenção aqui para o fato de que se os itens lexicais são pré-verbais e registrados mentalmente, eles concretizam-se em palavras e, por isso, ocorrem tantos problemas ao conceituar um termo e outro. De fato, utilizam-se itens lexicais registrados cognitivamente para a expressão e comunicação social, e a concretização desses itens com características fonológicas seriam o que Castilho (2010) denomina ‘palavras’. Ou seja, pode-se dizer que palavras e itens lexicais seriam duas faces do mesmo elemento: o léxico. 63 Lexicalização para o autor é entendida como “o processo por meio do qual conectamos o léxico, entendido como um inventário pós-verbal, a um conjunto de produtos concretos, ou seja, as palavras” (CASTILHO, 2010, p. 110) 111 O autor chama a atenção ainda para o fato de que, durante a interação verbal com a língua, o falante toma decisões sobre como usar seu léxico mental por meio dos itens lexicais registrados, e como adaptar, ativar ou desativar as propriedades semânticas ali presentes para se comunicar. Nesse sentido, a lexicalização, ou a verbalização do léxico, não é individual, mas social, o que implica que tal fenômeno ocorra associado a sentidos culturais, sociais, enciclopédicos construídos e armazenados pelos usuários da língua. Antunes (2012) corrobora essa ideia e afirma que as palavras que ocorrem em um texto não cumprem apenas a função de ‘significar’; elas não são relevantes, apenas, porque carregam um determinado significado. São parte constitutiva de uma armação que dá sustentação à unidade do texto, e, portanto, interferem em sua coerência (ANTUNES, 2012, p. 66). Isto significa que não se deve olhar apenas para o significado literal das palavras, mas para suas relações no texto capazes de formar uma unidade total. A autora ainda aborda o fato de que a utilização do léxico para expressão de sentidos textuais se dá não apenas pela escolha das palavras em si, mas também para que o autor possa expor seus objetivos e o leitor, por sua vez, seja capaz identificá-los durante a leitura. Ou seja, o léxico refletido na seleção das palavras é capaz de codificar sentidos culturais e sociais aliados às questões linguísticas. Numa visão similar em que cultura e ambiente social influenciam na concretização lexical, Biderman (2001) postula que cada comunidade traduz, em sua língua, a sua visão do mundo e a realidade que lhe é própria por meio do léxico e da gramática. Pode-se dizer, então, que a realidade da comunidade linguística vai sendo traduzida e codificada no léxico da língua. Ao procurar discorrer sobre o conceito de ‘palavra’, a autora afirma que tal denominação depende da sua caracterização dentro da comunidade linguística. Assim, para ela: a nossa tese é a de que não é possível definir palavra de maneira universal, isto é, de uma forma aplicável a toda e qualquer língua. A afirmação mais geral que se pode fazer é que essa unidade psicolinguística se materializa, no discurso, com uma inegável individualidade. Os seus contornos formais situam-na entre uma unidade mínima gramatical significativa – o morfema – e uma unidade sintagmática maior – o sintagma. Pode-se afirmar também que a velha gramática grega não estava errada, ao considerar que a sentença é composta de palavras (BIDERMAN, 2001, p. 115). 112 De acordo com a autora, para que se delimitem as unidades léxicas dentro de cada língua, deve-se partir de critérios fonológicos, gramaticais (morfossintáticos) e semânticos. Nos critérios fonológicos, deve ser possível observar na unidade léxica uma sequência fônica para a sua concretização que impõe a ela limites de início e fim. Acentuações e pausas são partes importantes da delimitação da palavra. No que diz respeito aos critérios gramaticais, considera-se a classificação da palavra de acordo com critérios morfológicos e sintáticos e a função por ela exercida na sentença. Como critérios semânticos, considera-se que cada palavra deve ter um valor de significação no interior da língua. Tal critério é a chave decisiva que identifica a unidade léxica expressa no discurso. A autora admite ainda que as unidades léxicas (ou lexemas) podem e, de fato, são caracterizadas no interior de cada língua, mas deve-se considerar o todo e os significados globais do enunciado e do discurso para determinação do item e de seus significados. Outro autor que procura trabalhar na conceituação dos itens lexicais e na representação de seus sentidos é Cruse (1987). Para ele, uma forma de conceituar item lexical - usada na maioria dos dicionários -, seria: i) por sua forma (fonológica e gráfica); ii) por sua função gramatical; e iii) por seu significado. O autor considera três aspectos da delimitação do item lexical: a) Delimitar a forma do item lexical sintagmaticamente, isto é, conseguir definir em uma sentença onde estão os limites entre os itens lexicais; b) Observar que muitos deles operam diferentemente em uma variedade de ambientes gramaticais, por exemplo, a palavra ‘abaixo’ pode funcionar como preposição de localização ou como verbo; c) Separar os itens lexicais pelo caráter semântico, mesmo dentro da mesma forma, como por exemplo, a palavra ‘banco’ pode significar tanto a instituição financeira, quanto, o objeto utilizado para sentar-se. De acordo com Cruse (1987), um determinado item lexical mantém relações contextuais com outros itens, ou seja, “o significado de uma palavra é refletido nas suas relações contextuais” (CRUSE, 1987, p. 16). Isso quer dizer que o item lexical em si e as relações de contexto que ele assume em determinada sentença ou texto são mutuamente influenciáveis e interdependentes, fazendo com que o leitor olhe para tal item dentro desse contexto específico. Em outros termos, para Cruse (1987), o item 113 lexical ganha sentido na interação com os outros itens da sentença e os seus constituintes semânticos são construídos nessa interação. No entanto, é importante dizer aqui que não se pode apoiar a ideia de que o item lexical não apresenta características internas e que só ganha significado a partir dos outros itens. Cada item lexical tem, de fato, significado por si mesmo, ou seja, o significado literal (OLIVEIRA, 2008; ULMMANN, 1964). Por outro lado, admite-se que esses significados internos, em determinados contextos, como em um texto específico, por exemplo, constroem sentidos maiores e mais completos, os quais o leitor não pode deixar passar incólumes para a construção do processo interpretativo. Para a compreensão de um item lexical o leitor deve, assim, partir do sentido primário ou literal (OLIVEIRA, 2008) e procurar perceber na relação com outros itens textuais os sentidos ali estabelecidos. Alguns autores adicionam ao conceito de item lexical, uma correlação semântica com outras palavras do código. Para Lyons, (1977) pode-se dizer que os lexemas termo utilizado pelo autor para se referir a item lexical - e outras unidades semanticamente relacionadas dentro de um dado sistema linguístico, pertencem a um mesmo campo semântico ou são membros dele, o que significa que eles relacionam-se entre si semanticamente. Na visão do autor, o significado das palavras e frases é apreendido e mantido pelo uso da língua em situações de comunicação. Para ele, os lexemas não possuem uma única forma, mas são entidades abstratas associadas a um conjunto ou mais de formas. Por exemplo, as palavras ‘digo’ e ‘disse’ seriam ambas formas do mesmo lexema: o verbo ‘dizer’. Em suma, pode-se dizer que “lexemas são as palavras e sintagmas que um dicionário registraria sob entradas separadas” (LYONS, 1977, p. 28). Percebe-se, a partir da discussão acima, que as palavras relacionam-se a outros elementos no interior da língua e a partir dessa relação sentidos podem ser construídos. Ou seja, há uma relação próxima entre palavras que ocorrem num mesmo contexto para a produção de sentidos. Nesse sentido, Miller (1981) afirma que questões sintáticas e semânticas dos itens e suas relações linguísticas influem nas interpretações que lhes são dadas. Para o autor, as definições das palavras sempre vêm, de uma forma ou outra, juntamente com as sentenças em que estão, ou seja, as interpretações dos traços semânticos das palavras devem ser dadas a partir das sentenças em que se inserem. Tudo o que uma pessoa sabe ou acredita está armazenado em seu léxico mental e as 114 palavras que utiliza para se comunicar não são aleatórias, mas aparecem numa cadeia de relações com outras que expressam sentido comunicativo. Ullmann (1964), por sua vez, afirma que as palavras 64 são elementos com características fonológicas, sintáticas e semânticas, e embora tenham um significado literal a elas sofrem a influência do contexto para o estabelecimento de seus significados. Assim, os contextos em que uma palavra ocorre, ou seja, suas associações em contextos imediatos e culturais são capazes de construir sentidos na comunicação. Para o autor, “Todas as palavras, por muito precisas e inequívocas que possam ser, extrairão do contexto uma certa determinação que pela própria natureza das coisas, só pode surgir em elocuções específicas” (ULLMANN, 1964, p.109). Pode-se dizer, então, que as palavras são entidades complexas, pois recebem cargas culturais, emocionais e sociais de acordo com sua utilização e suas associações contextuais. Assim, embora seus sentidos próprios também sejam ativados, o contexto em que ocorrem é capaz de fornecer às palavras o significado de uso imediato. Essa relação de sentidos possíveis deve ser recuperada pelo interlocutor ao interagir com o texto escrito. Antunes (2012) também dá destaque a essa relação de sentidos estabelecida pelas palavras na produção de textos. Para a autora, as relações de sentido, no texto, são significativas porque promovem a sua continuidade semântica. Sendo assim, é pela configuração das palavras relacionadas entre si e pela representação linguísticocognitiva que se dá a elas que se pode estabelecer uma unidade semântica. A autora afirma que “Não é o sentido particular de cada palavra que confere unidade ao texto. É a rede de sentidos criada, explícita ou implicitamente, pelas palavras presentes à linha do texto” (ANTUNES, 2012, p. 40). Assim, com o intuito de padronizar a utilização dos termos item lexical e palavra e tendo em vista a discussão acima apresentada, considera-se: i) a ideia de Castilho (2010), de que a utilização do léxico não ocorre independente dos sentidos culturais, sociais e enciclopédicos trazidos pelo falante e ii) as palavras têm, de fato, um sentido literal intrínseco a elas (ULLMANN, 1964; OLIVEIRA, 2008), mas, ao mesmo tempo, assumem sentidos específicos em determinados textos pela configuração relacional dada entre elas. Utiliza-se, assim, daqui por diante, o termo palavra65 para referir-se a 64 Utiliza-se o termo palavra por ser o termo usado pelo autor para sua explanação. No entanto observa-se que o autor não teve a preocupação de diferenciar palavra e item lexical. 65 O uso de sublinhados neste trabalho de tese é para chamar a atenção ao conceito específico. 115 determinadas concretizações linguísticas daquilo que a comunidade linguística dos falantes armazena socialmente e registra por itens lexicais. Essa concretização dos itens lexicais em palavras é utilizada em contextos específicos (como nos textos a serem trabalhados com os alunos). Em outros termos, palavras e itens lexicais são ambos parte do léxico: os itens lexicais contribuem com seu significado intrínseco, pré-verbal, e assumem sentidos na cadeia de relações semânticas entre palavras na manifestação textual. Destaca-se, com isso, que, ao usar o termo palavras-chave66, neste trabalho, admite-se que tais palavras referem-se a itens lexicais que possuem um inventário de caracterizações cognitivas com traços semânticos definidos para além da mera junção de elementos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos. Fala-se, ainda, neste trabalho, sobre dois termos importantes e que ainda não foram devidamente explanados: significado e sentido. Conforme se discutiu, para Lyons (1977), o lexema é composto de um significado que não acontece sozinho, mas está ligado aos significados de outros lexemas. A partir dessa associação, o sentido da expressão é produzido como afirma o autor: “o sentido de uma expressão é uma função dos sentidos dos lexemas que a compõem e da sua ocorrência numa construção gramatical particular” (LYONS, 1977, p. 170). O autor ainda afirma que sentidos teriam a ver com referência, a qual é a relação existente entre uma expressão e aquilo que ela designa ou representa em ocasiões particulares de enunciação. Assim, a referência seria os sentidos produzidos por um item lexical (lexema) em contexto. Ao discutir questões relativas ao significado, Ullmann (1964) considera que os diferentes elementos linguísticos possuem algum tipo de significado. Morfemas, por exemplo, são significativos, assim como as combinações mantidas por eles. Todos os significados dessas combinações desempenham seu papel na construção de um significado total para a expressão. O autor sugere três termos para a configuração de significado: a) nome: que seria uma configuração fonética da palavra, os sons que a constituem além de outros aspectos fonéticos, tais como o acento; b) sentido: que seria a informação que o nome comunica ao ouvinte; e c) coisa: aspecto ou acontecimento não linguístico acerca do qual falamos. Para ele, todos esses termos estão em associação na construção de significados tanto da palavra, quanto da sentença. Isso porque, na visão do autor, a relação existente entre nome e sentido é recíproca e reversível e é a isso que 66 Fala-se do conceito específico de palavra-chave na sequência do trabalho. 116 ele chama de significado (ULLMANN, 1964, p. 119). A preocupação do autor está voltada à discussão do significado referencial que trata justamente dessa relação recíproca e reversível entre nome e sentido, considerando significados múltiplos e relações associativas entre as palavras e não discute o significado operacional que trata das coisas, ou da ocorrência da palavra na fala dos indivíduos de uma dada comunidade. No entanto, deve-se atentar para o fato de que, neste trabalho, considera-se que a ocorrência do item lexical em contextos específicos e que conhecimentos de mundo (sociais e culturais) diversos influem na forma como o leitor interpreta um texto. Em outras palavras, na visão proposta por este trabalho, as palavras teriam, além das relações internas com outras palavras, um significado operacional no texto e na comunidade de fala. Assim, com o intuito de padronizar a utilização dos termos significado e sentido - parte-se do pressuposto: i) de Biderman (2001), de que a conceituação da palavra depende da sua caracterização dentro de uma determinada comunidade linguística; e ii) de Ullmann (1964), de que palavras trazem inerentes a si traços semânticos, que permitem a sua caracterização em dicionários, por exemplo. Utiliza-se, desta maneira, o termo significado para o que está relacionado inerentemente aos itens lexicais em si mesmos. Ainda considerando que: i) palavras não acontecem aleatoriamente (LYONS, 1977; ULLMANN, 1964; MILLER, 1981; BIDERMAN, 2001), e que ii) sua associação com outras palavras é capaz de fornecer a ela sentidos específicos (inclusive influenciados por fatores sociais e culturais), vai-se reservar o termo sentido para aquilo que é produzido pelo enunciado específico em que um item ocorre. Chama-se atenção, agora, para a questão de que, para os objetivos desse trabalho de tese, ao falar-se em palavras–chave, focaliza-se em determinados itens lexicais que auxiliam na busca da unidade de sentidos para um determinado texto. Para alguns autores da Linguística de Corpus (LC) (p. ex. SARDINHA 1999a; STUBBS, 2001), uma das várias possibilidades de estudos linguísticos baseados em palavras-chave seria a de identificar, por meio delas, os possíveis conteúdos discutidos em um texto. Segundo SARDINHA (1999b) que teoriza a partir de uma perspectiva probabilística e estatística da linguagem, as palavras-chave, por definição, são aquelas que possuem uma frequência estatisticamente superior em um corpus de pesquisa em comparação a um corpus de referência, e que, em conjunto, refletem a ideia principal do conteúdo textual. Nessa perspectiva, a palavra-chave pode aparecer como um núcleo semântico sobre o qual o pesquisador lança seu olhar, faz o seu recorte e procura perceber o que 117 ela revela dentro de seu corpus de pesquisa. Assim, a presente pesquisa concentra-se no objetivo de perceber a influência da palavra-chave na interpretação de textos, mas se distancia da área da Linguística de Corpus por não apresentar uma perspectiva quantitativa da linguagem. Justifica-se a não opção por essa linha de pesquisa porque não seria possível incluir aí a visão particular dos alunos na busca pela palavra-chave e a sua interpretação para tais palavras, fato esse que se procura investigar na análise de dados desta tese. Entre os vários objetivos das pesquisas em LC, pode-se analisar o gênero de um texto, as diferenças lexicais de ambiente linguístico em que uma determinada palavra ocorre no corpus, ou ainda os padrões léxico-semânticos (ou padrões lexicais) de ocorrências das palavras no corpus de pesquisa. Apresentam-se, nos próximos parágrafos, algumas formas de discussão sobre tais padrões a título de exemplificação de como uma palavra-chave pode ser analisada tendo em vista suas manifestações linguísticas em determinados contextos. Padrões lexicais são todas as regularidades que acontecem com uma palavra e as associações que ela mantém e que fornecem a ela e ao seu contexto significados importantes (STUBBS, 2001). Autores da área (SARDINHA, 1999a; 2000a; STUBBS, 2001) procuram definir os padrões lexicais de uma palavra a fim de encontrarem no uso da língua informações que revelem seus comportamentos linguísticos. Na maioria das vezes, é por meio destes padrões lexicais que os pesquisadores têm a possibilidade de identificar ambientes linguísticos importantes para o significado das palavras. Neste campo de pesquisa (SINCLAIR,1991; PARTINGTON,1998; SARDINHA, 2000c), as ocorrências dos padrões se distribuem em três grandes grupos: colocação, coligação e prosódia semântica. A colocação baseia-se no item lexical associando-o ao cotexto67, ou seja, referese a uma relação sintagmática entre as palavras, ou em outros termos, à coocorrência de itens lexicais em uma frase ou texto. Por exemplo, o item lexical ‘causar’ tende a (co)ocorrer de maneira mais frequente com itens tais como ‘problemas’, ‘prejuízo’, ‘danos’, ‘morte’, ‘impacto’, como mostra o exemplo: 1) O vendaval causou grandes prejuízos para a população do local; 67 Co-texto: seria o ambiente verbal imediato em que uma palavra acontece fazendo com que ela assuma sentidos. (Koch, 2010) 118 Além da coocorrência, os itens lexicais podem associar-se gramaticalmente. Os autores denominam essa associação de coligação. Mais especificamente, a coligação é a companhia gramatical mantida pelo item lexical e as posições que ele geralmente tem na sentença. Um exemplo de coligação (SARDINHA, 2000b), tomando por referência o item lexical ‘só’ do português ilustra essa situação68: 2) Eu só vi alguns cartazes por aí. (sentido de restrição, exclusão, seleção); 3) O PFL prevê que a tensão só vai diminuir após a volta de FHC. (sentido de condição); 4) Ninguém lá faz benfeitoria. Só fazem filhos e feitiçaria (sentido de crítica). A coligação ‘só + verbo’ fornece à palavra núcleo como em 2, um sentido de restrição, exclusão e seleção. Já a coligação ‘só + vai’ indicando futuro assume o sentido condicional como em 3 e a coligação ‘só + faz,’ ‘fazem’ assume o sentido de crítica como em 4. O autor explana sua posição baseado em ocorrências retiradas de seu corpus de pesquisa e esses exemplos são apenas algumas das coligações mantidas pelo item lexical ‘só’. Outras possibilidades ainda são discutidas no estudo, inclusive comparando exemplos da fala e da escrita. Destaca-se que é necessário reparar na interligação dos padrões para que se produza sentido, ou seja, a coligação ou a colocação por si só não podem garantir o significado de uma palavra núcleo ou o sentido da sentença em que ocorre. A coligação do item lexical ‘só’ com verbos, por exemplo, não é capaz de fornecer significados gerais da palavra, mas se dissermos que ela ocorre com um determinado tipo de verbos pode-se ter uma ideia de seus possíveis sentidos. Desse modo, além da colocação e da coligação, os itens lexicais também podem se associar por meio de um uso frequente em determinado ambiente semântico, a prosódia semântica (SARDINHA,1999ª; 2000b). A prosódia semântica é exatamente a carga semântica que esse item assume a partir das suas associações mais frequentes. Esse fenômeno pode levar o item a receber uma carga semântica tanto negativa, quanto positiva ou neutra a depender das palavras com que mais frequentemente aparece e das suas cargas semânticas. Por exemplo, o item lexical ‘acontecer’ tem uma prosódia semântica que poderá ser tanto negativa quanto neutra, dependendo do contexto em que 68 Exemplos extraídos de um estudo de caso da língua portuguesa feito por Sardinha (2000a) 119 ocorre ou da carga semântica das palavras que coocorrem com ele. Assim, quando acompanhado por itens que não contém um conteúdo semântico nítido, como ‘coisa’ e ‘algo’, será neutro: 5) Algo aconteceu para que ela tenha mudado sua opinião; Porém se acompanhado de palavras como ‘crime’ e ‘acidente’ o efeito é negativo, pois tais palavras têm características semânticas socialmente negativas: 6) Um crime horrível aconteceu no bairro noite passada 69; A determinação da prosódia semântica não só depende do que o próprio item lexical traz em si, mas também do contexto e das palavras associadas com as quais aparece. Ou seja, a palavra recebe determinadas características semânticas a partir da relação linguística com outras, as quais, por sua vez, caracterizam o ambiente linguístico, positivo, negativo ou neutro, em que se inserem. Nota-se que os três padrões podem fornecer insumos lexicais, sintáticos e semânticos para a interpretação de palavras e destas nas sentenças em que frequentemente ocorrem. Isso acontece porque o nosso conhecimento não está relacionado somente a palavras individuais, mas às suas combinações e ao conhecimento cultural nelas enxertado (STUBBS, 2001)70. Segundo este autor, às vezes uma palavra pode acionar esquemas ou referências a outras palavras correlacionadas a ela, podendo-se extrair dessas combinações a identificação do assunto do texto. Ele parte da ideia de que o significado está disperso entre as palavras que coocorrem no texto e que elas compartilham características semânticas (STUBBS, 2001, p. 63). Ou seja, a partir das palavras e seu ambiente é possível descrever significados mais extensos e que não fazem parte apenas do significado primário de uma determinada palavra71. Utiliza-se aqui o exemplo dos padrões lexicais da colocação, coligação e prosódia semântica, para demonstrar que a distribuição das palavras observadas em um 69 Os exemplos 5 e 6 são de minha autoria. A questão do componente cultural e do conhecimento de mundo foi discutido também no cap. 1.4.3 do presente trabalho. 71 Embora o autor não faça a conceituação entre palavra e item lexical, observa-se que ele utiliza o termo palavra com o mesmo sentido que se usa nesse trabalho: como a concretização dos elementos listados no léxico dos falantes da língua. 70 120 corpus, pode fornecer subsídios linguísticos interessantes para o auxílio à identificação dos tópicos dos textos, proporcionando uma base empírica para sua interpretação (STUBBS, 2001). Isso acontece porque, ao ler um determinado texto, o leitor procura estabelecer para ele um sentido a partir das relações linguísticas que ali são estabelecidas e que incluem relações sintáticas, semânticas, pragmáticas, textuais e também discursivas. Entretanto, deve-se notar que os padrões, per se, não dariam conta de explicar de que forma as palavras utilizadas para a construção de determinadas sentenças são capazes de revelar sentidos culturalmente construídos e que fazem com que o leitor ative esquemas mentais (DIJK, 2002; KRAMSCH, 1993) específicos dessa cultura. Como se disse, a perspectiva de estudos da LC é quantitativa e empírica e procura, na frequência de ocorrência, questões linguísticas intrínsecas às palavras, não se preocupando com a maneira pela qual essas relações influem na interação entre autor e leitor. O que Sardinha (1999a; 2000c), no campo empírico e probabilístico da Linguística de Corpus, denomina palavras-chave, para Cavalcanti (1989), teorizando no campo da Linguística Aplicada (língua estrangeira) são itens lexicais chaves. A autora parte do pressuposto de que problemas de interpretação de textos em língua inglesa estão relacionados a sinais-chave: os denominados itens lexicais chaves. Para ela, [...] os itens lexicais chaves são um elo de ligação entre leitor e texto e entre as suas características; a partir deles e da sua relação com outros itens lexicais do texto, molduras, esquemas e valores são ativados pelo leitor. O conceito de um elemento chave no texto depende imediatamente dos outros itens a ele associados, fazendo com que a integração das palavras estabeleça um sentido para o texto. (CAVALCANTI, 1989, p. 81). A autora afirma ainda que itens lexicais chaves são expressões cujo significado baseia-se no contexto no qual eles são usados, ou seja, são caracterizados na relação com outros itens identificados. O argumento da autora é que: [...] itens lexicais chaves centralizam informação que tem relações diretas no texto e relações pragmáticas indiretas na interação leitortexto. Eles servem como espinha dorsal para o estabelecimento de conteúdo proposicional e força ilocucionária, ativam estruturas de conhecimento (esquemas ou frames) e os sistemas de valores do leitor; e subjazem à construção do pressuposto em relação ao todo ou parte do texto (CAVALCANTI, 1989, p. 75). 121 O que se quer dizer com isso é que a observação de itens lexicais chaves é essencial no processo interpretativo auxiliando na ativação dos esquemas (vide item 1.4.4.1 deste trabalho) e ainda centralizando informações textuais importantes para a compreensão. Associados aos itens lexicais chaves aparecem outros itens72 - denominados por Cavalcanti (1989) de associativos, contextualizantes e iterativos - os quais são responsáveis pela indicação do conteúdo semântico, da coesão textual, de como as orações se relacionam entre si e, ainda, servem como ponto de apoio para o leitor no estabelecimento da força ilocucionária e do conteúdo proposicional do texto. Para que itens sejam considerados chaves, na visão de Cavalcanti (1989), devem apresentar algumas características básicas: a) Não podem ser itens isolados. Eles vêm com outros itens dentro do texto (p. ex. associativos e generalizantes); b) Aparecem repetidas vezes no texto e guiam o leitor através da organização retórica; c) Ativam potenciais estruturas de conhecimento do leitor e são resultado da escolha cuidadosa do autor; d) São alvos de modificação através de itens restritivos (ex. adjetivos ou palavras com essa função); e) Associam-se aos itens associativos (de coocorrência frequente) para construir coesão lexical – se relacionam semanticamente com tais itens; f) Apoiam-se a itens iterativos, os quais são aqueles que concretizam a repetição dos itens lexicais com base na referência ou remissão; g) Associam-se a itens contextualizantes, isto é, itens que auxiliam o leitor a identificar intenções do autor – ex. modalizações, comparações, generalizações – e estabelecem força ilocucionária ao texto. Em outros termos, os itens lexicais chave, na visão da autora, teriam o poder de ativar a interação do leitor com o autor por meio das relações linguísticas estabelecidas no texto. Adicionadas às características acima, duas propriedades básicas são intrínsecas aos itens lexicais chave: a propensão à saliência e à direcionalidade de âmbito. 72 A referida autora não utiliza o termo palavra-chave, mas item lexical chave. O termo escolhido para análise de dados nesse trabalho é, no entanto, palavra-chave por se tratar da concretização específica de um elemento lexical em contexto e situação específicos (vide conceito específico de palavra-chave ao final desta seção). 122 A propensão à saliência seria a propriedade de um item lexical de ser localizado e repetido em partes importantes do discurso, de servir de referente para manter a coesão textual, de associar-se a outros itens lexicais chave, de ser modificado para limitar sua interpretação e de ser incluído como membro importante de relações clausais. Tal propriedade, na visão da autora, pode ser explicada em subitens da seguinte maneira: a) Localização: plano principal do discurso que focaliza o fenômeno em questão (nível global); ou plano principal de uma oração como informação dado-novo; b) Colocação: coocorrência de itens comumente associados formando um ambiente coesivo; c) Iteração: é repetido nos planos do discurso pela repetição propriamente dita, pelo uso de sinônimos ou quase sinônimos, uso de superordenados (ex. o uso no texto do item ‘comportamento’ referindo-se a um item anterior como ‘desobediência’), uso de termos generalizantes (p. ex. o uso do item ‘pessoas’ ao invés de ‘estudantes’), referência pronominal e elipse; d) Restrição: modificado para restringir seu significado (p. ex. o uso de adjetivos) e limitar o escopo interpretativo (embora para a autora essa é uma propriedade menos forte); e) Relação: membro de relações de contraste, ou comparações, ou sequenciação do tipo causa-consequência. (ex. coordenação e subordinação). A segunda característica, da direcionalidade de âmbito, está relacionada à propriedade de itens lexicais chaves de direcionar a ativação de esquemas e de sistemas de valores do leitor. É essa propriedade que permite a delimitação do tópico do texto e a determinação das intenções da comunicação presentes no texto e pode acontecer em três perspectivas: 1) Semântica: o item supre insumo semântico que canaliza a ativação das estruturas de conhecimento do escritor e do leitor em direção ao tópico do texto. Ou seja, ajuda a canalizar as pressuposições e expectativas realizadas durante as predições do processo de leitura; 2) Pragmática: direciona as intenções subjacentes potenciais no texto e ativa sistemas de valores do leitor que baseiam a força ilocucionária do texto; 3) Semântico-pragmática: ativa estruturas de conhecimento e sistemas de valores simultaneamente. 123 Reitera-se aqui que as palavras, embora tenham significados intrínsecos a elas, ganham sentido nas relações que assumem nos textos em que ocorrem e que sua análise pode revelar informações importantes presentes na manifestação textual. É o que Cavalcanti (1989) faz em seu estudo. Ela procura demonstrar que os leitores de língua estrangeira focalizam algumas palavras (“itens lexicais chave” na terminologia da autora) dentro dos seus textos de estudo para produzir sentido textual e pragmático. Para tanto, demonstra como tais itens interagem no texto e com o leitor para a produção de interpretação numa negociação de sentidos entre autor e leitor por meio do texto. O argumento da autora é que a centralização da informação textual é dada nas relações semânticas que acontecem de forma direta no texto e ainda, nas relações pragmáticas que acontecem indiretamente na relação leitor-autor (CAVALCANTI, 1989, p. 75). Em sua pesquisa, ainda, a autora faz uma seleção dos itens lexicais chave numa comparação entre as características dos itens por ela selecionados com os identificados pelos leitores demonstrando a maneira pela qual os sujeitos da pesquisa os focalizam durante a leitura para produzir sentidos. Como resultado, a pesquisadora propõe que, em livros didáticos de língua estrangeira, assim como em LM, atividades de leitura incluam questões como a identificação de itens lexicais chave como itens salientes do texto, os quais devem ser estudados como elos semânticos e pragmáticos estabelecidos no texto, assim como analisados no que diz respeito à organização retórica textual e ao conteúdo proposicional. Isso porque, para ela, tais itens representam instrumentos úteis para analisar o aspecto pragmático da interação dos informantes com o texto base. Ainda em seu trabalho, a autora seleciona alunos de pós-graduação da Universidade de Lancaster, que já estão convivendo com a leitura em língua estrangeira (LE) há alguns anos. Isso quer dizer que sua proficiência em LE pode ser considerada de bom nível, e pode ser, como de fato foi, comparada com a leitura em língua materna. Embora as leituras tenham ocorrido em tempos distintos, os problemas e indicações dos informantes não foram de grande diferença. De acordo com a própria autora, a perspectiva dos itens lexicais chave pode também ser utilizada no âmbito da língua materna, o que, de fato, acontece no presente trabalho. Esta pesquisa concentra-se justamente na leitura em língua materna, partindo do pressuposto de que os itens lexicais chave constituem-se como focalizadores de sentido(s) textual(is) e auxiliam na construção de estratégias para a compreensão de textos. Deve-se argumentar que a ocorrência de itens lexicais chave (ou como são denominados, neste trabalho, palavras-chave) não é aleatória. Se fosse assim, 124 ferramentas computacionais, como os buscadores virtuais, não teriam sucesso algum, e ainda a seleção de determinadas palavras como chave para a produção de textos acadêmicos não faria sentido. Antunes (2012) destaca justamente o fato de que algumas palavras aparecem em um texto com determinada saliência. Para a autora, pensar nos efeitos decorrentes da escolha das palavras é reconhecer que, em um texto, uma palavra expressa mais que um sentido; ela serve também à expressão de uma intenção, de um propósito (às vezes mais de um!), em função do que determinadas palavras (e não outras) são particularmente escolhidas. (ANTUNES, 2012, p. 43). Sendo assim, a escolha de uma palavra em si não significa que sozinha ela é capaz de dar sentido a um texto todo, mas que ela lidera uma cadeia de relações específicas como se fosse uma agulha costurando os pontos e amarrando partes para a construção de uma roupa toda. Na perspectiva da interação autor leitor via texto, Kleiman (2002), trabalhando na perspectiva da língua materna, busca descrever aspectos que constituem a leitura, a qual, para ela, é uma atividade complexa, que envolve processos cognitivos e na qual o leitor deve estar engajado para construir sentido. Para a autora: a compreensão de um texto escrito envolve a compreensão de frases e sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de objetivos, de intenções, muitas vezes de ações e de motivações, isto é, abrange muitas das possíveis dimensões do ato de compreender, se pensamos que a compreensão verbal inclui desde a compreensão de uma charada até a compreensão de uma obra de arte (KLEIMAN, 2002, p. 10) A autora explica que há uma série de conhecimentos que entram em jogo durante a leitura: conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo (vide cap. 1) e que tais conhecimentos são ativados por meio das palavras presentes no texto de forma inconsciente. Isso significa que palavras não são simplesmente dados linguísticos, mas são também insumo para ativações culturais e sociais da mente do indivíduo e que o leitor faz inferências por meio das relações entre elas no texto. São essas inferências que permitem a compreensão. Daí a importância de se analisar a forma como essas interações entre palavras, leitor, autor e texto ocorrem linguisticamente na produção de sentidos e consequentemente na compreensão textual, conforme discutido no cap. 1. E ainda, a maneira como o usuário utiliza a língua como forma de expressão de sentido ou 125 construtora de sentidos linguísticos e extralinguísticos tal como discutido no conceito de competência comunicativa neste capítulo. Kleiman (2002) ainda afirma que o leitor, ao perceber algumas palavras presentes no texto e as organizações entre elas, prevê muito daquilo que ele vai encontrar no texto. Essa tarefa é importante na leitura, pois o auxilia na busca de informações que confirmem previsões e hipóteses já realizadas. Como se vê no decorrer deste trabalho, as palavras-chave são capazes de auxiliar o leitor nessa busca de informações que confirmam expectativas e o ajudam a compreender melhor o texto. Assim, os elementos formais do texto (p. ex. determinadas palavras, coesão, coerência) funcionam como um elo que permite ligar as diferentes partes do texto semanticamente para produzir sentido (KLEIMAN, 2002). A autora afirma, ainda, que marcas formais do texto - tais como nominalização, adjetivação, uso de elementos coesivos - auxiliam na reconstrução das intenções do autor. Por exemplo, a utilização do advérbio ‘talvez’ relativiza o comprometimento do autor com a verdade da afirmação, ou da conjunção adversativa ‘mas’ demonstra para o leitor que há uma refutação ali implícita. O leitor não pode deixar tais marcas passarem despercebidas, pelo contrário, ele deve estar ciente dessas marcas para a reconstrução de sentidos. Assim, elementos lexicais do texto devem ser identificados para que se construam posições argumentativas internas ao texto e objetivos implícitos sejam determinados. Em suma, Kleiman (2002) assume a postura de que há um esquema de cooperação entre autor e leitor via texto (o que se denomina interação leitor autor – CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2002) que leva à construção de sentidos mediante o encontro de marcas linguísticas específicas ou de saliências, tais como, coerência, itens lexicais, coesão, ativação de conhecimento de mundo. Tanto para Kleiman (2002), quanto para Cavalcanti (1989) e Antunes (2012), o autor faz escolhas conscientes das palavras para a produção textual e o leitor, para interagir com o texto, procura nessas escolhas a construção de sentidos internos e a posição do autor. As atitudes do autor e do leitor perante o texto só podem ser percebidas/ construídas a partir dos traços linguísticos que ali estão. É essa percepção de elementos linguísticos que auxiliam o leitor a reconstruir um quadro referencial, hierarquizar informações, estabelecer coesão. Kleiman (2002) não fala em palavras-chave propriamente ditas, mas admite a existência de marcas lexicais que auxiliam o leitor na tarefa de dar sentido ao texto, o que reforça a ideia de que atividades de interpretação que consideram a presença de marcas 126 linguísticas salientes podem, de fato, ajudar o leitor na compreensão efetiva e ainda, levá-lo a um posicionamento mais consciente perante os argumentos expostos no discurso sob leitura. Da mesma maneira, Antunes (2012) também não conceitua o termo palavrachave, mas admite a importância da escolha de determinadas palavras para a construção de sentido textual. Para a autora, as palavras não têm a função única de possuir um significado intrínseco que se junta a outros significados. Para ela, as palavras são parte constitutiva de uma rede de relações que sustenta a ideia de texto e interferem na forma como se produz sentidos para ele. A autora afirma ainda que é importante, de fato, a identificação de algumas palavras no texto, pois elas são capazes de se ajustar a determinações semânticas e pragmáticas construídas no texto. Há, a partir das palavras escolhidas, uma “operação interpretativa, reflexiva, que mobiliza, além de outros, o conhecimento do léxico da língua” (ANTUNES, 2012, p. 83). Ao que parece, esse reconhecimento do léxico perpassa as dimensões da competência comunicativa explorada na seção 2.1. O léxico parece ser o elemento utilizado para desenvolver tais competências e apreender formatos de uso da língua que se adaptam aos objetivos dos usuários e estabelecem iteração comunicacional. Segundo Antunes (2012): Aplicar-se à análise de como os textos são construídos, são estruturados e expressos em sequências, de quais recursos lexicais nos valemos para torná-los capazes de funcionar como peças da interação verbal é tentar compreender, também, a função das unidades lexicais no exercício da linguagem verbal (ANTUNES, 2012, p. 91). É justamente a compreensão das unidades lexicais na interação verbal do texto que se procura investigar nesse trabalho. Admite-se que a seleção das palavras-chave é um recurso estratégico utilizado pelos leitores para construir um sentido global a partir das várias relações (linguísticas e extralinguísticas) estabelecidas durante a leitura. Antunes (2012) também admite que as palavras funcionam como pistas para guiar o processo de interpretação. A autora afirma: É isto: as palavras são “pistas de superfície”; pistas não totalmente autônomas, mas pistas, indicações, instruções. É como se, por meio delas, quem fala ou quem escreve fosse nos indicando, a nós, leitores e ouvintes: ‘por aqui’, ‘por lá’, ‘ao contrário’, ‘volte’, ‘relacione’, ‘adicione’, ‘compare’, ‘exclua’, ‘conclua’ etc. [...] as palavras, em 127 geral, respeitam as demarcações de seus significados de base. (ANTUNES, 2012, p.96-97 – aspas da autora). Diante dessa explanação, reforça-se a importância das palavras na construção de sentidos para o texto. Ainda, pode-se dizer que elas funcionam como um componente da competência estratégica que possibilita a utilização das demais competências linguistica, sóciointercultural e discursiva. Ou seja, o usuário pode empregá-las como um elemento de apoio para a utilização da sua competência comunicativa. Neste trabalho, daqui em diante, opta-se pela utilização do termo palavra-chave ao invés de item lexical chave, considerando que se tem uma concretização de um elemento lexical em um contexto e situação específicos73. Parte-se da ideia de que elas focalizam sentidos textuais – proposta de Cavalcanti (1989) – acrescentados à argumentação de Kleiman (2002) de que marcas linguísticas formais são importantes na construção de sentidos textuais. Essa afirmação tem o intuito de demonstrar que, por meio das denominadas palavras-chave, pode-se estabelecer uma relação estratégica do leitor com o texto que facilite a sua compreensão. Em suma, utiliza-se o termo palavra-chave para referir-se aos itens salientes no texto que auxiliam o leitor a construir uma cadeia de relações semânticas e pragmáticas para a construção de sentido textual. Admite-se ainda que tais palavras são marcas formais do texto que levam o leitor a interagir com ele e a identificar sentidos. Reiterase que se considera que palavras-chave são uma ferramenta da competência estratégica capaz de ativar elementos linguísticos, discursivos e sociointerculturais que auxiliam na construção de um sentido global para o texto, assim como para a identificação de sentidos particulares. Discutem-se, agora, os procedimentos metodológicos adotados para chegar-se a uma situação de escolha das palavras-chave pelos sujeitos da pesquisa e a maneira como os dados são tratados. 73 Parte-se da diferença entre item lexical e palavra exposta nas p. 110-115 deste trabalho. 128 3 PERCURSO METODOLÓGICO Partindo de uma abordagem qualitativa, de cunho interpretativista (LUDKE; ANDRE, 1986; MOITA LOPES; ERICKSON, 1992), a presente pesquisa de tese tem a intenção de observar as relações estabelecidas entre as palavras-chave e o texto como um todo na construção de sentidos pelo leitor, a partir de pressupostos linguísticos e extralinguísticos. Sendo assim, toma-se como ponto de partida a escolha, pelos alunos, de palavras-chave presentes nos textos selecionados para a pesquisa, com o objetivo de demonstrar a forma como esses itens interagem com outros no texto e com o conhecimento prévio do leitor construindo assim sentido(s) textual(is). O problema principal que se coloca neste trabalho é pesquisar de que maneira a seleção das palavras-chave pode ajudar o leitor na movimentação de seu conhecimento prévio, na identificação do sentido e do propósito global do texto e funcionar como uma estratégia para estabelecer interação durante a leitura e construir interpretação textual. Com base nesse problema colocado para a pesquisa, os questionamentos norteadores são expostos, a seguir, para que guiem as escolhas metodológicas realizadas para o desenvolvimento do trabalho: 1) Certas palavras encontradas em um texto podem fornecer pistas linguísticas relacionadas às informações presentes nesse texto, as quais devem ser identificadas pelo leitor (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998; ANTUNES, 2012). Então, pode-se dizer que ao selecionar as palavraschave, os leitores, mesmo que de forma intuitiva, consideram características diversas tais como gramaticais (ex. a classe gramatical da palavra ou suas relações semânticas), sociointerculturais (ex. um sentido social, ideológico ou cultural construído para a palavra) ou discursivas (ex. a relação tema-rema na frase ou no texto) relacionadas à competência comunicativa do leitor e que o levam a (re)construir sentido(s) do texto(s)? 2) Ao iniciar a interação com um texto por meio da leitura, o leitor considera algumas relações léxico-semântico-pragmáticas entre as palavras que observa e formula possibilidades interpretativas. Essas possibilidades interagem com todo o conhecimento do leitor na produção de sentidos como num diálogo entre leitor e autor por meio 129 do texto (KLEIMAN, 2002; CAVALCANTI, 1989). Assim, a seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais74 feitas pelo leitor durante o processo de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de sentidos? 3) As palavras selecionadas pelo autor para produzir um texto estão organizadas e relacionadas a partir de conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo compartilhados na comunidade linguística em que tal texto está inserido (KLEIMAN, 2002; KOCH; ELIAS, 2010; KOCH; TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). Então, o leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos intra e inter texto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si mesmo? Faz-se necessário, portanto, o desenvolvimento de alguns passos metodológicos que serão descritos neste capítulo. A princípio, deve-se ter em mente que, para que fosse feita uma coleta de dados a partir da qual se pudesse contar com maiores detalhes e informações, optou-se por realizar uma coleta piloto com duas turmas diferentes em duas escolas públicas estaduais da cidade de Cascavel – PR. Uma delas foi selecionada para a pesquisa definitiva e a outra foi descartada por possuir características similares. Tal coleta foi realizada no segundo semestre do curso de doutorado (2010.2) e a partir dela chegou-se a algumas conclusões importantes para a coleta definitiva, tais como a adequação do número de textos e de questões propostas nas atividades. Após as devidas adaptações, a coleta definitiva foi realizada com a intenção de arrolar os dados necessários para responder os questionamentos da tese. A referida coleta foi feita depois da formulação do plano de trabalho75, o qual foi construído durante os últimos meses do segundo semestre (2010.2) e os primeiros meses do terceiro semestre do curso (2011.1), sendo esse também o período em que tal coleta se 74 Alguns autores que trabalham com leitura denominam essas interpretações primárias de “hipóteses de leitura” (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, (1998); COLOMER;CAMPS, 2002). No entanto, deve-se lembrar que o termo não se refere a hipóteses de pesquisa e sim às formulações de interpretação feitas pelo leitor ao se deparar com um determinado título, formato textual ou palavras em um texto. Com o intuito de evitar confusão de termos, nesta pesquisa utiliza-se o termo “questionamentos” ou “questões norteadoras” para referir-se aos pontos principais que suscitam a investigação aqui apresentada. E utiliza-se o termo “possibilidades, interpretações ou formulações iniciais de leitura ou interpretação” para as primeiras ideias que o leitor constrói ao iniciar a interação com um determinado texto. 75 Os planos das coletas piloto e definitiva encontram-se, respectivamente, nos anexos A e B deste trabalho. 130 realizou. Para essa coleta foram selecionadas também duas turmas – uma do período matutino e outra do período noturno – na mesma escola pública da cidade de Cascavel. A seguir, explicam-se todas as decisões metodológicas tomadas, incluindo o processo de seleção das turmas, dos textos, das atividades realizadas e das palavraschave. Todos os instrumentos de coleta de dados utilizados nessa pesquisa foram pensados e criados pela pesquisadora com o intuito de alcançar os objetivos expostos no projeto de tese e responder os questionamentos norteadores da pesquisa. 3.1 AS DATAS E O NÚMERO DE AULAS DA(S) COLETA(S) A coleta piloto foi realizada com duas turmas de ensino médio entre os dias 28 de setembro e 05 de outubro de 2010, com o objetivo de testar tempo, atividades e outros detalhes que eventualmente pudessem surgir para a coleta definitiva. A escolha da data foi realizada devido a dois fatores principais: a) Em contato com a escola, as professoras da disciplina de língua portuguesa alertaram para o fato de que ao final do mês de outubro seria difícil para elas cederem algumas aulas para a coleta devido à realização dos trabalhos e provas finais do ano letivo; b) A coleta piloto precisaria ser finalizada ainda antes do fim do segundo semestre de 2010, visto que, no primeiro semestre de 2011, haveria o estágio de pesquisa a ser cumprido em Salvador. A intenção era a de que entre a coleta piloto e a definitiva, se tivesse algum tempo para reorganização, reflexão e replanejamento das atividades. Assim, visto que a coleta piloto foi feita em início de outubro, ainda se teria 3 (três) meses para repensar a coleta definitiva. Já a coleta definitiva de dados foi realizada entre os dias 14 e 24 de fevereiro de 2011 (semestre 2011.1), anterior ao período de cumprimento de estágio de pesquisa em Salvador. A razão para a data foi aproveitar o início das aulas na escola pública selecionada em Cascavel-PR e ainda trazer os dados para as orientações que deveriam ser realizadas na Universidade Federal da Bahia (UFBA). O número de aulas utilizadas para a aplicação das atividades também foi diferenciado para a coleta piloto e para a definitiva. Na coleta piloto foram selecionadas duas aulas (geminadas) para o trabalho com dois textos. No entanto, viu-se que o número de aulas não foi suficiente para aplicação das atividades, principalmente pela 131 necessidade de que os alunos escrevessem todas as respostas76, o que demandou muito tempo. Assim, para a coleta definitiva, foram selecionadas 5 aulas para o trabalho com os três textos (duas aulas geminadas77, outras duas aulas geminadas, e mais uma aula). Três fatores principais foram pensados para as coletas de dados (tanto a piloto quanto a definitiva) e serão descritos na sequência deste trabalho: 1) a escolha e o perfil das turmas; 2) a seleção dos textos de pesquisa; 3) a elaboração e a aplicação das atividades. 3.2 A ESCOLHA E O PERFIL DAS TURMAS Escolheu-se realizar a pesquisa de tese com alunos de 3º ano de ensino médio porque se supõe que tais alunos já têm familiaridade com a língua, uma caminhada escolar e proficiência maior de leitura se comparados com alunos de séries anteriores. Em contato com as escolas, escolheram-se duas turmas para a coleta piloto – uma do período matutino e outra do noturno – em duas escolas públicas. O motivo da escolha de duas turmas em períodos e escolas diferentes foi justamente o de observar se, de fato, contextos diversos poderiam trazer resultados diferenciados com relação às interpretações e ainda validar a utilização de turmas diferentes para a coleta definitiva. Uma das turmas de 3º ano de ensino médio tinha 26 alunos e a outra 21 alunos, totalizando 47 alunos em duas escolas Estaduais da cidade de Cascavel78. Notou-se, a partir da coleta piloto, que a quantidade de dados de duas turmas já era suficiente para que se pudesse responder os questionamentos norteadores 79 da pesquisa. Isso porque cada uma das turmas teria em média 30 alunos e para cada aluno seriam aplicados três textos durante a coleta definitiva de dados, o que significaria, em média, 180 atividades a serem analisadas. Assim, para tal coleta, optou-se por manter o número de duas turmas. Outro ponto interessante com relação às turmas foi a diferença das respostas e da participação observadas entre os trabalhos realizados com os grupos da coleta piloto. A participação e o envolvimento dos alunos do matutino pareciam ser maiores que os dos alunos do período noturno. Ainda, as respostas dadas aos questionamentos feitos 76 Vide descrição das atividades na seção 3.4 A sugestão das turmas que tinham aulas geminadas foi da professora da escola, pois segundo ela, trabalhos com leitura e interpretação são mais efetivos quando não se tem o corte para aulas posteriores. 78 Opta-se por não incluir, durante a análise de dados ou descrições metodológicas, os nomes das escolas, professores ou alunos envolvidos no processo. 79 Cf. início do cap. 3 (p. 129-130). 77 132 apresentavam possibilidades diferenciadas entre os dois turnos. Procurou-se verificar se essa diferença se dava entre as escolas ou entre os turnos. Conversou-se, então, com a coordenação e com professoras de ambas as escolas (que possuíam turmas em outras escolas) que, quando questionadas se a maior diferença estaria entre turnos ou escolas, a resposta foi, no geral, a mesma: os alunos de turnos diferenciados geralmente apresentavam posicionamentos distintos com relação à leitura, o que nem sempre acontece com escolas diferentes, embora todos os grupos, de fato, tenham suas peculiaridades. A partir disso, optou-se por realizar a coleta definitiva dos dados em uma mesma escola, visto as grandes semelhanças entre as duas instituições escolares utilizadas na coleta piloto. Tais semelhanças devem-se principalmente ao fato de que ambas as escolas situam-se em locais próximos da cidade, atendendo, de acordo com as coordenações, o mesmo perfil socioeconômico de alunos. No entanto, mantiveram-se os turnos diferenciados – um matutino e outro noturno. Além disso, percebeu-se outro fator importante para a coleta definitiva: delinear o perfil dos alunos a serem trabalhados em cada grupo, uma vez que atividades de interpretação podem ser influenciadas pelas experiências dos alunos com culturas, comportamentos e estilos de vida diferentes80. Criou-se, então, um questionário sociocultural81, que foi aplicado nas turmas da coleta definitiva com o intuito de traçar o perfil dos sujeitos pesquisados e observar se algumas das informações por eles fornecidas poderiam, de alguma maneira, ser influenciadas pela classe econômica, gostos pessoais, profissão dos pais etc. Em suma, as turmas selecionadas para a coleta definitiva foram compostas de dois grupos de 3º ano de ensino médio, assim classificadas: Turma A: matutino – 32 alunos e Turma B: noturno – 42 alunos. A escola selecionada para a pesquisa está localizada no centro da cidade e abarca aprendizes de várias regiões da cidade, embora sejam priorizados alunos que morem próximo ao local da escola. Apresenta-se, em seguida, uma descrição feita com base nas respostas dadas ao questionário sociocultural aplicado aos alunos das turmas A e B selecionadas para o trabalho. Na turma A, notou-se que, dos 32 alunos pesquisados, a maioria tem 16 anos (somente dois com 17 anos) e dividem-se em 26 meninas e 6 meninos. Ainda, desses 80 Cf. cap. 1.3.4 sobre conhecimento de mundo e cap. 2.2.2 sobre competência sociointercultural. 81 O questionário sociocultural encontra-se no apêndice C deste trabalho. 133 alunos, somente 3 nasceram fora de Cascavel ou da região Oeste do Paraná. Já a turma B possui 44 alunos, dentre eles, 20 meninas e 22 meninos, a grande maioria também nascidos em Cascavel ou região Oeste do Paraná (30 alunos). Ressalta-se o fato de que nem todos os alunos de ambas as turmas participaram de todas as atividades, fazendo com que as atividades destes alunos faltosos fossem descartadas. Assim, o total de alunos incluídos na análise são 29 para a turma A e 26 para a turma B. Com relação à idade da turma B, notou-se uma diferença grande, se comparada à turma A: a maior parte dos alunos encontra-se na faixa etária dos 16 aos 18 anos (pouco mais que 50% dos alunos pesquisados), embora houvesse alunos de diferentes idades acima de 20 anos - incluindo um participante de 42 anos de idade. Observou-se, também, que as turmas são bastante diferenciadas no que diz respeito a gênero: a primeira turma é predominantemente feminina, enquanto a segunda possui um número balanceado de meninas e meninos. No que diz respeito ao perfil de formação educacional dos alunos da turma A, foi demonstrado que a grande maioria dos alunos cursou ensino fundamental em escola pública e todo o ensino médio na escola da pesquisa (somente 7 cursaram parte do ensino médio em outra escola pública). Os alunos são, na sua maioria, estudantes (embora 9 deles trabalhem como estagiários para auxiliar na renda familiar) e sempre frequentaram a escola no período diurno. Na turma B, ficou evidenciado também que a maior parte cursou todo o ensino fundamental e médio em escola pública, mas 18 participantes sempre estudaram na escola da pesquisa. Os demais cursaram parte de seu ensino médio em outras escolas públicas da cidade. Ainda com relação à turma B, 17 alunos afirmaram que estudaram quase todo o ensino médio no período diurno e os demais sempre estudaram no noturno. O motivo para haver diferença entre os alunos que sempre estudaram no diurno – turma A – para os que estudaram parte no diurno e parte no noturno ou totalmente no noturno pode ser explicado pelo número de alunos que trabalham na turma B: 20 dos alunos pesquisados. Ou seja, no que diz respeito ao perfil estudantil e profissional dos alunos, verificou-se que na turma A, a maior parte dos sujeitos é estudante, enquanto que na turma B, mais de 50% da turma já possui atividades profissionais. A maioria dos 134 trabalhos dos alunos volta-se à área de prestação de serviços gerais (recepcionista, auxiliar de escritório, auxiliar de serviços gerais etc.)82. O perfil familiar dos alunos da turma A inclui famílias de 4 a 5 pessoas, na sua grande maioria, com renda média de 3 a 7 salários mínimos. Ainda, a maior parte dos pais possui ensino médio completo e há uma tendência maior para mães mais escolarizadas (4 mães têm ensino superior completo e apenas 2 pais o possuem). Com relação à turma B, as famílias possuem na sua maioria 4 membros (13 alunos), notandose a presença de famílias grandes (6 alunos têm famílias com 6 ou mais membros). A renda das famílias é menor que a turma A, uma vez que quase todos os alunos possuem renda familiar de 1 a 5 salários mínimos. Na turma B ainda, os dados revelam que o nível de escolarização dos pais é relativamente baixo: a maioria possui nível de ensino fundamental incompleto (8 mães e 10 pais) e um número maior de mães (8 mães e 5 pais) com nível médio completo. O nível socioeconômico das turmas pode ser percebido também no perfil de atuação profissional dos pais: tanto na turma A quanto na turma B a maior parte dos pais possui trabalhos ligados à prestação de serviços (autônomo, gerente de vendas, pedreiro, professora, operador de máquinas, motorista de caminhão etc). Com relação às mães, tanto na turma A quanto na B houve um grande número de mães que são donas de casa (8 na turma A e 15 na turma B). Com relação às expectativas profissionais demonstradas pelos alunos, também nota-se uma diferença grande entre os grupos A e B. No primeiro grupo, 100% dos alunos pesquisados declararam que pretendem prestar ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio) e um maior número (comparados à turma B) pretende frequentar universidade pública (17 alunos – mais de 65% da turma), sendo que nenhum aluno declarou que não pretende cursar universidade. Ainda, os dados revelam que em média 50% dos alunos da turma A pretende fazer algum curso relacionado às ciências médicas ou da saúde (medicina, psicologia, enfermagem etc). No segundo grupo, 7 alunos declararam que não pretendem prestar ENEM e 4 afirmaram que não pretendem prestar vestibular. Cerca de 44% da turma pretende cursar universidade pública (13 alunos) sendo que um número igual de alunos declarou que pretende estudar em universidade pública ou privada. Entre os cursos pretendidos 82 Vide anexo A deste trabalho os dados dos questionários socioculturais tabulados. Não se pode observar um padrão nítido quanto à profissão dos alunos, visto que na maioria dos casos são profissões bem diferentes. Todas, no entanto, voltadas à prestação de serviços. 135 para os alunos desse grupo, a maior parte planeja cursar graduações da área de ciências exatas (engenharias, arquitetura, agronomia) e um número similar pretende cursar graduações relativas à área administrativa. Veja-se o gráfico I a seguir para a observação das carreiras profissionais desejadas pelos informantes: GRÁFICO 1 – Expectativas profissionais dos informantes das turmas A e B Nota-se, portanto, uma grande diferença entre o perfil de interesses profissionais da turma A e B: o primeiro grupo tem maior interesse em ciências médicas e da saúde e o segundo tem maior interesse em cursos orientados para as ciências exatas. Tal interesse pode influenciar a interpretação da turma A no texto 2, cujo tema é engenharia genética o que, em princípio, seria mais interessante para os sujeitos dessa turma. Ou seja, o tema do texto 283 pode provocar uma maior interação dos alunos da turma A. Esse fato é analisado na discussão dos dados. Quanto ao perfil das turmas com relação à leitura, viu-se nas respostas dos questionários que a maioria dos alunos, tanto na turma A quanto na turma B, declarou ter dificuldades para realizar avaliações de interpretação textual. Os sujeitos pesquisados ficaram divididos entre as respostas em que afirmavam possuir dificuldades ou em que pretendiam progredir até a data dos testes do ENEM e do vestibular. Quando questionados com relação às suas maiores dificuldades, grande parte dos alunos tanto da 83 A descrição dos textos de pesquisa são realizadas na seção 4.1 deste trabalho uma vez que ao descrever os textos algumas interpretações já realizadas na análise podem ser trazidas à discussão. 136 turma A quanto da B, afirmou ter algum tipo de dificuldade, seja para responder as questões da professora ou as do livro, seja para entender o assunto geral do texto. Outro dado importante é a forma como os alunos selecionam os textos para sua leitura. A maior parte deles, de ambos os grupos, afirmou selecionar os livros pelos temas específicos, pelo título ou por resumos o que, a princípio, confirmaria a afirmação de que dados iniciais do texto guiam o leitor no estabelecimento de possibilidades interpretativas e, consequentemente, na escolha das palavras-chave (questionamento 2). Tal afirmação também será discutida na análise dos dados. Ainda, há um número diferenciado entre os alunos das turmas A e B que declararam realizar leituras frequentes como se pode ver no gráfico II abaixo: GRÁFICO 2 – Frequência das leituras das turmas A e B Na turma B, notou-se uma diferença grande entre os alunos que declaram não ler com frequência para os que leem todos os dias, dividindo a turma em dois perfis de alunos bem diferentes no que diz respeito à preferência em leitura. Já na turma A, observou-se um maior número de alunos que declara ler quase todos os dias ou de duas a três vezes por semana, o que caracteriza a turma A como de leitores mais frequentes. Esse dado é ainda reforçado pelo número de livros que os alunos dizem ter lido no ano anterior: para a turma A, 13 alunos dizem ter lido mais de três livros e outros 13 afirmam ter lido no máximo 2, o que faz com que a turma tenha um comportamento mais assíduo com relação à frequência das leituras; para a turma B, o maior número de 137 alunos (17 alunos) afirma ter lido no máximo dois livros, o que caracteriza a turma como de leitores menos aplicados. Vejam-se, agora, os tipos de leituras realizados pelos alunos. O gráfico III a seguir auxilia nessa observação: GRÁFICO 3 – Tipos de leituras realizados pelas turmas A e B Entre os tipos de leitura favoritos estão livros de literatura em geral – maior para a turma A (os quais foram indicados como na sua grande maioria romances – 8 alunos para a turma A e 2 para a turma B) e revistas que tem um número similar para ambos os grupos. Entre as revistas mais citadas estão aquelas de conhecimentos gerais ou notícias tais como Veja, Super Interessante, Isto é, Época, não se excluindo apontamentos a revistas de fofocas ou femininas84 (Caras, Capricho, Toda Teen). Um apontamento interessante está no número igual de livros técnicos indicados pelos sujeitos dos dois grupos. No entanto, os temas indicados foram bem diversificados estando, na sua maioria, relacionados às respectivas profissões dos leitores que já trabalham. Outro dado importante diz respeito à utilização da internet. Conforme os gráficos acima há um grande número de alunos que afirma não ler frequentemente ou que diz ler pouco. No entanto, a maioria dos alunos declarou possuir na internet a ferramenta de uso diário para se manter informado e fazer trabalhos escolares, o que significa que há um grande número de leituras realizadas na internet. Em ambas as 84 Vide dados no anexo A deste trabalho. 138 turmas, os alunos declararam possuir computador com internet em suas residências (98% dos alunos pesquisados). O número de 2% que afirma não possuir computador com internet é relativo a estudantes da turma B (5 estudantes), o que reforça os dados de que alunos dessa turma realmente têm menor acesso a atividades de leitura diária. Entre os sites mais visitados pelos alunos estão os de redes sociais (50 indicações85 para a turma A e 16 para a turma B) e de portais de notícias (15 indicações para a turma A e 14 para a turma B). Com relação ao tempo gasto na internet diariamente, nota-se também uma diferença. Para a turma A, a maioria dos alunos passa um tempo médio de 3 a 4h na internet por dia e para a turma B, a maior parte dos alunos declarou usar o recurso entre 1h e 2h diárias. Tal dado pode ser justificado pelo fato de que nessa turma um número maior de alunos possui, além dos estudos, atividade profissional, o que reduz consideravelmente o tempo livre para utilização da internet como atividade de lazer, assim como para atividades de leitura diversificadas ou para estudo. Essa observação é ainda reforçada pelos dados fornecidos pelos alunos: na turma A o número de horas semanais dedicadas aos estudos é maior (entre 2 e 5h) do que na turma B (menos de 1h até 2h). As descrições expostas sobre o perfil dos alunos certamente são importantes para a análise de dados deste trabalho de tese. Isso porque a maior ou menor interatividade dos alunos com determinados contextos e interesses influencia na maneira como leem os textos. Por exemplo, na primeira crônica, cujo tema é educação e profissão, os dados do perfil econômico das famílias e das pretensões profissionais dos alunos podem trazer algumas diferenças com relação à forma com que interagem com o texto por meio da palavra-chave. Outro exemplo pode estar no que diz respeito ao segundo texto. Este possui um tema relativo às ciências da saúde (engenharia genética) o que poderia produzir uma interação diferenciada da turma A com relação à turma B pelo fato dos interesses da primeira com relação ao assunto serem maiores do que a segunda. Tais observações são discutidas na análise dos dados. 3.3 A SELEÇÃO DOS TEXTOS DE PESQUISA. 85 Na tabulação dos dados, os sites foram contabilizados pelo tipo de site indicado, o que justifica o número maior (50) que o número de alunos da turma (34). Assim, se um aluno indica Facebook e Orkut como sites mais pesquisados, eles serão contabilizados duas vezes na indicação para redes sociais. 139 O passo metodológico seguinte foi selecionar os textos de pesquisa. Essa fase é importante porque os textos são a base da qual se está partindo para analisar as relações linguísticas e extralinguísticas mantidas entre as palavras que auxiliam na produção de sentido textual. Ou seja, é dos textos que se parte para a discussão da questão de que o leitor, por meio da palavra-chave, identifica as relações mantidas entre as palavras e os demais conhecimentos subjacentes à manifestação textual, e, a partir disso, seu trabalho de encontrar um sentido global é facilitado. É ainda com base nos textos que se pode analisar se, partindo da identificação das interligações entre as palavras-chave, o texto e os conhecimentos de mundo, o leitor interpreta e expõe sua compreensão textual, influenciado por tais relações. Assim, com o intuito de verificar as relações linguísticas mantidas entre palavras e de descrever que tipo de comportamento linguístico as palavras desse corpus mantêm entre si que são capazes de revelar significados textuais importantes, optou-se pela seleção de textos, tanto da coleta piloto, quanto da definitiva, seguindo os seguintes critérios: a) Pertencer ao uso comum, diário dos alunos. Devido ao fato da pesquisa se realizar em ambiente pedagógico – ensino médio – decidiu-se fazer a seleção de textos presentes em livros didáticos das escolas de pesquisa, uma vez que esses materiais contêm textos que devem ser compreendidos em aulas de interpretação; b) Apresentar tipologias e gêneros textuais diferentes, a fim de verificar se a seleção de palavras-chave é influenciada pela identificação do próprio leitor com determinadas formas construtivas dos textos. De fato, sabe-se que o tipo textual, assim como seu gênero, influi na interpretação (KLEIMAN, 2002; KOCH, 200986). Isto é, alguns alunos podem ter um maior conhecimento linguístico de textos informativos, tais como reportagens, por exemplo, e consequentemente teriam maior facilidade de interpretação nesse gênero. A utilização de tipos e gêneros diferentes pode auxiliar na observação sobre a relação que existe entre os gêneros (conhecimentos textuais) e a interpretação construída pelos alunos; c) Expor temas diversificados. O fato de o aluno conhecer um determinado tema mostra que seu conhecimento enciclopédico com relação àquele 86 Cf. cap. 1.3.3. 140 assunto é maior, o que indica maior interação do leitor com o texto (KOCH, 2009). Assim, com diferentes temas, é possível verificar os vários modos de interação com os diferentes assuntos tratados; Os mesmos textos foram selecionados para serem aplicados às duas turmas selecionadas, com o intuito de realizar uma análise comparativa e observar as interpretações de grupos diferentes. O motivo para isso foi o de realizar uma descrição mais criteriosa das diferentes relações mantidas pelos itens, a partir do ponto de vista de diferentes leitores. Sendo assim, primeiramente para a coleta piloto, dois textos foram escolhidos com base nesses critérios: - Texto 1: uma crônica de Rubem Alves, intitulada “Política e jardinagem” presente em um dos livros didáticos trabalhados da rede pública estadual de Cascavel (“Português: Língua, literatura, produção de texto”87) e trata do tema relações políticas. - Texto 2: uma poesia de Manoel Bandeira, intitulada de “Poética” retirado de outro livro utilizado na rede pública estadual de ensino (Português linguagens. Literatura, Produção de texto, gramática Vol.388) e fala sobre o tema lirismo. Ambos os textos89 seguem os critérios estabelecidos: são retirados de livros didáticos escolhidos pelas professoras para trabalhar nas turmas da(s) escola(s), têm gêneros diferentes (crônica e poesia), e expõem temas diferentes (respectivamente política e lirismo). A partir do trabalho com os textos, percebeu-se que os critérios foram válidos para a coleta piloto, sendo que a diferença entre gêneros textuais se destacou entre eles. Então, optou-se por aumentar o número de textos a serem trabalhados na coleta definitiva para três a fim de verificar quais as reais diferenças de interação o assunto, o gênero e o formato textual podem trazer. Tal decisão foi baseada na primeira questão da pesquisa, ou seja, saber se o leitor utiliza a palavra-chave para canalizar diferentes níveis da competência comunicativa (gramatical, discursiva, sociointercultural). O objetivo principal com essa escolha foi utilizar um maior número de textos para demonstrar nas palavras-chave os motivos pelos quais alguns sentidos se sobrepõem a outros na interpretação dos alunos e observar a forma como as dimensões da 87 ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Ed. Moderna, São Paulo, 2005. 88 CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. 5 ed., Atual editora, São Paulo, 2005. 89 Os textos encontram-se no apêndice A deste trabalho de tese juntamente com as atividades propostas. 141 competência comunicativa foram utilizadas pelos informantes em manifestações textuais diferentes. Assim, no caso da coleta definitiva, foram selecionados três textos com base nos mesmos critérios da coleta piloto, os quais são listados90 a seguir: 1) O primeiro texto: uma crônica de Moacyr Scliar intitulada “Nada como a instrução”. A crônica foi retirada do livro didático Português linguagens. Literatura, Produção de texto, gramática Vol.391. O texto selecionado tem tipologia narrativa e apresenta três personagens: o narrador, o senhor e o menino que dialogam em torno de um assunto cotidiano: a escolarização e suas consequências na classe social dos personagens; 2) O segundo texto - um artigo de opinião intitulado “O dilema genético” de Marcelo Gleiser, o qual também foi retirado do livro didático Português linguagens. Literatura, Produção de texto, gramática Vol.3. Esse texto é de formato dissertativo informativo com tipologia argumentativa, em que o autor procura demonstrar críticas e benefícios da evolução da ciência genética focalizando três subtemas principais: os transgênicos, a clonagem e as célulastronco; 3) O terceiro texto: um poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Poema de sete faces”. O texto foi retirado do livro “Português: Língua, literatura, produção de texto”92. No poema, construído em sete estrofes, Drummond relata algumas fases de vida apontando emoções vividas, principalmente tristeza, comoção e angústia. Os três textos apresentados são trabalhados com os alunos a partir de atividades de leitura que visem responder os questionamentos da pesquisa. Os exercícios realizados são analisados nos capítulos 4 e 5 observando-se a escolha das palavraschave pelos alunos e a maneira como eles constroem as interpretações, bem como focalizam sentidos textuais. 90 Todos os textos de pesquisa encontram-se no apêndice B deste trabalho e uma descrição dos textos é realizada no cap. 4.1 91 CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. 5ª edição, Atual editora, São Paulo, 2005. 92 ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Ed. Moderna, São Paulo, 2005. 142 3.4 AS ATIVIDADES REALIZADAS Os planos de trabalho93 elaborados tanto para a coleta piloto quanto para a coleta definitiva visaram à observação da interpretação realizada pelos alunos. Vale a pena lembrar que, uma semana antes das atividades serem aplicadas, fez-se uma visita à escola para conversar com os alunos sobre quais atividades seriam realizadas para que eles não se sentissem avaliados com o trabalho. Explicou-se a pesquisa e esclareceu-se que o objetivo principal era refletir sobre a construção do processo de interpretação que leitores de ensino médio apresentam com relação aos mais diversos textos. Para a elaboração dos planos de trabalho, pensou-se em atividades94 divididas em três momentos para contemplar a leitura como um processo interativo e global: préleitura – exercício 1; leitura - exercícios 2 e 3; discussão do texto - exercício 4. No entanto, deve-se notar que se verificou, na coleta piloto, que as atividades, por serem todas escritas, demandavam muito tempo para sua realização por parte dos alunos. Embora se tenham mantido os três momentos, o número de questões foi adequado da seguinte maneira: a) Na coleta piloto foram propostos dois exercícios na atividade de pré-leitura, incluindo a análise do título a ser realizada de forma oral; um exercício na atividade de leitura - a escolha das palavras-chave; e quatro perguntas na discussão do texto. Já para a coleta definitiva foram realizados um exercício de análise do título na fase de préleitura; dois exercícios na leitura; e um exercício com três perguntas na atividade de discussão do texto; b) Na coleta piloto, o momento de leitura foi realizado em um único exercício - a seleção das palavras-chave. Já para a coleta definitiva, esta fase foi subdivida em duas partes – as primeiras interpretações (exercício 2) e o levantamento das palavras-chave (exercício 3). A divisão desta fase em duas partes teve o intuito de observar, mais claramente nos dados, a maneira como os leitores construíam os fios semânticos (CAVALCANTI, 1989) que conduziam sua interpretação (questionamento de pesquisa 2). Com o intuito de esclarecer a apresentação das atividades, foi elaborado o quadro a seguir que demonstra as diferenças entre as coletas e a escolha das atividades: 93 Os planos de trabalho da coleta piloto e definitiva estão, respectivamente, nos anexos A e B deste trabalho de tese. 94 Vide atividades expostas no plano de trabalho – Apêndice B 143 QUADRO 4 – Atividades realizadas nas coletas piloto e definitiva Atividade Pré-leitura Questão de pesquisa observada 2 2 Leitura 2 1 Discussão 3 Coleta Piloto 1) Análise do título – atividade oral 2) Primeira leitura – anotação das interpretações 3) Escolha das palavras-chave Coleta definitiva 1) Análise do título – atividade escrita 2) Primeira leitura – anotação das interpretações 3) Escolha das palavraschave Quatro (4) perguntas – Três (3) perguntas – atividade escrita atividade escrita Assim sendo, as atividades são descritas a seguir organizadas de forma a responderem os questionamentos da pesquisa, os quais são retomados e relacionados à escolha das atividades: 1) Para a checagem do primeiro questionamento - a relação entre a escolha da palavra-chave e a utilização da competência comunicativa do leitor na construção de sentidos95: Num primeiro momento, explicou-se aos alunos o conceito (genérico e não com detalhes teóricos) das palavras-chave, afirmando que são palavras que auxiliam na focalização de sentido textual e na construção de um sentido global para o texto. Na sequência, foi proposta uma atividade de leitura (exercício 3), na qual os alunos deveriam imaginar que teriam que explicar o texto uma semana depois e não poderiam ter acesso a ele. Deveriam, assim, escolher até 5 palavras para anotar e lembrar do texto. Os alunos foram solicitados então a selecionar as palavras-chave e explicar os motivos para a sua escolha. Essa atividade foi primeiramente realizada de forma oral para que todos os alunos realmente a compreendessem e, logo após, foi fornecido tempo para que todos os alunos anotassem suas justificativas. Essa foi a terceira atividade proposta de leitura do texto (momento de leitura), pois os alunos precisavam ter uma familiaridade maior com o texto para que selecionassem as palavras-chave. As anotações feitas pelos alunos nessa atividade foram analisadas 95 Todos os questionamentos norteadores são encontrados na primeira seção do cap. 3 (p. 129-130). Eles estão respectivamente relacionados aos passos 1, 2 e 3 da escolha das atividades. 144 com o intuito de observar quais sentidos textuais os leitores estavam hierarquizando no texto e a maneira que, para o leitor, a palavra-chave estaria tecendo relações de sentido com base em aspectos gramaticais, discursivos ou sociointerculturais. 2) Para a verificação do segundo questionamento - a utilização da palavra-chave como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais do leitor: Antes de começar efetivamente os exercícios de leitura, realizou-se uma conversa a fim de preparar os alunos para as atividades e deixá-los mais confortáveis com a presença da pesquisadora. Neste sentido, perguntas que abrangem aspectos gerais sobre leitura foram realizadas tais como: “Que tipo de texto você gosta de ler?” “Você acha difícil de ler crônicas/ artigos informativos/ poemas?”, “Onde você encontra esse tipo de texto?”96 etc. Na sequência, um exercício de análise do título (atividade 1) para levantamento das possibilidades de interpretação dos alunos (ou hipóteses de leitura – KLEIMAN, 2002; KATO, 1999; SOLÉ, 1998; COLOMER;CAMPS, 2002) foi proposto na atividade de pré-leitura. A utilização de atividades de leitura prévia, como a discussão sobre o título (SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 2001; 2004; COLOMER; CAMPS, 2002; CASTELLO-PEREIRA, 2003), é um recurso importante para a construção do processo de leitura, pois ativa as expectativas do leitor e o faz formular possibilidades interpretativas as quais ele procura confirmar ou refutar durante a interação com o texto. É, portanto, uma estratégia97 para orientar os conhecimentos do leitor na interação com o texto e guiar suas interpretações. Nesse sentido, propôs-se como pré-leitura (atividade 1 de todos os textos trabalhados) um exercício de ativação das possibilidades de interpretação a partir da leitura do título para que os alunos pudessem construir suas primeiras ideias a respeito do conteúdo do texto. Discutiu-se, então, com os estudantes quais conhecimentos o título do texto lhes trazia e quais as possibilidades de interpretações a que poderiam recorrer. Os alunos foram solicitados a anotar essas primeiras ideias. Na sequência do trabalho, uma atividade de leitura (atividade 2) foi realizada, na qual os informantes tiveram um tempo para fazer uma leitura rápida do texto e anotar as primeiras interpretações que construíram. O intuito, nesta atividade, foi o de analisar 96 97 Vide questões discutidas no plano de trabalho da coleta de dados definitiva do anexo B deste trabalho. Cf. cap. 1.4 – estratégias de leitura e cap. 2.2.4 – competência estratégica. 145 como as interpretações dadas na atividade da análise do título ligam-se às compreensões construídas quando o aluno lê o texto de maneira mais efetiva. Nessa fase do trabalho, os alunos se envolveram com o texto e com a atividade. No entanto, como em todas as turmas, os estudantes mais tímidos preferiram não se manifestar oralmente, mas tiveram a oportunidade de participar de forma escrita. Isso fez com que as atividades de todos os alunos pudessem ser consideradas, observando-se maneira pela qual formulações iniciais construídas pelos leitores para interagir com o texto (atividade 1) ligam-se às interpretações dadas na atividade de leitura (atividade 2) e no apontamento das palavras-chave (atividade 3). 3) Para o terceiro questionamento – a palavra-chave pode auxiliar tanto na identificação, quanto na criação e negociação de sentidos: Sabe-se que é necessário que os alunos possam evocar e reconstruir seus próprios pontos de vista com relação aos mais diversos textos para que se formem bons leitores (FREIRE, 1983; MENDES, 2008; KRAMSCH, 1993). Assim, os alunos foram solicitados a demonstrar como julgavam a posição do autor e suas opiniões, ou como se posicionavam perante o texto. Foi proposto, então, um exercício de discussão do texto (Atividade 4) no qual os estudantes foram solicitados a: i) destacar características do conteúdo textual (qual o objetivo (posição) do autor do texto?; alguma das palavras-chave te ajuda a perceber esse objetivo?; qual o tema abordado pelo autor?); e ii) indicar qual opinião eles construíam a respeito do texto (Você concorda com o que o personagem narrador pensa da instrução?; O que você acha da engenharia genética?; Inclua comentários seus a respeito do texto – textos 1, 2 e 3 respectivamente)98. O intuito foi observar a maneira como os leitores reforçam ou negociam sentidos a partir da relação entre a focalização de algumas informações textuais mais salientes – dadas nas atividades 1, 2 e 3 da construção de possibilidades de leitura e da escolha das palavras-chave – e a construção das opiniões dos alunos – dadas na atividade 4 da discussão do texto. Um apontamento importante a ser realizado aqui é que todas as atividades foram realizadas de forma oral em um primeiro momento e depois foi dado um determinado tempo aos alunos para que anotassem suas respostas. A intenção não foi realizar uma 98 Vide as perguntas da atividade 4 e de todas as demais atividades de cada texto no apêndice B deste trabalho. 146 coleta baseada nas informações orais que os alunos forneceram, mas sim nas informações escritas para que fosse possível analisar com maior critério as atividades realizadas por cada aluno. Isso porque muito da oralidade se perde durante a coleta dos dados, apesar das aulas terem sido gravadas99. Assim sendo, optou-se por manter, na coleta definitiva, todas as atividades escritas para que os alunos pudessem, de fato, expor o seu ponto de vista e as suas palavras-chave, mesmo que tenham sido oralmente discutidas com a turma. Após a aplicação das atividades de leitura, sentiu-se a necessidade de organizar a maneira pela qual se pretendia discutir os dados arrolados para que os questionamentos da pesquisa fossem devidamente respondidos. Sendo assim, fala-se agora sobre a organização da análise apresentada nesta tese. 3.5 OS PROCEDIMENTOS PARA A ANÁLISE DOS DADOS Com os dados em mãos, o primeiro ponto observado foi o de que havia um grande número de informações a serem utilizadas na análise o que demandaria muito espaço para ser discutido em apenas um capítulo. Optou-se, então, por dividir a análise em dois momentos diferentes – capítulos 4 e 5 – organizados conforme quadro a seguir para que respondessem às três questões de pesquisa: QUADRO 5 – Organização da discussão de dados Capítulo 4 Questão de pesquisa 1 Capítulo 5 2e3 Atividade analisada Leitura – a seleção da palavra chave (terceira atividade) Organização dos dados 1) Dimensões da competência comunicativa – gramatical, discursiva, sociointercultural 2) Texto Todas – Pré-leitura, 1) Leitor leitura e discussão 2) Texto Com base no quadro 5 acima, explica-se a seguir, com maiores detalhes, a maneira pela qual a discussão é realizada. 99 O motivo para a gravação das aulas não foi utilizar os dados orais, mas o de verificar, se necessário, alguma adequação ou algum apontamento que possa ser realizado durante a análise dos dados. Ou seja, os dados orais não serão utilizados efetivamente, mas se necessário poder-se-á contar com eles para suporte aos dados escritos. 147 3.5.1 – A análise do primeiro questionamento de pesquisa. O capítulo 4 foi reservado para discussão do primeiro questionamento: 1) Ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características diversas tais como linguísticas, sociointerculturais ou discursivas relacionadas à sua competência comunicativa e que o levam a (re)construir sentido(s) para o texto(s)? Para a análise, se estudou a atividade de escolha das palavras-chave. Esta foi a terceira atividade proposta aos alunos com a intenção de analisar a primeira questão de pesquisa. Procurou-se discutir nesta fase a maneira como as palavras escolhidas pelos alunos para interagir com o texto e suas respectivas justificativas demonstram a utilização de algum dos níveis da competência comunicativa: gramatical, discursiva e sociointercultural ou de todos eles em interação. Foram selecionados excertos das atividades dos alunos que pudessem demonstrar a maneira pela qual os aspectos gramaticais (ex. classe gramatical, a organização sintática, ou a semântica da palavra), discursivos (ex. o gênero do texto e sua organização, a relação tema-rema, a sequenciação textual), sociointerculturais (ex. aspectos culturais, ideológicos, sociais ou contextuais) e a interação entre eles, foram utilizados pelos alunos para focalizar ou canalizar os sentidos por eles construídos a partir da escolha da palavra-chave. No capítulo 4, organizou-se a discussão dos dados sob dois aspectos principais: a) em cada um dos textos selecionados foi analisada a maneira como as diferenças entre os textos (gênero, tema e conhecimentos subjacentes) influenciavam a forma como os leitores estavam utilizando sua competência comunicativa para produzir sentidos; b) em cada uma das duas turmas (A e B), para a análise de cada texto, foram incluídos excertos do material produzido pelos alunos de forma que conhecimentos de mundo de ambas as turmas pudessem ser observados na produção de sentidos. Neste caso, dados dos questionários socioculturais aplicados foram utilizados em comparação às interpretações apontadas pelos alunos. A discussão é feita com base na tabulação das palavras-chave com relação à utilização da competência comunicativa em suas diferentes dimensões – gramatical, 148 discursiva, sociointercultural100 - para estabelecer interação do leitor com o texto. Essa observação gerou uma subdivisão do capítulo, sendo feita, em primeiro lugar, a análise das dimensões separadamente e, num momento seguinte, a análise de todas as competências em interação. Outro fato importante que a análise toma como ponto de partida é a escolha de extratos de informantes que demonstrem essa relação. A escolha dos extratos foi realizada a partir de aspectos observados na maioria dos alunos como forma de exemplificação e não com o intuito de esgotar as possibilidades de interpretação de todos os leitores. Sendo assim, a escolha de determinados alunos para a análise justificase pelo fato de mostrar o que a maioria dos alunos faz em seus apontamentos sem tornar a discussão exaustiva. Por exemplo, se grande parte dos extratos dos alunos demonstra que há uma sequenciação textual ou uma influência do gênero textual na escolha das palavras-chave - o que demonstra a utilização da competência discursiva - seleciona-se então extratos de alunos, de ambas as turmas, que mostram esse aspecto e realiza-se uma discussão a respeito dele. Ainda, deve-se alertar para o fato de que se pode apresentar um número diferenciado de extratos analisados (p. ex., selecionam-se 4 extratos para a discussão de aspectos gramaticais e 12 para a discussão da competência discursiva). Isso acontece principalmente porque houve uma indicação maior para as competências discursiva e sociointercultural, o que demanda um maior número de extratos para a explicação da maneira como os leitores constroem a interpretação. Em suma, no cap. 4, a discussão é realizada observando-se, em cada texto e nas duas turmas, somente a atividade da palavra-chave e nela a construção dos sentidos a partir da utilização da competência comunicativa subdividida em suas dimensões: competência gramatical, competência discursiva, competência sociointercultural e a interação entre todas elas. 3.5.2 A análise do segundo e terceiro questionamentos de pesquisa. O capítulo 5 foi reservado para a discussão do segundo e terceiro questionamentos: 100 A competência estratégica (cap. 2.2.4) compreende estratégias utilizadas pelo leitor que se diluem nas demais competências para compensar conhecimentos não adquiridos e manter a comunicação verbal. Sendo que a palavra-chave é justamente uma estratégia de utilizar conhecimentos diversos para canalizar sentidos, supõe-se que toda vez que se fala em palavra-chave, fala-se também na utilização da competência estratégica. Volta-se a falar sobre isso de forma mais clara no início do cap. 4. 149 2) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais feitas pelo leitor durante o processo de interação da leitura organizando os conhecimentos do leitor na construção de sentidos? 3) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si mesmo? Para a análise, observaram-se as possibilidades de leitura construídas desde o início da interação com o texto, bem como suas confirmações ou reconstruções e a posterior negociação de sentidos pelos informantes. Nessa fase, examinou-se a maneira pela qual os estudantes indicaram suas interpretações na atividade de pré-leitura e como confirmaram ou reconstruíram suas interpretações a partir da seleção das palavras-chave (questionamento 2). Ainda nesse momento da pesquisa, analisou-se como os estudantes negociaram sentidos com o texto, posicionando-se com relação a ele e expondo algumas de suas opiniões (questionamento 3). A fim de organizar a discussão realizada neste capítulo, optou-se por selecionar excertos de alguns alunos e discuti-los a partir da observação de todas as atividades desse mesmo informante (desde a pré-leitura até a discussão do texto). Sendo assim, a discussão foi realizada verificando-se dois aspectos principais: a) os textos: a maneira como os leitores constroem as interpretações em cada um dos textos propostos para a pesquisa; b) os leitores: ao selecionar-se um leitor, analisam-se todas as atividades deste informante (p. ex., seleciona-se o aluno 2 da turma A e discutem-se as atividades produzidas por ele desde a pré-leitura até a discussão do texto. Da mesma forma, o leitor 4, 10 ou 20 da turma A ou B101). Para que a análise não se tornasse repetitiva, optou-se pela seleção de informantes que representassem observações feitas em grande parte dos excertos da turma, tais como o apontamento de algumas palavras em detrimento de outras ou a indicação, nos excertos, de aspectos sociais ou culturais similares. Também no cap. 5, não se pretendeu fazer uma análise que esgotasse as possibilidades de discussão dos 101 A numeração dos alunos foi separada primeiramente por turma, depois pelo número do texto (1, 2 ou 3), pelo número da atividade proposta e pelo número do aluno. Por exemplo, a numeração A.1.3.4 referese a uma atividade da turma A, texto 1, atividade 3, aluno 4. 150 dados, com a mesma intenção de evitar repetições desnecessárias, mas procurou-se demonstrar como grande parte dos estudantes relatou a construção de sentidos. Reiterase que se partiu da utilização dos apontamentos de alguns dos estudantes como exemplo das observações feitas. Para que fosse possível validar os exemplos, demonstrou-se, de forma quantitativa, em tabelas, os aspectos observados, tal como o apontamento da mesma palavra por vários alunos na atividade de pré-leitura. Assim sendo, o que vai se notar no cap. 5 é que a análise é organizada, metodologicamente, em duas frentes principais: i) a indicação das possibilidades de leitura no início da interação com o texto e a confirmação ou reconstrução dessas possibilidades durante todo o processo de leitura; e ii) a negociação ou criação de sentidos demonstrada pelos leitores. Em resumo, no cap. 5, discutem-se, por texto e por leitor, os dados de todas as atividades propostas, do início ao fim, com o intuito de analisar a confirmação ou reconstrução das possibilidades iniciais de leitura e a negociação de sentidos. Com a metodologia devidamente descrita e as escolhas justificadas, parte-se agora para a análise dos dados no intuito de responder aos questionamentos apresentados para esta tese. 151 4 O USO COMPREENSÃO DA PALAVRA-CHAVE TEXTUAL – COMO ESTRATÉGIA PARA A UTILIZAÇÃO DA COMPETENCIA COMUNICATIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS. Neste capítulo, discutem-se os dados a partir de um aspecto principal de análise: a maneira pela qual os informantes produzem sentidos, baseando-se na escolha das palavras-chave como estratégia de leitura. Em outros termos, o que se pretende neste capítulo é responder a primeira questão de pesquisa: ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características diversas tais como gramaticais, sociointerculturais ou discursivas relacionadas à sua competência comunicativa e que o levam a (re)construir sentido(s) para o texto(s)? Com o intuito de organizar as informações encontradas neste capítulo, duas frentes principais são consideradas, conforme apresentado no cap. 03: a) Discutir o desenvolvimento da competência comunicativa em suas diferentes dimensões, a partir da observação das justificativas dos alunos para a escolha das palavras-chave para as turmas A e B. Para tanto, utiliza-se tabelas além das informações indicadas pelos próprios alunos; b) Analisar, em cada texto, a maneira pela qual os estudantes revelam fatores gramaticais, discursivos, sociointerculturais, isoladamente e em interação, durante a sua interpretação na escolha estratégica da palavra-chave e na construção de sentidos. Assim, seleciona-se também, em cada texto, extratos da atividade de escolha das palavras-chave pelos alunos, os quais foram considerados relevantes para demonstrar tais questões. Admite-se, contudo, que não se tem a intenção de fazer uma análise exaustiva de todos os aspectos da competência comunicativa em todas as justificativas. O que se pretende é destacar pontos para o debate sobre a importância da competência comunicativa na construção de sentidos textuais. 4.1 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO TEXTUAL Conforme discutido nos capítulos 1 e 2 do presente trabalho de tese, pressupõese que o processo de leitura aconteça a partir da interação leitor-autor via texto. Isto quer dizer que as palavras escritas em um texto interagem com os conhecimentos 152 individuais e sociais do leitor e, a partir disso, promovem um diálogo que o capacita a produzir sentidos. Parte-se ainda do pressuposto de que o usuário desenvolve a habilidade de usar a língua em contextos adequados para produzir comunicação, o que vem a ser a já referida competência comunicativa HORNBERGER, 1995; LLOBERA, 1995 (HYMES, 102 1995; SAVIGNON, 1997; ). Se leitura é um processo de interação - ou de utilização da competência comunicativa - que se passa entre leitor e autor, de que modo tal competência é usada para produzir os sentidos textuais? De fato, o primeiro e principal questionamento colocado nessa tese tem o intuito de pesquisar de que maneira a competência comunicativa auxilia o leitor a canalizar seus conhecimentos para construir sentido(s) para o texto103. Assim, vai-se analisar, em cada um dos três textos, as justificativas dadas pelos alunos para a escolha de suas palavras-chave e a maneira como esses argumentos revelam o uso dos níveis da competência comunicativa – gramatical, discursivo, ou sociointercultural –, notando também o diálogo existente entre todos esses níveis e demonstrando como tal competência auxilia na interpretação. É importante ressaltar que se parte do pressuposto de que a utilização de uma palavra-chave é uma das formas de se utilizar a competência estratégica para interagir com o texto e estabelecer sentido. Isso porque, conforme explicitado no cap. 1, a escolha de palavras temáticas ou de marcações linguísticas (KLEIMAN, 2002) é uma forma de ativar conhecimentos diversos, sejam eles linguísticos ou extralinguísticos, pertencentes ao conhecimento prévio do leitor, que dialogam com o texto e levam à produção de macroestruturas significativas (DIJK, 2002). Sendo assim, assume-se que, ao escolher as palavras-chave104, a competência estratégica já é utilizada na movimentação dos conhecimentos prévios do leitor, sendo considerada como ponte de interação para todas as demais competências105. Então, fala-se em competência estratégica toda vez que se utiliza uma palavra-chave para interagir com o texto e para movimentar conhecimentos do leitor e, portanto, não se utiliza um espaço específico neste texto para discorrer sobre essa competência, pois ela é considerada durante toda a análise a partir da observação das palavras-chave. 102 Cf. cap. 2. Cf. cap. 3. 104 Cf. cap.2.3. 105 Cf. cap. 2.2.4 – competência estratégica. 103 153 Outro destaque importante é que o léxico106 (ANTUNES, 2012), escolhido pelo estudante, ganha efeitos de sentido a partir das relações que estabelece no texto e fora dele, na realidade do estudante. Isso porque “as palavras tem a cor, o cheiro, o gosto da terra em que circulam, da casa em que habitam” (ANTUNES, 2012, p. 47). O léxico assim está completamente vinculado às experiências linguísticas, discursivas, sociais e culturais do usuário da língua e faz com que o repertório de escolhas constitua pistas do pertencimento dos usuários a certos grupos. Isso acontece na interação que os leitores estabelecem com os três textos a partir da escolha da palavra-chave: há uma relação importante e básica entre a forma como a palavra é usada, as relações discursivas expostas no texto e o pertencimento social e cultural dos usuários a uma comunidade. Para iniciar a discussão, vale notar que as justificativas utilizadas pelos alunos para a escolha das palavras revelam que algumas das competências foram usadas de forma mais contundente que outras. A tabela 1 abaixo demonstra a classificação das indicações sobre a utilização das palavras-chave nas dimensões da competência comunicativa. Os números contabilizados e tabulados são referentes às indicações realizadas para cada competência nos extratos dos alunos para a atividade 3, o que significa que em um excerto pode haver mais de uma competência sendo observada, conforme se discute na sequência deste trabalho. Veja-se a tabela: TABELA 1 – A utilização das competências na escolha das palavras-chave Competência Texto 01 Texto 02 Texto 03 Total Total de indicações Gramatical Turma A Turma B 2 1 0 0 0 1 2 1 04 Discursiva Turma A Turma B 17 28 25 21 17 22 59 71 130 Sociointercultural Turma A Turma B 21 17 23 21 28 24 72 62 134 A partir da tabela 1, verifica-se que, em especial, duas competências se destacam e se sobrepõem na interação dos alunos com o texto para produzir sentido: a) discursiva : foram 130 ocorrências no total entre as turmas A e B contendo um grande número de justificativas (75 indicações o que significa mais de 106 Considera-se a palavra-chave como uma escolha lexical, ou como uma seleção do léxico do estudante para interagir com o texto (vide cap. 2.3). Sendo assim, quando se fala em palavra-chave, fala-se também em léxico. Antunes (2012) destaca justamente a importância do léxico na construção de sentidos da língua. 154 57% do total) em que há uma interação com a competência sociointercultural. Embora se explique mais sobre as ocorrências da competência discursiva na próxima seção deste trabalho, alguns exemplos dessas ocorrências são colocados aqui. No primeiro deles, logo abaixo, notase a preocupação do aluno em concentrar a mensagem do texto nas palavraschave107, ou seja, construir uma macroestrutura (DIJK, 2002) que dê sentido informativo ao texto: B.2.3.18 transgênicos108, clonagem, infertilidade, célula-tronco, curar. Eu escolho estas palavras como palavras-chave porque, a meu ver, elas resumem a mensagem do texto.109 No segundo, verifica-se que o estudante, aluno 23 da turma A, escolhe as palavras-chave como forma de demonstrar os personagens e a sequência narrativa da crônica: A.1.3.23 instrução: um guia, um caminho, um conhecimento. Senhor: sabe que há alguém mais velho. Jovem: saber que há alguém mais novo. Ensinamento alguém vai ensinar algo a outro, o senhor, ou o rapaz. Estudo: sabendo que a um diálogo, senhor, e jovem e um ensinamento sabe-se tem por fim o estudo, a educação de um deles. Como se pode ver nos exemplos acima, o que se observa nas ocorrências da competência discursiva são fatores tais como a sequenciação do texto, a construção de coerência e coesão, a remissão, a relação tema-rema ou dadonovo, a relação entre o gênero textual e a interpretação dada, os quais são demonstrados e discutidos na seção 4.1.2 deste trabalho. b) sociointercultural: Foram 134 ocorrências no total. Assim como na competência discursiva, viu-se, em muitas das ocorrências, uma interação mais clara entre a competência discursiva e a sociointercultural, o que 107 Tabelas das palavras-chaves escolhidas e a classificação para sua escolha de acordo com as justificativas dos alunos são mostradas na sequência deste trabalho. Pode-se encontrar a lista completa das palavras-chave indicadas pelos alunos no anexo C. 108 O destaque em itálico nas justificativas dos alunos é utilizado para demonstrar as palavras-chave selecionadas pelos informantes. No caso do sublinhado, quando aparecer, é aplicado aqui para destacar alguns trechos das justificativas feitas pelos alunos. Para realizar explicações das palavras utilizadas pelos alunos nos excertos durante a discussão, utiliza-se aspas simples. 109 A indicação da numeração é referente a: 1) turma a que o aluno pertence (neste caso turma A), 2) texto interpretado (texto 01), 3) número do exercício proposto na atividade (exercício 03), 4) numeração do aluno analisado (aluno 2). Todas as justificativas serão assim numeradas daqui em diante. 155 aconteceu em 75 indicações, ou seja, cerca de 55% dos casos. Pode-se observar a partir de algumas das ocorrências da competência sociointercultural, expostas abaixo, a maneira como fatores sociais, ideológicos ou culturais dialogam na produção de sentidos. No primeiro exemplo, da turma A, nota-se a maneira como o aluno destaca o preconceito causado por fatores sociais entre pobre e rico, construindo para o texto uma interpretação ligada a uma posição superior do rico em relação ao pobre. A.1.3.7 pobre, rico, diversão, exames, conhecimento. Eu escolhi essas palavras pelo fato que existe um vasto preconceito entre o pobre e o rico, em que o rico defende que tem mais estudo que faz mais exames e que possuem muito conhecimento e julga que o pobre não tem nada disso e “nunca” vai se dar bem na vida. No segundo exemplo, da turma B, abaixo, o estudante 14 destaca, na sua interpretação, fatores de crença, ao relacionar a palavra-chave ‘fertilidade’ à palavra ‘vida’, dando a ela características de beleza - ‘acho ela muito bonita’. Ainda nesse exemplo, ele escolhe a palavra-chave ‘rejeitados’, e a liga a fatores culturais e sociais justificando-a por causar ‘dor’ em seres humanos: B.2.3.14 possibilidades: eu escolhi essa palavra porque acho que a vida é feita de possibilidades, tudo pode acontecer. Fertilidade: escolhi essa palavra, primeiro porque acho ela muito bonita e que na minha opinião significa vida. Embriões: na minha opinião esperamos já são vidas são seres indefesos que são destruídos. Tudo pela “ciência”. Humanidade: eu escolhi essa palavra porque somos nós, eu, vc, todos, vida. Rejeitados: essa palavra me dá arrepios, porque a pior dor para um ser humano é a rejeição. No terceiro exemplo, o leitor utiliza um conhecimento de mundo cultural – a existência de casas de prostituição – a um fator exposto no texto – ‘casas que espiam os homens’: B.3.3.10 as casas que espiam os homens, significa casa noturna onde mulheres vão se prostituir. 156 Assim, nas justificativas da competência sociointercultural, analisou-se a influência de fatores tais como contexto, cultura(s), ideologia e crenças no estabelecimento de sentido textual. É importante destacar que o fato de que muitas das justificativas apresentam uma relação entre as competências – discursiva e sociointercultural - revela que a competência comunicativa é utilizada como um todo e que as estratégias são, de fato, utilizadas como uma forma de canalizar todos os conhecimentos do leitor na interação com o texto. No entanto, conforme discutido no cap. 03, referente à metodologia, procura-se dividir as competências em partes como instrumento metodológico de análise de dados e de construção do texto desta tese. Ainda, de acordo com a tabela 01 exposta acima, observa-se que a competência gramatical foi utilizada com menor evidência do que as outras, o que não significa que fatos linguísticos, como os sintáticos e semânticos, não tenham sido utilizados. Com efeito, tais aspectos estão sempre atrelados ao uso da língua e, se não fossem utilizados, a língua não poderia se constituir enquanto tal. Na verdade, o que acontece na questão da leitura é que a escolha de algumas palavras funciona como uma pista que auxilia o leitor a concentrar sua atenção em algumas informações linguísticas e a interagir melhor com o texto a partir da relação que estabelece com uma série de conhecimentos (PEREIRA, 2003; KOCH; TRAVAGLIA, 2011). Pode-se dizer assim que o leitor se baseia em fatos linguísticos, seja na semântica da palavra ou na sua função sintática, como um ponto de início da interação, mas não se detém a isso. Ele estabelece relações com outros conhecimentos, os quais ficam mais evidentes nas justificativas. A análise dos extratos dos alunos, nos quais eles indicam as palavras-chave, demonstrou que as competências discursiva e sociointercultural são as que apresentaram incidência maior, como mostra o gráfico 4, na página seguinte. Nota-se, pelo gráfico, que as competências discursiva e sociointercultural apresentam um equilíbrio em seu uso, revelando que os leitores dispõem de vários de seus conhecimentos para a construção de sentidos. O equilíbrio entre as competências discursiva e sociointercultural nos textos 01 e 02 demonstra que os leitores se ancoram tanto em pontos discursivos para basear a construção da sua interpretação, quanto em aspectos sociais ou culturais. Observa-se também que a competência sociointercultural é mais utilizada no texto 3, o qual por ser um poema, demanda maiores inferências e ancoragem em aspectos do conhecimento de mundo para produzir interpretação. 157 GRÁFICO 4 - As dimensões da competência comunicativa nos extratos da escolha das palavras-chave No entanto, reitera-se que, a título de organização da análise, opta-se aqui por analisar aspectos característicos de cada uma das competências - gramatical, discursiva e sociointercultural (cap. 4.1.1 a 4.1.3) – e, em um segundo momento, falar mais sobre as competências em interação (cap. 4.1.4). No entanto, embora a discussão apresentada seja subdividida pelas competências expostas, admite-se que a competência comunicativa é uma construção desenvolvida pelo usuário que interage com o texto de uma forma completa, o que de fato se observa no gráfico 4 acima. O que se pretende destacar aqui é que, em alguns momentos, algumas dessas habilidades são usadas de forma mais explícita pelos leitores conforme se pode ver na análise a seguir. Não se supõe que, ao analisar características de uma das competências, as demais dimensões de uso da língua sejam descartadas pelo leitor. Ao contrário, elas são utilizadas para construir sentido, mas serão analisadas em dois momentos distintos: ao se focalizar aspectos típicos de uma das competências, e ao se apresentar um diálogo mais nítido entre todas elas. 4.1.1 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência gramatical. Viu-se no capitulo 2.2.1 que a competência gramatical é a habilidade do usuário de utilizar o código linguístico e suas características formais e informais tais como o vocabulário, a formação das palavras e frases, além da semântica, para apreender o 158 sentido das expressões. Ou seja, a competência gramatical centra-se na compreensão de como os elementos da língua combinam-se sistematicamente. Nas indicações dos alunos, tal competência aparece como uma maneira dos leitores demonstrarem de que modo partem da organização interna da língua para estabelecer laços com outros conhecimentos que os auxiliam a determinar sentido para o texto, tais como os conhecimentos textuais e de mundo110 (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2010; KATO, 1999), que podem acabar por ficar mais aparentes nas justificativas dos alunos conforme se apresenta na sequência do trabalho. Veja-se a tabela 2 para a ocorrência da competência gramatical: TABELA 2 – A incidência da competência gramatical nas justificativas dos alunos Texto 01 Texto 02 Texto 03 Total Total de indicações Competência gramatical Turma A Turma B 2 1 0 0 0 1 2 2 04 Notou-se um total de 04 ocorrências da competência gramatical nos excertos dos alunos, mas nessas indicações outras competências também aparecem como parte das justificativas dos leitores. Em outros termos, nos 04 extratos analisados, há uma indicação nítida para a ativação da competência gramatical e observou-se, nas justificativas, que os alunos procuram focalizar alguma questão gramatical ligada a fatores textuais ou sociointerculturais, conforme se pode verificar nos excertos analisados na sequência. Isso deixa ainda mais claro o fato de que há uma multiplicidade de funções que se refletem na organização interna da língua (HALLIDAY, 1985), isto é, a classe gramatical ou a semântica podem refletir diferentes funções da língua, entre elas fatores relacionados à cultura, à ideologia, ou à sequência textual. As expressões linguísticas são utilizadas como mediadoras da interpretação dos usuários, caracterizando estruturas linguísticas que canalizam a comunicação. Essa comunicação, reitera-se, fica mais aparente na utilização das outras competências o que 110 Cf. cap. 1. 159 não significa que a competência gramatical tenha sido utilizada em escala tão pequena assim. De fato, notou-se que um dos pontos linguísticos destacados em quase todas as escolhas - classificadas em todas as competências - é a seleção de palavras de conteúdo tais como substantivos, verbos ou adjetivos, para demonstrar que ali há, para o leitor, um conteúdo semântico mais nítido na construção de sentidos. Em alguns momentos, os estudantes deixam clara essa relação entre classe gramatical e conteúdo semântico, como no exemplo abaixo: A.1.3.21 trocado: substantivo que dá o ponta pé inicial da narrativa; lição: as falas do personagem principal são todas sobre o determinado ensinamento. Estudo: pois é o tema de critica no texto. teorema de Pitágoras: ironia principal do texto. conhecimento: é o debate principal da narrativa. O estudante justifica a escolha da palavra ‘trocado’ justamente pela relação existente entre o conteúdo semântico, a classe gramatical – substantivo - e sua posição na narrativa como um todo. É necessário dizer aqui que tanto a produção do enunciado pelo autor, quanto a interpretação do leitor possuem em comum a expressão linguística (HALLIDAY, 1985), base do conhecimento gramatical dos falantes para que sentidos sejam (re)construídos e a comunicação da informação aconteça. Nesse caso, o leitor destaca uma relação existente entre fatores gramaticais e textuais, os quais são esclarecidos por ele na justificativa que relaciona o substantivo como foco e a sua posição principal na narrativa. Em outro exemplo, observa-se também a relação existente entre a função gramatical da palavra no interior do texto e sua função no texto como um todo. Veja-se o exemplo: A.1.3.5 teorema de Pitágoras uma das bases fundamentais do texto. esfarrapado – é a palavra em que o texto caracteriza o menino. Lição preciosa: um dos fatos principais em que ocorre no texto. dinheiro: um dos bens que o homem tem como exemplo de conquista com seu “estudo”. Pobre: palavra em que no texto mostra o preconceito de um personagem ao outro. O leitor, nesse caso, expõe uma das funções gerais da classe gramatical dos adjetivos – caracterizar um substantivo (no caso do texto ‘o menino’), identificando o 160 personagem a partir do significado da palavra – e colocando-o em uma função de classe social inferior. Note-se que a função do adjetivo, como classe gramatical, mistura-se com a sua função textual de dividir os personagens em classes sociais. Essa mistura fica evidente quando o aluno afirma que ‘esfarrapado é a palavra em que o texto caracteriza o menino’. Isto é, para o leitor, o texto tem um papel importante porque tem o poder de ‘caracterizar o menino’. É a percepção do próprio texto e das relações que nele se estabelecem que leva o leitor a construir características para o menino, e, por extensão, para o texto, a partir da seleção do adjetivo ‘esfarrapado’. O estudante admite e indica que essa caracterização é, além de gramatical, discursiva. Na ocorrência acima, a maioria das palavras escolhidas são substantivos, além de alguns adjetivos (ambos de classe aberta), o que, como se discutiu, auxilia o leitor na canalização de conteúdo semântico principal do texto. No entanto, deve-se observar que, mesmo na escolha de palavras de classe fechada, tais como ‘não’, e o advérbio indefinido, ‘talvez’, o leitor procura estabelecer uma ligação entre o seu conhecimento de mundo (sociointercultural) e a sua competência gramatical. Ele parte daquilo que é próprio da língua e do sistema linguístico – a negação ou a indefinição do ‘talvez’ - para estabelecer relações que façam sentido para o texto que está lendo. O excerto abaixo demonstra o caso da escolha do ‘não’: B.1.3.22 esfarrapado pois se trata de um menino esfarrapado pedindo dinheiro; jovem pois era um jovem normal que recebe um pedido de dinheiro; estudo: pois o jovem tem estudo; teorema de Pitágoras: pois o jovem faz essa pergunta para o menino. Não: pois não sabe o que se trata o teorema de Pitágoras. A escolha do ‘não’, como palavra-chave para o texto 01, aqui está voltada para a crítica principal do texto estabelecendo coerência. O leitor observa que o personagem pergunta-se qual seria o teorema e, baseando-se nisso, infere que ele não o conhece. Veja-se que a negação - valor semântico inerente e básico à palavra ‘não’ - está voltada para uma questão textual exposta a partir da narrativa. Em outros termos, a semântica da palavra ‘não’ mistura-se com a sua função de estabelecer a coerência como um princípio da textualidade111 (BEAUGRANDE;DRESSLER, 1981): se o personagem 111 Cf. cap. 1.2. 161 pergunta o que é o teorema, então, ele não sabe o que é ou do que trata tal fórmula matemática. Note-se, também na justificativa acima, que a utilização do adjetivo ‘esfarrapado’ indica a observação feita pelo leitor com relação ao personagem do texto, explicitando a ligação existente entre substantivo e adjetivo, para a qualificação do personagem, colocando-o na classe social de pobreza, assim como no exemplo anterior. Na utilização do ‘talvez’, a dúvida presente na semântica do advérbio também é demonstrada na justificativa do leitor: B.3.3.14 quando nasci: deve ser quando ele se descobriu. Talvez: tudo pode acontecer. Coração: ele quis passar sentimento. Deus: ele deve ser religioso. Mundo vasto deve ser mundo vazio, mundo triste. Pela escolha da palavra ‘talvez’, para o texto 03, o leitor indica as possibilidades de vida apontadas para o personagem principal, ou seja, ‘tudo pode acontecer’ na vida dele. A semântica do advérbio – expor uma incerteza, possibilidade ou dúvida – é ligada ao conhecimento de mundo do leitor para dar ao texto um sentido de possibilidades, caminhos a serem seguidos na vida do personagem. É importante considerar, também nesse exemplo, que o leitor procura estabelecer para a expressão ‘mundo vasto’ uma semântica própria no interior do texto. Na justificativa para a sua escolha, o leitor a conceitua e impõe a ela um sentido textual de sentimento de tristeza. Veja-se que essa é uma construção do leitor a partir do texto, o que só é possível pelas relações locais e discursivas ali estabelecidas. Isso acontece porque a utilização do léxico não ocorre independente de sentidos textuais e culturais dados a ele (CASTILHO, 2010), e há uma ligação próxima entre o seu significado e os sentidos que se constroem a partir dele (ANTUNES, 2012)112. Destaca-se, ainda, que, mesmo que a competência gramatical não tenha sido utilizada na justificativa dos alunos para as demais ocorrências, ela está sendo de alguma forma explicitada quando o aluno, por exemplo: - seleciona a relação verbo-objeto; - seleciona a relação substantivo-adjetivo; - reconceitua a palavra no interior do texto, ou seja, fornece a ela traços semânticos de acordo com o contexto. 112 Cf. cap. 2.3. 162 Tais relações estão constantemente presentes nas justificativas para as demais competências, conforme se poderá observar na sequência deste trabalho. 4.1.2 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência discursiva. De acordo com o cap. 2 desta pesquisa, a competência discursiva compreende o nível da competência comunicativa responsável pela maneira como o usuário da língua estabelece relações intra e intertextos, e ainda como tais textos são organizados socialmente em gêneros. Assim, é a partir da competência discursiva que o usuário organiza a estrutura temática de um texto, indicando a forma como o entrelaçamento constante de tópicos possibilita a construção textual de coesão e coerência. Para iniciar a discussão sobre as justificativas que se encaixam na utilização dessa competência, recorta-se a tabela 1, dada anteriormente, e mostram-se somente os dados considerados para a competência discursiva na tabela 3 abaixo: TABELA 3 – A incidência da competência discursiva nas justificativas dos alunos Texto 01 Texto 02 Texto 03 Total Total de indicações Competência discursiva Turma A Turma B 17 13% 28 21% 25 19% 21 16% 17 13% 22 17% 59 45% 71 54% 130 Um fator interessante é que, comparando-se as turmas A e B, a competência discursiva apresenta-se percentualmente mais usada na turma B (54% do total de indicações), a qual se mostra como uma turma que possui uma interação menor com a leitura de acordo com os questionários socioculturais113. Utilizar questões discursivas e de gênero como âncora para o estabelecimento de sentido funciona como uma possibilidade de fornecer um maior conforto aos leitores menos assíduos na interação com o texto. Isso acontece porque o conhecimento das realidades textuais é armazenado também em esquemas mentais (DIJK, 2002; KOCH, 2009) e auxilia a sequenciar uma narrativa mais nítida para o texto. Talvez seja esse o motivo pelo qual a maior parte das justificativas procura explicitar a sequência textual (nos três textos apresentados) por 113 Cf. cap. 3. 163 meio da escolha das palavras-chave, conforme se apresenta nos excertos mostrados na discussão subsequente. Outro número interessante é que do total de 130 indicações (somando-se os resultados das turmas A e B) para a competência discursiva, 75 (média de 57% do total de ocorrências) apresentam uma interação mais nítida com a competência sociointercultural. Ou seja, em muitas das ocorrências há uma relação constante e contínua entre fatores discursivos e sociointerculturais para a construção de sentido. Tais justificativas serão analisadas mais adiante. Nesta seção, fala-se de aspectos pertencentes à competência discursiva nas justificativas de alunos selecionadas para esta discussão. Sendo assim, o que se pretende analisar agora é a maneira como fatores discursivos tais como sequência textual, focalização do tema(s) principal, construção de coesão e coerência textual ou o apoio a características do gênero (p. ex. a crítica no caso do texto 01 ou a argumentação no texto 02), são utilizados nas justificativas dos estudantes para indicar a forma com que lidam textualmente com a produção de sentidos. A tabela 4, na página seguinte, demonstra todas as palavras escolhidas como chave para o texto 01, o número de alunos que as indicaram em cada turma e, em cores, a classificação observada nas justificativas. Deve-se ressaltar o fato de que ainda pode haver outras classificações para as palavras. No entanto, as indicadas acima com cores foram as que se destacaram. Note-se desde já que as questões de organização textual, tais como a divisão e caracterização dos personagens (em azul) e a sequência textual da narrativa (em verde), se destacam na escolha das palavras. Outro fator importante é que a caracterização do assunto principal – ‘educação’ ou ‘estudo’ – e o estabelecimento da crítica do texto como reflexo do gênero estão em equilíbrio na indicação dos alunos (um com 8 palavras indicadas em vermelho e outro com 7 indicadas em amarelo respectivamente), o que reforça e apoia a ativação da competência discursiva na construção do sentido global para o texto. 164 TABELA 4 – Levantamento das palavras-chave – Texto 01 Palavra-chave Estudo/ estudar Teorema de Pitágoras Pobre Ensinamento/ ensinar Rico Dinheiro/trocado Lição/lição preciosa Conhecimento Esfarrapado Aprender Instrução Cinco/ cinco anos Garoto/ menino Senhor Saber Indigente Diferença (de classe) Destino Estatísticas Jovem Oportunidade Ofendido Assombrado Transmitir Hipotenusa Livro(s) Divertir/diversão Moro bem Sofrendo Bem vestido Pessoas Sua gente Não Turma A 22 16 15 12 13 10 11 11 4 6 5 5 1 2 5 4 3 2 2 2 2 3 1 1 1 1 2 1 1 0 0 1 0 Turma B 21 18 16 12 9 5 4 3 7 3 3 2 6 4 0 1 2 3 3 2 2 1 2 2 2 2 0 1 1 2 2 0 1 Total 43 34 31 24 22 15 15 14 11 9 8 7 7 6 5 5 5 5 5 4 4 4 3 3 3 3 2 2 2 2 2 1 1 Legenda: Palavras que caracterizam o assunto principal – 8 palavras Palavras que caracterizam a divisão dos personagens/temas – 12 palavras Palavras que marcam sequências textuais – 12 palavras Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a crítica do texto – 7 palavras Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao estabelecimento de coerência – texto 1: diferença de classes, superioridade, menosprezo114 - 12 palavras 114 Os fatores relacionados a essas indicações são analisados na seção 4.1.3 – competência sociointercultural 165 No texto 01, tanto para a turma A quanto para a turma B, nota-se que a sequência narrativa colocada na crônica evidencia-se na escolha das palavras-chave como forma de demonstrar a oposição de classe social que se dá entre os personagens no texto, bem como a estrutura temática. Num todo de 26 indicações (08 para a turma A e 18 para a turma B) nas quais se observou mais fortemente a utilização da competência discursiva, todas indicaram de alguma forma a focalização do tema principal do texto a educação (indicados com seta azul) - ou a sequência da narração (demonstrados com seta verde). Deve-se lembrar que a classificação em cores acima demonstra cada palavra em particular e não o extrato como um todo. Como cada leitor indica um total de 5 palavras, em alguns extratos a indicação para a competência discursiva foi maior e em outros foi a sociointercultural, o que levou à classificação do extrato como um todo conforme exposto nas tabelas 1 e 3 já indicadas acima sobre a incidência das competências. O exemplo do estudante abaixo ilustra a maneira como ele utiliza a competência discursiva na produção de sentidos: A.1.3.2 – lição, pobre, rico, estudo, teorema. Pobre e rico: lembram os personagens. O senhor e o menino esfarrapado e suas diferenças de classe social. Lição o ensinamento que o senhor deu ao menino. Estudo conselho que o menino recebeu pois o senhor disse que a diferença entre eles era o tempo de estudo. Teorema de Pitágoras utilizado pelo senhor para enfatizar o conselho dado ao menino pobre. A partir da justificativa exposta, pode-se verificar que o aluno procura, em primeiro lugar, mostrar a divisão dos personagens na narrativa - pobre e rico - e adequálos à classe social que fica marcante no texto. Ainda, o estudante procura demonstrar, na escolha das palavras-chave, a maneira como os temas do texto vão se amarrando em torno da lição, do ensinamento, do conselho dado para construir uma sequência narrativa e estabelecer coerência para o texto: lição - momento inicial do texto em que o senhor procura travar um diálogo com o menino e ‘dar’ um ensinamento; estudo momento do texto em que a questão principal centra-se no personagem mais pobre que ‘recebe’ o ensinamento, e os personagens são divididos em duas classes diferentes; e teorema de Pitágoras - momento do texto em que há a crítica realizada a partir do ensinamento dado. Observe-se na tabela 4, acima, que todas essas palavras foram 166 indicadas por um grande número de alunos e, na maioria das justificativas, verificou-se a focalização da sequência da narração (indicadas com a seta verde). Neste extrato também há uma ligação constante entre tema-rema115 (HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997): o elemento que identifica de que se fala na sentença ou no texto é evidenciado: ‘conselho’, ‘ensinamento’, ‘lição’. Veja-se que essas três palavras são caracterizadas pelo leitor como relacionadas ao mesmo elemento dado no texto. Na sequência, o leitor evidencia o que é dito sobre o tema: ‘a diferença entre eles era o tempo de estudo’. Ao dar destaque a essa relação tema-rema, o leitor demonstra a maneira como os personagens se posicionam em classes sociais e a forma como a narrativa se constrói. Ainda um detalhe importante: a questão da identificação do gênero evidencia-se quando os leitores procuram estabelecer uma crítica no texto expondo a diferença de classes entre os personagens (indicados com setas amarelas na tabela 4). O leitor acima destaca justamente ‘o senhor e o menino esfarrapado e suas diferenças de classe social’. Note-se que é nesse ponto em que o autor constrói a crítica social, característica da crônica, de que nem sempre altos níveis de escolarização se equiparam a um maior conhecimento ou a uma alta posição na sociedade de classes. Os alunos estão conscientes de que o gênero auxilia na identificação do texto e indicam, em algumas palavras, a construção da crítica. Outro aspecto frequente nas justificativas dos alunos foi focalizar o assunto principal, o que é uma das funções das palavras-chave, conforme indicado na tabela 4 acima (palavras com seta vermelha). Na justificativa abaixo, embora o aluno não fundamente todas as suas escolhas, a sua intenção é demarcar o ‘assunto principal’, ou seja, a forma como a escolha das palavras-chave o auxilia na construção de um texto dotado de sentido, ou como um texto coerente: A.1.3.17 estudo, pobre, rico, lição, destino. Todas essas palavras fazem parte do texto e todas elas tem um significado diferente. Mas todas são englobadas no mesmo assunto. O aluno demonstra claramente que há uma diferença semântica entre as palavras, e que soltas, talvez não façam sentido. No entanto, ele explica que quando ‘são englobadas’, constroem sentido textual e o auxiliam a estabelecer uma coerência, pois 115 Cf. cap. 2.2.3 167 estão relacionadas dentro do ‘mesmo assunto’. Isso demarca o princípio de textualidade da cooperação (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981116), em que o leitor decide estabelecer para o texto sentido a partir da recuperação da coerência. No exemplo acima, ainda, pode-se verificar que a marcação dos dois personagens fica nítida na escolha de ‘pobre’ e ‘rico’, e que a questão do tema principal também fica evidente na escolha de ‘estudo’ e ‘lição’, assim como na justificativa anterior, do aluno 2 da turma A. Na proposta de Halliday (1985) o tema é altamente carregado de comunicação textual, sendo reconhecido como elemento da mensagem em si. É ele que carrega o sentido principal das sentenças, as quais vão se encadeando para construir unidade textual. É o que acontece, por exemplo, na justificativa abaixo: B.1.3.4 transmitir, ensinamento, estatísticas, estudo, assombrado. Transmitir ensinamento: de passar uma mensagem. Estatísticas, assombrado: comparando pobre com o rico; estudo: pobre estuda menos que o rico. O elemento do tema principal focalizado pelo leitor fica marcado na escolha de ‘transmitir ensinamento’, em que tal expressão é ligada à ‘mensagem’ do personagem rico em direção ao personagem pobre. A ligação entre o elemento escolhido e a mensagem do texto é, de fato, estabelecida pela narrativa, num contexto do discurso construído. A escolha de verbo e objeto como palavras-chave revela que as questões sintáticas (competência gramatical, conforme discutido na seção anterior) não são descartadas no momento de interpretar um texto. Ao contrário, são elas que auxiliam a organizar a mensagem (HALLIDAY, 1985). Note-se também aqui que, embora o estudante tenha escolhido palavras que não revelam nitidamente os personagens em si - ‘estatísticas’ e ‘assombrado’ -, a sua intenção é justamente de demarcar a comparação existente entre pobre e rico. Ainda, ele argumenta na escolha de ‘estudo’ o seu enfoque em uma das relações dado-novo117 (HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997, KOCH, 2009) presente no texto – pobre estuda menos e rico estuda mais. Veja-se mais um exemplo: 116 117 Cf. cap. 2.2.3 Cf. cap. 2.2.3 168 B.1.3.12 instrução, pobreza, trocado, estudo, Pitágoras. Selecionei essas cinco pois com elas conseguiria remontar em minha cabeça o desenrolar do texto citando estudo e como exemplo o Pitágoras. No exemplo acima o estudante expõe nitidamente a sua intenção com a escolha das palavras-chave: ‘remontar [...] o desenrolar do texto’. Isso quer dizer que a escolha das palavras ativa de forma contundente as questões discursivas do gênero narrativo, já armazenadas pelo leitor, o que o auxilia na reconstrução da sequência do texto (indicados com setas verdes na tabela 4). Outro detalhe importante, nesse exemplo, é que o estudante destaca o tema principal, ‘estudo’, e liga a ele o fator utilizado para construir a crítica principal do texto ‘teorema de Pitágoras’. Halliday (1985) afirma justamente que “a organização temática das orações (e complexos de orações quando relevantes) expressam e também revelam o método de desenvolvimento do texto” (HALLIDAY, 1985, p. 67). De certa forma, o estudante procura escolher as palavras-chave, nessa justificativa, como forma estratégica de apresentar o tema principal e as ramificações que se seguem a ele para ‘remontar’ o texto. No texto 2, a exposição da sequência textual na escolha da palavra-chave fica ainda mais nítida por se tratar de um texto argumentativo em que três tópicos principais são discutidos como ramificações da engenharia genética: transgênicos, clonagem e células-tronco. Há um total de 44 indicações em que surgem aspectos relacionados à competência discursiva, sendo 25 para a turma A e 19 para a turma B. Dessas, 32 demonstram uma interação com a competência sociointercultural e serão analisadas na seção 4.1.4 deste trabalho. Dos 12 extratos em que a competência discursiva se destaca, a maioria inclui os três tópicos como palavra-chave (9 indicações ao todo). A tabela a seguir demonstra todas as palavras escolhidas pelos estudantes e as classificações, em cores para a sua escolha: 169 TABELA 5 – Levantamento das palavras-chave – Texto 02 Palavra-chave Células (tronco) Clonagem Transgênicos (Engenharia) genética Embrião Fertilização Ética manipulação Natureza Humano Consequencia Vida Dilema Sociedade Impacto Cura Descobertas (Engenhar) vegetais Experimento Fome Doenças Estudo Problema Turbilhão Genes Cadeia alimentar Adotar Possibilidade Ecologia Reino (vegetal/animal) Posição Profissionais Arrastados Realidade Frágil Maravilhas Perigos Turma A 22 20 16 13 6 4 7 2 3 2 3 3 3 3 4 2 2 1 2 1 1 1 1 1 1 1 1 0 0 0 1 1 1 1 1 1 1 Turma B 24 23 15 16 12 12 4 8 2 3 1 1 1 1 0 1 1 2 0 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 0 0 0 0 0 0 0 Total 46 43 31 29 18 16 11 10 5 5 4 4 4 4 4 3 3 3 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 1 1 1 1 1 1 1 ... 170 ... Palavra-chave Oportunismo Clara Benefícios Sobreviver Destruídos Riscos Escolha Nova chance Desequilíbrio ambiental Rejeitados Favoravelmente Dúvida Alimento Crítico Debate Hipocrático Necessidades Complica Turma A 1 1 1 1 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Turma B 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Total 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Legenda: Palavras que caracterizam o assunto principal – 22 palavras Palavras que caracterizam a divisão dos temas/assuntos – 26 palavras Palavras que marcam sequências textuais – 26 palavras Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a argumentação do texto – 13 palavras Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao estabelecimento de coerência – Texto 2: ética, benefícios, riscos118 - 25 palavras Note-se que, na tabela acima, a divisão dos temas e a marcação da sequência textual (respectivamente em azul e verde na tabela) são os fatores de maior número de indicações dos estudantes. Veja-se o exemplo do estudante abaixo que demonstra a divisão dos temas: B.2.3.13 genética – para lembrar que o texto fala sobre genética. Transgênicos: para lembrar dos alimentos geneticamente modificados. Clonagem: para lembrar da clonagem humana. Embrião: para lembrar que os embriões são destruídos no processo de retirada de célula tronco. Células: para lembrar que o texto se refere à células tronco. 118 As indicações que apresentam esse tipo de classificação são analisadas na seção 4.1.3 171 Na justificativa acima, se destaca a ramificação dos temas discutidos no texto: genética – transgênicos, clonagem, células. O estudante ainda declara que utiliza tais palavras ‘para lembrar’ de tais temas que considera como principais no texto. Observe-se, no texto, que o autor expõe claramente que há uma sequenciação de temas afirmando: “Primeiro, os alimentos transgênicos”. Fica fácil para o leitor notar que, se há um primeiro tema (os alimentos transgênicos), é provável que haja um segundo, um terceiro e talvez outros na sequência. Ou seja, o leitor procura encontrar essa sequência de elementos no interior do texto. De fato, de acordo com Koch (2009) e Koch e Elias (2010), a sequenciação textual é um dos elementos da produção do texto que auxilia o leitor na organização dos elementos e garante a construção da coesão e da coerência. Ainda, de acordo com os princípios da textualidade de Beaugrande e Dressler (1981), ao aceitar o texto como contendo coerência e um elemento que segue regras sociais de produção (princípio da aceitabilidade119), o leitor interage com ele procurando os elementos que o constroem como um texto. O que se quer dizer com isso é que mesmo que o autor não tenha exposto os demais elementos (segundo e terceiro) nitidamente no texto, o leitor é capaz de encontrá-los pela sequência da exposição de um primeiro e a alternância de temas expostos nos parágrafos seguintes do texto. De fato, é o que o leitor acima faz: ele expõe o tema principal do texto – ‘genética’ – e a partir dele os subtemas percebidos na sequência argumentativa do texto – ‘transgênicos’, ‘clonagem’, ‘células-tronco’. Na tabela 5, colocada acima, essas são justamente as palavras mais frequentes indicadas pelos alunos com a intenção de marcar a divisão temática do texto (indicados com seta azul). Observe-se, ainda, que a escolha de embriões também está ligada a um fator da competência discursiva: destacar uma das argumentações principais dadas no texto a respeito da utilização de células-tronco - a destruição dos embriões no momento da retirada das células-tronco. A escolha dessa palavra pode, de fato, estar associada a algum conhecimento do aluno a partir do qual ele concorda ou não com essa atitude, fazendo com que haja uma força ilocucionária dada ao texto pela escolha da palavrachave. Ressalta-se que a canalização da força ilocucionária do enunciado é, de fato, uma das características da palavra-chave120 (CAVALCANTI, 1989). No exemplo seguinte, o informante destaca as palavras dos três tópicos discutidos no texto, ligadas à sequência da exposição: 119 120 Cf. cap. 1.2. Cf. c cap. 2.3. 172 A.2.3.21 engenharia genética: tema principal do texto. posição: pois o texto fala da posição do autor diante de determinado assunto. Transgênicos: tema principal do 1º assunto abordado. Clonagem: tema principal do 2º assunto abordado. Célulastronco: tema principal do último assunto abordado. Veja-se que a escolha se dá justamente pelo ‘tema principal’ e pelos subtemas (1º. assunto, 2º. assunto, último assunto) a ele ligados como uma sequência que faz com que o leitor acompanhe o raciocínio argumentativo do autor. O leitor indica, ainda, a sua observação sobre a força da argumentação do texto indicando ‘posição’ como uma forma de recuperar ou reconstruir o tipo textual exposto no texto (tipologia argumentativa): ‘o texto fala da posição do autor diante de determinado assunto’. Na tabela 5, há também outras palavras indicadas pelos leitores que os auxiliam a construir a argumentação típica do gênero artigo de opinião (indicados com seta amarela). Outro detalhe importante nas indicações para o texto 2, é que a escolha das palavras-chave auxilia os leitores a delinear o caminho percorrido pelo autor na exposição do assunto principal do texto, fazendo com que os fios semânticos (CAVALCANTI, 1989), utilizados para a construção de sentidos, sejam tecidos. Na tabela 5 acima, verifica-se que a maior quantidade de indicações de palavras-chave foi por conta da focalização do assunto(s) principal (s), temas ou sequência textual (indicados em vermelho, azul e verde, respectivamente), o que corrobora o fato de que os leitores procuram basear suas interpretações em características discursivas. Na indicação abaixo o estudante não justifica a sua escolha palavra por palavra, mas explica que elas foram selecionadas representando o texto como um total, evidenciando as relações de sentido indicadas por ele: B.2.3.16 engenharia genética, transgênicos, clonagem, célulastronco e embriões. Eu escolhi essas palavras porque elas estão representando todo o fogo do texto, deixando bem claro o assunto tratado pelo autor. No entanto, é importante notar que a sequência exposta no texto fica nítida pela escolha das palavras: há um tema principal – ‘engenharia genética’ – e subtemas – ‘transgênicos’, ‘clonagem’, ‘células-tronco’, ‘embriões’. O leitor ainda utiliza uma metáfora, ‘o fogo’ do texto, para destacar um tópico textual, ou para demarcar a tipologia argumentativa, o que é importante para ele: ali 173 existem pontos em oposição, os quais podem gerar discussões e polêmica. A escolha final da palavra ‘embriões’ busca demonstrar justamente a argumentação mais forte feita no fechamento do texto, na qual o autor declara-se a favor do uso de célulastronco, o que é diferente das argumentações anteriores, em que o autor posiciona-se contrário às práticas de transgenia e clonagem. Nota-se que a construção da opinião do autor durante o texto se dá de forma diferenciada para os três tópicos: No primeiro tópico, transgênicos, o autor declara-se contrário ao afirmar que esses podem causar um “desequilíbrio na cadeia alimentar” e que a “natureza é frágil”. No segundo tópico, a clonagem, o autor também se declara contrário à sua prática afirmando que há experimentos sendo realizados para os quais ele espera que “o navio jogue tanto que as pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas”. No entanto, no terceiro tópico, o autor constrói uma posição argumentativa diferenciada: declara-se a favor à utilização das células-tronco expondo a crítica e a sua argumentação favorável de que estas são usadas para curar doenças e salvar vidas. O leitor acima destaca, justamente, que o ‘fogo’ do texto está na sequência dos temas expostos pelo autor na construção de suas opiniões, e no fechamento do texto, quando o autor expõe uma posição diferente das anteriores. Antunes (2012) explica que além de fornecer uma estruturação propriamente dita, as palavras escolhidas para a produção de um texto (ou o léxico – ANTUNES, 2012) também fornecem “pistas” claras em que o leitor se apoia como se fossem “pedras” (ANTUNES, 2012, p. 100), para a reconstrução do texto. Isso leva à afirmação de que nenhuma escolha de palavras como chave é aleatória. Tais escolhas são uma forma de estabelecer o valor semântico das palavras encontradas no texto juntamente a todo o seu valor de sentido textual estabelecido pelos fios que conduzem a interpretação (CAVALCANTI, 1989) e auxiliam na construção da coerência (KOCH; TRAVAGLIA, 2011). Esse apoio nas palavras para o estabelecimento de sentidos e da sequência argumentativa do texto também se dá na escolha de palavras-chave que não revelam, necessariamente, os três tópicos, mas que, nas justificativas dos leitores, estão claramente ligados a eles. Por exemplo: A.2.3.14 células-tronco: entendi que ajudam pessoas a sobreviverem e até curar doenças que não tinham cura. Engenhar vegetais: são um engenho que eles produziram que é capaz de alimentar plantas e matando praga. Clonagem 174 humanos: no texto entendi que antes eles clonavam animais e agora eles querem testar em humanos. Destruídos: no texto que eu entendi que os cientistas dizem que podem matar “destruir” os embriões para dar vida a outros. Embriões: que são parte da célula tronco para que possa salvar vidas. Observe-se que não há a escolha da palavra ‘transgênicos’, mas o argumento usado para falar desse tópico fica claro na escolha do elemento verbo-objeto ‘engenhar vegetais’. Ainda, não aparece nitidamente a escolha da palavra célula-tronco, mas o leitor a ressalta a partir do argumento dado a ela – uso de ‘embriões’ - e justifica sua escolha se fundamentando no ponto de vista textual de que as células-tronco retiradas de embriões, que são descartados, ajudam a salvar vidas. Nota-se, também, que o leitor salienta a argumentação – tipologia textual própria do gênero artigo de opinião -, destacando as palavras ligadas à construção dos tópicos explicados pelo autor: ‘alimentar plantas’ e ‘matar pragas’ - transgênicos; ‘testar’ clonagem ‘em humanos’ clonagem; ‘destruir’ os embriões para ‘dar vida a outros’, ‘salvar vidas’ - células-tronco. Nos exemplos expostos acima fica claro que a competência discursiva do leitor demonstra, na escolha das palavras-chave, o assunto sobre o qual trata o discurso ou parte dele, destacando no texto um falar sobre algo (DIJK, 1977a), ou seja, uma coerência. A coerência é estabelecida pela recuperação do tópico da conversação e do tópico do discurso (DIJK, 1977a; KOCH; TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE;DRESSLER, 1981). É o que o leitor faz quando escolhe as palavraschave como forma de estabelecer um resumo para a argumentação exposta pelo autor, o que significa que as regras semânticas colocadas nas palavras e suas relações permitem a utilização das habilidades discursivas dos usuários de resumir o texto em uma macroestrutura global (DIJK, 1977a). A tentativa de recuperação da coerência do texto também fica clara nas justificativas das palavras-chave para o texto 3. Nesse texto, do total de 36 justificativas para a competência discursiva, 5 delas relatam nitidamente questões mais discursivas, tais como focalização da relação tema-rema ou sequência textual. As demais estão em ligação com a competência sociointercultural. Essa observação pode ser explicada pelo gênero do texto – poema – uma vez que, em textos poéticos, a organização superficial do texto é motivada por correspondências especiais ao significado e propósito da comunicação geral (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). 175 Na tabela 6, abaixo, fica aparente o fato de que a maioria dos estudantes justifica a escolha das palavras-chave como forma de caracterização do(s) personagem(s) (indicadas com seta azul), ou como forma de estabelecer uma coerência por meio da criação de uma sequência narrativa (indicadas com seta verde). Observe-se também que há uma alta indicação para palavras que ativam conhecimentos de mundo dos leitores (indicadas com seta rosa), o que será analisado na seção 4.1.3 deste trabalho. TABELA 6 – Levantamento das palavras-chave – Texto 03 Palavra-chave Deus Gauche Anjo (torto) Fraco Abandonar Nascer Coração Homem Mundo Desejos Pernas Bigode Bonde Mulher Carlos Diabo Amigos Comovido Raimundo Solução Sombras Conhaque Dizer Sabias Azul Vasto Sério Turma A 8 8 6 9 8 6 5 3 3 5 4 4 3 1 3 1 6 3 2 3 2 1 1 2 2 1 1 Turma B 11 10 10 4 5 7 8 10 9 6 7 5 6 8 5 7 1 4 4 2 3 3 2 0 0 1 1 Total 19 18 16 13 13 13 13 13 12 11 11 9 9 9 8 8 7 7 6 5 5 4 3 2 2 2 2 ... 176 ... Palavra-chave Espiar Simples Raros Pergunta Forte Cheios de pernas Vida Talvez Óculos Conversa Turma A 0 1 1 1 1 1 0 0 0 0 Turma B 2 0 0 0 0 0 1 1 1 1 Total 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Legenda: Palavras que caracterizam o assunto principal – 10 palavras Palavras que caracterizam a caracterização dos personagens/temas – 22 palavras Palavras que marcam sequências textuais - 23 palavras Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a emotividade do texto – 9 palavras Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao estabelecimento de coerência – texto 3: emotividade, tristeza, comoção, desespero121 22 palavras Veja-se no excerto de um dos estudantes selecionados, a maneira como o aluno procura estabelecer coerência, sequenciando ações de uma narrativa: B.3.3.8 anjo torto: o anjo fala com Carlos. Carlos: o rapaz fora de rumo. Pernas e bonde: fala das mulheres. Meu Deus: apelação a Deus/ porque me abandonastes. Nesta justificativa do aluno 8 da turma B, a tentativa de estabelecer uma coerência do texto pela sequência fica aparente pela escolha das palavras e nelas a separação dos acontecimentos textuais. O leitor procura separar as estrofes em pequenas sequências de acontecimentos e o faz a partir da seleção de palavras que possam auxiliálo nesta relação de uma história sendo narrada: primeiro o personagem do texto – Carlos e uma narrativa primária – um anjo falando com ele. Na sequência, o leitor relata um segundo momento da narrativa, no qual o personagem se depara com as mulheres. E num terceiro momento narrativo, o leitor procura estabelecer a tristeza do personagem por ser abandonado por Deus. Ou seja, o leitor realiza um cálculo de sentido apelando a fatores contextuais de ordem sociocognitiva e interacional, o que o faz construir a coerência ou organizar as informações do texto em sequência (KOCH; ELIAS, 2010). 121 As indicações que apresentam esse tipo de classificação são analisadas na seção 4.1.3 177 Na tabela acima, a indicação da organização de informações sequenciais de uma narrativa, representadas pelas setas verdes, são justificativas frequentes para a escolha das palavras-chave. Nesta segunda justificativa, abaixo, acontece mais ou menos a mesma sequenciação, mesmo sem haver uma explicação nítida para as escolhas feitas pelo leitor: B.3.3.3 carlos, bonde, deus abandonaste porque é as palavras que mais marcaram o texto. Veja-se que o leitor utiliza palavras presentes em estrofes sequenciais do poema e diz que seleciona as palavras para ‘marcar’ o texto, o que pode ter acontecido para identificar pontos na sequência textual ou destacar sentidos. Essa marcação também se dá na seguinte justificativa: B.3.3.25 Deus: porque é uma palavra que marca; pernas: porque fala várias vezes; Raimundo: porque é bem massa; diabo: porque me lembra algo. No exemplo acima, além do leitor apresentar a marcação temática dada na escolha das palavras-chave, ele procura indicar a remissão presente ao indicar ‘pernas’ por ‘falar várias vezes’. Na verdade, a palavra aparece três vezes no texto como indicativo de que o autor as vê constantemente na construção do próprio poema (“pra que tanta perna meu Deus?”). O leitor procura indicar essa palavra-chave como algo que é constante no texto em uma das sequências textuais e divide a escolha das outras palavras em momentos diferentes do poema. De acordo com Antunes (2012) as palavras repetem-se em um texto não por mero acaso, mas porque isso é um recurso de textualização que provoca efeitos discursivos. A repetição serve para marcar a continuidade do tema, reiterar algo, provocar efeito de ênfase, reforço ou intensificação, abrir uma explicação, marcar o final do texto como recurso de fechamento (ANTUNES, 2012). No caso dessa indicação, o leitor identifica um efeito discursivo da palavra-chave escolhida, observando a ênfase e intensificação dadas à palavra ‘perna’ e indicando-a como item remissivo que marca um determinado tema do texto. A palavra ‘perna’ aparece em outra das justificativas também com a intenção de marcar uma das sequências: 178 B.3.3.9 coração, Deus, abandonaste, perna, conhaque. O texto coloca essas palavras meio interligadas pois ele fala sobre o coração dele e coloca Deus do poema pedindo porque o abandonaste se sabia que era fraco, com tantas pernas porque meu deus tanta perna pergunta o meu coração se no final termina com conhaque que deixa comovido como o diabo. Note-se que, nessa indicação, o leitor seleciona as palavras e as justifica também pela sua ‘interligação’, estabelecendo entre elas uma relação que liga os fios semânticos do texto (CAVALCANTI, 1989) e construindo para ele coerência (KOCH; TRAVAGLIA, 2011). O leitor procura reformular uma pequena história utilizando as palavras por ele selecionadas e destacando os momentos da narrativa: falar do coração, falar com Deus, ser abandonado, encontrar com as pernas, beber conhaque, comover-se. Nessa indicação, o leitor demonstra a forma como as palavras-chave selecionadas o auxiliam na reconstrução de uma sequência textual e também no estabelecimento da coerência pela organização da narrativa. Reitera-se que essas foram justificativas frequentes para a escolha das palavras conforme apresentado (com setas verdes) na tabela 6 acima. Destaca-se que a coerência não está no texto em si, mas se constrói na interação entre leitor e autor por meio das pistas do texto em ligação com os conhecimentos diversos que se possui da realidade (KOCH; ELIAS, 2010). Nesse caso, o texto faz sentido para o leitor porque a sequência de ações que ele observa é possível em sua realidade. Admite-se, no caso do texto 03, que outros conhecimentos, culturais e sociais, podem estar sendo utilizados para sequenciar as ações narrativas e isso acontece justamente pelo gênero do texto que deixa as possibilidades de interpretação mais abertas122. Vale notar o fato de que, para o texto 3, há algumas indicações de palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a emotividade do poema (indicadas com setas amarelas). Isso mostra que diversos fatores textuais, entre eles a caracterização do gênero, interagem entre si pela ativação da competência discursiva na construção de sentidos. É importante repetir que a seleção de uma palavra-chave não é aleatória, mas em seu entorno é possível construir a ideia principal (ou as ideias) do texto (SOLÉ, 1998). 122 Sobre a relação entre aspectos discursivos e conhecimentos de mundo do leitor (competência sociointercultural), ver a seção 4.1.4 deste trabalho. 179 Grande parte dos alunos, de fato, utilizou fatores discursivos para apoiar a escolha das palavras-chave e focalizar aspectos nucleares nos três textos como o assunto principal, a sequência textual, os personagens, os temas e as características do gênero, conforme apresentado no gráfico a seguir: GRÁFICO 5 – A classificação da utilização das palavras-chave nas justificativas dos estudantes Verifica-se que, com relação ao texto 01, as ideias principais são marcadas pela narrativa, a focalização dos personagens e suas condições sociais impostas no texto. No texto 02 as ideias são marcadas principalmente pela sequenciação textual dada pela argumentação, e no texto 03 as ideias ficam marcadas pela tentativa de estabelecer laços semânticos que estabeleçam a coerência textual. Observa-se aqui um fator importante na caracterização da competência discursiva: o gênero textual e a tipologia textual (MARCUSCHI, 2003; KOCH, 2009). Nas indicações analisadas acima, assim como nas demais indicações dos alunos, o gênero do texto está em constante diálogo na interação do leitor com o texto: a) Texto 01: o gênero crônica - de tipologia predominantemente narrativa – refletese na escolha das palavras-chave pelos estudantes. Notou-se, nas indicações, que a sequência da narração e a divisão dos personagens, apontados em azul e verde no gráfico acima, são fatores de constante indicação na justificativa para a escolha das palavras e, consequentemente, na interpretação dada pelos leitores. 180 O leitor ativa seus conhecimentos com relação ao gênero e sua forma para reestabelecer a narração do texto, sua sequência e seus personagens. Outro detalhe importante é a construção da crítica apresentada no texto, característica do gênero crônica, e indicada pelos alunos também como justificativa na escolha das palavras-chave conforme apontado em amarelo no gráfico acima; b) Texto 02: a tipologia argumentativa do gênero artigo de opinião é destacada pelos informantes na seleção das palavras-chave: a maioria dos estudantes seleciona as palavras relacionadas ao tópico principal (genética, transgênicos, clonagem, células-tronco), as quais são demonstradas em azul e verde no gráfico acima, e a elas ligam os argumentos dados pelo autor procurando indicar que ali existe uma posição, uma crítica ou uma opinião, características do gênero, apontadas na construção da argumentação, o que é demonstrado em amarelo no gráfico; c) Texto 03: o gênero poema, por possuir características comunicativas que ativam emotividade da língua, também é evidenciado na escolha das palavras-chave pelos leitores. Observaram-se nas indicações deste texto dois fatores principais para relação gênero-interpretação: a) os alunos procuraram, na escolha das palavras, evidenciar a emotividade própria do gênero (apontado em amarelo no gráfico) e a relacionaram com as exposições feitas pelo autor a partir da ativação da competência sociointercultural (é o caso da escolha de ‘triste’ ou ‘tristeza’, ‘coração’, ‘comovido’123), o que é apontado em rosa no gráfico acima; e b) o leitor procura estabelecer para o texto uma coerência baseada em uma história sendo contada pelo autor, sequenciando ações pela escolha de palavras que identificam diferentes momentos do poema, o que é indicado em azul e verde no gráfico. Deve-se destacar que a competência discursiva que faz uso dos conhecimentos textuais do leitor (de gêneros ou tipologias) tem uma função importante na atividade de leitura (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009). Isso porque os tipos textuais têm traços linguísticos predominantes que tecem uma base de compreensão do texto formando uma sequência (MARCUSCHI, 2003). Por outro lado, os gêneros textuais organizam o discurso ou as produções textuais (BAKHTIN, 2000) tanto quanto as formas gramaticais organizam as sentenças que utilizamos. Ou seja, o usuário da língua aprende 123 Fala-se mais sobre indicações desta natureza na seção seguinte sobre a competência sociointercultural. 181 a moldar suas produções linguísticas a um determinado gênero e a adivinhar o que o seu interlocutor vai lhe dizer pela adequação da situação comunicativa a um gênero. Há uma sensibilidade do usuário a um todo discursivo que o capacita a evidenciar diferenças de compreensão (BAKHTIN, 2000). Em suma, de acordo com o que se discutiu até aqui, a competência discursiva auxilia o leitor a: a) Sequenciar o texto em momentos diferentes de ações textuais; b) Identificar a relação existente entre tema-rema ou informações velhas e novas (relação dado-novo), costurando sentidos para o texto; c) Reconhecer a intenção comunicativa do texto relacionada ao tipo e gênero textual; d) Destacar tópicos discursivos discutidos pelo autor e que devem ser identificados pelo leitor como marcas discursivas; e) Salientar pistas linguísticas que o levam a estabelecer coerência textual. 4.1.3 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência sociointercultural. Conforme se apresentou na seção 2.2.2 deste trabalho, a competência sociointercultural considera fatores e regras sociais que influem no ato comunicativo bem como o contexto e o diálogo constante entre discursos e culturas, dos quais o usuário participa em seu cotidiano e que o leva a produzir sentidos. Em outros termos, considera-se que a competência sociointercultural constrói-se a partir do desenvolvimento da habilidade dos falantes de utilizar: a) Fatores e regras sociais que influem no ato comunicativo (HYMES, 1995); b) A gramática de contexto (SCOLLON; SCOLLON, 2001124) que inclui aspectos como a cena, o tom da fala, o ambiente social entre outros; c) As diferentes culturas (interculturalidade) vividas pelos usuários bem como os diferentes discursos e ideologias a que são expostos e que interferem na produção de sentidos (KRAMSCH, 1993; 1998). 124 Cf. cap. 2.2.2. 182 De acordo com os dados levantados e com a conceituação de competência sociointercultural desenvolvida para este trabalho, as justificativas, por excertos, classificadas nessa dimensão, são expostas na tabela 7 abaixo: TABELA 7 – A incidência da competência sociointercultural nas justificativas dos alunos Texto 01 Texto 02 Texto 03 Total Total de indicações Competência sociointercultural Turma A Turma B 21 15% 17 12% 23 17% 21 15% 28 28% 24 18% 72 53% 62 46% 134 O que se nota é que a competência sociointercultural aparece com maior recorrência do que as competências gramatical e discursiva na classificação das justificativas para a escolha das palavras-chave dos alunos. Como se pode observar nos excertos selecionados e expostos na sequência deste estudo, essas ocorrências incluem, principalmente, fatores (inter)culturais e sociais na construção de sentidos para o texto. Ainda, como na competência discursiva discutida na seção anterior, grande parte das justificativas é classificada em interação com outras competências (75 indicações) e serão analisadas na seção seguinte (4.1.4) deste trabalho. Procura-se explicar e demonstrar agora a forma como os dados fornecidos pelos informantes revelam fatores pertencentes à competência sociointercultural. Para as 28 indicações dessa competência no texto 01, 13 foram da turma A e 15 da turma B. Dessas indicações, a maioria relaciona um aspecto social importante para a interpretação do texto: a classe social dos personagens. Atrelado a esse fator, questões socioculturais tais como preconceito, superioridade do rico em relação ao pobre, oportunidades de sucesso são muito frequentes. No exemplo abaixo é possível verificar a ocorrência questões socioculturais: A.1.3.22 indigente: uma pessoa dispensável, sem importância. Estudo. [na linha seguinte] - Rico: achando que porque tem dinheiro pode humilhar uma pessoa. Aprender: talves [sic] o menino não aprendeu não porque não quis mais sim porque não teve a oportunidade. Ofendido: o senhor não gostou de saber que o menino não estava nem aí pro teorema de Pitágoras. 183 A escolha da palavra-chave ‘indigente’ procura caracterizar o personagem pobre dentro de uma compreensão discursiva e social (e, portanto, também cultural) de que o mais pobre não tem importância. Ainda a escolha de ‘rico’ reforça essa construção do leitor ao destacá-lo como aquele que ‘humilha’ o outro por sua condição social. Outro detalhe importante nessa justificativa é a relação que o leitor estabelece entre a escolha de ‘aprender’ e a não obtenção de uma ‘oportunidade’ de aprendizado. Destaca-se aqui o perfil socioeconômico dos informantes: a maioria dos alunos possui uma renda familiar relativamente baixa, de três a sete salários mínimos na turma A, e de um a cinco salários na turma B125. Tal fator pode ser utilizado no destaque de questões relacionadas à diferença de classe social, principalmente quando se indica que o pobre não tem a mesma oportunidade que o rico. Agora, outro exemplo parecido indicado na turma B: B.1.3.9 destino, diferença, estudo, pessoas, trocado. Essas 5 palavras estão relacionadas de uma maneira pois no texto ele fala que rico é coisa do destino e diferença estabelecida é sim o estudo entre eles. Pois as pessoas da classe alta estudam mais do que o pobre e se o garoto tivesse conhecimento ele não ganhou algum trocado que ele havia pedido e sim ganharia muito dinheiro. Nessa justificativa, o estudante seleciona vários substantivos do texto e neles mostra a diferença de classes entre rico e pobre. Nesse caso, os sentidos textuais são construídos possuindo como foco a questão da diferença de classes. Ainda, ele liga a essa diferença à questão do estudo afirmando que ‘ele fala que rico é coisa do destino e diferença [...] é sim o estudo entre eles’. Veja-se que há uma voz social-discursiva interagindo na produção de sentidos que diz que para ser rico é necessário ter estudo. Essa ideia é reforçada quando o leitor afirma que tendo estudo, o que ele destaca na escolha da palavra ‘conhecimento’, o menino pobre teria ‘muito dinheiro’ e não ‘algum trocado’. Por outro lado, o estudante indica ainda que riqueza é também resultado do ‘destino’. Ou seja, somente estudar não é suficiente para que o rico seja rico. Para tanto é necessária outra força que facilita a vida - o destino. Nota-se que há uma diversidade de discursos e comportamentos sociais (ou culturas) que entram em diálogo aqui: Para 125 Cf. cap. 3. 184 ser rico é preciso estudar; para ser rico é preciso ser premiado pelo destino; quem é pobre e não for premiado pelo destino, precisa estudar mais; quem é rico tem mais oportunidade de estudar do que o pobre. Observe-se tanto no exemplo da turma A (A.1.3.22), acima, quanto no da B (B.1.3.9) que a percepção do indivíduo sobre a classe social, ou sobre a diferença de classes existente na sociedade é evocada a partir de seus conhecimentos de mundo e dialoga aqui na maneira como e quais sentidos devem e podem ser construídos a partir do texto. Esses sentidos só podem ser construídos porque na realidade vivida pelos leitores, a diferença de classes é evidenciada em fatores sociais tais como ter dinheiro significa mais tempo e mais oportunidades para se dedicar à educação, discriminação social com relação aos pobres, oposição entre as classes sociais pela divisão de espaços sociais entre elas. Há também um processo de ativação de aspectos sociointerculturais nas interpretações dos alunos quando eles se colocam no lugar do personagem ou assumem para si um sentido extraído do texto. No exemplo, A.1.3.26 no texto a palavra estudo me chama a atenção porque mostra como devemos tê-lo. As palavras pobre e rico passa uma imagem de desigualdade social. A palavra indigente mostra como o personagem rico se acha melhor que o menino pobre. Dinheiro porque como o personagem rico o coloca em primeiro lugar, antes mesmo do próprio conhecimento. O estudante se coloca como aquele que recebe o conselho de estudar quando destaca a palavra ‘estudo’ e a justifica com o verbo em primeira pessoa: ‘me chama atenção porque mostra como devemos tê-lo’. Ainda, liga a isso o fator de que há uma ‘desigualdade social’ e que o rico possui atitudes de menosprezar o pobre. É perceptível que isso foi uma inferência do leitor a partir de uma realidade armazenada em seus conhecimentos, pois o texto não traz essa informação de forma explícita. No entanto, o leitor reconhece a importância do estudo, mas não concorda com a ideia de que estudo e dinheiro são equivalentes, pois afirma que o personagem coloca o dinheiro ‘antes do próprio conhecimento’. Para o leitor, estudo e conhecimento são os fatores importantes para sua vivência (fatores culturais, portanto), mas o dinheiro é destacado como fator estudo/conhecimento. de desigualdade social e não como resultado do 185 Também nesse exemplo, o informante pode estar sendo influenciado por fatores contextuais sociais, a partir dos quais se diz que é preciso estudar como uma forma de prática social. Essa ideia dialoga com o leitor anterior, o aluno 9 da turma B, que destaca que, além de estudo, a pessoa precisa de um auxílio do destino. Ou seja, há um processo de culturas em diálogo constante criando sentidos possíveis uma vez que o contexto gera uma matriz na língua enquanto discurso e dialoga na produção de sentidos (KRAMSCH, 1993). Nesse caso há um diálogo cultural sendo estabelecido mediante o uso da língua quando os leitores destacam que somente o estudo não faz com que o rico fique rico. Na relação entre as diferentes culturas vividas pelos informantes, a riqueza pode ser resultado não só do estudo, mas do ‘destino’, como destaca o leitor, das ‘oportunidades’ que são mais fáceis para quem possui uma classe social mais alta, ou pela própria diferença de classes que se mantém historicamente na sociedade: o rico tem mais oportunidades, estuda mais e consequentemente continua sendo rico. Note-se, no exemplo abaixo, a maneira como o contexto de vivência é utilizado para a construção de sentidos no texto: A.1.3.11 dinheiro: ele “puxa” o assunto principal do texto, é uma coisa frequente que acontece, ver jovens na rua pedindo dinheiro mas as pessoas incentivam isso dando esmolas; oportunidade: se tiver espaço, aproveitar as oportunidades saber ouvir e executar. Pobre: a falta de oportunidades a diferença das classes como: educação, alimentação habitação, etc. Estudo: essencial mas não atinge a todos, infelizmente tem essa diferença , o país teria que desenvolver mais políticas publicas que abranja a todos. Conhecimento: a cultura que cada um tem as diferenças, no vocabulário. Na verdade, as palavras estão todas interligadas. O leitor destaca na escolha da palavra ‘dinheiro’ o enfoque discursivo dado ao assunto principal do texto, mas a ele relaciona questões reais de ‘ver jovens na rua pedindo dinheiro’. Destaca-se aqui a forma como os frames126 (KOCH, 2009; DIJK, 2002; KLEIMAN, 2002) atuam na produção de sentidos. A realidade textual de haver um menino pobre pedindo esmolas é ligada à vivência real do aprendiz - ‘uma coisa frequente que acontece’. Talvez, o leitor não conseguisse estabelecer o mesmo sentido se fosse um menino rico pedindo esmolas ou, certamente, estranharia tal afirmação 126 Cf. cap. 1.3.4 186 tentando recuperar sentido no texto, já que essa informação não estaria de acordo com os esquemas mentais que caracterizam as pessoas que pedem dinheiro nas ruas. Veja-se que os esquemas mentais construídos a partir da realidade do aprendiz são também utilizados quando o leitor liga à palavra-chave ‘pobre’ fatores como falta de oportunidade, educação, alimentação, habitação. Ainda ligado a essa escolha, o leitor destaca a necessidade de se resolver o problema com políticas públicas. Vale observar que esse não é um sentido explícito colocado no texto, mas é evocado a partir de estruturas de conhecimento que possibilitam essa construção e de outros discursos sociais aos quais o estudante é exposto e que interferem nos sentidos produzidos. Outro detalhe importante nessa justificativa é que o leitor está consciente da cultura na produção de sentidos. Para o leitor, cultura é o ‘conhecimento’ que se tem sobre a realidade e que interfere inclusive na linguagem - ‘cultura que cada um tem, no vocabulário’. É interessante notar que o informante destaca que relações culturais interferem na forma como ele recebe o texto, assim como no vocabulário. O leitor demonstra que a escolha do vocabulário e do léxico para a construção da narração está fortemente ligada à cultura dos personagens, as quais são imaginadas pelo leitor a partir das relações reais vividas por ele na sociedade, o que o faz produzir sentidos. A justificativa do leitor corrobora o fato afirmado no cap. 1 de que cultura e língua estão em contínua associação no diálogo com o texto. Isso porque a cultura é entendida como parte de uma comunidade que compartilha um espaço social e imaginário comum e auxilia o usuário a reter um sistema comum de percepção, crença, avaliação e ação (KRAMSCH, 1993; MENDES, 2011). Com relação ao texto 02, foram 03 indicações para a turma A e 09 para a turma B totalizando 12 justificativas (as demais foram classificadas a partir da existência de um diálogo com a competência discursiva e serão discutidas na seção seguinte deste trabalho). Dentre elas, a maioria relata aspectos sociointerculturais tais como ética, responsabilidade e ciência como possibilitadores de uma vida melhor ou de perigos. Em um dos excertos, abaixo, o leitor destaca tanto os benefícios da ciência - ao selecionar a palavra ‘maravilhas’ - quanto seus perigos, selecionando a própria palavra ‘perigos’ e relacionando-a ao processo de experimento científico que utiliza ‘cobaias’ bem como ‘oportunismo’, destacando a forma como algumas pessoas lidam com a ciência pensando em seu ‘bem estar’: 187 A.2.3.7 turbilhão: que muitas coisas estão sendo descobertas; maravilhas – trazem muitos benefícios para nós as descobertas de como curar doenças incuráveis ou até mesmo conseguir controlar a doença (AIDS). Perigos: são os riscos que as pessoas “cobaias” correm ao fazer o tal experimento, pois você não sabe a reação do seu organismo. Transgênicos: são usados em alimentos para ficar com a aparência bonita e diminuir o numero de insetos mas que faz muito mal a nossa saúde. Oportunismo: muitas pessoas pensam somente no seu bem estar isso acaba ocasionando muitos perigos. Um detalhe importante é o conhecimento de mundo do aprendiz que interage com o texto quando ele identifica a possibilidade de cura proporcionada pela ciência e a possibilidade de criação de alimentos ‘mais bonitos’ e na ‘diminuição de insetos’. Chama-se a atenção para o fato de que tais fatores não estão no texto, mas foram inferidos pelo leitor a partir de seu conhecimento prévio do assunto. O leitor, de forma clara, destaca também os perigos dizendo que os transgênicos fazem ‘muito mal a nossa saúde’. Os sentidos são construídos aqui num compartilhamento de conhecimentos produzidos por intermédio da língua numa relação entre sociedade e relações semântico-pragmáticas (KRAMSCH, 1993). Ou seja, o que acontece aqui é que não aparecem simplesmente vozes individuais do leitor ou do autor, mas também conhecimentos históricos construídos pela sociedade e estocados a partir da vivência dos usuários da língua (KRAMSCH, 1993). Os falantes utilizam essas categorias para representar suas experiências e construir sentidos. Outro fator importante no excerto acima é que o leitor expõe a possibilidade de controlar doenças incuráveis, tais como a AIDS, como inferência pessoal com relação ao texto. Observe-se que o autor do texto não expõe sua preocupação com essa doença em particular, mas cita outras doenças (Alzheimer, Parkinson, diabetes, defeitos congênitos), ainda incuráveis na sociedade o que justificaria o fato do leitor inferir que a ciência genética pode colaborar também no combate ao vírus HIV. Ele demonstra sua inferência de forma bastante clara ao expor: ‘curar doenças incuráveis’, o que foi exposto pelo autor, ‘ou até mesmo conseguir controlar a doença (AIDS)’, o que foi inferido pelo leitor na interação com o texto. O diálogo estabelecido pelo informante é visível: se o autor afirma que a ciência pode curar doenças incuráveis até agora, então pode também controlar doenças sérias ocorrentes na sociedade, como a AIDS. Deve-se considerar também, no extrato acima, o fato do leitor indicar os ‘perigos’ relacionados à palavra ‘cobaias’. O leitor aponta a existência de ‘riscos’, o que 188 é explicitamente colocado no texto pelo autor, mas para o estudante esses perigos estão na participação das pessoas no experimento. Note-se que, no texto em si, não há informações explícitas sobre o uso de ‘cobaias’, mas há uma declaração de que há mulheres voluntárias para participação no experimento de clonagem humana. O processo de inferência acontece de forma nítida: se há mulheres voluntárias para participar do experimento de clonagem, elas seriam as ‘cobaias’ que correm ‘perigos’, porque elas não sabem ‘a reação do organismo’. Há um conhecimento de mundo implícito nesta afirmação: o de que cobaias humanas correm riscos ao participarem de experimentos científicos. Essa última observação reitera o ponto de vista de que qualquer conhecimento sobre a realidade interfere na forma como os sentidos são produzidos a partir do texto (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Veja-se como o leitor ainda representa suas categorias de vivência no excerto a seguir: A.2.3.29 escolha: porque ao ver esta palavra se mostra um futuro de risco e de decisão múltiplas pelo fato de que não afetará um mais muitos bem e ruim. Ética: porque pelo tema do texto, a ética não mais é só um principio mas sim se torna um problema pela dúvida que nela surge para eles do que fazer. Clonagem: porque mostra como hoje em dia tudo pode ser refeito artificialmente e pode ou não ajudar a sociedade hoje. Embriões: porque são neles que se tem assim por dizer o “poder” para a manipulação de uma melhora em coisas julgadas irreversíveis. Nova chance: se enquadra com anterior porque com embrião possivelmente dará vida ou continuidade para aquele que o recebe. A primeira palavra selecionada pelo leitor, ‘escolha’, é destacada como um fator social de decisão - ‘decisão múltiplas’ - que apresenta riscos - ‘futuro de riscos’- para o bem ou para o mal -‘bem e ruim’. Observe-se que a palavra demonstra o diálogo que o leitor estabelece com o texto quando ele pensa no futuro e nas decisões advindas da ciência, fatores esses não discutidos abertamente no texto. Ainda, o informante afirma, a partir da escolha de ‘ética’, que essa é um problema porque ‘pelo tema do texto’, ela representa questões de saber o que fazer em determinadas situações, o que envolve a compreensão de regras de comportamento social. Destaca ainda a importância de tal palavra dizendo que ‘não é mais só um princípio’, ou seja, ela deve ser praticada quando se fala em ciência. É importante notar também como o leitor estabelece ligações de sentidos sociointerculturais a partir da palavra ‘clonagem’ – ‘pode ou não ajudar a sociedade’ – e 189 ‘embriões’ – por possuírem ‘o poder da melhora’ de fatores ‘irreversíveis’. Tais sentidos são construídos pela inferência do leitor ligado a discursos já ouvidos anteriormente ou a crenças que a ciência genética constrói pela divulgação de seus estudos (p. ex. textos em que se apresentam avanços na cura de algumas doenças pelo uso da ciência genética). Ainda no mesmo excerto, o estudante liga a embriões o fato de que eles são capazes de dar ‘vida ou continuidade’ para outras vidas, destacando a maneira como a palavra-chave é usada para a concentração de um sentido: o poder de criação da ciência. Pode-se dizer, assim, que o leitor estabelece para as formas linguísticas por ele escolhidas possibilidades de contexto numa relação social e interacional (BAKHTIN, 2009). Aqui essa relação entre as formas e o contexto de situação é esclarecida na ligação entre as escolhas das palavras-chave: i) por regras de comportamento social e cultural canalizadas pela palavra ética; ii) por discursos outros (intertextos) divulgados pela ciência genética; e iii) pela adequação de contextos possíveis para o texto dado – a inferência do que é possível ou não ser feito pela ciência e por sua produção social e intelectual. O leitor abaixo também justifica a escolha da palavra ‘ética’ voltada para um comportamento científico necessário no extrato a seguir: B.2.3.17 engenharia genética: explica que as pessoas deveriam se importar mais com as sortes e revés do que um gene pode causar. Ética: explica que tem que concientizar [sic] sobre o mundo genético. Alimentos transgênicos: são capazes de prolongar sua vida, por ter substancias que evitam o intoxicamento [sic] ao alimento. Clonagem: hoje em dia, a clonagem de animais está cada vez mais comum na sociedade, e pode ser um beneficio para nos. Humanos: podem conseguir clonar as pessoas, não é de se duvidar. Células tronco: beneficia e muito o ser humano mais é uma questão de ética, manipulados, pois é uma quase pessoa. O estudante afirma que ‘ética’ é importante, em seus critérios, pois as pessoas devem ser conscientizadas com relação ao mundo dos estudos genéticos. Ao que tudo indica, o leitor está, de fato, dialogando com o autor na produção de sentidos quando segue uma argumentação principal do texto de que ‘clonagem humana é uma questão de ética’ e estabelece para isso a necessidade da conscientização. Em outros termos, o leitor procura direcionar seus conhecimentos para o sentido de que, se a clonagem 190 humana é uma questão de ética, então é preciso conscientizar as pessoas do que está acontecendo. Veja-se que o leitor retorna à questão de ética quando fala das ‘célulastronco’, pois os embriões manipulados são uma ‘quase pessoa’. O conhecimento do leitor está amarrado aqui com o fator primário: se não se pode clonar pessoas porque é uma questão de ética, então tem que se pensar na manipulação dos embriões porque estes são uma ‘quase-pessoa’, ou seja, tem-se também uma ‘questão ética’. O leitor ainda estabelece um diálogo com o texto a partir de seus conhecimentos de mundo ao escolher a palavra ‘clonagem’, afirmando que esta é uma prática ‘cada vez mais comum’ e afirmando que isso pode ser um benefício. No entanto, na sequência o leitor seleciona ‘humanos’ como palavra-chave para destacar que pode acontecer que seres humanos sejam clonados (‘não é de se duvidar’). Esse sentido está em consonância com os sentidos de crítica e desaprovação produzidos pelo autor quando afirma textualmente “Não é surpresa alguma que se fale agora na clonagem de humanos”. No texto, a crítica e reprovação do autor são construídas relacionadas a outros fatores atacados explicitamente tais como: “oportunismo”, “desdém com esse tipo de aplicação” e a declaração do autor de que “espero que o navio jogue tanto que as pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas”. A ação de “quebrar as pipetas” leva à interpretação de uma posição contrária do autor, pois, se é um experimento e considerando que pipetas são importantes para tal, a sua quebra provoca o fim do experimento. Essa relação de coerência não está no texto, mas se constrói a partir dele na interação com os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981127). O leitor expõe a reprovação do autor do texto com relação ao assunto quando afirma ‘não é de se duvidar’ que se possa ‘clonar humanos’. É necessário explicar que, nesse exemplo, dois fatores principais são observados: a) o leitor, ao utilizar a expressão ‘não é de se duvidar’, destaca um sentido construído socialmente pela realidade de uso da expressão idiomática: a dúvida e a expectativa com relação a uma ação (ex. não é de se duvidar que ele faça isso; não é de se duvidar que ela arrisque; não é de se duvidar que o garoto roube; não é de se duvidar que ele passe no vestibular); e b) no texto, a ação realizada aqui – a clonagem – é, de fato, colocada em dúvida e em expectativa, mas como ponto de crítica e reprovação pelo autor do texto. A realidade contextual da ocorrência da expressão, o que para Hymes (1995) é 127 Cf. cap. 1.3.4 191 uma realidade sociolinguística que auxilia o leitor a ligar seus enunciados a um contexto específico de ocorrência, impõe, na realidade do texto, um sentido de crítica, dúvida e desaprovação e reforça a justificativa para a escolha da palavra-chave que canaliza tal sentido. Destacam-se fatores sociais e culturais envolvidos aqui: a ética com relação à clonagem humana e à genética, o preconceito com relação à clonagem, a incerteza dos benefícios da ciência genética e da produção científica, entre outros. Isto quer dizer que há uma variedade de discursos em diálogo que são trazidos à tona durante a produção de sentidos pelos leitores. O fato é que o leitor deve estar ciente das relações estabelecidas pelo uso das palavras em um determinado contexto (HYMES, 1995), para, assim desenvolver sua competência comunicativa. Ou seja, a forma como a língua é utilizada em determinados contextos de ocorrência influi na maneira como é compreendida pelos falantes (HALLIDAY, 1985; HORNBERGER, 1995). No exemplo a seguir, o leitor também destaca, na escolha das palavras, fatores de ordem sociointercultural: B.2.3.20 descoberta: mostra a grande descoberta de se poder mudar o que antes era um problema irreversível. Favoravelmente: mostra a posição do narrador em relação as vantagens de se mudar a genética. Consequências: fala sobre os males que podem causar a mudança na genética. Complica: é uma critica quando a genética entra no mundo animal. Vida: a coisa mais bela que existe mas com alguns males que podem danificar a vida se tratando de mudança genética. Veja-se a maneira como o leitor utiliza a palavra-chave ‘descoberta’ para canalizar um sentido textual e cultural de encontrar soluções para problemas irreversíveis. O leitor impõe ao texto aqui uma necessidade social depositada na ciência de que ela é a responsável pela ‘descoberta’ da cura para problemas que assombram a sociedade. A ciência seria a responsável, cultural e historicamente, por dar soluções a problemas vividos na sociedade, tais como as doenças indicadas no texto. Outro ponto importante é a escolha do advérbio ‘favoravelmente’ para evidenciar a intenção do autor com o texto, ou seja, para demonstrar sua posição favorável à genética por meio da argumentação. Adianta-se que há uma interação entre 192 as competências128: a) a competência gramatical utilizada pela escolha de um advérbio com significado que indica “propício, conveniente, benéfico, proveitoso, vantajoso129”; b) a competência discursiva que indica a tipologia argumentativa do texto – argumento favorável do autor; e c) a competência sociointercultural que indica que a ciência pode trazer benefícios à sociedade (assim como no exemplo anterior). Observe-se ainda que as escolhas das palavras-chave neste extrato indicam que o leitor está muito mais preocupado com o sentido evocado por elas na relação interacional com o texto do que com o seu significado primário. É o caso da escolha de ‘consequências’: o leitor concentra na palavra um fator ligado aos males causados pela ciência genética. Ou seja, o leitor não está falando de consequências quaisquer, mas somente daquelas causadas pelo mau uso da ciência. Isto quer dizer que ele utiliza a palavra ‘consequências’ dentro dos limites dos esquemas mentais acionados para compreender o texto, os quais estão voltados ao desenvolvimento da ciência genética. O leitor reforça ainda um mau uso da ciência destacando outra palavra-chave que é completamente atrelada aos sentidos construídos no texto: ‘complica’. A escolha dessa palavra está justamente ligada à crítica estabelecida pelo autor do texto para o uso da genética em alguns experimentos envolvendo seres humanos ou animais. No texto, essa crítica fica aparente pela argumentação do autor, mas o leitor, por sua vez, utiliza uma carga de conhecimentos sociais e (inter)culturais que ativam sentidos: a ciência está fazendo clonagem de animais, a ciência pode curar doenças (ou outros males) que atormentam a sociedade, a clonagem humana pode ser eticamente desaprovada, a clonagem precisa ser mais investigada pela ciência, a ciência genética pode trazer benefícios, bem como malefícios. Tais afirmações são construídas numa relação entre a vivência social, a cultura, a crença e os comportamentos dos usuários da língua. Uma questão cultural importante é destacada também pelo uso da palavra ‘vida’ como chave para a interpretação do texto: o leitor utiliza argumentos construídos social e culturalmente para concluir que ‘a vida é a coisa mais bela que existe’ - influenciado por questões de crença, de religião ou por ideias otimistas comuns na sua faixa etária - e a esse conhecimento ele liga a necessidade de se pensar nos males causados pela genética. O leitor faz ligações claras entre os sentidos relatando que ele acredita que já que a vida é ‘a coisa mais bela que existe’, ela não pode ser ‘danificada’ por uma 128 O diálogo entre as competências será discutido de forma mais profunda na seção seguinte deste trabalho (seção 4.2.4). 129 UAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2009 193 ciência sem ética, ou que se propõe a mudar a vida. Note-se a importância do diálogo que se estabelece entre os sentidos extraídos do texto - a ciência precisa de ética - e os sentidos construídos pelo leitor - a vida é bela para ser ‘danificada’ pela ciência’. É esse diálogo que provoca uma negociação de sentidos e que auxilia o leitor na interpretação do texto130 (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008). O diálogo com conhecimentos sociointerculturais é ativado de forma ainda mais contundente no texto 03, influenciado pelo gênero textual, poema, que traz possibilidades maiores de diferentes interpretações. Ao todo foram classificadas 20 ocorrências para esse texto, sendo 11 para a turma A e 09 para a turma B. Entre os extratos, a maioria destaca valores religiosos ou de questionamentos emocionais do personagem. Tome-se como exemplo o excerto a seguir: A.3.3.7 anjo torto: que Deus estava nem um pouco interessado em guiá-lo pois mandara um anjo que não lhe ajudava em nada. Raros amigos: que ninguém está do seu lado apoiando-o em suas decisões e os raros amigos que ele tem nem “ligam” pra ele. Abandonastes: fala que ele não está confiante em Deus e que Deus não está lhe ajudando a encarar a vida. Coração: seu coração está vazio pois ele não crê em mais ninguém. Diabo: que em vez dele correr atrás de Deus ele vai ficar com o que ele acha que lhe convém. O informante destaca duas questões principais na sua interpretação: a primeira é a intertextualidade com o texto bíblico exposto no texto “Meu Deus, porque me abandonaste”. O momento evocado é de sofrimento visto que o texto retoma a frase de Jesus Cristo, que, ao ser crucificado, implora o auxílio de Deus para aliviar seu sofrimento e sua dor. Ou seja, a intertextualidade exposta aqui leva o leitor a construir para o texto momentos de tristeza experimentados pelo autor durante essa fase de sua vida. Isso só é possível pela associação dos conhecimentos do intertexto (crucificação de Jesus Cristo) e os conhecimentos de mundo (dor, sofrimento, pedido de auxílio). Toda a carga cultural deste intertexto é trazida ao diálogo durante a leitura quando ele destaca que Deus não ‘estava nem um pouco interessado em guiá-lo’ ou ‘ele não está confiante em Deus’ ou ainda, em vez de ‘correr atrás de Deus’, ele ‘vai ficar’ com o diabo que ‘lhe convém’. 130 No cap. 5.2 deste trabalho fala-se mais sobre a negociação de sentidos. 194 Verifica-se, aqui, que há uma cadeia de enunciados (BAKHTIN, 2009) que são utilizados para a construção do sentido do poema. Observe-se também que enunciados, que podem aqui ser considerados intertextos já que ativam conhecimentos produzidos por outros textos, são trazidos para o diálogo como meio de construção de novos sentidos textuais: nesse caso, o de que o personagem procura por Deus numa situação de angústia. Koch e Elias (2010) destacam que justamente que “a inserção de velhos enunciados em novos textos promoverá a constituição de novos sentidos” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 78). A segunda é a construção de um sentido ligado a problemas emocionais vividos pelo personagem. O leitor destaca ‘raros amigos’ como palavra-chave e a justifica dizendo que tais amigos ‘nem ligam pra ele’. Ainda, o leitor destaca que: o coração do personagem está vazio, ele não crê em mais ninguém, vai correr atrás do diabo, já que o anjo não lhe ajudava em nada. Note-se que esses sentidos são construídos pelo leitor a partir de uma tentativa de estabelecer coerência para o texto. Essa coerência é construída a partir dos sentidos de tristeza evocados pelo texto bíblico, pela súplica do personagem a Deus, pela sua reclamação no decorrer do texto, pela sua caracterização de ‘ser fraco’. São sentidos que se ligam a uma possível realidade conhecida pelo leitor: se ele está suplicando algo a Deus é porque está com problemas. O leitor procura encontrar no texto quais seriam esses problemas. Ou seja, ele levanta hipóteses para a sua leitura (KLEIMAN, 2002; CASTELLO-PEREIRA, 2003) – ele está angustiado, tem poucos amigos, não crê em ninguém etc. - e aos poucos vai criando um mundo textual (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; KOCH, 2009) em que procura confirmações para essas possibilidades e produzindo sentido numa atitude de interação com o autor via texto. Reitera-se que o leitor, estrategicamente, identifica itens lexicais que confirmam essa interpretação e constrói sentidos ligados à tristeza: o anjo torto que não ajuda, o abandono por Deus, os raros amigos que não ligam pra ele, o coração vazio. Neste outro extrato, vale observar a maneira como o leitor procura, na escolha das palavras-chave, estabelecer um sentido global que relate os fatores emocionais do personagem do texto: A.3.3.10 gauche: deslocado, perdido. Tendo que achar um rumo. Azul: céu azul cheio de desejos, esperanças. Mundo: versões maneira de ver as coisas. 195 A escolha da palavra ‘gauche131’ de início já revela, para o leitor, a situação emocional do personagem: ‘perdido, deslocado’. Ou seja, o leitor não apenas destaca o personagem, mas o limita dentro de um esquema mental específico: ele é um personagem ‘perdido’, sem ‘rumo’. Ao estabelecer o significado da palavra ‘gauche’, o leitor destaca o personagem e procura encaixá-lo dentro de uma realidade textual a partir de possibilidades ativadas por ele sociocognitivamente (isto é, por seus conhecimentos de mundo132 - KOCH, 2009). Em outros termos, o leitor utiliza seus conhecimentos para estabelecer uma relação entre o que está no texto e inferências construídas durante a interação: se o personagem está sem rumo – significado da palavra construído durante a atividade de pré-leitura pela compreensão da palavra ‘gauche’ – ele precisa de esperanças – inferência do leitor. As próximas escolhas são realizadas tendo esse fio semântico condutor (CAVALCANTI, 1989) – um personagem sem rumo -, liderando os demais sentidos do texto e dando a ele força ilocucionária. Note-se a forma como o leitor escolhe ‘azul’ ou ainda mais especificamente o azul do céu, para evocar sentimentos bons, desejos, esperanças, os quais seriam necessários para uma pessoa que se encontra ‘sem rumo’. A ligação entre a cor azul e bons sentimentos também é uma criação possibilitada pela metáfora construída culturalmente de que tal cor significa alegria, felicidade, tranquilidade (p. ex.: Hoje está tudo azul na minha vida). A utilização da frase metafórica133 ‘céu azul cheio de desejos, esperanças’ é utilizada aqui como uma solução para os problemas do personagem ‘sem rumo’. De acordo com Kramsch (1993), os usuários da língua são altamente sensíveis às maneiras pelas quais as palavras representam um estado de mundo por meio de formas, sons, metáforas e pelo modo como essas palavras interagem com o contexto em que são usadas e constroem um significado simbólico. No exemplo abaixo, os fatores sociointerculturais, principalmente aqueles relacionados à crença, ficam também esclarecidos no estabelecimento de sentido pelo leitor da turma A: 131 Durante a atividade de leitura prévia do texto, os alunos questionaram sobre o significado da palavra de origem francesa ‘gauche’, e a pesquisadora interveio dizendo que o significado principal, no poema, é de uma pessoa que está perdida, insegura, que se sente deslocada. 132 Vide cap. 1.4.4 133 Cf. discussão realizada no cap. 1, há uma realidade uma realidade histórica armazenada pelos falantes que faz com que as metáforas sejam compreendidas. KRAMSCH (1993) afirma que ao estabelecer-se interação comunicativa em uma língua aparecem conhecimentos históricos armazenados em uma sociedade, ou um estoque de metáforas vividas pelos sujeitos – vide cap. 1.4.4 p. 62 196 A.3.3.15 anjo torto: é representado por uma força má o diabo, citado ao final do poema. Sombras – explica a palavra anjo torto, que é uma coisa ruim, moradia do anjo torto. Homens: representa que pessoas estão envolvidas (Carlos). Amigos: diz que Carlos não tem amigos ou se tem são poucos. Deus: força do bem que o deixou e a má pegou. Note-se aqui que o informante destaca duas forças em oposição no poema: o bem, liderado pela palavra Deus, e o mal, liderado pelas palavras ‘anjo torto’ e ‘sombras’. Ao mal, ainda, o leitor conecta a palavra que representa aquele que é culturalmente oposto a Deus, ou seja, o ‘diabo’. É interessante ainda observar como o leitor coloca os homens em meio a essa relação entre bem e mal e destaca que, no poema, a palavra ‘homens’ representa ‘que pessoas estão envolvidas’ e que nesse caso é a pessoa do personagem principal, ‘Carlos’. Outro detalhe importante é que o leitor procura também estabelecer o sentido de sofrimento emocional construído pela ideia de que o personagem não tem amigos, o que pode ser resultado de construções sociais e culturais que dizem que: amigos ajudam uns aos outros em momentos difíceis, pessoas que não têm amigos são mais tristes, amigos são importantes na vida das pessoas, os homens não podem viver sem amigos etc. Em outros termos, conhecimentos de mundo, tais como a falta de amizades e ser pego por forças más, justificam, para o leitor, o sentido de tristeza construído para o poema. No exemplo abaixo, o leitor, além de suscitar questões emocionais, procura encontrar um motivo para tais problemas: A.3.3.22 meu deus: em um tom de pânico, de lamentação. Abandonaste: creio eu que seja uma mulher que o largou. Se sabias: mesmo que ele era fraco que não ia aguentar. Fraco: fraco pro amor que não aguenta saber que foi abandonado. Ele seleciona a primeira palavra-chave para estabelecer o tom do poema, ou entonação (como uma possível tradução da palavra ‘key’ utilizada por Hymes (1995) e Scollon e Scollon (2001)); para os autores esse é um dos fatores da gramática de contexto134 que, nesse caso, seria o ‘tom de pânico, de lamentação’. Depois dessa escolha o leitor procura um motivo para o sentimento de lamentação: ser abandonado por uma mulher. E ainda reforça essa ideia ao afirmar que o personagem era ‘fraco pro 134 Cf. cap. 2.2.2 – os fatores de contextos são compreendidos mediante o acrônimo S P E A K I N G (lugar, participantes, fins, sequencia dos atos, tonalidade, instrumentos, normas e gênero) e fazem parte da competência sociolinguística (HYMES, 1995; SCOLLON; SCOLLON, 2001). 197 amor’ e que ‘não aguenta saber que foi abandonado’. Veja-se que esta é uma construção do leitor a partir de seus conhecimentos sociointerculturais: amores não correspondidos trazem sentimentos de pânico, abandono e lamentação. Este não é um sentido exposto no texto de forma explícita, mas é uma construção do leitor possibilitada pelos seus conhecimentos, os quais foram ativados por marcas linguísticas que, para ele, suscitam questões emocionais que explicam o tom ‘de lamentação’ do poema. Outros fatores de contexto também são explicados em outros extratos de alunos: B.3.3.19 torto: achou que um anjo do mal o amaldiçoou. Sombra: que vive de mau humor, é do mau. Fraco: Deus o abandonou e ele sendo fraco não podia resolver seus problemas sozinho. Solução ele precisa de uma solução para algum problema. Comovido: deixa ele mau. Aqui, o informante procura encaixar o texto como ato comunicativo, em um contexto adequado de ocorrência: um anjo o amaldiçoou, ele vive de mau humor, tem problemas, é fraco e precisa de socorro. O contexto de ocorrência possibilita a comunicação apresentada no texto. Scollon e Scollon (2001) denominam esse aspecto de “gramática de contexto” e o define como o elemento utilizado pelos usuários da língua para compreender os sentidos dos enunciados dentro das circunstâncias em que ocorrem. Ou seja, nessa ocorrência, assim como nas anteriores, o leitor utiliza sua competência sociointercultural para a contextualização de uma cena de ocorrência para o personagem do texto e procura estabelecer o cenário, lugar, espaço, tópicos135. Conforme se pode verificar nos excertos expostos até aqui, a competência sociointercultural age como uma construtora das possibilidades de mundo textual, em que o leitor utiliza sua cultura, sua vivência, sua realidade sociolinguística para estabelecer sentido para o texto. A tabela, a seguir, demonstra todas as palavras indicadas pelos estudantes, apontando-as por frequência maior de ocorrência de cima para baixo. As palavras destacadas com seta rosa revelam algum sentido construído a partir da competência sociointercultural: 135 Cf. cap. 2.2.2. 198 TABELA 8 – Palavras-chave que indicam a ativação de fatores sociointerculturais Texto 01 Estudo/ estudar Teorema de Pitágoras Pobre Ensinamento/ ensinar Rico Dinheiro/trocado Lição/lição preciosa Conhecimento Esfarrapado Aprender Instrução Cinco/ cinco anos Garoto/ menino Senhor Saber Indigente Diferença (de classe) Destino Estatísticas Jovem Oportunidade Ofendido Assombrado Transmitir Hipotenusa Livro(s) Divertir/diversão Moro bem Sofrendo Bem vestido Pessoas Sua gente Não Texto 02 Células (tronco) Clonagem Transgênicos (Engenharia) genética Embrião Fertilização Ética manipulação Natureza Humano Consequencia Vida Dilema Sociedade Impacto Cura Descobertas (Engenhar) vegetais Experimento Fome Doenças Estudo Problema Turbilhão Genes Cadeia alimentar Adotar Possibilidade Ecologia Reino (vegetal/animal) Posição Profissionais Arrastados Realidade Frágil Maravilhas Perigos Oportunismo Clara Benefícios Sobreviver Destruídos Riscos Escolha Nova chance Texto 03 Deus Gauche Anjo (torto) Fraco Abandonar Nascer Coração Homem Mundo Desejos Pernas Bigode Bonde Mulher Carlos Diabo Amigos Comovido Raimundo Solução Sombras Conhaque Dizer Sabias Azul Vasto Sério Espiar Simples Raros Pergunta Forte Cheios de pernas Vida Talvez Óculos Conversa ... 199 ... Texto 01 Total de palavras: 33 Texto 02 Desequilíbrio ambiental Rejeitados Favoravelmente Dúvida Alimento Crítico Debate Hipocrático Necessidades Complica Total de palavras: 55 Texto 03 Total de palavras: 37 Pela observação da tabela acima e pelos extratos analisados nesta seção, notouse que: 1) no texto 01, os leitores ativam conhecimentos relacionados principalmente a diferença de classes, realidade social, política e econômica da sociedade, além do preconceito com a pobreza; 2) no texto 02, fatores como ética, possibilidades da ciência, crenças baseadas em religião e/ou produções científicas são constantemente utilizados na construção de sentidos; 3) no texto 03, a contextualização do poema a uma realidade cultural de ter problemas emocionais e encontrar solução para eles, possuir vínculos religiosos é utilizada pelos informantes para construir suas interpretações. Tais interpretações podem estar ligadas também ao gênero do texto que inclui a emotividade como ação comunicativa relativa ao acontecimento deste gênero. O gráfico 6, abaixo, mostra os percentuais de palavras-chave que foram utilizadas para canalizar algum tipo de sentido sociointercultural. A partir do gráfico, observa-se que a incidência da competência sociointercultural apresenta um percentual maior para o texto 03 (67%), se comparada com o texto 01 e 02 (respectivamente 45% e 49%), o que revela a maior utilização de conhecimentos de mundo diversos na ancoragem da compreensão dos leitores para o poema: 200 GRÁFICO 6 - Palavras-chave indicadas que revelam fatores sociointerculturais Ressalta-se, ainda, que fatores sociointerculturais, gramaticais e discursivos não se dissociam durante o processo interpretativo. Reitera-se que se procurou destacar, até o momento, alguns deles em isolamento, por texto, como metodologia de análise e para demonstrar a maneira como são construídos nas justificativas dos leitores. Na seção seguinte, discutem-se exemplos em que a comunicação entre as diferentes competências aparece dialogando de forma mais nítida. 4.1.4 O diálogo entre as competências – a utilização da competência comunicativa como forma de interagir com o texto. Conforme se discutiu no cap. 2 deste trabalho, a competência comunicativa é o conhecimento que o usuário desenvolve sobre a língua e que o capacita a interagir com seus pares. É a partir das características que o usuário vai percebendo na língua em uso, tais como as organizações do sistema, o contexto, as atitudes envolvidas (HYMES, 1995) que o sistema de comunicação se constrói. É também no uso da língua que os falantes, paulatinamente, formam juízos de valor, constroem aspectos socioculturais da sua comunidade e negociam sentidos. Nas seções anteriores, procurou-se demonstrar a maneira como os informantes relataram traços das competências discursiva, gramatical e sociointercultural. No entanto, verifica-se que, na maioria dos extratos, as competências aparecem, agora, em interação mais nítida, demonstrando que a competência comunicativa é utilizada como uma habilidade geral dos usuários no estabelecimento de interação comunicativa durante a leitura. As características observadas sobre a competência discursiva 201 (sequenciação textual, remissão, coerência, coesão, gênero textual) e as observadas sobre a sociointercultural (conhecimentos de mundo diversos tais como crenças, ideologias, culturas) aparecem agora dialogando umas com as outras e auxiliando o leitor a utilizar a palavra-chave como uma estratégia para ativar todos os seus conhecimentos e a construir interpretação textual. Conforme se discutiu também na seção 4.2.1, a competência gramatical apareceu de uma forma mais tímida na justificativa dos alunos o que não significa que não tenha sido utilizada. Por exemplo, o fato dos alunos utilizarem, na maioria das escolhas, palavras de classe aberta, tais como os substantivos, revela que aspectos gramaticais estão em interação com o conhecimento discursivo ou sociointercultural. Neste extrato do texto 2, por exemplo, a competência gramatical aparece nitidamente indicada pelo aluno 12 da turma A em interação com as demais competências: A.2.3.12 engenharia genética: descobertas feitas pela ciência. Alimentos transgênicos: ponto de vista positivo e negativo para o bem do homem e da natureza. Ética: interferência do homem na criação natural da vida. Clonagem humana: existem outras formas de se ter um filho. Células-tronco: salvar vidas, curar doenças, preservar vidas através de outras. Nessa indicação, fica clara a questão do assunto principal abordado em primeiro lugar – engenharia genética – e, ligados a ele, os três pontos discutidos pelo autor136. A questão argumentativa é destacada quando o aluno justifica ‘ponto de vista positivo e negativo’ e quando indica de forma resumida os argumentos do autor na exposição de cada um dos temas – ‘outras formas de se ter um filho’ e ‘salvar vidas, curar doenças, preservar vidas’. A relação existente entre a exposição do tema e seus argumentos está relacionada ao tipo textual – argumentativo -, e é demonstrada pelo leitor na indicação dos substantivos escolhidos como palavras-chave. Isso porque, de acordo com Moura Neves (1997), o substantivo tem uma função de proeminência na organização da informação, tendo também uma função especial como tema e como organizador entre informação nova e informação velha, mapeando recuperações, remissões, projeções de sentido. Isto quer dizer que há uma interação entre a classe gramatical da palavra – substantivo – com a organização textual – proeminência de informações. Essa interação 136 Cf. cap. 4.1.2 – a divisão do texto de formato argumentativo em tópicos principais do texto foi um fator analisado nos excertos da maioria dos alunos para a competência discursiva. 202 também é destacada pelos alunos principalmente na seleção dos substantivos em vários dos extratos a seguir. Entretanto, a interação dada a partir do uso da competência gramatical não é indicada explicitamente pelos alunos na maioria dos extratos, embora ela seja, de fato, utilizada, conforme já foi explicado aqui. O que fica em destaque nos excertos de forma mais nítida são os conhecimentos discursivos ou da realidade social e cultural em que os estudantes vivem. Veja-se como exemplo, ainda no excerto acima, a maneira como o estudante destaca a necessidade de um comportamento ético ao se fazer experimentos científicos. O leitor destaca que há uma questão ética presente na ciência porque ela interfere ‘na criação natural da vida’. Ainda é por meio de experimentos científicos que o homem realiza ações para o seu próprio bem e para a natureza – ‘ para o bem do homem e da natureza’. Conclui-se, portanto, que há uma interação clara entre as competências no extrato acima: i) a competência gramatical: ao selecionar substantivos para o diálogo com o texto, o leitor procura destacar, na classe gramatical, a proeminência de informações textuais, o que acontece também nos demais extratos analisados; ii) a competência discursiva: ao destacar a tipologia argumentativa e a sequência de tópicos do texto; e iii) a competência sociointercultural: ao apontar para a necessidade de se estabelecer uma ética na ciência pois ela deve visar o ‘bem do homem e da natureza’. Analisam-se, agora, outros extratos em que os alunos justificam suas escolhas tanto por conhecimentos discursivos, quanto por conhecimentos sociointerculturais. A tabela 9, na página seguinte, demonstra as ocorrências em que se considerou que havia interação entre as competências discursiva e sociointercultural. O número total de 75 ocorrências foi contabilizado nas tabelas anteriores (tabelas 3 e 7 – p. 164 e 184 respectivamente) tanto como competência discursiva (fazendo parte do total de 130) quanto como competência sociointercultural (fazendo parte do total de 134). É importante apontar, que, de todas as ocorrências contabilizadas como discursivas e sociointerculturais, mais da metade delas estão em interação entre si, o que indica exatamente o fato de que competência comunicativa é um conjunto de habilidades construído de forma completa e interativa pelos usuários para estabelecer ações de comunicação em sua realidade (HYMES, 1995). No caso dos textos analisados aqui, essa comunicação acontece durante um processo de leitura em que os leitores interagem claramente com o texto para construir sentido(s). 203 TABELA 9 – A incidência da competência sociointercultural e discursiva nas justificativas dos alunos Texto 01 Texto 02 Texto 03 Total Total de indicações Competência sociointercultural e discursiva Turma A Turma B 09 12% 03 4% 20 26% 12 16% 17 22% 14 18% 46 61% 29 38% 75 No texto 01, foram 12 ocorrências no total e a maioria delas transita entre os pontos já apontados na seção 4.2.2 para a competência discursiva, tais como a sequência da narrativa, a marcação dos personagens, a remissão, e para a competência sociointercultural, tais como a diferença de classes ou a relação hierárquica entre pobre e rico na sociedade. No excerto abaixo, o estudante procura demarcar dois fatores principais: a) a maneira como as sequências de ações acontecem no texto, o que estaria dentro da competência discursiva; e b) a maneira como a diferença de classes se destaca e as razões para isso, o que seria competência sociointercultural: A.1.3.9 dinheiro: o dinheiro porque o que o menino almeja naquela situação. Cinco anos: os cinco anos que são o tempo que ele diz que os ricos se dedicam mais para aprender. Aprender: porque se ele estivesse [sic] interesse de aprender ele não estaria pedindo um trocado. Conhecimento: se ele o tivesse não estaria nessa situação. Teorema: porque foi com essa palavra que ele constatou que ele não tinha conhecimento. O estudante marca na escolha das palavras a sequência que acontece na narrativa: ‘dinheiro’ que é um marcador textual que delimita o início do diálogo entre os personagens; ‘cinco anos’ utilizado para marcar a diferença de estudo apontada no texto entre os personagens; ‘aprender’ e ‘conhecimento’, utilizados pelo leitor para sinalizar o tema principal sobre o qual o diálogo entre os personagens dão continuidade ao texto, o que é justamente um critério para estabelecer a coesão; e ‘teorema’ para demarcar o momento do texto em que surgem a dúvida e a crítica ali presentes. De forma interativa, conhecimentos de mundo entram em ação na construção da interpretação do leitor. Por exemplo, o informante indica que o pobre deve ter ‘interesse 204 de aprender’, pois se o tivesse, não estaria nessa situação. Ou seja, há discursos construídos socialmente mostrando que para ser rico é necessário um esforço particular em aprender e não ficar na rua ‘pedindo um trocado’. Veja-se, também, no excerto, que o ‘dinheiro’ é indicado pelo leitor como algo que o pobre ‘almeja’ na situação. O leitor delimita linguisticamente a maneira como o dinheiro, o estudo, o esforço demandado são características sociais necessárias para ascensão na sociedade. Kleiman (2002) indica justamente que os itens lexicais ou palavras de um texto ativam tanto dados linguísticos ou textuais quanto conhecimentos de mundo do leitor de forma interativa. Pode-se dizer, então, que os conhecimentos que se tem na memória sobre realidades típicas da nossa sociedade, tais como a diferença de classes e a oposição entre elas, determinam nossas expectativas para a ordem em que as coisas acontecem e, em consequência, delimitam as possibilidades de leitura para um texto. Há uma interação clara entre a marcação linguística feita pelo leitor na indicação das palavras-chave, e os conhecimentos de mundo usados por ele para ativar aspectos culturais e sociais que possibilitam a compreensão do texto. Nesse outro excerto, como em exemplos anteriores, o leitor indica ‘teorema de Pitágoras’ como assunto principal que ‘foca o texto’ para delimitar uma ação textual importante na qual a crítica surge: A.1.3.14 teorema de Pitágoras: porque foi o assunto principal que foca o texto, por o menino não saber o que é. Ensinamentos: o homem queria que em vez de dar dinheiro queria lhe oferecer algo bem melhor como ensinamento. Estatísticas: de se enriquecer com estudos se você gosta de estudar você vai longe. Hipotenusa: que o autor foi um pouco irônico de usar como exemplo a hipotenusa. Instrução: algo que o homem rico queria desenvolver com o pobre. O fator interessante neste excerto é que o leitor utiliza como ponto de partida para suas justificativas uma questão discursiva: o assunto principal do texto. Ele procura, em primeiro lugar, indicar onde está o sentido global na construção da coerência para o texto e aponta que ali há uma crítica: ‘o menino não sabe o que é’. A esse fator discursivo, o leitor vai conectando conhecimentos sociais e culturais de que ensinamento é melhor que dinheiro, com estudos pode-se enriquecer e alcançar sucesso. Outro detalhe importante é a maneira como o leitor destaca, na palavra ‘hipotenusa’, a ironia contida no texto. O informante identifica o assunto principal – a 205 crítica levantada pelo não conhecimento do teorema de Pitágoras – e ali ele também concentra um fator de ironia construído a partir de seus conhecimentos de mundo: o menino pobre não sabe o teorema, mas o rico também não sabe, pois esse último se pergunta várias vezes qual é a fórmula do tal teorema. É necessário destacar que hipotenusa está dentro dos esquemas mentais ativados pelo teorema de Pitágoras (a hipotenusa está compreendida na fórmula do teorema) e é a partir disso que o leitor consegue construir um sentido de que há um viés irônico presente no texto. Isso porque a ativação de esquemas é fundamental no processo de leitura (ECO, 1979; KLEIMAN, 2002; DIJK, 2002137) e faz com que o leitor logre êxito no reconhecimento das partes semânticas de um texto ativando todos os conhecimentos ligados a determinados itens lexicais (ECO, 1979). À medida que a leitura evolui, o leitor vai reorganizando esses esquemas e construindo o seu pensamento de maneira a fornecer coerência ao texto. Isto é, fatores semânticos, socioculturais, discursivos são ativados ao mesmo tempo na escolha da palavra-chave e auxiliam o leitor na interpretação textual. Vale observar que a ironia é construída a partir de uma ligação entre a) o fator discursivo de que o personagem rico critica o pobre por não saber o teorema; e b) o conhecimento de mundo do leitor que infere que o rico também não sabe o teorema e mesmo assim está criticando o pobre. Veja-se que é justamente neste ponto do texto em que a ironia auxilia o leitor a construir a ideia da crítica do texto. É importante relembrar aqui que, como se viu no cap. 1, a leitura é uma atividade de construção de sentidos que pressupõe a interação autor-texto-leitor. Assim, é preciso considerar que, nessa atividade, além das pistas e sinalizações que o texto oferece, entram em jogo os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; ELIAS, 2010). É o que se destaca no exemplo abaixo, ou seja, a maneira como as sinalizações e marcas linguísticas do texto dialogam com o que o leitor sabe sobre a realidade: B.1.3.7 esfarrapado: um menino pedindo dinheiro na rua. Bem vestido: que quer dar lição de moral no (esfarrapado) e nem mesmo ele sabe o que ele ta dizendo. Ensinamento e estudo: duas palavras que começam fazer parte da nossa vida, e só vamos tirá-las se nós quisermos, e temos que saber aproveitar nossas oportunidades. 137 Cf. cap. 01 206 O leitor utiliza as palavras-chave para identificar os personagens e, ao mesmo tempo, separá-los em classes sociais: de um lado o menino ‘esfarrapado’ pedindo dinheiro e, de outro, o homem ‘bem vestido’. O estudante também procura marcar claramente a crítica do texto quando afirma ‘nem mesmo ele (o bem vestido) sabe o que ele ta dizendo’. Atrelado a essa marcação textual, o leitor se coloca no interior da narrativa do texto utilizando primeira pessoa: ‘começam a fazer parte da nossa vida’, ‘Só vamos tirá-las se nós quisermos’, ‘temos que saber aproveitar nossas oportunidades’. O leitor se coloca na posição daquele que recebe o conselho de estudar para alcançar sucesso na vida. Para o leitor, as palavras, de fato, fazem parte da sua vida, pois ele assume para si mesmo a tarefa de se esforçar, estudar e aproveitar as oportunidades para chegar à classe social mais alta. Pode-se, então, dizer que as palavras-chave escolhidas pelos estudantes representam estruturas de pensamento que extrapolam o conhecimento linguísticogramatical e funcionam como matrizes cognitivas construídas pelo leitor para expor sua representação da realidade. Uma interação constante entre as manifestações sociais e culturais e a língua é representada no uso e não acontece aleatoriamente, mas é ativada pela escolha do léxico da língua (ANTUNES, 2012). Destaca-se para isso o seguinte exemplo: B.1.3.20 esfarrapado: garoto pobre sem estudo. Dinheiro: o que faz tudo acontecer. Ensinamento: homem querendo ensinar sem razão. Livros: mostra a oportunidade de pessoas mais ricas. Ofendido: a raiva que a classe mais pobre sente. Nesse excerto, o leitor marca de forma muito clara as ações textuais-discursivas indicando os personagens e os atos realizados por eles no texto: o esfarrapado sem estudo, o homem rico querendo ensinar, o tempo de estudo das pessoas ricas e a ofensa sentida pelo pobre. É interessante a maneira como o estudante utiliza essa sinalização também para demonstrar o diálogo que ele estabelece na comunicação com o texto expondo os conhecimentos por ele ativados. Note-se que ele indica uma compreensão da diferença de classes dada pelo dinheiro (‘o que faz tudo acontecer’) e também na indicação de ‘livros’ porque representam a ‘oportunidade’ que só os mais ricos têm. Outro detalhe é que o leitor está completamente ciente de que os anos a mais de estudo e a oportunidade do mais rico não fornece a esse personagem o direito de ensinar algo ao mais pobre porque quem ‘faz tudo acontecer’ é o dinheiro e não o ensinamento. 207 O leitor aponta também para o adjetivo ‘ofendido’, relatando o sentimento do mais pobre quando ele não consegue alcançar o mesmo sucesso que o rico ou não tem a mesma oportunidade que ele. Há uma variedade de manifestações socioculturais sendo representadas no texto por meio da escolha das palavras-chave: a diferença entre classes representada no poder do dinheiro, a oportunidade de estudos, a ofensa do pobre por não ter a mesma oportunidade. Se essas representações não fossem perceptíveis na realidade do leitor, certamente ele não usaria tais conhecimentos para produzir sentido ou produziria sentidos completamente diferentes. Antunes (2012) também destaca que pensar nos efeitos decorrentes da escolha das palavras é reconhecer que, em um texto, uma palavra expressa mais do que um sentido. Isso porque ela pode também expressar intenção, propósito, cultura. Sendo assim, a escolha de umas palavras em detrimento de outras na produção e na interpretação do texto possibilita a revelação de tais funções da língua. No texto da crônica, por exemplo, sabe-se que uma das funções comunicativas do gênero é justamente suscitar uma crítica social. O leitor está consciente disso quando aponta, na escolha das palavras-chave, o fato de haver diferença de classes e que nem sempre essa diferença se dá por causa dos anos a mais de estudo, como no exemplo: A.1.3.3 lição: foi o que o rapaz tentou fazer com o garoto ele acreditou que daria uma lição para o menino não pedir esmola e sim estudar. Dinheiro: era do que o menino precisava e o rapaz tinha sobra, a diferença de classes, como se o dinheiro estivesse acima de tudo. Destino: no texto essa palavra é relatada como se nada fosse obra do destino mas sim consequência de suas escolhas. Conhecimento – é algo que buscamos através do estudo, o conhecimento que o rapaz tentou passar ao menino foi de que ele deveria estudar, indiferente se isso não fosse o que ele fez. Instrução foi a ajuda que o rapaz em tese deu ao garoto. O leitor, assim como nos exemplos anteriores, indica dois aspectos principais: i) discursivo: quando indica os personagens, a sequência de ações desenvolvidas por eles e a continuidade textual que dá ao texto; e ii) sociointercultural: quando aponta que o mais importante no texto (e na sociedade de classes) é o dinheiro. O leitor expõe claramente a sua posição quando afirma que dinheiro era o que ‘o menino precisava e o rapaz tinha de sobra’ e ainda reforça a ideia dizendo que é ‘como se o dinheiro estivesse acima de tudo’. Para o leitor, o dinheiro é a forma de se dividir a sociedade em classes e que isso é obra do ‘destino’ e não necessariamente das ‘escolhas’ dos personagens. Ele 208 reforça essa sua indicação ainda quando admite que o rapaz tentou ensinar o menino a estudar, mas o rico estava ‘indiferente’ - ‘indiferente se isso não fosse o que ele fez’- e que o fato do menino estar na rua pedindo dinheiro não necessariamente significa que ele não estava indo pra escola, ou buscando ascensão social por meio do estudo. O informante relata ainda, que o rapaz ‘em tese’ deu uma instrução, um conhecimento ao garoto e está ciente que o fato de estudar mais não garante que o pobre alcance a riqueza que ‘o menino precisava’. Neste excerto, o leitor procura amarrar suas escolhas das palavras-chave para demonstrar a crítica construída pelo gênero crônica, e a esse aspecto textual ele sobrepõe seus conhecimentos de mundo que dizem que na sociedade de classes quem manda é o ‘dinheiro’, ‘o destino’ e as ‘oportunidades’ dos mais ricos. A relação entre aspectos discursivos de identificação do gênero e conhecimentos de mundo utilizados para construir interpretação não se fazem presentes somente no texto 01. Na verdade, conforme se discutiu na seção 4.2.2, sobre a competência discursiva, verificou-se que o leitor utiliza seus conhecimentos textuais sobre a função comunicativa do gênero para auxiliar na construção de suas interpretações. No texto 02, a posição argumentativa do gênero artigo de opinião é utilizada pelos leitores para produzir sentidos para o texto. Foram analisados 32 extratos (20 para a turma A e 12 para a turma B), nos quais se observou a interação entre as competências discursiva e sociointercultural para construção de sentidos no momento da leitura. Esse número maior de indicações em que uma série de conhecimentos é utilizada pelos leitores para construir interpretação pode ser explicado pelo perfil dos alunos138: grande parte dos alunos da turma A afirma ter interesse em seguir uma carreira em ciências médicas e da saúde. Note-se que as indicações da turma A são mais extensas que as da turma B e é natural que estudantes que pretendem prestar vestibular para a área de saúde se interessem mais pelo texto que trata de ciência genética. Abaixo, tem-se um primeiro extrato das justificativas do aluno 11 da turma A: A.2.3.11 descobertas, sociedade, genes, engenhar, sobreviver. Descobertas: o texto fala do que está acontecendo hoje, a ciência está indo cada vez mais longe descobrindo muitas coisas, mas nem sempre benéficas a todos. Sociedade: qual o papel da sociedade diante disso, se aprovamos o que não 138 Cf. cap. 3 209 aceitamos o que apoiaremos e o nosso papel de desenvolver essas tecnologias. Genes: é um dos pontos centrais do texto a mudança deles, isso é a tecnologia. Engenhar: os estudos realizados sobre eles, o avanço. Sobreviver: como essa nova tecnologia é distribuída se vai ser bom para todos, se usam agora de forma correta, como vamos levar isso. Nesse extrato, o leitor destaca a separação de alguns dos temas 139 (HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997) em evidência no texto: as ‘descobertas’ da ciência, a manipulação dos genes, o desenvolvimento de tecnologias científicas. O informante indica ainda que sua tarefa é se concentrar nos aspectos principais do texto e escolhe ‘genes’ como um dos ‘pontos centrais’, ou seja, como um dos temas que lideram o encadeamento de sentidos. No entanto, o estudante utiliza muitos de seus conhecimentos vinculados às suas experiências e aos discursos aos quais é exposto, deixando-os claros na sua justificativa. Note-se o caso da escolha de ‘sociedade’: o usuário procura indicar a necessidade da sociedade se posicionar com relação à ciência, pois essa pode ‘nem sempre’ ser ‘benéfica a todos’. Ele ainda procura acionar conhecimentos culturalmente aprendidos de que é necessário agir em conjunto com a sociedade para o bem de todos quando destaca que é necessário pensar ‘como a tecnologia é distribuída’, ‘se vai ser bom pra todos’. O leitor destaca ainda o fato de que a ciência genética ‘está indo cada vez mais longe’ e é necessário pensar nos benefícios para a sociedade. Ou seja, o leitor constrói um sentido principal (DIJK; KINTSCH, 1983) – o de que a ciência genética é responsável pela descoberta de fatores importantes na sociedade – e a isso ele liga sentidos baseados numa necessidade social (KRAMSCH, 1998) - pensar nas consequências e no ‘bem de todos’. As experiências socioculturais dos estudantes também são relatadas no excerto seguinte: A.2.3.4 células-tronco: é o assunto de destaque que causa um impacto muito grande por ser polêmico e sério. Curar: palavra forte por ser algo que muda o curso de uma vida. Problema: palavra que evidencia que algo está errado que a genética tem seus problemas. Embriões: da onde pode sair a cura de doenças que se julgam incuráveis.ética: uma palavra muito discutida e extremamente importante. 139 Cf. 4.2.2 sobre a competência discursiva. 210 No extrato, o informante destaca o seu conhecimento a respeito da engenharia genética dizendo que é um assunto ‘polêmico e sério’, atrelando a ele a importância de comportamentos éticos dentro do ambiente de estudos genéticos. Veja-se que experiências de vida do leitor são evocadas na interpretação quando ele afirma que a palavra ‘cura’ é muito ‘forte’ porque pode mudar ‘o curso de uma vida’. O leitor salienta uma necessidade imposta pela sociedade de se encontrar a cura para doenças ‘que se julgam incuráveis’, e quem pode fazer isso é a ciência genética. O teor altamente argumentativo do texto pode ter influenciado nessa interpretação do leitor, pois é justamente no assunto células-tronco que o autor destaca que embriões são usados na descoberta de doenças graves, aprovando o uso da engenharia genética nesse aspecto. O leitor indica essa aprovação no texto e a coloca como benéfica, mas ao mesmo tempo indica que ela interfere na vida em sociedade porque, reitera-se, a palavra ‘cura’ é muito ‘forte’ e o assunto é ‘polêmico’. Na justificativa abaixo, o informante demonstra a focalização do tema central – a célula-tronco - pela argumentação textual feita pelo autor: A.2.3.20 transgênicos: experiência com produtos modificados; humanidade: quem sofrerá com os efeitos. Clonagem: copias reais. Experimento: tentativa de melhora. Células-tronco: tema central. Note-se que, embora o assunto central do texto seja a ciência genética, o autor dá um destaque primordial à questão da aprovação da célula-tronco, em oposição aos temas anteriores, os quais possuem argumentação contrária à sua prática. Mais um fator importante neste exemplo é a maneira como o leitor destaca ‘humanidade’ e relata que é quem ‘sofrerá com os efeitos’. O leitor procura indicar no diálogo com o texto que há, de fato, efeitos ruins produzidos pela ciência genética e que pode haver sofrimento com relação a isso. É importante lembrar que: no mundo da nossa percepção e memória, os dados apreendidos organizam-se em esquemas cognitivos que respeitam as relações, as proximidades comuns, os cruzamentos de pertencimento natural e cultural das coisas. Tudo está arrumado, tudo está estruturado para ter sentido sob o prisma da relação, da pertença coletiva, do destino comum, do que resulta uma espécie de herança social com que interpretamos nossas experiências. Consequentemente, é comum que, em nossos discursos, falemos de coisas afins, de coisas que se aproximam sob qualquer foco, no interior de determinado grupo ou cultura (ANTUNES, 2012, p. 88). 211 Aquilo que Antunes (2012) aponta como uma arrumação ou uma estruturação para fazer sentido na perspectiva do pertencimento corrobora o fato de que os leitores relacionam aspectos discursivos, como a argumentação, a aspectos culturais, como a necessidade da cura, ou o sofrimento de efeitos possivelmente ruins. Há uma limitação do discurso do falante, nas justificativas, a uma área que é possível ser estudada pela ciência genética. Os informantes não apontam geralmente para quaisquer outros fatores científicos como a descoberta de novas fórmulas matemáticas, ou a preservação de animais em extinção. Eles procuram limitar sua interpretação a um campo específico: o que a ciência genética é capaz de fazer para ajudar a sociedade. Ou seja, os leitores fazem exatamente o que Antunes (2012) aponta: concentram seus discursos a coisas afins, a coisas que se aproximam sob um certo prisma, ou à sua cultura. Veja-se, neste outro extrato, a maneira como os leitores utilizam questões discursivas – a marcação temática dos pontos principais do texto – atreladas a questões socioculturais: A.2.3.1 transgênicos – é uma das causas que estão acabando com nossa saúde; clonagem: estão fazendo de tudo para que a natureza não se manifeste, até clonagem, com isso as pessoas já estão podendo escolher como será seu filho; genética: é um dos assuntos mais abordados hoje; embriões: hoje as pessoas guardam para utilizar anos depois e também já está sendo usados para tratar de doenças; vida – é o assunto mais importante O leitor destaca os temas principais expostos na argumentação do texto: genética - transgênicos, clonagem, células-tronco (‘embriões’) - e ainda afirma que na sua interpretação ‘vida’ é ‘o assunto mais importante’. Para o leitor, todas as questões abordadas no texto e indicadas por ele - aspectos discursivos - devem ser pensadas no que diz respeito à ‘vida’, à sua preservação ou destruição, à natureza, à saúde o que são considerados aspectos sociointerculturais por fazerem parte dos discursos e defesa de comportamentos vividos pelos leitores em sua realidade. O informante aponta ainda para conhecimentos utilizados extratexto para construir interpretação quando indica que com a clonagem ‘as pessoas estão podendo escolher até como será seu filho’. O leitor ressalta que os estudos divulgados pela genética, aos quais ele tem acesso, revelam a possibilidade de escolher a aparência dos 212 filhos. Para o leitor, essa ação é feita por meio da clonagem e da ciência genética, que ‘é um dos assuntos mais abordados hoje’. Deve ser lembrado que mesmo que isso seja feito, não pela clonagem, mas pela manipulação genética, o leitor limita seus conhecimentos a áreas afins: fala-se de manipulação genética e clonagem é uma dessas práticas. Outro detalhe é que o leitor indica claramente que utiliza outros discursos para interagir com o texto a partir dos quais ele é capaz de construir conhecimento. Ele aponta para uma prática social de congelar embriões: ‘hoje as pessoas guardam para utilizar anos depois’. Essa indicação só pode ser feita mediante o conhecimento de que embriões são utilizados pela medicina para dois tipos de práticas: a) a pesquisa em ciência genética, o que é exposto no texto; e b) a utilização dos embriões em algum aspecto ou momento da história, como por exemplo, para dar vida a uma criança no momento em que uma pessoa achar mais oportuno, o que é construído pela inferência do leitor. Nesse outro exemplo, a relação entre a sequência textual, a tipologia argumentativa e os conhecimentos de mundo do leitor também fica exposta: A.2.3.3 arrastados: essa palavra remete ao objetivo geral do texto pois de acordo com nosso consentimento ou não a genética está cada vez mais avançada. Dilema: o assunto tratado pelo texto é verdadeiramente uma discussão de várias partes que concordam ou não com todas essas modificações ocorridas. Natureza: essa palavra é de suma importância, pois as mudanças genéticas estão ocorrendo e podem afetar tanto a natureza quanto a humana. Clonagem: de acordo com o texto a clonagem é algo desnecessário e impróprio pois pode trazer mais malefícios do que benefícios. Células-tronco: algo necessário que ajudaria várias pessoas com certas doenças a viverem melhor, porém algumas pessoas dizem que é como “matar vidas” mas para o autor do texto seria algo maravilhoso para restituir a vida de tantos sofredores. O leitor, assim como nos extratos anteriores, procura demarcar assunto principal, a genética, indicando a palavra ‘arrastados’. É interessante observar que o estudante indica que ‘o objetivo geral do texto’ é a genética, mas as pessoas são abordadas por essa ciência de uma forma intensa, e são, de fato, ‘arrastadas’ por ela porque ela avança rapidamente ‘com nosso consentimento ou não’. Ou seja, o leitor, utiliza dois tipos de competência para construir interpretação: i) a discursiva: para encontrar o assunto 213 principal – estabelecimento da coerência global; e ii) a sociointercultural para fornecer a esse assunto uma característica social de ‘arrastar’ as pessoas para um consentimento. Note-se também, que o leitor, ao destacar conectivos tais como ‘pois’, ‘porém’ e ‘mas’, utiliza tanto sua competência gramatical por estar ciente da função de tais elementos na construção das frases, quanto sua competência discursiva ao destacá-los como fatores de demarcação da posição do autor na argumentação e utilizá-los como elementos responsáveis pela coesão do texto. Para indicar a posição negativa do autor com relação à clonagem - ‘algo desnecessário e impróprio’ - o leitor utiliza um conectivo de consequência, ou explicativo – ‘pois’ – e afirma que a razão para isso é que a clonagem traz ‘mais malefícios do que benefícios’. Cabe destacar que o leitor faz isso mediante inferências e generalizações a partir do texto e dos argumentos do autor. Por outro lado, para demonstrar a posição favorável do autor com relação às célulastronco, ele utiliza os conectivos adversativos ‘porém’ e ‘mas’, colocando os argumentos do texto em oposição: por um lado, células-tronco ajudam pessoas doentes a terem uma vida melhor, e ‘restitui vidas’ e, por outro lado, para alguns, é como posição ‘matar vidas’. Nessa relação de oposição estabelecida a partir dos conectivos, o leitor marca claramente a posição do autor: ‘para o autor é algo maravilhoso’. Em outros termos, o leitor identifica a oposição e, ao mesmo tempo, define a atitude favorável do autor com relação ao tema. É interessante dizer aqui que o leitor está ciente da relação estabelecida entre seus conhecimentos gramaticais, discursivos e sociointerculturais. Ele utiliza os conectivos e suas relações semânticas (oposição, consequência) para dar ao texto coesão, marcando proposições, bem como sequências expostas no texto, e ainda utiliza a maneira como seu conhecimento é representado – ‘arrastar as pessoas ao consentimento’ - para estabelecer relações lógicas de ação e percepção, construindo coerência. No exemplo anterior ainda, o leitor indica a tipologia altamente argumentativa do texto, utilizando seus conhecimentos textuais de que em textos dissertativos argumentativos há a necessidade da exposição das diferentes posições a respeito do tema: ‘verdadeiramente uma discussão de várias partes que concordam ou não’, ‘de acordo com o texto a clonagem é algo desnecessário e impróprio’, ‘algumas pessoas dizem que é como ‘matar vidas’ mas para o autor do texto seria algo maravilhoso’. Veja-se como o leitor aponta para questões discursivas na polêmica entre as diferentes opiniões levantadas e argumentadas pelo autor, e afirma que, ‘de acordo com o texto’, ‘para o autor’, ‘discussão de várias partes’, há ideias em oposição. O informante 214 focaliza, na sua interpretação, questões relativas à competência discursiva (gênero e tipologia), procurando demarcar a maneira como a argumentação é construída, e delimita, nas justificativas, as diferentes opiniões em oposição. Conforme se observou na seção 4.1.3, as questões de gênero também influenciaram os informantes na interpretação do texto 03. Para esse texto, foram analisadas um total de 31 justificativas, classificadas para o diálogo entre as competências discursiva e sociointercultural140, sendo 17 da turma A e 14 da turma B. Esse alto número de extratos para o texto pode ser explicado pelo gênero literário poema, o qual, de fato, comporta mais possibilidades de criação e por consequência da utilização de diversos conhecimentos. Isso porque de acordo com Antunes (2012), o léxico é a matéria onde será assentado o jogo da criação literária. As possibilidades que ele comporta são inúmeras; são hipoteticamente infinitas, em se tratando de literatura. Mas, no momento mesmo da criação – da criação mais agudamente criação – o ‘dizível’ entra nos contornos disponíveis no léxico e, assim, torna-se menos extenso e mais suscetível de sofrer as restrições das seleções das palavras (ANTUNES, 2012, p. 127). Isto significa que, no poema, o leitor procura restringir seus conhecimentos às seleções das palavras, mas o gênero literário por si só lhe dá mais liberdade de criar e fazer relações hipotéticas, confirmando ou não suas possibilidades de leitura. O leitor estabelece para o texto o que pode ou não estar sendo dito a partir do léxico utilizado na escolha das palavras-chave. No exemplo abaixo, o gênero poema possibilita uma criação de um mundo textual diferente do mundo real quando o leitor fornece à palavra ‘mundo’ uma possibilidade de ser um lugar onde ‘nunca se foi’: A.3.3.13 gauche: homem que vê a vida de um modo diferente; bonde: seria lugares cheio de pessoas, na maioria mulher. Fraco: mandou ver o mundo mais que não resistiu a algo; mundo: ver como é estar em lugar aonde nunca se foi. Coração: tem sentimentos, pode estar com sentimentos bons e também ruins. O jogo da criação literária de um mundo textual próprio do texto é marcado pelo leitor em vários momentos, ao indicar: ‘gauche’ como um homem que ‘vê o mundo 140 Cf. tabela 9 na p. 203 que mostra o número de justificativas classificadas em diálogo entre as competências discursiva e sociointercultural. 215 diferente’; ‘bonde’ - visto pelo leitor como um lugar onde se vê várias pessoas, principalmente mulheres (esse fator talvez explique a questão apontada pelo leitor da fraqueza do personagem de ‘não resistir a algo’, o que pode ser mulheres); e ainda ‘mundo’ visto como ‘um lugar onde nunca se foi’. Ou seja, o leitor cria um mundo textual no qual seja possível estabelecer coerência para o texto (ECO, 1979). Outro detalhe importante neste extrato é o fato do informante indicar ‘coração’ como palavra-chave, para indicar os sentimentos do personagem, os quais podem ser tanto ‘bons’ quanto ‘ruins’. Veja-se que uma palavra presente no texto é destacada como chave para realizar conexões culturais: embora coração seja um órgão do corpo humano (uma questão fisiológica, portanto), ao falar nessa palavra, questões culturais relacionadas a aspectos de sentimento, amor, emoções são trazidas à tona. Isto quer dizer que sentidos também são construídos a partir do uso social de uma palavra na comunidade da qual o leitor faz parte. No exemplo anterior da turma A e no extrato a seguir do aluno 12 da turma B, os leitores utilizam elementos da superfície do texto para ativar sequência textual das ações e estruturas de conhecimento: B.3.3.12 carlos me faz lembrar o nome dele. Espiam: que alguém em casa monitora ele. Pernas: quer dizer que ele gosta de pernas é mulherengo. Fraco: que ele é fraco a mulheres. Coração: que ele é mais emotivo que racional. O leitor procura demarcar o personagem no texto na escolha de ‘Carlos’, um substantivo próprio, como palavra-chave. Observe-se que as demais escolhas das palavras estão todas ligadas a esse personagem: o informante utiliza o pronome ‘ele’ sempre como remissivo a Carlos e nas justificativas explica as ações desenvolvidas pelo personagem no texto. Em outros termos, o fato interessante aqui é a maneira como o estudante explica tais ações a partir de inferências que faz a partir do texto: ele é monitorado - ‘alguém em casa monitora ele’; ele é ‘mulherengo’ - inferência do leitor possibilitada pela afirmação do texto de que no bonde haviam muitas pernas associada à informação da estrofe anterior de que os homens correm atrás de mulheres; ele ‘é fraco a mulheres [sic]’; ele se deixa levar por suas emoções - ‘é mais emotivo que racional’. Note-se a maneira como as informações do texto possibilitam a criação do leitor dinamizando a língua na escolha das palavras-chave. As inferências são construídas a partir de informações do texto, ligando-as a possibilidades reais armazenadas em seu 216 conhecimento de mundo, ou seja, o texto afirma em uma estrofe que os homens correm atrás de mulheres e em outra estrofe que no bonde haviam muitas pernas. A partir disso o informante infere que ele é ‘monitorado’ porque é ‘mulherengo’, é ‘fraco a mulheres [sic]’ e se deixa levar por suas emoções. Há uma associação de sentidos possíveis dadas às frases e a sequência textual em que as palavras ocorrem no poema. Agora, outro excerto: B.3.3.20 nasce: mostra o começo da vida, a partir desse ponto acontesse[sic] o entendimento da vida; mundo: o tema que o narrador quer falar e fazer críticas. Coração: o que ele quer mostrar é os seus sentimentos do seu coração. Dizer: mostra o seu desabafo sobre o mundo e a vida. Comovido: uma certa ironia sobre o tema abordado. Neste extrato, o estudante demonstra ações possíveis na vivência de qualquer pessoa como forma de estabelecer sequência de ações e coerência textual: nascer, demonstrar sentimentos, desabafar. Juntamente a isso o leitor mostra como a escolha das palavras indica para ele a possibilidade de criar com a língua: a) o entendimento da vida acontece a partir do nascimento; b) o autor quer fazer críticas sobre o mundo; c) ele quer mostrar sentimentos; d) desabafar sobre o mundo e a vida. Veja-se que são as possibilidades de leitura indicadas pelo leitor na escolha das palavras-chave. Essas possibilidades são limitadas a duas coisas principais: a sequência exposta no texto e a estrutura de conhecimentos do leitor que permite essa criação. O leitor, de fato não poderia tirar a conclusão de que o personagem está muito feliz com sua vida, se no texto, ele se depara com enunciados que demonstram reclamação, súplica, tristeza, comoção. Ou seja, a escolha das palavras possibilita a criação imaginária do leitor numa dinâmica interna, mas ao mesmo tempo essa criação é limitada aos sentidos construídos no texto. Antunes (2012) destaca que o léxico é aberto e pode sofrer alterações diversas mantendo uma dinâmica interna. Isso não quer dizer que as palavras podem ser destituídas de qualquer significado e se possa dar a ela um estado cognitivo zero, o que, de fato, não acontece nas justificativas dos alunos. As palavras se associam a outras criando novos sentidos conforme o contexto em que se inserem. Há uma instabilidade no léxico que nos permite inventar e (re)criar com a língua, o que é limitado aos sentidos possíveis construídos pelo encadeamento de palavras, frases e o texto como um 217 todo. No excerto abaixo, o leitor procura relacionar diferentes personagens do texto a ações ali realizadas: B.3.3.6 (anjo) que quando o homem nasceu disse vai Carlos vai ser alguém na vida. Mulheres: que os homens correm atrás delas na noite. Homem: que se alucina ao um anjo e uni atrás das mulheres e se desanima e reclama. Deus: que o homem desafia sobre ele coisas que não conseguiu. Mundo: que o homem reclama do mundo pelo que não conseguiu. Veja-se como o leitor separa as ações e os diálogos intratexto a partir da escolha de palavras que indicam os personagens: em um primeiro momento, o anjo que conversa com o personagem principal, mulheres que o ‘desanimam’, o homem – Carlos - que é identificado como aquele que se ‘alucina’ pela imagem do anjo e das mulheres, ‘Deus’ que ‘desafia’ o homem, e o mundo como foco da reclamação. É importante observar a maneira como o leitor, também neste extrato, cria um mundo textual (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; ECO, 1979) a partir da escolha das palavraschave: um mundo em que o personagem reclama, sofre por correr atrás das mulheres, desanima, é desafiado pelas coisas que não conseguiu realizar. Ao separar a palavra do texto, o informante, na verdade, a relaciona a um sistema subjacente que possibilita as ações textuais (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010; KOCH; TRAVAGLIA, 2011). É importante lembrar que a relação estabelecida pela palavra e suas possibilidades na vida real é também possibilitada pela realização de um enunciado em um determinado gênero, que, nesse caso, tem uma função poética de criação. Ou seja, há uma interligação constante entre a palavra, o enunciado e o gênero em que é concretizada. O extrato seguinte exemplifica tal interligação: A.3.3.19 anjo torto: veio para ele anunciando a desgraça da vida dele. Pernas: não vê o rosto das pessoas por elas não lhe chamarem a atenção tanto quanto o maquinista. Atrás: que o homem fica atrás dos óculos e do bigode que ele disfarça o que ele é ou que ele triste por ficar sempre atrás. Sabias: Deus e o mundo sabiam que ele era fraco e mesmo assim o deixaram viver. Conhaque: é a solução prévia para a tortura dele. Note-se aqui que o estudante destaca as palavras-chave de alguma forma relacionadas aos personagens – ‘anjo’, ‘homem’, ‘Deus’ - e às ações realizadas no texto – ‘anunciar desgraça’, se ‘disfarçar’, ficar ‘triste’, ser ‘fraco’, arrumar ‘solução’ - como 218 uma forma de fornecer coerência ao texto. Junto a isso, o leitor procura dar aos enunciados um tom de tristeza e de sofrimento - ‘triste por ficar sempre atrás’, ‘sabiam que ele era fraco’, ‘solução para a tortura’ - como forma de estabelecer a função comunicativa do gênero e ativando a criatividade, a emoção e o imaginário. Bakhtin (2000) afirma justamente que a palavra é escolhida para qualquer interação verbal (portanto, na leitura também) como forma de relacionar enunciados às suas manifestações típicas, ou seja, aos gêneros: quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de um enunciado, nem sempre a tiramos, pelo contrário, do sistema da língua, da neutralidade lexicográfica. Costumamos tirá-la de outros enunciados e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao nosso pelo gênero, isto é, pelo tema composição e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um gênero. (...) no gênero a palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato típicos entra as significações da palavra e a realidade concreta. Daí se segue que as possibilidades de expressões típicas forma como que uma supra-estrutura da palavra. Essa expressividade típica do gênero, claro, não pertence à palavra como unidade da língua e não entra na composição da sua significação, mas apenas reflete a relação que a palavra e sua significação mantêm com o gênero, isto é, com os enunciados típicos. (BAKHTIN, 2000, p. 312). Bakhtin (2000) argumenta que as palavras também ganham sentidos a partir da sua ocorrência em um “enunciado típico”, ou seja, em um gênero. Pode-se dizer, assim, que a ocorrência das palavras no gênero poema faz com que o leitor forneça um sentido ligado à emotividade do gênero em si. Há uma conexão entre as escolhas das palavras, a expressão típica em que se inserem – ou o gênero – e as funções comunicativas que elas têm no interior do texto. Veja-se também, no exemplo anterior, a maneira como o leitor oferece uma solução ao personagem: o ‘conhaque’. Essa afirmação pode estar sendo influenciada por um conhecimento sociocultural de que a bebida é utilizada como forma de fugir dos problemas. É o que acontece também na justificativa seguinte: A.3.3.24 nasci: a pessoa nasceu desorientada sem ideia do mundo. Coração: que o coração não conhece as coisas que os olhos estão acostumados a ver. Fraco: ele era fraco perto de Deus e Deus abandonou ele. Solução: que o mundo está cheio de problema e o nome dele não daria solução. Comovido: que com uma bela lua e um conhaque ele fica bom. 219 O informante utiliza as palavras ‘solução’ e ‘comovido’ como uma forma de associar os significados a realidades criadas no texto. Ou seja, há uma conexão entre as palavras e a maneira como o leitor constrói a interpretação de que há um personagem triste, abandonado por Deus, que procura uma solução e que com ‘uma bela lua’ e um ‘conhaque’, o personagem pode ‘ficar bom’. Antunes (2012) afirma que a associação semântica entre as palavras que criam o mundo da ficção constitui a esteira por onde transita tudo aquilo que é inusitado. Ou seja, o leitor utiliza as palavras para associar possibilidades de interpretação baseado na estabilidade dos sentidos criados por elas intratexto. Uma das interpretações indicadas pelo leitor neste excerto é justamente o fato de que ‘Deus abandonou’ o personagem e ‘o mundo está cheio de problema’. Há uma associação de fatores discursivos e sociointerculturais quando o leitor: a) indica o sofrimento do personagem, afirmando que é ‘desorientado’, tem ‘problemas’, ‘é fraco’; e b) salienta o fato de que observar uma ‘bela lua’ e beber ‘conhaque’ podem levar o personagem a sentir-se ‘bem’, o que é construído pelas inferências do leitor. No entanto, os dados também revelaram exemplos em que os estudantes justificaram suas escolhas a partir apenas da hierarquização do assunto principal do texto. Lembra-se, aqui, que a atividade foi explicada para os alunos no sentido de que eles deveriam selecionar palavras que os fizessem lembrar do texto ou que os ajudassem a compreender o sentido global. Alguns estudantes não expuseram seus motivos e, de uma forma genérica e intuitiva, explicaram que as palavras foram escolhidas porque ‘são mais importantes’, ‘lembram o tema central’, ‘são mais faladas’, ‘são fundamentais’, entre outras justificativas. Observou-se que isso aconteceu de forma mais frequente na turma B: foram 13 indicações classificadas para a turma B, o que significa 50% dos alunos analisados na turma, tendo sido indicadas da seguinte maneira: sete no texto 1, quatro no texto 2, e duas no texto 3. Já no caso da turma A, foi observada apenas 1 (uma) indicação dessa natureza para o texto 1, ou seja, apenas 3% da turma. O fato de uma maior indicação na turma B pode ser explicado pelos dados dos questionários que indicam que essa turma é menos assídua às atividades de leitura do que a turma A. Visto que a competência comunicativa está sempre em desenvolvimento e que quanto mais se interage com a língua maior a proficiência comunicativa do usuário, tem-se a explicação do fato: os alunos da turma A, por serem mais assíduos à leitura, conseguem destacar com mais facilidade fatores diversos dos níveis da competência comunicativa e 220 justificá-los na escolha das palavras-chave. Já os alunos da turma B, por possuírem menos hábito de leitura, procuram encontrar o sentido principal do texto, mas não conseguem explicar claramente o motivo pelo qual estão hierarquizando essas informações. Na sequência, mais um extrato; agora do aluno 2 da turma B: B.1.3.2 pobre, Pitágoras, lição, estudo, hipotenusa. Porque? São mais faladas no texto e com elas conseguimos interpretar melhor o que o texto todo quer dizer. Note-se, nesse extrato, que o informante destaca palavras que marcam ações textuais importantes: um dos personagens textuais – o pobre -, os elementos textuais sobre o qual o autor constrói a crítica – Pitágoras, lição, estudo e hipotenusa. A justificativa do leitor reside no fato de que, por serem ‘mais faladas no texto’, tais palavras o auxiliam na interpretação e a compreender o que ‘o texto todo quer dizer’. A tentativa do informante aqui é justamente destacar o tema principal do texto. Ou seja, a competência discursiva está sendo usada de alguma maneira para hierarquizar informações e encontrar sentido global (KOCH; ELIAS, 2010; DIJK, 1977a; 2002). Para os demais textos, outros leitores também demonstram utilizar a competência discursiva para concentrar o sentido principal do texto. Veja-se o exemplo: B.2.3.18 transgênicos, clonagem, infertilidade, célula-tronco, curar. Eu escolho estas palavras como palavras-chave porque, a meu ver, elas resumem a mensagem do texto. Observe-se que o intuito principal do leitor é encontrar a mensagem do texto, e, estrategicamente, ele seleciona palavras que demonstram a sua construção argumentativa, expondo assuntos principais – transgênicos, clonagem, células-tronco – e alguns argumentos utilizados pelo autor – infertilidade e cura. O estudante diz que essas palavras ‘resumem’ o texto, e embora não explique as suas justificativas de forma explícita, ele relata que o ponto principal é encontrar o sentido global (DIJK, 1977a; 1977b). O que se quer dizer com isso é que as palavras-chave funcionam, nos casos acima, como uma estratégia de concentrar a atenção dos leitores na ‘mensagem’ principal embora eles não queiram ou não saibam explicar os motivos e a maneira pela qual as dimensões da competência comunicativa estão sendo ativadas. O que acontece, nesses casos, é visto como uma forma dos informantes ativarem a competência comunicativa para hierarquizar informações textuais salientes, mas que ela ainda precisa 221 desenvolvida para que o leitor tenha maior domínio sobre suas estratégias de diálogo com o texto. Em suma, pode-se dizer, a partir dos dados analisados, que há uma interação constante entre as palavras escolhidas pelos estudantes e seus diversos conhecimentos: 1) para o texto 01, os estudantes procuram ligar a sequência da narrativa à possibilidades reais e à crítica do texto, utilizando conhecimentos relacionados a discursos ideológicos e também à realidade da diferença de classes impostos na sociedade; 2) para o texto 02, a argumentação típica do gênero artigo de opinião é destacada pelos estudantes numa relação constante com conhecimentos que fornecem à ciência poder de cura, possibilidades de melhoria da vida em sociedade, descobertas. Os leitores procuram topicalizar, na escolha das palavras-chave, os argumentos do autor, e demonstram como seus conhecimentos ligam-se a esses argumentos por questões sociais e interculturais vividas por eles; 3) para o texto 03, a necessidade dos leitores estabelecerem a criatividade e a emotividade do texto direciona as interpretações dadas nas escolhas das palavras-chave. Os estudantes indicam palavras que possam explicar a tristeza do personagem, guiados pelas ações encontradas no texto e ativadas por seus conhecimentos de mundo. Deve-se esclarecer que há outras justificativas que poderiam corroborar os fatores discursivos e sociointerculturais apontados até aqui141. No entanto, para evitar circularidades e repetições, selecionaram-se aquelas consideradas mais relevantes como amostra da maneira como tais fatores são evidenciados por vários dos informantes. É importante reiterar que não se tem a pretensão de fazer uma análise exaustiva de todos os conhecimentos discursivos e sociointerculturais apresentados por todos os alunos pesquisados. O que se quis demonstrar é que os alunos utilizam sua competência comunicativa de forma contundente e interativa para produzir sentidos. Vale ainda lembrar que a competência comunicativa deve ser desenvolvida na interação durante a leitura para levar os alunos a explorarem diferentes estratégias que os façam criar novas possibilidades de interpretação e de leitura, dando a eles uma característica de leitores cada vez mais proficientes. 141 No anexo E, pode-se encontrar os extratos das justificativas apontadas pelos estudantes. 222 A criação de novas possibilidades de interpretação pela utilização da competência comunicativa a partir da estratégia de escolha de palavras-chave pode revelar a maneira como os alunos, de fato, interagem com o texto e como eles sentem a necessidade de dialogar com o referido texto para construir sentidos textuais e pessoais. A utilização do léxico como ativador dos vários tipos de conhecimento do leitor e como canalizador da competência comunicativa no ato de leitura revela que a interpretação textual é rica e abre uma gama de possibilidades que perpassam questões linguísticas, discursivas e sociointerculturais. Em outras palavras, a partir da estratégia de escolha do léxico mais relevante para o leitor na interação com o texto, ou seja, as palavras-chave, é possível demonstrar a necessidade de se fornecer ao estudante ferramentas de diálogo com o texto a partir da linguagem. Reitera-se ainda que o objetivo deste capítulo é responder ao primeiro questionamento de pesquisa142. Observou-se pelos dados que, de fato, a seleção da palavra-chave funciona como uma estratégia de estabelecer diálogo com o texto e de canalizar conhecimentos dos diferentes níveis da competência comunicativa numa relação constante para a construção de sentidos. Os dados demonstraram que a competência comunicativa, em suas diferentes dimensões, é, de fato, ativada e desenvolvida a partir da escolha da palavra-chave, a qual auxiliou os leitores na consideração de diferentes características textuais que funcionaram como base principal de estabelecimento sentido. Em outros termos, o que se verificou nos dados, é que além da palavra-chave funcionar como estratégia de canalização dos níveis da competência comunicativa, ela também foi utilizada pelos leitores para ancorar conhecimentos diversos que possibilitaram a hierarquização de sentidos textuais e o diálogo com as realidades vividas pelos estudantes. Além de ser uma estratégia para estabelecer interação com o texto na produção de sentidos, a palavra-chave pode servir como um guia para a confirmação das possibilidades que o leitor estabelece ao iniciar a leitura do texto e ainda para auxiliar o mesmo leitor a negociar sentidos importantes. Esse é o foco da discussão do último capítulo que compõe essa tese. 142 Cf. cap. 3 223 5 A PALAVRA-CHAVE COMO GUIA NA LEITURA, NA CONSTRUÇÃO E NA NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS Viu-se no cap. 04 que as palavras-chave são utilizadas como uma estratégia importante no desenvolvimento da competência comunicativa para produção de sentidos textuais. Por meio da seleção da palavra-chave, o leitor constrói a compreensão a partir de características gramaticais, discursivas e sociointerculturais que se revelam durante o processo de leitura. Essa percepção da palavra-chave não é casual, ao contrário, é influenciada por relações semânticas estabelecidas no texto e pelos conhecimentos prévios do leitor no momento da interação (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Nesse processo, o leitor pode estar sendo influenciado por marcas linguísticas percebidas durante a pré-leitura, ou seja, ele observa as possibilidades interpretativas num momento inicial de leitura e procura indícios para confirmá-las no texto. Ainda, quando encontra pistas que refutam ou confirmam tais indícios – mesmo que apenas parcialmente - ele procura realizar um trabalho de reconstrução ou de adequação das possibilidades estabelecidas para a leitura (SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 2002; KATO, 1999). Neste capítulo discute-se a segunda e terceira questões de pesquisa143, as quais são aqui retomadas: a) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais (hipóteses de leitura – KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998; CASTELLO PEREIRA, 2003) feitas pelo leitor durante o processo de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de sentidos? b) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si mesmo? Em outros termos, vai-se investigar, neste capítulo, dois aspectos principais os quais são divididos por atividades analisadas da seguinte maneira144: 1) A utilização da palavra-chave como um guia para a confirmação ou reconstrução das possibilidades de leitura estabelecidas pelo leitor: 143 144 Cf. cap. 3 Vide cap. 3.4 para maiores detalhes sobre as atividades propostas. 224 Na primeira seção do capítulo (seção 5.1), discutem-se as três primeiras atividades propostas, as quais incluem: uma atividade de pré-leitura a partir da análise do título para o levantamento das possibilidades iniciais de leitura (hipóteses de leitura), e duas atividades de leitura - uma em que os estudantes expõem suas primeiras interpretações com a leitura do texto e outra em que eles selecionam a palavra-chave para demonstrar os sentidos principais construídos por eles. A intenção, nesta seção, é observar a maneira pela qual os alunos tecem os fios semânticos condutores (CAVALCANTI, 1989) da sua interpretação desde o início da interação com o texto, a partir da exposição das hipóteses de leitura, até a (re)construção de sentidos a partir de uma leitura mais efetiva. Discute-se, ainda, como as palavras-chave são selecionadas para confirmar ou reconstruir tais hipóteses. Pelo fato de se utilizar na análise proposta neste capítulo a atividade de seleção das palavras-chave, alguns aspectos já discutidos no cap. 4 podem parecer redundantes. No entanto, deve-se ter em mente que o intuito desta seção é demonstrar a maneira como os leitores utilizam a palavra-chave com outra função: a ancoragem das possibilidades iniciais de leitura, o que não descarta o fato das diferentes dimensões estarem sendo utilizadas de forma concomitante nessa tarefa. Observa-se na análise dos dados elaborada neste capítulo que vários leitores demonstram, nas suas leituras, que as dimensões da competência comunicativa também estão, de fato, sendo desenvolvidas. Aponta-se para o fato de que os leitores selecionados neste capítulo são diferentes, o que vem a confirmar os resultados já obtidos para o cap. 4, pois os dados apresentam características semelhantes às já discutidas, e ainda auxiliam na discussão dessa segunda função da palavra-chave, aqui apresentada. 2) A negociação de sentidos e a produção de opiniões do leitor a partir da interação ocorrida durante a leitura: Na segunda parte do capítulo (seção 5.2), analisa-se a atividade de discussão do texto na qual três perguntas foram feitas aos informantes com o intuito de identificar a maneira como os sentidos são negociados no diálogo com o texto e na identificação dos sentidos expostos pelo autor. A intenção aqui é discutir a maneira como os sentidos foram construídos pelos leitores durante a atividade de leitura e como são reconstruídos, reposicionados ou negociados quando os leitores são questionados sobre as ideias presentes no texto. Deve ser lembrado que, neste capítulo, a análise ocorrerá por texto e por leitor. Sendo assim, a discussão de ambas as seções serão pautadas na seleção de informantes 225 que expõem aspectos observados em quase todos os alunos. Ou seja, as atividades dos mesmos informantes são analisadas primeiramente na seção 5.1 com a investigação das atividades de pré-leitura e leitura, e na seção 5.2 com a análise da atividade de discussão do texto. Ainda, tabelas com a quantificação dos dados foram construídas com o objetivo de demonstrar que os informantes selecionados são exemplos do que se notou nas duas turmas pesquisadas como um todo. Isto quer dizer que é a partir de uma observação geral, percebida na quantidade dos dados, que os alunos são selecionados como amostra do que acontece com o grupo de leitores. Os informantes selecionados são classificados de acordo com a numeração145 já exposta no capítulo anterior. Parte-se, então, para a discussão dos dados. 5.1 A (RE)CONSTRUÇÃO DAS POSSIBILIDADES INICIAIS DE LEITURA E A FOCALIZAÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS A análise conduzida na sequência desta seção será exposta em duas frentes principais: a) por texto de pesquisa; e b) pelos informantes selecionados. No primeiro texto intitulado “Nada como a instrução146”, a partir de uma quantificação dos dados, verificou-se que a maioria dos alunos indica, na atividade de levantamento das possibilidades iniciais de leitura, fatores relacionados à palavra ‘instrução’ que está presente no título. Na turma A, tal palavra aparece em 22 respostas do total de 29 alunos e na turma B foram 11 alunos que a utilizaram num total de 26 informantes. A tabela, na página seguinte, auxilia na visualização da maneira como a palavra ‘instrução’ será reconstruída para os limites dos sentidos textuais como veremos na sequência. É importante lembrar que as palavras expostas nesta tabela foram classificadas por serem utilizadas por vários dos alunos na maioria das atividades analisadas e não por terem sido consideradas palavras-chave pelos alunos. Também vale lembrar que nas atividades observadas, as palavras expostas na tabela, foram contabilizadas, na atividade 3, tanto quando foram indicadas como palavra-chave, quanto como argumento na 145 Reitera-se a classificação: uma letra indicando a turma (A ou B), na sequência o número do texto (1, 2 ou 3), o número da atividade (1, 2, 3 ou 4) e o número do aluno. Por exemplo, o extrato B.1.1.5 refere-se à turma B, texto 1, atividade 1, aluno 5. 146 Repete-se: os três textos selecionados para a pesquisa encontram-se no apêndice B deste trabalho. 226 justificativa da escolha das mesmas. Para analisar somente a palavra escolhida como chave, expõe-se, mais adiante, outra tabela com tais dados. TABELA 10 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 1: Palavra indicada Instrução147 Conhecimento Aprendizagem Educação Estudo Crítica Turma A 24 83% 3 10% 1 3,5% 3 10% 2 7% 1 3,5% Palavra indicada Instrução Conhecimento Aprendizagem Educação Estudo Crítica Turma A 4 14% 10 34% 9 31% 19 65% 20 69% Palavra indicada Instrução Conhecimento Aprendizagem Educação Estudo Crítica Turma A 7 24% 17 58% 5 17% 3 10% 25 86% 2 7% Atividade 1 Turma B 11 42% 1 4% 2 7,6% 0 1 4% Atividade 2 Turma B 1 4% 2 7,6% 1 4% 10 38% 0 Atividade 3 Turma B 2 7,6% 3 11% 3 11% 0 19 73% - Total 35 63,6% 4 7,2% 3 5,4% 3 5,4% 3 5,4% 1 1,8% Total 5 12 0 10 29 20 9% 21,8% 18% 52,7% 36% 9 20 8 3 44 2 Total 16% 36% 14,5% 5,4% 80% 3,6% O que se verifica na tabela acima é que os alunos, na primeira atividade, indicam uma palavra do título, ‘instrução’, para iniciar a sua interação com o texto e construir sentidos. No entanto, ao realizarem as atividades 2 e 3, de leitura, essa palavra dá espaço a outras, mais específicas, tais como ‘educação’, ‘estudo’, ‘aprendizagem’, que resumem melhor, para os leitores, os sentidos do texto. Nota-se que a palavra ‘estudo’, por exemplo, que tinha uma ocorrência baixa na primeira atividade (pouco mais de 5% das indicações), passa a ser a mais utilizada na segunda e terceira atividades (respectivamente, quase 53% e 80%), como reflexo do sentido extraído do texto sobre o tema principal: a diferença entre os personagens está no tempo de estudo (cf. cap. 4). Na maioria dos casos, tanto os alunos da turma A quanto da turma B, indicam, na primeira atividade que a ‘instrução’ é algo necessário, ‘fundamental’, que tem grande 147 Incluiu-se na quantificação também palavras derivadas da mesma raiz, tais como o verbo ‘instruir’ para a primeira palavra, ou ‘conhecer’ para a segunda, e assim para as demais palavras. 227 ‘importância’ para o futuro, é usada para saber o que ‘ira fazer’, ou que ‘não vivemos’ sem ela, tais como nos excertos a seguir: A.1.1.4 a instrução é algo fundamental. Pelo titulo concluo que se trata de um momento onde alguém necessitou de uma instrução. A.1.1.13 que quando se ta perdido essa instrução acaba ajudando a pessoa em algo que ira fazer. B.1.1.8 diz qual a importância da instrução B.1.1.16 não vivemos sem uma instrução Observa-se, a partir destes excertos que, em grande parte das indicações, os leitores utilizam a palavra ‘instrução’ como uma hipótese de interpretação genérica sobre a palavra, sem um limite bem definido de sentido ainda. Eles constroem possibilidades interpretativas que podem ser mais facilmente reordenadas ou reconstruídas durante a interação com o texto. Em alguns casos, os alunos destacam, com mais nitidez, que há uma possibilidade desta ‘instrução’ estar sendo usada no que diz respeito à ‘educação’ ou de ‘preparação para a vida’ como nos excertos abaixo, embora essa não seja uma indicação frequente. Destaca-se que as palavras ‘educação’, ‘conhecimento’ ou ‘estudo’ têm maiores indicações (respectivamente 18%, 21,8% e 52,7%) a partir da segunda atividade: A.1.1.11 ele precisava de “ajuda” de instrução no sentido de educação que é essencial. B.1.1.10 a instrução prepara a pessoa para a vida. O que se quer dizer com isso é que, na primeira leitura, os leitores estão, de fato, estabelecendo um diálogo com o texto, baseados na informação e nas possibilidades que identificam no título. Ao se deparar com a leitura, na segunda e terceira atividades, eles procuram limitar sua compreensão com base em informações textuais encontradas e recontextualizam a palavra ‘instrução’ para assuntos de ‘educação’, ‘conhecimento’ ou de ‘estudo’, palavras mais usadas. Na atividade de escolha das palavras-chave os leitores descartam a palavra ‘instrução’ e indicam, mais frequentemente, como palavras-chave que: a) caracterizam a educação, tema principal, tais como ‘estudo’, ‘ensinar’, ‘conhecimento’; e b) 228 caracterizam momentos da sequência narrativa que indicam para eles a crítica, o preconceito, ou a discriminação observados na leitura, tais como ‘teorema de Pitágoras’, ‘pobre’, ‘rico’, ‘lição preciosa’ (cf. cap. 4). Isso indica a maneira como os leitores limitam, reconstroem, reorganizam seus conhecimentos aos poucos para construir interpretação textual: eles iniciam a interação com o texto observando aspectos da ‘instrução’, passam a limitá-la a assuntos de ‘estudo’ e ‘educação’, e, ao selecionar as palavras-chave, ancoram os sentidos em palavras que confirmam as possibilidades já criadas para o texto. A tabela 11, abaixo, mostra somente as palavras elencadas como chave pelos alunos na atividade 3 de leitura do texto. Pode-se observar, pela tabela, que a palavra ‘instrução’ é indicada como chave por apenas 8 alunos (14%) do total de 55 estudantes pesquisados. Antes dela, palavras que limitam seu sentido textual, como ‘conhecimento’, ‘estudo’, ‘ensino’ e ‘aprender’, aparecem com indicações bem mais frequentes: TABELA 11148 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos na atividade 3 – texto 1 Palavra-chave Estudo/ estudar Teorema de Pitágoras Pobre Ensinamento/ ensinar Rico Dinheiro/trocado Lição/lição preciosa Conhecimento Esfarrapado Aprender Instrução Turma A 22 16 15 12 13 10 11 11 4 6 5 Turma B 21 18 16 12 9 5 4 3 7 3 3 Total 43 34 31 24 22 15 15 14 11 9 8 É importante lembrar também que, conforme discussão apresentada no cap. 4, os leitores indicam palavras que confirmem para eles os momentos da narrativa considerados importantes como reflexo do desenvolvimento da sua competência discursiva, tais como: i) a divisão dos personagens em classes sociais; ii) a marcação do tema principal do texto; iii) o momento da narrativa em que a crítica se constrói – quando o personagem indica o teorema de Pitágoras e não o conhece. No entanto, vale 148 Por uma questão de espaço, a tabela demonstra apenas parte das palavras indicadas como chave. Para visualizar a tabela completa, vide anexo C deste trabalho. 229 lembrar que a seleção de palavras-chave também é limitada pelas possibilidades de leitura construídas desde a pré-leitura. Em outros termos: na terceira atividade em que os alunos realizam uma interpretação mais efetiva com a indicação das palavras-chave, eles são guiados por dois aspectos principais: a) a confirmação e limitação das possibilidades que, para eles, indicam que a instrução se relaciona à educação e aos aspectos sociais envolvidos nela; e b) a construção dos aspectos discursivos dos textos que marcam para ele os personagens, o tema, a crítica, os momentos narrativos. Ambos os aspectos são ativados pelo leitor em interação, corroborando o fato de que a leitura é uma atividade complexa que movimenta todos os conhecimentos do leitor na construção de sentidos (KOCH; ELIAS, 2010; KLEIMAN, 2001; 2002; 2004; COLOMER; CAMPS, 2002; LENCASTRE, 2003). Ainda, essa observação demonstra a maneira como a competência comunicativa (HYMES, 1995; CANALE, 1995; SAVIGNON, 1997) do leitor é desenvolvida a partir de aspectos diversos, que os auxiliam na canalização de sentidos para o texto e a estabelecer com ele diálogo. Destaca-se agora a maneira como os leitores, separadamente, conduzem sua interpretação desde o primeiro momento, da pré-leitura, até a leitura do texto. O leitor 16 da turma A relata, na primeira atividade que: A.1.1.16 a instrução é essencial para uma boa vida em sociedade. A primeira possibilidade de leitura construída pelo leitor é a de que ‘a instrução é essencial’ pois ela pode possibilitar uma melhor ‘vida em sociedade’. Ou seja, ele já percebe que a ‘instrução’ de que fala o texto é, de fato, um tema importante. Na segunda atividade, o leitor procura limitar sua interpretação da ‘instrução’ à ‘educação’ e já realiza uma ligação com problemas sociais: A.1.2.16 o texto traz à tona os assuntos de educação, discriminação, pobreza, riqueza, etc. é um texto crítico. Aponta a realidade atual, quem tem mais estudo, mais informações pode se sobressair entre os demais. Mostra também que quem tem pouca escolaridade não busca novos conhecimentos. 230 Esse informante procura canalizar seus conhecimentos, agora, para o fato de que embora a palavra ‘instrução’ esteja no título, ela não se relaciona a qualquer tipo de instrução, como aquelas presentes em manuais. Ele limita o sentido da palavra a assuntos relacionados à educação, e procura utilizar suas possibilidades interpretativas como um guia para o estabelecimento da sua leitura: a educação é essencial para a vida em sociedade - hipótese estabelecida pela palavra ‘instrução’ na atividade 1 - porque se relaciona a problemas sociais como ‘discriminação’, ‘pobreza’ e ‘riqueza’ – sentido construído na leitura na atividade 2. Outro fator importante nesse extrato é que o aluno indica que ‘é um texto crítico’. Essa é uma indicação frequente de vários alunos da turma A na segunda atividade (20 dos 29 alunos da turma A - cerca de 69% - indicaram que há uma crítica ou que é um texto crítico na atividade 2). Veja-se que a palavra ‘crítica’ aparece altamente indicada na tabela, 10 mostrada anteriormente, o que não acontece na primeira atividade e pouco na terceira. Observa-se também que essa é uma indicação específica dos alunos da turma A, o que pode ser explicado pelos dados dos questionários socioculturais: os alunos da turma A afirmam que tem mais frequência em atividades de leitura o que significa que sua competência comunicativa é diferente em comparação com a turma B. Sendo assim, eles teriam maior facilidade de compreender temas, exposições ou aspectos do gênero do texto, tal como a identificação da crítica. Com base nisso, pode-se dizer que, além dos informantes indicarem que a ‘instrução’ volta-se para fatores de estudo e educação, os alunos reconhecem uma característica importante do texto – a crítica. Os informantes parecem ter reconhecido o gênero do texto – crônica – já na segunda atividade, o que pode levá-los a indicar palavras que confirmem tal expectativa e explicá-las dentro desse contexto. Discutiu-se no cap. 4.1.2 (p. 167; 169; 173; 179-180) que, de fato, a crítica, uma das características do gênero textual crônica, é uma indicação frequente nas justificativas para as escolhas das palavras-chave, a terceira atividade. Pode-se dizer, assim, que as interpretações dos alunos passam a ser guiadas por dois limites: a educação e a crítica, esta última característica do gênero. Na atividade de seleção das palavras-chave, o aluno 16 indica palavras como ‘ensinar’ e ‘estudo’, e procura o fio semântico do texto que mostra, para ele, onde a crítica está presente: o ‘rico’ que ‘consegue cargos melhores’ e o ‘pobre’ por não ter ‘oportunidades’: 231 A.1.3.16 ensinar: é o que muitos deviam fazer a quem é menos instruído. Pobre: muitas vezes a pessoa fica pobre por desistir dos estudos e não ter oportunidades. Estudo: todos devem completar todo o estudo e sempre buscar mais informações. Rico: com mais estudo pode conseguir cargos melhores e ficar rico. Pitágoras: é um conhecimento que se adquire atravéz[sic] do estudo. Note-se que, embora o estudante tenha selecionado, a princípio, a ‘instrução’ como algo essencial, agora ele procura destacar ‘ensinar’ e o ‘estudo’ como mais importantes na sua interpretação. Isso porque a palavra ‘instrução’ foi limitada pelo aluno a questões voltadas à educação, e parece fazer mais sentido para ele agora elencar elementos que confirmem essa limitação. Outro detalhe é que ao afirmar que a ‘instrução’ é ‘essencial para a vida em sociedade’ ele procura elementos ou marcas linguísticas (KLEIMAN, 2002) no texto – as palavras-chave - que confirmem a sua posição. Para tanto, já na primeira leitura ele afirma que, com mais estudo, as pessoas podem se ‘sobressair’ na sociedade e na atividade de indicação da palavra-chave ele aponta que ‘todos devem completar todo o estudo e sempre buscar mais informações’ porque isso pode levá-los à riqueza. Veja-se como a palavra-chave está sendo utilizada aqui como forma de guia para as possibilidades interpretativas criadas pelo leitor: a instrução (limitada para os sentidos das palavras ‘estudo’ e ‘ensinar’) - é importante para a sociedade, portanto, a sua falta pode indicar problemas sociais tais como a discriminação, a pobreza ou a riqueza, e para que se possa ficar rico, é preciso então obter a instrução, ou seja, estudar. Outro caso a se observar é o do aluno 5, abaixo, no qual ele tece fios condutores para sua interpretação. Ao realizar a atividade de leitura inicial a partir do título, ele destaca que a ‘instrução é fundamental para ter um futuro estruturado’: A.1.1.5 a instrução é fundamental para ter um futuro estruturado e para saber que caminho escolher Na segunda atividade, ele procura definir que esse futuro está atrelado à educação, e que ‘sempre há mais o que estudar’. Ainda, assim como nas indicações de seu colega analisadas acima, ele menciona que há uma crítica presente no texto e que ‘existem pessoas que se acham melhores do que os outros’: 232 A.1.2.5 o texto se refere à educação e faz uma crítica quanto a isso. A grande critica é que ninguém sabe tudo, sempre há mais o que estudar, mais a ver, existem pessoas que se acham melhores do que outros. A exemplo do informante anterior, esse leitor impõe para sua interpretação dois fatores principais: a referência à educação e a crítica. No caso do aluno 5, ele já expõe, na atividade 2, o motivo pelo qual ele acha que é, de fato, um texto crítico. Guiado por esses dois fatores, ao selecionar as palavras-chave, ele procura encontrar a confirmação de onde está a crítica e por qual motivo o estudo é importante: A.1.3.5 teorema de Pitágoras uma das bases fundamentais do texto. esfarrapado – é a palavra em que o texto caracteriza o menino. Lição preciosa: um dos fatos principais em que ocorre no texto. dinheiro: um dos bens que o homem tem como exemplo de conquista com seu “estudo”. Pobre: palavra em que no texto mostra o preconceito de um personagem ao outro. Apesar do fator de crítica ter sido uma observação constante na ativação da competência discursiva (cf. cap. 4.1.2), pode-se dizer que esse também foi um guia selecionado pelo leitor desde a segunda atividade, funcionando como uma estratégia concomitante. O aluno procura confirmar suas hipóteses apresentando as expressões ‘teorema de Pitágoras’ e ‘lição preciosa’ como ‘fatos’ (ou ‘bases’) principais do texto. Tais palavras parecem completar a lacuna aberta por ele no início - se ‘faz uma crítica’ a qual é preenchida sob dois aspectos: 1) o fato do senhor não saber o teorema e ainda assim ser rico; e 2) o fato do senhor rico querer dar uma ‘lição preciosa’ ao menino pobre porque ‘se acha melhor que os outros’. O leitor coloca a palavra ‘estudo’ entre aspas o que pode indicar a ironia do texto - mesmo tendo dinheiro e cinco anos a mais de estudo ele não sabe o teorema. Assim, o estudo não lhe garante um lugar mais alto na hierarquia social. O que concede isso a ele é o ‘dinheiro’, palavra selecionada como chave. É importante ressaltar aqui que o fator de crítica já analisado no cap. 4 (p. 179181), reaparece nessa discussão por ser um guia interpretativo dos leitores. Ou seja, os leitores percebem já nas primeiras leituras do texto a característica do gênero e a colocam como uma das âncoras para o estabelecimento da sua interpretação na escolha das palavras-chave. A palavra-chave funciona aqui com dupla função: canalizar a competência discursiva do leitor e confirmar suas possibilidades iniciais de leitura. 233 Veja-se também que o aluno afirma que ‘existem pessoas que se acham melhores do que os outros’ e procura escolher palavras-chave como marcas linguísticas149 (CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2002; ANTUNES, 2012) que confirmem isso. Ele aponta para a palavra ‘pobre’ porque ela caracteriza o ‘preconceito’ no texto, e a palavra ‘esfarrapado’ porque caracteriza o menino. Ou seja, ele indica que há alguém ‘que se acha melhor’, o que leva a crer que seria o rico porque ele tem ‘dinheiro’ e ‘estudo’, não sabe o teorema, mesmo assim se acha melhor que o pobre que é o ‘esfarrapado’ e quem sofre o ‘preconceito’. Para a turma B, em grande parte das indicações iniciais a palavra ‘instrução’ aparece ainda mais genérica do que para os alunos da turma A e os informantes parecem realmente estar criando possibilidades diversas de leitura da palavra, sem conectá-la ao assunto principal do texto ainda. O aluno 19, abaixo, procura deixar a palavra ainda sem limites específicos de sentido ao apontar que essa ‘instrução’ deve estar relacionada à ‘algum assunto’: B.1.1.19 instrução sobre algum assunto. O informante cria uma lacuna interpretativa: o autor fala de instrução dentro do assunto “x”. Na segunda atividade ele procura completar essa lacuna e indica que a instrução é a ‘lição preciosa’ dada ao menino: B.1.2.19 o começo do texto se refere nele falando de uma “lição preciosa” que daria ao menino mas nem ele sabia sobre o que era, além de ter deixado o menino se sentir menosprezado, o chamando de pobre e ignorante, por não saber. O leitor procura justamente indicar que, desde o início da leitura, ele quer encontrar o assunto “x” afirmando ‘o começo do texto se refere [...] a lição preciosa’. Ou seja, tal instrução é uma ‘lição preciosa’ dentro do contexto do texto. No entanto, ‘nem ele sabia’ a tal lição e ela só serviu para fazer o menino ‘se sentir menosprezado’. O leitor procura fazer um breve resumo do texto indicando a cadeia de informações destacadas por ele: instrução – lição preciosa – menosprezar o menino. Observe-se que, na tarefa seguinte de escolha das palavras-chave, o estudante procura confirmar isso indicando justamente a expressão ‘lição preciosa’, afirmando que ele não viu ‘nenhuma lição preciosa’: 149 Vide cap. 2.3 sobre a palavra-chave e suas características. 234 B.1.3.19 lição preciosa: porque não vi nenhuma lição preciosa. Obra do destino: existi [sic] o destino? Pessoas como eu: menosprezou o menino. Cinco anos sem nos divertir: pode ser conciliado o estudo e diversão. Homenagem: não seria uma homenagem ele dar “muito” dinheiro a um menino de rua, por ele saber sobre algo. O leitor 19 da turma B não utiliza as palavras ‘estudo’ ou ‘educação’ como palavra-chave - como o fazem leitores anteriores -, mas, ao indicar a expressão ‘cinco anos sem nos divertir’, ele de certa forma limita a palavra ‘instrução’ indicada na primeira atividade, ao campo do ‘estudo’, indicada na justificativa para a sua escolha afirmando que é possível conciliar ‘estudo e diversão’. Ainda, nessa terceira atividade, o leitor explica o sentido que ele constrói para a expressão ‘lição preciosa’. Além de indicar que ele não vê tal lição, ele também aponta para o fato de que constrói um sentido de crítica presente no texto ao perceber que o rico menospreza o menino pobre afirmando dar uma ‘lição preciosa’ que na realidade não existe, para o leitor. Nesse exemplo, ainda, o leitor estabelece um diálogo intenso com o texto (CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2004; 2001, 2002), posicionando-se com relação a ele. Ele seleciona a expressão ‘obras do destino’ e se questiona sobre sua existência – ‘existi[sic] o destino?’. A pergunta parece estar relacionada ao fato de que se as pessoas precisam realmente se esforçar, então não é o destino que lhes dá o sucesso e sim o esforço. Ainda a atitude de menosprezar o menino, indicada por ele anteriormente, é justificada pela escolha da expressão presente no texto ‘pessoas como eu’. O leitor ativa sua competência discursiva ao se concentrar no momento textual em que há um diálogo em que o personagem rico conversa com o pobre e diz que “pessoas como eu estudaram mais”, e a partir disso ele completa lacunas interpretativas construídas de que a diferença de classes está no tempo de estudo e que isso leva a uma posição superior do rico com relação ao pobre, o que pode não ser obra do ‘destino’. Em outros termos, o leitor compreende que há uma atitude de superioridade do rico para com o pobre no diálogo e o destaca como o sentido principal. A competência sociointercultural é ativada aqui nesse diálogo e leva o leitor a construir a inferência de que pobres são menosprezados pelos ricos quando se fala em aspectos econômicos e sociais. É importante ressaltar que há uma cadeia de fios condutores estabelecidos pelo leitor: instrução – lição preciosa – cinco anos a mais de estudo – menosprezar o menino. 235 Outro detalhe importante na posição do leitor aqui é que ele escolhe uma expressão do texto e a reposiciona a partir dos sentidos reconstruídos na interação textual: ‘cinco anos sem nos divertir’ – há um destaque do leitor para o fato de que ele não concorda com essa ideia. Ele indica que isso não precisa ser assim e que pode haver conciliação entre ‘estudo’ e ‘diversão’. Os sentidos criados a partir do texto ganham uma ressignificação pessoal e dialógica (BAKHTIN, 2009): o leitor ressalta um sentido principal no texto – os ricos estudam cinco anos a mais abrindo mão da diversão – e o reposiciona para si mesmo dizendo que é possível estudar e se divertir ao mesmo tempo. Há, nesse excerto do aluno 19 da turma B, três aspectos principais a serem observados: i) a maneira como ele constrói os fios semânticos que constroem a interpretação textual indicando ‘instrução’, ‘lição preciosa’ e justificando com a palavra ‘estudo’; ii) a maneira como ele destaca, já na segunda atividade, o sentido de crítica presente no texto, de que o rico menospreza o pobre, e confirma essa interpretação na escolha das palavras-chave afirmando que não vê ‘lição preciosa’; e iii) a maneira como ele utiliza as palavras-chave para iniciar uma negociação de sentidos (cf. cap. 5.2). Destaca-se aqui, que este leitor fixa sentidos construídos intratexto e já inicia um processo de negociação de sentidos pessoais afirmando que é possível conciliar ‘estudo’ e ‘diversão’ e que, sendo assim, ele discorda com as palavras do senhor rico com relação ao pobre. Volta-se a falar sobre a maneira como esse leitor negocia melhor esses sentidos na próxima seção deste trabalho. Em outro excerto da turma B, o aluno 14 não indica claramente a palavra ‘instrução’, mas procura estabelecer duas possibilidades claras para a sua interpretação: a ‘aprendizagem’ ou uma ‘lição de vida’: B.1.1.14 ele deve falar de aprendizagem ou talvez lição de vida. Note-se que, ao limitar o assunto do título a essas duas possibilidades, o leitor utiliza estratégias de restrição das suas interpretações. Na segunda atividade o leitor reconfigura seus limites interpretativos indicando que, no texto, a abordagem é a ‘educação’ e ainda indica a relação de hierarquia social presente no texto: B.1.2.14 o texto veio abordar um tema genérico que é a educação, o senhor se gavando[sic] para o menino sendo que ele mal sabia o que estava falando. 236 Observe-se que, neste, excerto o estudante já indica uma interpretação para o texto: ‘o senhor se gavando[sic] para o menino sendo que ele mal sabia o que estava falando’. O leitor reconhece que há um tema genérico, a ‘educação’, e a partir desse tema há um debate entre o senhor e o menino. Ressalta-se que ele utiliza sua competência discursiva indicando a presença de dois personagens e destacando um diálogo textual (cf. cap. 4.1.2), e nesse diálogo textual, um personagem se reconhece como superior ao outro. O aluno confirma essas possibilidades de interpretação ao escolher as palavras-chave: B.1.3.14 esfarrapado, menino, olhar, súplice, filho. Essas palavras me tocaram muito afinal ninguém tem culpa de não ter oportunidade essa é uma realidade que a gente vive. Pode ser que o garoto não teve tantas oportunidades ou teve e não soube aproveitar. Na minha concepção cada um escolhe seu próprio destino. Nessa atividade, o estudante procura realizar duas tarefas estratégicas: a) confirmar a sua possibilidade interpretativa de que há um personagem inferior ao outro: ele escolhe palavras como ‘esfarrapado’, ‘olhar’, ‘súplice’, ‘menino’ que indicam a inferioridade do garoto; e b) posicionar-se com relação à hierarquia de classes exposta no texto: o estudante, já com sua hipótese confirmada de inferioridade do pobre com relação ao rico, se compadece da posição inferior do personagem pobre e diz que ‘essas palavras me tocaram muito’. Ele argumenta ainda que ‘ninguém tem culpa de não ter a oportunidade’, pois ‘esta é uma realidade que a gente vive’. Neste exemplo, o diálogo já está, de fato, ocorrendo. A seleção das palavraschave aponta para uma confirmação do que ele indicou anteriormente, na atividade 2 - o senhor inferiorizando o menino - e a esse sentido textual ele sobrepõe outros sentidos criados por ele de que ‘ninguém tem culpa’ da realidade social, pois muitas pessoas não têm ‘tantas oportunidades’ ou não sabem ‘aproveitar’. Por meio da palavra-chave o leitor, de fato, tece fios semânticos condutores (CAVALCANTI, 1989) que o levam à construção de interpretações baseadas no texto. Mas, além disso, a palavra-chave também auxilia o leitor a criar novos sentidos atrelados à sua vivência pessoal (cf. cap. 5.2). Castello Pereira (2003) aponta para o fato de que qualquer tipo de marcação – neste trabalho de tese, a seleção de palavras-chave - auxilia o leitor tanto na 237 concentração do objetivo da leitura – p. ex., destacar o assunto principal - quanto em fundamentar uma posição ou relembrar o lido: a marcação, além de ajudar na compreensão, auxilia na concentração na hora da leitura, pois, com um objetivo, uma tarefa a realizar, uma ação concreta, se tem mais facilidade de fixar a atenção na leitura e na compreensão de ideias. Além disso, possibilita voltar ao texto lido, num outro momento, quando, por exemplo, for necessário buscar uma ideia pra fundamentar uma posição ou relembrar o lido ou, por qualquer outro motivo, fazer uma retomada do texto. É claro que existem muitas formas de lido, marcar o texto: anotação na margem, uso de símbolos, uso de pequenos pedaços de papel com anotações; como existem várias formas de se fazer esquemas e sínteses, mas a forma em si não importa, o que importa é que o sujeito seja capaz de intervir no texto apropriando-se de suas ideias (CASTELLOPEREIRA, 2003, p. 74). A autora indica que a forma de marcar o texto não importa porque o resultado deve ser sempre o mesmo: desenvolver uma atitude estratégica do estudante na intervenção ao texto, construindo sentidos de forma interativa. Conforme se pode perceber nos excertos, os alunos, desde o momento construção das possibilidades iniciais de leitura, já estabelecem um diálogo com o autor por meio do texto, e procuram, nessa relação, confirmar seus pensamentos, procurando marcas textuais explícitas e criando novos sentidos. Os excertos analisados apontam que, no texto 01, os informantes procuram focar sua atenção nas palavras-chave como marcadores de atenção que os levam a um sentido global do texto, o que é guiado pelas possibilidades construídas já no início da interação com o texto. Solé (1998) afirma que ao fazer a leitura de um texto o leitor procura “prestar atenção nos indicadores, marcas e palavras-chaves que lhes são próprios”, tarefa essa que o ajuda “a encontrar as ideias principais, pois proporcionam indicadores para formular perguntas relevantes que levam ao núcleo do texto” (SOLÉ, 1998, p. 136). Nos extratos analisados, os informantes afirmam que há no texto a importância da instrução, que essa importância está atrelada à hierarquia de classes e ao poder aquisitivo que uns têm e outros não têm e para confirmar essa interpretação indicam elementos dos quais fazem uso da sua competência discursiva para marcar personagens e da sua competência sociointercultural para apontar a hierarquia de classes sociais. Além disso, há um processo intenso de construção e fixação de sentidos a partir da primeira atividade, pré-leitura, e da segunda e terceira atividades de leitura. Os leitores estão conscientes de que os sentidos podem ser reconstruídos, e fazem isso 238 claramente quando alternam a escolha das palavras para suas explicações: começam utilizando a palavra ‘instrução’, presente no título, a limitam à ‘educação’ e ‘estudo’ e, ao selecionarem a palavra-chave, fixam sentidos baseados tanto em aspectos expostos textualmente, que os auxiliam a encontrar os momentos textuais mais marcantes, quanto em aspectos construídos pelas possibilidades iniciais de leitura e confirmados durante a interação. Ao que tudo indica, a palavra-chave é usada como uma superestratégia (KATO, 1999), ou seja, como uma estratégia que tem diferentes funções: a) a indicação da marcação textual feita pelo leitor para interagir com o texto a partir de aspectos gramaticais, discursivos e sociointerculturais (cf. discussão realizada no cap. 4); b) o direcionamento das possibilidades de construção de interpretação textual estabelecendo um diálogo do leitor com o texto e confirmando ou reformulando tais possibilidades; c) a promoção do diálogo existente entre o que está no texto e o que o leitor compreende, sabe ou opina sobre a sua realidade. É também o que se observa na análise das interpretações para o segundo e terceiro textos. No segundo texto, intitulado “Dilema genético”, tanto para a turma A, quanto para a B, os alunos iniciam sua interação abrindo lacunas de interpretação genéricas dentro do campo da genética do tipo: a discussão sobre a genética, a preocupação das ciências com as células, o desenvolvimento da genética, o avanço nas pesquisas, entre outros. A partir dos dados obtidos, 14 alunos da turma A (quase 50% da turma) e 11 alunos da turma B (média de 42%) indicaram já no início da leitura possibilidades de interpretação relacionadas à dúvida, estudos genéticos ou discussão na área de genética, tal como demonstrado nos excertos: A.2.1.12 a discussão sobre questões científicas. A.2.1.25 discução[sic] sobre o ser humano, debate, clonagem. B.2.1.8 descobertas da genética, novas tecnologias. B.2.1.13 vai falar sobre como é complexo o mundo da genética. Na segunda atividade, os informantes passam a concentrar sua atenção nos três tópicos discutidos no texto: transgênicos, clonagem e células-tronco. Na atividade seguinte, de escolha das palavras-chave, os estudantes parecem destacar ainda mais a 239 divisão de tópicos feita pelo autor do texto dentro do ramo da genética, como se pode observar na tabela a seguir: TABELA 12 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 2: Palavra indicada Genética Discussão Ciência Dúvida Transgênicos Clonagem Células-tronco Turma A 16 55% 6 20% 5 17% 4 14% 1 3,4% 3 10% 5 17% Palavra indicada Genética Discussão Ciência Dúvida Transgênicos Clonagem Células-tronco Turma A 16 55% 2 7% 4 14% 0 10 34% 16 55% 18 62% Palavra indicada Genética Discussão Ciência Dúvida Transgênicos Clonagem Células-tronco Turma A 17 58% 5 17% 2 7% 1 3,4% 19 65% 23 79% 24 82% Atividade 1 Turma B 15 58% 2 7,7% 0 0 4 15% 2 7,7% 1 3,8% Atividade 2 Turma B 8 31% 2 7,7% 1 3,8% 0 17 65% 13 50% 6 23% Atividade 3 Turma B 19 73% 2 7,7% 1 3,8% 0 19 73% 20 77% 20 77% 31 8 5 4 5 5 6 Total 56% 14,5% 9% 7,2% 9% 9% 11% 24 4 5 0 27 29 24 Total 43% 7,2% 9% 49% 53% 43,6% 36 7 3 1 38 43 44 Total 65% 12,7% 5,4% 1,8% 69% 78% 80% Note-se que, a exemplo do texto 1, os leitores procuram se basear no assunto principal exposto no título para estabelecer suas primeiras possibilidades de leitura. Na primeira atividade, a palavra ‘genética’ é utilizada em 56% do total de alunos de ambas as turmas e, acompanhada de palavras ‘discussão’ e ‘dúvidas’, reflete que os informantes buscam criar hipóteses que limitam seus conhecimentos a dois aspectos principais: a) a ‘genética’ e b) se há um dilema há também ‘discussão’ e ‘dúvida’. No entanto, ao realizar a leitura proposta para a atividade 2, os leitores continuam usando a palavra ‘genética’ com bastante frequência (43%), mas agora ela aparece em equilíbrio com indicações constantes dos três tópicos indicados pelo autor 240 na sequência argumentativa do texto: ‘transgênicos’ (49%), ‘clonagem’ (43%) e ‘células-tronco’ (43,6%). Outro aspecto importante da tabela acima é que, na atividade 3, da escolha das palavras-chave, as palavras que relatam os três tópicos aparecem com uma frequência ainda maior e a palavra ‘célula-tronco’, núcleo de uma das argumentações principais do texto em que o autor se posiciona favoravelmente ao seu uso (cf. cap. 4.1.2, p. 171173), aparece com uma indicação de 80%. Os informantes claramente delimitam o assunto ‘genética’ aos três pontos de discussão do texto, e indicam tais tópicos como principais. É importante observar que a palavra ‘genética' não foi descartada, o que pode ser explicado pelo fato de ser um hiperônimo150 dos três temas. A tabela 13, abaixo, corrobora esse fato, mostrando que os leitores selecionam mais frequentemente a palavra ‘célula-tronco’. Tal palavra, discursivamente, aponta para o tema textual destacado pelo autor a partir dos argumentos textuais mais polêmicos do texto (cf. cap. 4.1.2, p. 173). Na indicação dos informantes, essa palavra é seguida dos outros dois tópicos – ‘clonagem’ e ‘transgênicos’ - na indicação dos alunos: TABELA 13151 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 2 Palavra-chave Células (tronco) Clonagem Transgênicos (Engenharia) genética Embrião Fertilização Ética Manipulação Turma A 22 20 16 13 6 4 7 2 Turma B 24 23 15 16 12 12 4 8 Total 46 43 31 29 18 16 11 10 Destaca-se que os tópicos escolhidos pelos leitores aparecem invertidos na frequência da tabela se comparados com a sequência de exposição textual. Isto é, no texto, o autor discute os três temas, começando pelos transgênicos, passando pela polêmica ética da clonagem, e finalizando com as células-tronco, outra discussão polêmica do texto por sinalizar que, mesmo com a morte dos embriões, esta célula ajuda 150 Hiperonímia: “relação semântica entre palavras tal que a palavra hiperônima tem um leque referencial mais amplo, compreendendo várias outras palavras (seus hipônimos), de poder referencial menor. Na terminologia científica, determinado gênero é um hiperônimo, a que se ligam espécies” (CASTILHO, 2012, p. 679). 151 A tabela completa pode ser visualizada no anexo C deste trabalho 241 a salvar vidas. No entanto, os leitores desenvolvem sua competência discursiva e destacam em maior número a palavra ‘células-tronco’, com 83% das indicações dos estudantes como palavra-chave, que aponta para o assunto mais polêmico exposto no texto, seguido da palavra ‘clonagem’, segundo assunto polêmico com 78% das indicações e por último os ‘transgênicos’, com 56%, conforme demonstrado na tabela 12. Note-se também que as palavras ‘embrião’, ‘fertilização’ e ‘ética’ reforçam ainda mais esse dado, pois são usadas no texto como fontes de argumentos dos três tópicos, conforme discussão exposta no cap. 4 (p. 173). O que acontece com o texto 2 é que a partir da leitura efetiva do texto, os leitores limitam suas possibilidades de leitura a três assuntos específicos expostos no texto e não à pesquisa, por exemplo, da influência da genética em doenças cardíacas, ou câncer. Isso significa que a competência comunicativa dos leitores é desenvolvida para o diálogo com o texto e os auxilia a estabelecer um contexto específico de leitura (HYMES, 1995). Esse contexto é encaixado e adaptado às possibilidades que o leitor vai formulando desde a primeira interação com o texto. Destaca-se, nesse momento, como o leitor 2 da turma A abaixo realiza essa tarefa. Na primeira atividade ele relata suas primeiras possibilidades de leitura: A.2.1.2 dúvidas no ramo da genética, comportamento, evolução de alguma espécie. mudanças no A partir do título, o estudante já sinaliza que deve encontrar no texto informações que possam completar três possibilidades diferentes: há dúvidas no ramo da genética (quais são?), há mudanças no comportamento (que mudanças?) e há alguma espécie em evolução (qual ou o quê?). Veja-se que, na atividade seguinte, de imediato, o leitor aponta para o fato de que há ‘dois lados’ da genética e indica as vantagens – combate à fome por meio da produção de transgênicos, cura de doenças – e também as desvantagens – o impacto ecológico e a morte dos embriões pelo uso da célula-tronco. O informante busca completar a lacuna de quais são as dúvidas causadas pela ciência genética: A.2.2.2 o texto mostra “dois lados” da engenharia genética. O quanto seu trabalho pode ser benéfico, alimentos transgênicos maior produção auxilia no combate à fome e o uso de célulastronco para curar diversas doenças, porém o texto também aponta os possíveis pontos negativos como o impacto ecológico 242 causado pelos transgênicos e a polêmica do uso das célulastronco, que ocasiona a morte de embriões. Note-se, também, que ao confirmar a primeira possibilidade – o texto expõe dúvidas no ramo da genética – ele já procura responder quais elas seriam: há benefícios e, ao mesmo tempo, malefícios. Além disso, ele vê que as demais possibilidades de interpretação – mudanças de comportamento e espécies em evolução - não estão claras no texto, o que o leva a descartar tais fios interpretativos na construção de sentidos. Observe-se ainda que o leitor explica, já na segunda atividade, que no contexto do texto, a genética limita-se a ‘alimentos transgênicos’ e ‘uso de células-tronco’. O leitor aponta que ‘pode ser benéfico’ e que há ‘possíveis pontos negativos’, ou seja, ele utiliza sua competência discursiva para destacar que em um texto argumentativo se deve encontrar ideias em oposição. Na segunda atividade, ele ainda não aponta para a questão da ‘clonagem’, mas a indica como palavra-chave na atividade subsequente. Ao escolher as palavras-chave, ele se concentra na existência de vantagens e desvantagens da ciência genética e aponta para as palavras que sinalizam esse sentido no texto: A.2.3.2 engenharia genética: área de trabalho que pode ser benéfico a humanidade, porem pode trazer consequências ruins. Transgênicos: alimentos transgênicos, maior produção, assim auxilia no combate à fome, porém podem ocasionar um impacto ecológico. Impacto ecológico: consequência negativa da produção de alimentos transgênicos como a morte das borboletas monarcas. Clonagem: o autor se opõe principalmente quando se trata da clonagem humana ele é a favor da adoção. Células-tronco: o autor é a favor, pois estas podem curar muitas doenças tais como câncer diabetes dentre outras, porém traz consigo as polêmicas, as oposições a seu uso por causa da morte de embriões. De início, o leitor seleciona ‘engenharia genética’ e explica que há uma dúvida quanto ao seu uso porque ela pode ser benéfica ou trazer ‘consequências ruins’, destacando a confirmação da possibilidade de interpretação construída desde o início. Na sequência, ele escolhe palavras que indicam quais seriam esses aspectos positivos e negativos transitando entre os argumentos expostos no texto que, de fato, geram a dúvida quanto ao uso da ciência genética. Do lado favorável, o informante salienta os transgênicos, pois podem ‘combater a fome’ e as células-tronco porque podem ‘curar doenças’. Por outro lado, há a determinação do impacto ecológico do uso de 243 transgênicos, a desaprovação da clonagem humana por existir a opção da adoção, e a morte dos embriões usados para a produção das células-tronco. Note-se, também, a maneira como ele desenvolve sua competência gramatical (cf. cap. 4.1.1, p. 157-161) utilizando em todas as justificativas a palavra ‘porém’. Ele expõe para cada um dos elementos um fator positivo e um negativo, separados pela conjunção adversativa. A competência discursiva também entra em cena quando o leitor destaca a oposição argumentativa do autor em que é ‘a favor’ ou ‘se opõe’ aos assuntos expostos. Chama-se a atenção para essa observação porque o fato do leitor construir os fios semânticos do texto desde a primeira atividade até a última, revela que as dimensões da competência comunicativa são ativadas tanto como uma forma de movimentar conhecimentos na identificação e focalização dos sentidos principais, quanto como uma atitude estratégica de confirmação das possibilidades interpretativas do leitor. Em suma, nesse excerto o leitor, realiza, minimamente, três tarefas: i) confirmar suas possibilidades iniciais de leitura de que há dúvidas, ou ‘dois lados’, na ciência genética; ii) desenvolver sua competência gramatical e discursiva para explicar os pontos em oposição no texto, como forma de utilização estratégica da sua competência comunicativa; e iii) indicar os sentidos principais construídos e fixados por ele durante a leitura. O aluno 28, também da turma A, indica na primeira atividade uma gama de possibilidades maior que o colega acima: A.2.1.28 sobre o DNA, mudança genética, ou manipulação genética. No exemplo, o leitor utiliza muito do seu conhecimento de mundo para estabelecer possibilidades reais de discussão no campo da genética, como o DNA, a mudança genética ou a sua manipulação. Esses seriam temas possíveis de serem discutidos em um texto que apresenta como tema principal a genética, exposta no título. Ou seja, nos limites de conhecimento de mundo do leitor, se o texto fala de genética ele pode falar de qualquer um desses tópicos. Na segunda atividade, o leitor limita as suas possibilidades ao contexto do texto e afirma que: A.2.2.28 deveria estar sendo discutida a manipulação genética, mas parece que está sendo discutida a ética, e o que é certo ou errado. 244 O informante ainda procura confirmar sua hipótese de que o texto trata de ‘manipulação genética’, mas logo altera essa possibilidade de leitura afirmando que o que se destaca no texto é ‘a ética’, pois o texto, de fato, relata aspectos polêmicos com relação à atitude dos cientistas no campo da genética. De forma objetiva, o leitor descarta a possibilidade de mudança genética ou de DNA, expostos na primeira atividade, e reconstrói suas possibilidades de leitura para o que diz respeito à ética nos estudos da engenharia genética. Na terceira atividade, o leitor seleciona as palavras que ancoram sua interpretação: A.2.3.28 ética: muito discutido pela aplicação da engenharia genética do reino vegetal ao animal. Clonagem: já foi praticada, apesar das incertezas como por exemplo, se isso daria certo. Células: células-tronco são retiradas dos embriões que são destruídos. Podendo se transformar em qualquer célula do corpo. Adotar: mais correto que clonar. Riscos: são muitos com a clonagem. A primeira palavra escolhida como chave é justamente ‘ética’, pois ela se constitui enquanto marca linguística (KLEIMAN, 2002; ANTUNES, 2012) para apoiar suas possibilidades de leitura. As demais palavras elencadas pelo leitor destacam os três pontos de discussão do texto, acompanhados das justificativas que relatam os aspectos em oposição. Ressalta-se que, no caso do aluno 28, ele reconstrói todas as possibilidades de leitura expostas na primeira atividade. Ele não encontra elementos suficientes para confirmar suas hipóteses relativas à manipulação, mudança genética ou DNA, estranha tal afirmação relatando que o texto ‘deveria falar de manipulação genética’, e, na sequência, limita seus conhecimentos ao campo da ‘ética’ na ciência. Na escolha das palavras-chave, elenca os tópicos expostos, argumentando quais seriam os pontos éticos presentes no texto. O estudante utiliza também os argumentos expostos no texto para demonstrar os sentidos fixados por ele sobre os tópicos. Ele indica justamente os argumentos construídos pelo autor para justificar a seleção das três palavras que caracterizam os subtemas do texto. Isso significa que sua competência discursiva é ativada para marcar os tópicos e ainda reconfigurar suas possibilidades de leitura de forma a acomodar os sentidos encontrados no texto. Na turma B, vários estudantes também indicaram a existência de uma discussão entre vantagens e desvantagens o que os leva a apontar quais seriam os extratos ou 245 palavras que completam, para eles, essas informações. Os leitores parecem ser guiados pelo significado da palavra dilema: se há um dilema, há também pelo menos duas alternativas para resolvê-lo. Ao perceber essa possibilidade já no título o leitor 12 da turma B interage com o texto indicando, na primeira atividade, que o texto apresenta uma discussão sobre ‘pró’ e ‘contras’: B.2.1.12 transgênico, discussão de pró e contras. O leitor já percebe que, se o título do texto fala de genética, transgênicos é uma possibilidade de discussão nesse campo de pesquisa. Na segunda atividade, o estudante procura encontrar possibilidades que confirmem sua hipótese sobre as alternativas geradas pelo dilema: B.2.2.12 notamos no texto que existem várias opiniões diferentes ao quesito “genética” se é viável ou não a utilização de células tronco, clonagem e transgênicos o texto aborda quais seriam os benefícios e quais seriam os riscos da aplicação da genética para esses usos. O estudante confirma a possibilidade de que, de fato, no texto existem opiniões diferentes para o uso da ciência genética e expõe os tópicos que seriam o foco das discussões: ‘células tronco’, ‘clonagem’, ‘transgênicos’. Ainda, o leitor observa que no texto há ‘várias opiniões diferentes’ e que é preciso refletir se ‘é viável’ o desenvolvimento dos aspectos genéticos discutidos no texto. É importante considerar que o leitor procura direcionar sua interpretação em uma cadeia de informações: prós e contras – várias opiniões - viabilidade das células-tronco, clonagem, transgênicos. Na atividade de palavra-chave, as palavras indicadas por ele são utilizadas como ferramenta para demonstrar o núcleo das discussões apontadas reforçando e fixando os fios interpretativos construídos para o texto: B.2.3.12 genética: aborda o assunto geral mesmo, mostra que o assunto é relacionado a genética. Transgênicos: um dos assuntos mostrados, quais são as qualidade e possíveis problemas dos transgênicos. Clonagem: porque é um assunto bastante comentado e o autor aborda e diz quais seriam os efeitos da clonagem. Células-tronco: de sua utilização e de seus atributos. Críticos: porque assim ficamos sabendo que nem tudo é qualidade e que críticos nos mostram os riscos que todo esse uso pode causar. 246 O estudante expõe claramente que genética é ‘o assunto geral’, e que dentro dele os limites são mantidos em três pontos - os ‘transgênicos’, a ‘clonagem’, e as ‘célulastronco’. O leitor indica também a confirmação de outra possibilidade de leitura: a de que ‘há efeitos’ e que ‘nem tudo é qualidade’, isso porque há prós e contras na prática da genética. Vale observar que o leitor demonstra o seu diálogo com o texto quando seleciona a palavra ‘críticos’ e notifica a necessidade de se informar sobre os riscos antes da aprovação da ciência genética, uma vez quem ‘nem tudo é qualidade’. Veja-se que essa é uma construção do leitor gerada numa rede de relações tecidas pelo texto: há uma discussão entre prós e contras, os assuntos abordados são os transgênicos, a clonagem e a célula-tronco e, por consequência, é necessário avaliar os riscos da ciência genética. Nesse excerto também se percebe que o diálogo do leitor com o texto se dá em uma via de mão dupla: i) por meio da confirmação ou reconstrução dos fios condutores da interpretação e da fixação dos sentidos pelas marcas encontradas no texto: o leitor declara que há ‘várias opiniões’, ‘prós e contras’ no uso da ciência genética e seleciona palavras que confirmam essas possibilidades; e ii) por meio do desenvolvimento da competência comunicativa na ancoragem dos sentidos destacados pelo leitor em fatores textuais, gramaticais e sociointerculturais presentes no texto: o leitor identifica os tópicos textuais principais e adiciona ao texto a sua ideia de que ‘nem tudo é qualidade’ porque os críticos mostram ‘os riscos’ que o uso da genética pode trazer. Em outros termos, há um processo de constante construção, fixação e destaque dos sentidos: a) em primeiro lugar o leitor estabelece uma possibilidade de leitura – discussão de prós e contras da ciência genética; b) na sequência, confirma a possibilidade e expõe limites – observar a viabilidade das pesquisas porque pode causar riscos; e c) destaca os temas elencados no texto e os argumentos que explicam os riscos e o motivo pelo qual é necessário refletir sobre a viabilidade da ciência genética. O excerto do aluno 7 da turma B, abaixo, demonstra como o tema principal do texto dialoga com os conhecimentos do leitor: B.2.1.7 um debate sobre questões genéticas Nessa primeira possibilidade de leitura, o estudante procura substituir a palavra ‘dilema’ do título pela presença de um ‘debate’ sobre questões genéticas. Para o leitor, esse é o tema central do texto que vai guiando a sua leitura e auxiliando-o a estabelecer 247 fios semânticos (CAVALCANTI, 1989) para a construção de sentidos. Na segunda atividade, o leitor procura relatar em quais pontos o debate é construído e indica dois dos temas colocados em destaque: ‘alimentos transgênicos’ e ‘clonagem’: B.2.2.7 o autor fala sobre alimentos transgênicos uma coisa boa para nossos alimentos para não causar mau a nossa saúde. Outra coisa que ele comenta é sobre clonagem de animais tudo bem, mas clonagem de humanos acho uma coisa sem precisão. Guiado pela possibilidade interpretativa de haver um debate, o estudante aponta para os sentidos que ele encontra – transgênicos como uma coisa boa para não causar mal à saúde e a clonagem de animais sendo aceitável enquanto a humana não. Além disso, ele já indica a sua própria posição dentro da discussão afirmando que acha ‘uma coisa sem precisão’. Ou seja, o diálogo vai sendo marcado tanto pelo tema indicado a princípio – o debate – e confirmado nas marcas linguísticas – benefícios e malefícios de transgênicos e clonagem – quanto pela posição já estabelecida pelo leitor para a não concordância com o ato da clonagem humana. Na atividade das palavras-chave, o leitor procura manter esse guia interpretativo: B.2.3.7 transgênicos: engenhar vegetais capazes de sobreviver aos ataques de várias pragas e ainda de produzir bem mais por planta é de grande importância para humanidade. Clonagem de humanos: para que clonar pessoas se tem bastante no mundo. Células-tronco: têm a capacidade de se transformar em qualquer célula especializada do corpo. Embrião: um ser humano. Necessidades: de uma pessoa que tem que fazer tratamento para poder criar um “embrião” dentro dela. As primeiras palavras indicadas por ele são exatamente ‘transgênicos’ e ‘clonagem’ confirmando a sua interpretação de que o primeiro pode ser benéfico para a humanidade enquanto a segunda não é necessária por já haver muitas pessoas ‘no mundo’. O leitor mantém a sua interpretação primária, mas ao mesmo tempo indica novos sentidos percebidos por ele, agora em um novo assunto: ‘células-tronco’. Veja-se que, percebendo o novo sentido, o leitor também o coloca como núcleo do ‘debate’ selecionado por ele como guia para sua leitura. O estudante indica a vantagem – ‘se transformar em qualquer célula especializada do corpo’ e também a desvantagem – o embrião ‘é um ser humano’ que acaba sendo descartado. O estudante nota que esse foi o ponto de contraste destacado no texto como uma desvantagem e procura selecionar esse sentido de forma pontual. Em outros termos, o leitor vai indicando os sentidos atrelados 248 à sua possibilidade primária: há um debate; tal debate gira em torno de transgênicos e clonagem os quais possuem aspectos positivos e negativos; além disso, o debate também gira em torno do uso da célula tronco que pode ser tanto benéfica por auxiliar a salvar vidas quanto maléfica por matar embriões. Deve-se ressaltar que o texto escrito propicia converter as interpretações em realidade de conhecimento articulado, o que ocorre numa interação intensa entre pensamento e linguagem (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002). Durante a interação, o leitor registra os pontos que julga necessários na percepção dos itens na leitura e das representações que formula para o texto. Para o texto 02, é interessante observar a maneira como os informantes destacam um aspecto principal do gênero artigo de opinião: a declaração de uma posição colocada em argumentos textuais (cf. cap. 4.1.2, p. 173; 180). Eles procuram destacar esses posicionamentos e indicam também suas próprias posições, colocando-se ‘a favor’ ou ‘contra’ os argumentos do texto. A maioria dos informantes destaca como guia interpretativo a discussão sobre a genética, os prós e contras, o dilema. No diálogo com o texto, eles demonstram a construção dos argumentos que fazem com que o autor se posicione e destacam as ideias em oposição expostas no texto. O que acontece é que na construção dos sentidos do texto, o leitor vai, ao mesmo tempo, se posicionando com relação ao assunto e utilizando uma carga de conhecimentos culturais para fornecer ao texto novas possibilidades de discussão. Essa construção de novas possibilidades fica ainda mais forte quando os leitores são expostos às atividades de discussão do texto conforme análise a ser apresentada na seção 5.2 deste trabalho. De forma clara, o gênero do texto influi na maneira como os argumentos são construídos. O leitor identifica a tipologia argumentativa do gênero e procura completar lacunas nas quais os argumentos do autor sejam identificados. Isso foi discutido no cap. 4, mas merece atenção também na questão de identificação e consolidação de sentidos, pois o leitor faz duas tarefas concomitantes: identifica argumentos textuais (competência discursiva) e também fixa sentidos dentro dos limites permitidos pelo seu conhecimento de mundo e pelas possibilidades pré-formuladas e confirmadas na realidade textual pela construção dos fios semânticos condutores. Ou seja, a tarefa de encontrar sentidos e construir novas possibilidades acontece de forma contínua desde o início da leitura movimentando conhecimentos, posições, cultura, realidade, ou seja, a vivência do leitor. 249 Para o terceiro texto, os leitores iniciam a interação também a partir do título, “Poema de sete faces”. 23 alunos da turma A (79%) e 14 alunos da turma B (54%) indicam a palavra ‘sete’ como guia na sua interpretação e expõem as várias possibilidades para o número: ‘sete interpretações’, ‘sete estrofes bem diferentes’, ‘sete faces de um personagem’, ‘sete maneiras de vida’, ‘sete pessoas’, ‘sete almas’, entre outras152. Veja-se, na tabela a seguir, as palavras mais frequentes utilizadas pelos alunos nas atividades 1, 2 e 3 do texto 3: TABELA 14 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 3: Palavra indicada Sete Fases Faces Vida Deus Turma A 23 79% 1 3,4% 8 27% 7 24% 0 - Palavra indicada Sete Fases Faces Vida Deus Turma A 1 3,4% 0 2 7% 18 69% 4 15% Palavra indicada Sete Fases Faces Vida Deus Turma A 0 1 3,4% 0 14 54% 15 57% Atividade 1 Turma B 14 54% 2 7% 4 15% 3 11% 0 Atividade 2 Turma B 0 2 7% 2 7% 8 31% 8 31% Atividade 3 Turma B 0 0 0 8 31% 13 50% Total 37 3 12 10 0 67% 5,4% 22% 18% - 1 2 4 26 12 Total 1,8% 3,6% 7,2% 47% 22% Total 0 1 0 22 28 1,8% 40% 51% Com base na observação da tabulação dos dados para a atividade 1, expostos acima, constatou-se que os estudantes sofrem alta influência do título para o estabelecimento das primeiras possibilidades de leitura. Os leitores reconhecem que poema é um gênero que dá maiores opções de criatividade na construção de sentidos e procuram encontrar no título um elemento que lhes dê maior segurança no direcionamento da leitura. Mesmo os alunos que não utilizaram a palavra ‘sete’, 152 Cf. anexo E deste trabalho que mostra na íntegra as respostas dos alunos, inclusive as da atividade 1 do texto 3. 250 indicaram que há diferentes faces ou várias personalidades, como se pode ver nos excertos a seguir: A.3.1.2 tipos de comportamento de pessoas A.3.1.11 que pode ser interpretações diferentes todas[sic] vez que lê o poema tem uma interpretação. B.3.1.8 seria as diferentes faces B.3.1.13 parece se tratar de várias personalidades Os leitores acima, mesmo sem indicar que a possibilidade interpretativa está no encontro de quais seriam as ‘sete’ faces, lançam uma ideia interpretativa que pode guiálos para o sentido de ‘interpretações diferentes’ ou ‘várias personalidades’. Observe-se também, na tabela 14, que a palavra ‘face’ é a segunda palavra mais usada pelos leitores na atividade 1, com 22% das indicações, seguida da palavra ‘fase’ com 5,4%. Ou seja, as possibilidades de leitura construídas pela maioria dos leitores giram em torno de compreender quais seriam as faces ou fases de que fala o título. Na segunda atividade, a palavra ‘sete’ aparece com uma indicação pequena e é substituída por uma alta indicação da palavra ‘vida’. Os leitores parecem limitar nessa atividade um sentido importante: sete (fases/faces) – vida. Ou seja, se o autor expõe sete faces, elas devem estar ligadas a momentos diferentes da vida de uma pessoa. Em alguns excertos os estudantes limitam sentidos na segunda atividade: A.3.2.4 eu acho que ele quer descobrir-se. A vida do autor. A.3.2.6 eu acho que está contando da vida dele, desde a infância à velhice. Conta sobre sua vida o que ele passou e o que ele não viveu. B.3.2.3 ele viaja dizendo o que era para fazer na vida e reclama que Deus o abandonou. B.3.2.13 acho que ele diz sobre um homem solitário que se questiona porque veio ao mundo ou de um momento ruim Pelos excertos, os leitores, de fato, limitam as faces expostas no título e destacadas na primeira atividade, a fatores relacionados à vida do personagem. As ideias expostas pelos informantes sofrem também influência das palavras que, no texto, indicam sofrimento, tais como “emoções”, “comovido”, “sem solução”, entre outras. Nos extratos expostos acima, os leitores utilizam sua carga de conhecimentos de mundo 251 e sua competência sociointercultural para construir sentidos relacionados a momentos da vida do personagem, tais como ‘descobertas’, o que ‘passou e não viveu’, ‘reclamações’, ‘solidão’ ou ‘momento ruim’. Ressalte-se, também, que o leitor 3 da turma B já constrói, nessa leitura, sentidos ligados ao intertexto bíblico “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” afirmando que ele ‘reclama que Deus o abandonou’. Conforme exposto no cap. 4 (p. 194) a utilização da intertextualidade na construção de sentidos é de suma importância porque auxilia na construção da coerência textual (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Essa é uma observação constante na segunda atividade: 22% dos leitores indicam a presença forte da palavra ‘Deus’, influenciados pelo momento de pedido de socorro do personagem, no texto. Na terceira atividade, os leitores parecem utilizar ainda mais fortemente sua carga de conhecimentos sociointerculturais atreladas à palavra ‘Deus’ para construir sentidos (cf. cap. 4.1.3, p. 194-195). Essa palavra é indicada em 51% dos extratos dos estudantes ao escolher as palavras do texto que os auxiliam na construção de sentidos. É a partir da palavra ‘Deus’ e da palavra ‘vida’ que os leitores fixam sentidos relacionados a: faces – vida – sofrimento - Deus. A palavra ‘Deus’ também é indicada como um socorro para o personagem que sofre durante momentos da sua vida, o que se encaixa na lacuna aberta na segunda atividade na qual ele ‘reclama da vida’, ‘quer descobrir-se’ e ‘é solitário’. Na tabela 15, a seguir, percebe-se que a palavra ‘Deus’ foi a mais indicada como palavra-chave para o texto 3, seguida por palavras que caracterizam o personagem (p. ex. ‘gauche’) e palavras que confirmam o sofrimento, tais como ‘fraco’, ‘anjo torto’ e ‘abandonar’. A cadeia de sentidos construídos pelo leitor, a exemplo dos textos anteriores, também é tecida numa rede de relações estabelecidas na interação com o texto, fazendo com que haja uma sequência de eventos que confirmam as possibilidades: nas primeiras interpretações os leitores indicam que há sete faces. Na segunda leitura eles apontam que as faces estão relacionadas à vida de um personagem que sofre e pede socorro – o que é produzido na segunda leitura e fixado na escolha das palavras-chave. Destaca-se que, também no caso do poema, as interpretações dos estudantes na escolha das palavras-chave são guiadas tanto pela focalização de sentidos intertextuais, quanto pela confirmação ou reconstrução das possibilidades imaginadas para a leitura. Observe-se a tabela: 252 TABELA 15 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 3 Palavra-chave Deus Gauche Anjo (torto) Fraco Abandonar Nascer Coração Homem Mundo Desejos Pernas Bigode Bonde Mulher Turma A 8 8 6 9 8 6 5 3 3 5 4 4 3 1 Turma B 11 10 10 4 5 7 8 10 9 6 7 5 6 8 Total 19 18 16 13 13 13 13 13 12 11 11 9 9 9 Não se tem a intenção de afirmar aqui que todas as relações de construção de sentido são lógicas e seguem uma cadeia sempre sequencial, até porque seria impossível visualizar tudo o que acontece na mente dos leitores para saber exatamente todos os pontos em que a competência comunicativa é ativada na construção de sentidos e no estabelecimento dessas conexões. Na verdade, o que se constata pelos dados é que os informantes fornecem indícios de que utilizam sua carga de conhecimentos prévios e sua competência comunicativa para acomodar sentidos possíveis e não possíveis de acordo com o que conhecem da realidade ou dos textos a que são expostos. No caso do texto 3, os leitores recorrem mais fortemente a conhecimentos sociointerculturais, comparando-se aos textos 1 e 2 (vide gráfico 6 cap. 4.1.3, p. 200), para construir o sentido de que se o personagem reclama a Deus, é porque está sofrendo. É importante considerar também que a alta escolha da palavra ‘vida’, nas segunda e terceira atividades, é interpretada como um reflexo da construção do autor do texto que escreve o poema relatando momentos diferentes. Textualmente, Drummond relata questões observadas pelos leitores, já no início do texto, quando utiliza a frase “quando nasci”. Note-se, na tabela 15, que a palavra ‘nascer’ se encontra na quarta posição entre as mais indicadas, juntamente com outras quatro na mesma posição. Isso porque conhecimentos de mundo levam o leitor a estabelecer a possibilidade sequencial: nascer, viver, morrer. Ou seja, há uma inferência do leitor: se o poeta fala de nascer 253 então está expondo momentos de vida. Tal sequência é mantida por Drummond ao usar metáforas nas próximas estrofes que possibilitam também a inferência do leitor que ativa sua competência sociointercultural, como: 1. Quando nasci – fase de infância; 2. Homens que correm atrás de mulheres – juventude ou idade adulta; 3. Bonde cheio de pernas – atividades profissionais; ida e vinda do trabalho; 4. Homem de bigode – vida adulta; 5. Homem fraco – tristezas vividas; 6. Não seria uma solução – sofrimento; 7. Comovido como o diabo – continuação e intensidade de um sofrimento. (destaques como a observação da lua, a bebida – conhaque - culturalmente afirmam esse sofrimento). Nesse sentido, a movimentação constante de conhecimentos de mundo ligados às informações do texto faz com que se estabeleça coerência (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A indicação de palavras que confirmam e acomodam as possibilidades de interpretação desde a primeira atividade, de pré-leitura, até as atividades de leitura confirmam que os conhecimentos diversos do leitor atuam como uma base de segurança para os leitores na construção de sentidos textuais. Veja-se agora como os informantes selecionados como amostra declaram suas possibilidades, as confirmam e (re)constroem sentidos. No exemplo abaixo, já nas atividades de pré-leitura, o leitor 21 da turma A declara sua expectativa quanto ao título: A.3.1.21 sete faces da vida do autor. Na sequência, ao fazer uma primeira leitura do texto, o aluno declara que entre os fatores discutidos no texto estariam a ‘personalidade’, o que ele ‘pensa’, as suas ‘perguntas’ e os seus ‘sentimentos’: A.3.2.21 ele está falando da personalidade dele, das coisas que ele pensa, das perguntas que ele se faz, dos sentimentos dele. Observe-se que as expectativas expostas na segunda atividade estão de acordo com as possibilidades primárias lançadas pelo leitor: se há sete faces da vida, há também momentos em que se fala sobre personalidade, sentimento, perguntas pessoais, pensamentos. Ou seja, o leitor está procurando elementos para confirmar suas 254 possibilidades interpretativas: quais são as sete faces do autor? O seu conhecimento de mundo permite que fatores de personalidade, pensamento, perguntas reflexivas e sentimentos se encaixem na expectativa de haver ‘sete faces’ da vida. Ao realizar a atividade da palavra-chave, ele é ainda mais fortemente guiado por dois aspectos: as sete faces e a vida do autor. Escolhe palavras que preencham justamente as possibilidades construídas por seu conhecimento de mundo e declara ao final que ‘queria escrever mais’: A.3.3.21 gauche: porque ele era deslocado. Desejos: porque ele era intenso. Vasto: porque o coração dele era vasto. Comovido: porque o poema é comovente. Pergunta: porque tem indagações no poema, porque ele é introspectivo. [duas linhas depois]: eu queria escrever mais! O diálogo com o texto acontece por meio das possibilidades iniciais de leitura (SOLÉ, 1998; COLOMER; CAMPS, 2002): as sete faces da vida do autor. O leitor seleciona exatamente 5 palavras, o limite exposto pela pesquisadora para a atividade, mas para que ele consiga confirmar suas hipóteses (de que há ‘sete faces’), ele declara que seria necessário ‘escrever mais’. Veja-se que o leitor deixa duas linhas em branco, demonstrando que haveria espaço suficiente para que ele escrevesse outras possibilidades de interpretação suscitadas por outras palavras-chave ou por interpretações construídas na interação com o texto. Outro fato interessante é que o leitor escolhe palavras presentes em 5 estrofes diferentes do poema e quando ele declara que ‘queria escrever mais’, afirma que necessita de mais espaço para confirmar as demais possibilidades expostas, talvez, nas estrofes seguintes ou talvez outras interpretações já construídas. O leitor não deixa claro o motivo pelo qual queria ‘escrever mais’ e não se pode afirmar que ele gostaria de indicar duas palavras das outras duas estrofes para completar as ‘sete faces’. O fato é que ele indica de forma nítida que somente as 5 palavras escolhidas não são suficientes e não resumem os sentidos todos construídos na interação com o texto. Destaca-se, também, que das 5 palavras que o leitor seleciona, todas contemplam, de alguma forma, as 4 categorias apontadas na primeira leitura: personalidade – deslocado, introspectivo; sentimentos – comovido, coração vasto; questionamentos – pergunta; pensamentos – desejos. O extrato do leitor acima indica que há vários outros sentidos que podem ser criados na interação com o texto e que ele se sente limitado pelo exercício. A interação 255 do leitor com o autor via texto (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009) acontece, nesse exemplo específico, pela maneira como ele cria para si possibilidades de leitura (‘sete faces da vida do autor’) e procura encontrar elementos textuais que confirmem essas possibilidades. O leitor demonstra a maneira como seus conhecimentos estão em movimentação constante para criar, pensar, refletir suas possibilidades de compreensão. Pode-se dizer que o texto escrito propicia converter as interpretações em realidade de conhecimento articulado na interação entre conhecimentos prévios e língua (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002). Durante esse processo, o leitor não registra uniformemente tudo aquilo que está lendo (cf. cap. 1). Ao contrário, no processo de leitura, ele só registra aquilo que julga necessário para perceber as relações entre os itens e formular uma representação para o texto (ECO, 1979), o que é válido não somente para o texto 3, mas também para os textos 1 e 2, ou qualquer outro texto a que os leitores sejam expostos. O leitor 3 da turma A, abaixo, também cria uma multiplicidade de sentidos possíveis a partir da primeira atividade e depois os limita, já na sequência da leitura: A.3.1.3 podem ser as sete faces do autor, as sete faces de uma mulher, as sete faces de uma situação, enfim. O informante estabelece no mínimo três possibilidades para a palavra ‘sete’ na construção das suas interpretações primárias: sete faces ‘do autor’, de ‘uma mulher’ ou ‘de uma situação’ e ainda, ao indicar a palavra ‘enfim’, deixa em aberto outras possibilidades que possam surgir durante a leitura. O guia principal que direciona sua leitura dali em diante é observar em qual desses elementos essas ‘sete faces’ poderiam se encaixar. Na segunda atividade ele limita seus conhecimentos a uma dessas possibilidades: A.3.2.3 eu acho que ele está falando das faces da sua vida, desde antes de nascer até sua velhice. Ressalta-se que o leitor explica que se fala, no texto, das ‘faces da sua vida’ descartando a ideia das sete faces de ‘uma mulher’ ou de ‘uma situação’. O leitor ainda aponta para o fato de que dentro dessas sete faces devem estar alguns momentos ‘desde antes de nascer até a velhice’. Ele utiliza toda sua carga de conhecimentos prévios (KLEIMAN, 2000; 2002; KATO, 1999; CASTELLO-PEREIRA, 2003; ECO, 1979) para ativar sua competência comunicativa e dialogar com o texto construindo sentidos. 256 Tais sentidos, no caso desses excertos, estão limitados a dois aspectos principais: a) a confirmação ou reconstrução das possibilidades construídas antes da leitura - a de que o texto expõe ‘sete faces’; e b) os seus conhecimentos discursivos, gramaticais e sociointerculturais para encontrar quais seriam as ‘faces’ e a que momentos elas se referem. Na atividade de escolha das palavras-chave, o leitor declara de forma nítida que está encaixando as palavras-chave em fases da vida do personagem: A.3.3.3 sério: essa palavra está no 4º verso do poema, como se fosse a 4ª fase de sua vida onde ele já havia se tronado[sic] um homem com maiores responsabilidades. Óculos: também da uma ideia de idade mais velha. Abandonaste: essa palavra está no 5º. verso do poema e da a ideia de que seria a 5ª fase de sua vida onde ele estaria passando por alguma dificuldade em que Deus o abandonou. O leitor destaca as palavras ‘sério’ e ‘abandonaste’ como chave e as justifica por estarem presentes no 4º e 5º versos do poema e por fazerem parte, respectivamente, da 4ª e 5ª fase da vida do personagem. Pode-se dizer que o informante está de fato dialogando com o texto numa tentativa de encontrar quais são as fases da vida. Ele divide as estrofes em algumas dessas fases e as explicita em suas justificativas. Outro detalhe importante é que ele focalizou sentidos que respondem melhor à ideia construída no texto de que há uma tendência do personagem para o sofrimento e isso acontece na fase adulta. O informante começa a sua explicação justamente indicando a palavra ‘sério’ porque ele era um homem ‘com maiores responsabilidades’ e na sequência indica ‘abandonaste’ porque é justamente a fase na qual o personagem se sente triste e passa ‘por alguma dificuldade’. Ou seja, mais uma vez, assim como aconteceu com alunos nos textos anteriores, o informante confirma suas possibilidades iniciais de leitura e quando é solicitado a fixar sentidos, utiliza sua competência comunicativa para confirmar tais possibilidades se concentrando em elementos textuais que, para ele, são marcas linguísticas nessa confirmação ou reconstrução. Pode-se dizer que a língua é utilizada aqui como um local de interação entre autor e leitor. É por meio de ações linguísticas e sociocognitivas que eles constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização textual e as diversas possibilidades de seleção 257 lexical que a língua lhes põe à disposição (KOCH; ELIAS, 2010, p. 07). Na turma B, os informantes também demonstram que a palavra-chave pode ser utilizada tanto na confirmação ou reconstrução das possibilidades de leitura, quanto na focalização de sentidos particulares. No caso do aluno 13, abaixo, ele não demonstra a palavra ‘sete’ – como o fizeram os informantes anteriores -, no entanto ele já indica que o texto vai tratar de ‘várias personalidades’: B.3.1.13 parece se tratar de várias personalidades Ou seja, as interpretações do leitor devem estar limitadas aos esquemas mentais (DIJK, 2002; ECO, 1979) ‘personalidade’. As interpretações do leitor, na segunda atividade, demonstram que ele encontra características do personagem que se encaixam nesse esquema: B.3.2.13 acho que ele diz sobre um homem solitário que se questiona porque veio ao mundo ou de um momento ruim O fato de ser um ‘homem solitário que se questiona porque veio ao mundo’ mostra ao leitor quais seriam algumas das possibilidades dessa personalidade. O fato de ele indicar ‘um momento ruim’ mostra a percepção do leitor de que o texto relata sobre fases ruins da vida. É importante destacar aqui que a representação daquilo que o leitor encontra na leitura vai se organizando com base naquilo que ele tem armazenado em seus esquemas mentais. À medida que a leitura evolui, os esquemas se reorganizam e ocorre um processo de formulação do pensamento produzindo interpretação, o que é uma característica fundamental para o processo de produção de sentidos textuais (ECO, 1979). Na atividade de escolha das palavras-chave, o leitor utiliza a sua seleção para fixar sentidos textuais que giram em torno das personalidades do autor – ‘vive sem rumo’, ‘homem sério’, sofre por ter ‘poucos amigos’, ser um ‘Zé ninguém’ ou ‘estar bêbado’: B.3.3.13 gauche: para lembrar que ele vive sem rumo. Bonde: para lembrar da estrofe das pernas. Bigode: para lembrar do homem sério de poucos amigos. Raimundo: pois Raimundo quer dizer Zé ninguém. Comovido: pois acho que ele está bêbado. 258 O leitor procura encaixar possíveis sentidos dentro dos limites colocados por ele na primeira interpretação: ter ‘várias personalidades’. Na segunda atividade, o leitor indica que essa personalidade é ‘solitária’ e que o personagem ‘se questiona’. Na terceira, o leitor indica outras características percebidas no texto: ‘vive sem rumo’, ‘homem sério de poucos amigos’ e ‘está bêbado’. Colomer e Camps (2002) relatam que no processo interativo de leitura, o texto funciona como um ativador de esquemas mentais. Ou seja, o leitor faz construções interpretativas possíveis mediante algumas informações observadas e contrasta essas percepções àquilo que ele conhece da realidade. De forma concomitante, reconstrói ou confirma suas possibilidades a partir de marcas linguísticas encontradas no texto e é nesse momento que ele fornece ao texto um sentido global. No caso dos informantes analisados até aqui, é possível dizer que, ativando sua competência comunicativa, eles buscaram estratégias linguísticas e extralinguísticas que possibilitassem a eles um encaixe entre as suas possibilidades de leitura e os sentidos expostos no texto. A palavra-chave pode estar funcionando como um ativador importante dessa estratégia de ancorar possibilidades, confirmá-las ou reconstruí-las, por serem justamente marcas linguísticas textuais (KLEIMAN, 2002; COLOMER;CAMPS, 2002). O caso do leitor 10 da turma B também indica que o leitor utiliza estratégias de confirmação, reconstrução ou limitação das possibilidades estabelecidas pela sua leitura. Na primeira atividade ele declara que o texto fala que: B.3.1.10 existem pessoas com diversos tipos de caráter O leitor aponta que sua interpretação será direcionada para o encontro de informações suficientes que lhe sirvam para basear a ideia de que há ‘pessoas com diversos tipos de caráter’. Na segunda atividade o leitor expõe duas possibilidades para esse ‘caráter’: o alcoolismo e o pensamento constante em mulheres: B.3.2.10 eu acho que se trata de uma pessoa alcoólatra transtornado com Deus porque o abandonou e só pensa em mulheres. Nesse extrato, o leitor indica que o personagem se encaixa em um determinado tipo de ‘caráter’. Ainda, ele constrói sentidos textuais, e possibilitados pelo 259 conhecimento de mundo, de que há motivos para o personagem ser alcoólatra e pensar em mulheres: o fato de ter sido abandonado por Deus. Veja-se a maneira como informações textuais - o abandono por Deus – se relacionam aos conhecimentos de mundo do leitor para construir sentido – está transtornado, é alcoólatra, só pensa em mulheres. A influência do conhecimento de mundo na interpretação está no fato de que para que o leitor possa dizer que compreendeu o texto, ele precisa deduzir relações entre frases, palavras, parágrafos e complementar com conhecimentos não necessariamente explícitos no texto (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Assim, o leitor utiliza todo o conhecimento que não está exposto no texto para perceber indícios reveladores para sua leitura, ou seja, ele utiliza um mecanismo contínuo de antecipação e confirmação para compreender o texto. Tal antecipação e confirmação funcionam como fios que conduzem a interpretação do leitor e relacionam aspectos diversos dos conhecimentos culturais ativados no momento da leitura. A atividade seguinte mostra como o leitor reforça essa carga de conhecimentos culturais: B.3.3.10 as casas que espiam os homens, significa casa noturna onde mulheres vão se prostituir. É interessante observar a maneira como o leitor cria sentidos relacionando possibilidades limitadas pela sua vivência de mundo. Ele indica que a expressão presente no texto ‘casas que espiam os homens’ poderia confirmar sua possibilidade de leitura de que o personagem ‘só pensa em mulheres’, pois no texto há uma ‘casa noturna onde mulheres vão se prostituir’. O leitor também faz ligações importantes da sua cultura na produção de sentidos, pois ele indica que o personagem deve se encaixar em um determinado ‘caráter’. Há uma construção cultural de que as pessoas que apresentam características socialmente aceitas possuiriam um ‘caráter’ bom, e as que transgridem esses comportamentos, ou cultura, teriam um ‘caráter’ ruim. A questão principal é que produzimos significados em meio à interação e à vivência no mundo que nos cerca, e essa produção se reflete na maneira como compreendemos os significados de um texto, seja ele oral ou escrito (MENDES, 2011). Assim, há uma relação entre a cultura vivida pelo leitor e as marcas linguísticas expostas no texto: o fato do personagem ser ‘alcoólatra’, ‘só pensar em mulheres’ e ir a ‘casas de prostituição’ culturalmente se encaixam no perfil de um personagem que está ‘sem rumo’, ‘abandonado’, ‘triste’, o que constrói o seu ‘caráter’. 260 O que se percebeu durante a análise dos dados expostos, para os três textos, é que os informantes utilizam duas frentes principais na construção de sentidos: uma liderada pelas possibilidades de leitura e outra liderada pela competência comunicativa que organiza seus conhecimentos. Para a atividade de construção e confirmação das possibilidades iniciais de leitura, os leitores procuram pontos onde ancorar suas escolhas de interpretação e as palavras-chave parecem funcionar como esse elemento em que eles conseguem encaixar os sentidos e formalizar representações para o texto. É importante lembrar que os leitores declararam, nos questionários sociointerculturais, que consideram o título um elemento importante na escolha dos textos que vão ler. Conforme exposto no cap. 3.2 (p. 131), a maior parte dos alunos pesquisados, de ambos os grupos, afirmou selecionar suas leituras pelos temas específicos, pelo título ou por resumos. Isso confirma a ideia de que de que dados iniciais do texto guiam o leitor no estabelecimento de possibilidades interpretativas e, consequentemente, na escolha das palavras-chave. O que se percebeu ao analisar os extratos dos informantes é justamente que esses dados iniciais atuaram como um elemento concomitante à competência comunicativa, fazendo com que os leitores utilizem estratégias de descarte de algumas informações e saliência de outras para a construção da interpretação. Os dados revelaram, também, que os leitores procuram concentrar na palavrachave um elemento principal em que podem costurar os sentidos que foram aos poucos construindo durante a interação com o texto. O diálogo com o texto se estabelece e ao ligar um elemento a outro, as interpretações são construídas num processo que envolve aspectos culturais, discursivos, gramaticais. Cavalcanti (1989) afirma que as palavraschave são como “fios condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 122) para o estabelecimento de sentido textual e a construção de interpretação. O que se observou aqui é que elas não apenas conduzem os leitores, mas também servem como bases, como se fossem uma zona de segurança, para ativação de conhecimentos subjacentes que extrapolam o conhecimento linguístico do código e levam os leitores a ativarem tudo aquilo que conhecem sobre suas realidades e inferirem sentidos para o texto. Mas e quando o leitor é solicitado a expor suas opiniões para o texto? Como ele utiliza o diálogo já estabelecido para negociar sentidos para si mesmo? É o que vai se falar na seção seguinte deste trabalho. 261 5.2 A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS Nesta seção, vai-se analisar a maneira pela qual os leitores destacam sentidos construídos durante a leitura e reconstroem novos sentidos para si mesmos ou para o texto num processo de negociação. Para tanto, observou-se as atividades de discussão do texto em que foram propostas três perguntas a partir das quais se objetivou que os alunos demonstrassem algum tipo de diálogo interativo com o texto para negociação de sentidos153 (cf. cap. 3). É necessário lembrar que quando se negocia sentidos com o texto, há um processo individual em que sentidos previamente construídos para cada leitor podem ser trazidos à tona. De acordo com Mendes (2011), a língua é um modo de identificação dos sujeitos numa rede de relações individuais, sociais e culturais. É por intermédio da língua que as pessoas enxergam a realidade à sua volta, estruturam pensamentos, interagem socialmente, organizam o mundo em que vivem. Sendo assim, a cultura e a língua se encontram na produção de sentidos ocupando um mesmo espaço fazendo com que a interpretação e a reorganização de compreensões sejam processos tanto individuais quanto sociais. Embora se tenha observado que há pontos em comum entre todos os leitores nas discussões já realizadas dos cap. 4 e do 5.1, quando se fala em negociar sentidos, julgase que há um diálogo ainda mais intenso com os processos vividos interculturalmente por cada leitor em particular. Sendo assim, um processo de diálogo entre essas culturas, de vários sujeitos, com perspectivas diversas, que se juntam em um mesmo momento de construir sentidos, pode enriquecer o trabalho pedagógico nas salas de aulas de línguas (MENDES, 2011). No entanto, para a análise aqui proposta, seria no mínimo exaustivo discutir cada um dos processos de negociação expostos por todos os 55 informantes participantes da pesquisa. Para que fosse possível realizar uma discussão sobre a maneira como os leitores fixam, organizam, reconstroem e negociam sentidos, optou-se aqui por selecionar os mesmos informantes utilizados na primeira parte do capítulo com o intuito de analisar como guiaram suas interpretações desde o início, a partir da construção das possibilidades iniciais de leitura até a discussão. Ou seja, parte-se de uma observação genérica feita a partir da maioria dos alunos das turmas pesquisadas, conforme exposto 153 Vide questões na íntegra no anexo B deste trabalho. 262 na seção 5.1 acima, faz-se a seleção de alguns informantes para demonstrar como se analisam tais observações para segunda questão de pesquisa e agora, utilizam-se os mesmos informantes para discutir a terceira questão de pesquisa e verificar a maneira que estes reconstroem ou negociam sentidos. Por uma questão de organização da análise apresentada na sequência, para cada leitor apresentado a seguir, faz-se uma retomada breve das discussões realizadas na seção anterior para demonstrar o diálogo entre os sentidos fixados para o texto e os que estão sendo colocados em negociação pelo leitor na atividade de discussão do texto. É importante ressaltar o fato de que sentidos são construídos a partir de um diálogo entre diferentes culturas (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008; 2010; 2011), o que significa que cada sujeito participante do processo de negociação entra com sua visão de mundo e perspectivas (cf. cap. 2.2.2, p. 93-97). Isso significa que, em contexto pedagógico, o professor também entra com suas próprias construções e as expõe para o diálogo com os sentidos construídos pelos alunos. O mesmo acontece quando se está na posição de pesquisador. Em outros termos, cada um dos envolvidos na produção de sentidos entra com uma parcela de participação expondo suas análises e considerações. Assim, neste trabalho de tese, não se nega a possibilidade de que a negociação se dê também pelos sentidos percebidos pela própria pesquisadora, além das observações realizadas pelos estudantes numa relação de conhecimentos sociais e interculturais. Para todos os textos, foram realizadas três perguntas na atividade 4 - discussão do texto -, conforme exposto no cap.3. A ideia principal das perguntas foi a de analisar em primeiro lugar a posição que o aluno se coloca diante do texto ou dos sentidos construídos para ele. Outro detalhe importante nas perguntas é que se procurou em, pelo menos uma delas, oportunizar aos leitores a tomada de posição a partir de suas opiniões e também de demonstrarem como a palavra-chave os auxiliava a hierarquizar intenções textuais ou pessoais. Notou-se, na discussão da seção 5.1 acima que, para o texto 01 a maioria dos estudantes começou a interação com o texto a partir da palavra ‘instrução’ estabelecendo possibilidades mais genéricas de interpretação e na segunda atividade eles limitaram tais hipóteses a assuntos relacionados à ‘educação’, ‘estudo’ e diferença de classes. Na terceira atividade, o que se percebeu em grande parte dos estudantes é que eles procuraram destacar aspectos textuais que relataram a construção da crítica do gênero textual, bem como palavras que confirmassem a possibilidade de leitura de que o 263 tema principal – a educação - relacionava-se a problemas sociais tais como discriminação, pobreza, riqueza, entre outros. No caso do aluno 16 da turma A, observou-se que o informante lançou a possibilidade inicial de que a ‘instrução é essencial para a sociedade’, limitou esse sentido a fatores de ‘estudo’, ‘discriminação’, ‘pobreza’ e ‘riqueza’ e construiu sentidos que indicam que ali há uma crítica (cf. cap. 5.1, p. 229-230). Nas atividades de discussão do texto, notou-se que o leitor também utiliza a palavra ‘instrução’ para estabelecer sentidos pessoais. Ao ser questionado sobre o personagem com quem se identifica, o informante afirma que é ‘com o senhor’ porque ele ‘pensa em instruir’ e não ‘dar dinheiro’. O menino, por sua vez, não quis buscar estudo, ele ‘virou as costas e foi embora’: A.1.4a.16 três. Dois principais. Com o senhor. Porque ele pensa em instruir em vez de dar dinheiro ao menino. Ele questionou o menino sobre Teorema de Pitágoras, mas o menino não quis buscar o conhecimento virou as costas e foi embora. O leitor aponta para a importância de obter e dar ‘instrução’ ao invés de ‘dar dinheiro’. O estudante volta a utilizar a palavra ‘instruir’, mas agora com um sentido de que o senhor dá algo importante ao menino, o conhecimento, e este ‘virou as costas e foi embora’. O estudante se coloca na posição daquele que quer dar algo, o conhecimento a alguém, e para isso ele precisa estar no lugar daquele que detém o conhecimento. Ele ainda afirma que o menino ‘não quis’ buscar o conhecimento e por esse motivo ele não se identifica com o personagem. Na atividade seguinte, ele reforça a sua opinião de que se deve, de fato, estudar mais e buscar o conhecimento, pois é ele que pode lhe dar o poder de ‘instruir’ alguém. O leitor indica que a posição do personagem é a de que ‘só quem estuda 5 anos a mais é que é bem instruído’: A.1.4b.16 ele pensa que só quem estuda 5 anos a mais que é bem instruído. Sim. Porque se a pessoa estuda todo esse tempo a menos ela não tem tempo de aprender tudo que o mais instruído sabe. Ele ainda afirma que concorda com essa ideia de que é necessário estudar mais, pois, se a pessoa não buscar estudo, ela vai continuar sem saber o que realmente precisa saber para também ser ‘bem instruído’. O leitor assume aqui um sentido criado no texto 264 para si mesmo: ele se identifica com o personagem rico porque este tem mais tempo de estudo e consequentemente pode ser considerado o ‘mais instruído’. Na sequência da atividade, o estudante ainda declara que, para ele, é pela busca do conhecimento, ou seja, do ‘estudo’, que se pode ter sucesso, ou se ‘sair melhor na vida’. O aluno elege a palavra ‘estudo’ como a chave dos sentidos que constrói para si mesmo: o estudo é importante para que se tenha sucesso. A.1.4c.16 ele enfatiza sempre o estudo, a busca do conhecimento, quem tem mais estudo se sai melhor da vida. Estudo [sic]154. Sendo assim, o leitor parece estar utilizando a palavra-chave (de início ele utiliza ‘instrução’ e depois reformula sua interpretação para ‘estudo’) para dois aspectos principais relacionados ao sentido do texto: a) confirmar sua possibilidade inicial de leitura de que instrução é ‘essencial para a vida em sociedade’ (cf. 5.1, p. 230); e b) construir sentidos pessoais de que com estudo ele também pode alcançar sucesso. Ao negociar sentidos com o texto, o leitor assume para si a posição de buscar o estudo para poder ‘se sair melhor na vida’ e tornar-se ‘bem instruído’. Com relação ao aluno 5 da turma A, abaixo, o leitor constrói nas primeiras atividades um sentido de que a instrução é importante para um futuro de sucesso e que há uma crítica no texto e uma superioridade do rico com relação ao pobre (cf. cap. 5.1, p. 230-232). Ele também destaca, nas atividades anteriores, que ‘sempre há mais o que estudar’ e que ‘existem pessoas que se acham melhores que os outros’. Na atividade de discussão do texto, o leitor marca justamente sua desaprovação à atitude de preconceito com o menino e se coloca na posição dele dizendo que ‘não seria o homem’ porque ‘não tem costume de dar lição de moral’: A.1.4a.5 dois. O menino e o homem. O menino pois não tenho costume de dar lição de moral em outras pessoas se não tenho certeza de que estou certa, portanto, eu não seria o homem. O estudante estabelece a oposição entre os dois personagens e se identifica com aquele que sofre o preconceito, desaprovando a atitude do senhor rico. Ele ainda marca a sua desaprovação ao preconceito reconstruindo a crítica presente no texto: 154 A palavra ‘estudo’ aparece sublinhada na indicação do leitor. 265 A.1.4b.5 que com ela iria ajudar ao menino. Em alguns fatos. Pois o personagem narrador mostra um certo ar de superioridade e preconceito durante sua instrução e isso é um ponto negativo. Note-se que o leitor destaca que a ‘instrução155’ seria importante no auxílio ao menino, mas isso não justifica o ‘ar de superioridade’ e de ‘preconceito’ mostrados pelo personagem mais rico. Ao negociar sentidos com o texto, o estudante expõe a sua opinião de que não se pode ter um ‘ar de superioridade e preconceito’ porque ‘isso é um ponto negativo’. Ele também indica que concorda com ‘alguns fatos’ do texto e na última atividade afirma que a educação é importante para ‘termos uma vida melhor’: A.1.4c.5 mostrar que todos nós sem a educação não somos nada e que sempre devemos buscar por ela para termos uma vida melhor. O leitor indica a maneira como constrói sentidos e expõe que concorda em parte com o personagem narrador estabelecendo para si dois sentidos principais: a) o de que a educação é importante para o futuro – é importante lembrar que este foi um guia interpretativo exposto pelo leitor desde o início da interação com o texto e que ele o confirma na última atividade de exposição da sua opinião; e b) o de que há uma crítica no texto na qual um personagem considera-se superior ao outro – é nesse ponto que o leitor se posiciona e expõe sua ideia de que o ‘ar de superioridade’ é desnecessário e que ele não concorda com o preconceito demonstrado no texto. Ele seleciona palavras que funcionam como marcas linguísticas dos sentidos construídos durante a leitura e, ao ser indagado sobre sua opinião, ele parece justamente entrar em um processo de negociação com o texto afirmando que ‘sem educação não somos nada’ mas o fato de alcançá-la não justifica atitudes de preconceito. Para o leitor, há dois processos não concomitantes: o fato de ter altos níveis de educação e o fato de se sentir superior. Ele entra em negociação com o texto a partir de uma realidade vivida: no texto, o rico se sente superior ao pobre, mas para o leitor, tal atitude é injustificável seja pelo dinheiro, seja pelo nível educacional. Observe-se ainda que o leitor declara-se na posição do menino porque não costuma ‘dar lição de moral’ em ninguém o que indica que ele procura ações realizadas no seu cotidiano para construir sentido para o texto. Deve ser lembrado que tanto na vida cotidiana quanto na leitura de textos, compreende-se e incorpora-se o que faz 155 O leitor utiliza o pronome ‘ela’ como remissivo à palavra ‘instrução’ colocada na pergunta da atividade “o que o personagem narrador pensa da instrução?” 266 sentido a partir dessa vivência (FREIRE, 1983; KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2011). Fica claro neste excerto que o informante, de fato, expõe ações realizadas na sua vida cotidiana que o fazem se identificar com um personagem e não com outro pela desaprovação a algumas atitudes, embora concorde que também precisa estudar, assim como o personagem rico. Também no caso do leitor 16 acima, fica clara a relação estabelecida entre as ações sociais dos leitores com os sentidos criados no texto. O leitor declara que sua posição é igual a do ‘senhor’ porque precisa buscar estudo e ter ‘uma vida melhor’. Em ambos os leitores acima, a vida cotidiana mistura-se com os sentidos construídos para o texto e auxiliam o leitor a identificar-se com atitudes demonstradas pelos personagens. Na turma B, a palavra ‘instrução’ também aparece nas primeiras possibilidades de leitura dos informantes e com um sentido ainda mais genérico se comparada com a turma A (cf. cap. 5.1, p. 233-234). O caso do aluno 19, abaixo, discutiu-se na seção anterior que ele expõe suas primeiras possibilidades de leitura a partir da ‘instrução sobre algum assunto’. Tal tema é limitado já na segunda atividade na qual o estudante indica que há uma ‘lição preciosa’ e que o menino se sentiu ‘menosprezado’. Na sequência, o leitor procura reafirmar tais sentidos na escolha da palavra-chave e já inicia um processo de diálogo e negociação do texto tentando questionar-se sobre a existência do destino – ‘existi [sic] o destino?’ - e afirmando que ‘não há lição preciosa’ e que discorda do argumento do personagem narrador de que são necessários cinco anos sem se divertir para se dedicar mais tempo ao estudo. O diálogo se intensifica ainda mais quando o leitor procura demonstrar sentidos pessoais. Ao ser indagado sobre sua identificação com algum dos personagens, ele declara que não está de acordo com nenhum dos dois porque o ‘rico se acha esperto e o ‘pobre age como ignorante’: B.1.4a.19 dois. Narrador personagem, o senhor e o menino; com nenhum dos dois. O “rico” se acha esperto e o “pobre” age como ignorante. Verifica-se como o leitor procura estabelecer sentidos pessoais para o texto quando afirma, na segunda atividade, que, para ele, ‘não há lição preciosa’, e, na quarta atividade, que não age como o rico que ‘se acha esperto’ e nem como o pobre que ‘age como ignorante’. Ou seja, assim como os leitores da turma A, ele se baseia em suas ações no mundo, o que faz parte da sua cultura (cf. cap. 2.2.2), para afirmar que não se identifica com os personagens. Isso acontece porque ações, atitudes, crenças, valores, 267 comportamentos se refletem na língua usada na comunidade (KRAMSCH, 1998) e fazem com que os usuários construam sentidos baseados na realidade que os cerca (FREIRE, 1983; MENDES, 2011). Na atividade seguinte, o informante declara que considera a importância de ‘ter conhecimento’: B.1.4b.19 ele pensa que o estudo deve estar acima de tudo, que todos devem ter conhecimento. Veja-se que o leitor constrói relações de sentido entre as interpretações construídas para o texto (KOCH, 2009; KOCH, ELIAS, 2010) quando indica fatores textuais – o rico menospreza o pobre, tenta dar uma lição preciosa mesmo sem conhecer a lição – e fatores de sentido pessoal – não há lição preciosa alguma no texto e todos devem ter conhecimento. Tais sentidos estão em relação constante nas interpretações do leitor que procura indicar, desde o início, que se há ‘lição preciosa’, ela deve ser a busca do conhecimento e não o preconceito. Na atividade seguinte, ao mesmo tempo em que o estudante utiliza a ‘lição preciosa’ encontrada como marca linguística no texto para confirmar sua possibilidade de interpretação de que educação é, de fato importante, ele também indica essa expressão como a criadora da opinião de que não se pode ensinar o que não se sabe: B.1.4c.19 mostrar que nem tudo o que achamos que sabemos realmente podemos transmitir aos outros. Lição preciosa porque ele não sabia sobre essa lição. Observe-se que o estudante iniciou a sua leitura com possibilidades bem amplas: instrução sobre algum assunto. Na sequência, o leitor estabelece que o assunto é uma ‘lição preciosa’ e já inicia um diálogo de negociação com os sentidos do texto tentando demonstrar que ele não concorda com tal lição e que ter educação não está em equilíbrio com o fato de ‘menosprezar’ o pobre, de ‘se achar esperto’, de ‘agir como ignorante’, ou de ‘estar acima de tudo’. Pode-se dizer que o leitor encontra um sentido principal - o rico que menospreza o pobre – e, ao interagir com o texto, indica sua desaprovação a tal atitude, procurando marcas linguísticas que demonstrem a maneira como seus sentidos são reconstruídos e remodelados a partir das relações culturais construídas social e individualmente (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008, 2011). Ele indica que se deve buscar o conhecimento sem menosprezar ninguém, pois ‘nem tudo o que achamos que sabemos realmente podemos transmitir aos outros’. A palavra-chave que marca, para o leitor, 268 essa relação foi indicada como sendo ‘lição preciosa’. O leitor ancora nessa expressão dois aspectos principais: a) a marcação linguística e textual de que o personagem rico tenta passar uma lição que na verdade, não existe; e b) a relação pessoal com o texto, isto é, não se deve menosprezar os outros ‘sem saber o que está falando’. O aluno 14 da turma B começa a sua interação com o texto focalizando o tema principal – ‘educação’ – e reconhecendo que um personagem se coloca como superior ao outro. O leitor ainda vai ancorar os sentidos do texto em palavras que confirmam a oposição entre os personagens – ‘esfarrapado’, ‘menino’, ‘olhar súplice’ – e reconhece que ‘essa é uma realidade que a gente vive’ (cf. cap. 5.1, p. 236). Nas atividades de discussão do texto, ele se coloca no lugar do personagem mais rico e indica que há, de fato, uma tentativa de auxílio: B.1.4a.14 sem duvidas com o senhor porque eu adoro dar lição nos outros conselhos e tal, mas no fim eu as vezes nem sei sobre o assunto eu gosto de ajudar os outros. O leitor admite que o senhor deu um conselho cujo conteúdo nem o próprio personagem dominava, e também admite que age exatamente dessa maneira com outras pessoas com a ideia de ‘ajudar os outros’. Destaca-se a maneira como ele encontra, no texto, um comportamento cultural que observa na sua própria atitude: dar lição ou conselho aos outros. A cultura, como forma de comportamento (KRAMSCH, 1998; ALMEIDA FILHO, 2011; MENDES, 2008; 2010; 2011 – cf. cap. 2.2.2), é revelada pelo leitor quando ele destaca, na interpretação do texto, ações que realiza na sua vida em sociedade. O leitor estabelece ligações entre os sentidos do texto – dar um conselho ao menino pobre – e as ações que ele realiza na sua vida cotidiana – dar lição de moral porque gosta ‘de ajudar os outros’. Mesmo que o leitor tenha reconhecido que o personagem rico se acha superior ao pobre, ele também reconhece que há uma intenção de auxílio e não de menosprezo e é com essa intenção que ele se identifica. Na atividade seguinte, o leitor destaca a palavra ‘esfarrapado’ para confirmar sua hipótese de que há um personagem, ‘o narrador’, que quer dar um conselho ao outro e indica ainda a existência de uma relação entre ‘educação’ e ‘diferenças de oportunidade’: B.1.4b.14 esfarrapado, porque o narrador quis chamar nossa atenção ele puxa muito pelo lado da educação do diploma das diferenças e oportunidades 269 Durante toda a interação com o texto, o leitor mantém seu fio condutor da interpretação no assunto ‘educação’, indicada ainda na segunda atividade, e destaca que esse é o objetivo principal do texto. Aponta também que dentro deste assunto há ‘diferenças de oportunidade’ e ‘uma realidade que a gente vive’. Ainda, ao ser questionado sobre qual palavra o auxilia a desvendar o objetivo do autor com o texto ele aponta para a expressão ‘teorema de Pitágoras’ e afirma que ela é o elemento textual que focaliza a diferença de classes e de oportunidades, pois mesmo com estudo, muitos não sabem ‘o que isso quer dizer’: B.1.4c.14 chamar a atenção para a educação. Teorema de Pitágoras muita gente se confunde ou não sabe o que isso quer dizer. Veja-se como o leitor faz uma marcação nítida para os sentidos que vai produzindo na interação com o texto: ele inicia sua interação afirmando que a ‘aprendizagem’ e a ‘lição de vida’ referem-se a um tema principal: a educação. Nestes limites, ele reconhece que ‘há uma realidade que a gente vive’ onde alguns têm mais oportunidades que outros, ou seja, há uma diferença de classes que se reflete no nível de educação que se obtém. Admite também que há um comportamento cultural de que aqueles que têm nível educacional acabam dando ‘lição de moral’ ou conselhos para os que não o têm. O leitor ainda negocia sentidos quando afirma que o narrador chama a atenção para a educação, para as ‘diferenças’ e para as ‘oportunidades’ e que isso não está somente no texto, mas também se reflete na sociedade que ‘a gente vive’. Pode-se dizer com isso que a competência sociointercultural (cf. cap. 2.2.2) do leitor é ativada de forma preponderante, não só para construir sentidos textuais, mas também para negociar sentidos pessoais: o leitor reconhece uma atitude particular de ‘dar lição de moral nos outros’, indica que esse é, de fato, um comportamento cultural e expõe que ‘educação’ e ‘oportunidades’ são dois aspectos em relação constante, pois alguns têm mais oportunidade à educação que outros e isso se reflete na sociedade ‘que a gente vive’. Mais uma vez, os sentidos construídos pelo leitor passam por um processo de acomodação às ações conhecidas e vividas por eles na sociedade. É nesse processo em que língua e cultura se encontram em um lugar comum e possibilitam a negociação e o diálogo entre os aprendizes para a reconstrução, a recriação e a compreensão do mundo 270 à sua volta (MENDES, 2011; KRAMSCH, 1998). Por exemplo, no caso do leitor acima, mesmo reconhecendo que ‘dar lição de moral’ sem saber muito sobre o assunto não seria uma atitude aprovada, ele indica que faz exatamente isso, mas com a intenção de ‘ajudar os outros’. Note-se que esse não foi um sentido construído no texto. O informante se reconhece na atitude do personagem e procura justificar as suas atitudes e não as do personagem. Afirma, ainda, que há, de fato, uma relação constante na sociedade entre ‘educação’ e ‘oportunidades’, o que constrói a crítica do texto de que o rico não teve só maior nível educacional, mas teve também a oportunidade de se dedicar ao estudo, embora ele saiba a mesma coisa que o personagem pobre. O leitor reconhece que a diferença principal estaria na oportunidade diferenciada entre as classes sociais e diz que ‘essa é uma realidade que a gente vive’. Para o texto 2, discutiu-se na seção anterior que os estudantes, de forma geral, começam sua interação com o texto ancorando-se em dois aspectos principais: a genética e a existência de um debate. Nas atividades seguintes, os leitores limitam suas interpretações a três assuntos expostos no texto para construir sentido: ‘transgênicos’, ‘clonagem’ e ‘células-tronco’. Observou-se também que o último desses temas aparece hierarquizado na indicação dos alunos para ancorar sentidos textuais, justamente por ser foco da argumentação mais forte do autor e da exposição de polêmicas maiores com relação ao assunto. Isso é resultado da competência discursiva dos leitores que reconhecem no gênero o teor altamente argumentativo e procuram destacar a maneira como essa argumentação é construída (cf. cap. 4.1.2, p. 171-175; 180). Tais indicações para as palavras-chave são também resultado de uma cadeia de relações estabelecidas desde o início do texto que visam limitar os sentidos que vão aos poucos sendo construídos em direção à focalização da sequência textual. Conforme discutido na seção anterior, o leitor 2 da turma A indicou, a princípio, que o texto fala sobre dúvidas com relação aos estudos genéticos (atividade 1), reconheceu os polos de oposição de argumentação no texto e os destacou na sua leitura (atividade 2) e, além disso, apontou como bases de construção de sentido os três tópicos argumentados no texto (atividade 3). Ao realizar a atividade de discussão do texto, o leitor destacou com clareza os argumentos do autor: A.2.4a.2 o autor é em grande parte a favor porém discorda em alguns pontos. Ele é totalmente a favor do uso de células-tronco para a cura de doenças e até tenta justificar a morte dos embriões no processo com o intuito de amenizar a polêmica e as 271 oposições. Concorda com os transgênicos até certo ponto e torna-se contra o mesmo se este causar impacto ambiental. O autor é totalmente contra a clonagem principalmente a clonagem humana. O informante mantém a sua possibilidade de interpretação de que há um trânsito entre fatores benéficos e maléficos do uso da ciência genética. Ele expõe, com especificidade, quais os destaques de acordo e desacordo expostos no texto guiado pelo fio interpretativo que leva a encontrar e expor vantagens e desvantagens da ciência genética. Destaca-se a maneira como o leitor ativa sua competência comunicativa (cf. cap. 4.1, p. 151) para estabelecer diálogo com o texto e destacar sentidos ali construídos: a) a competência discursiva é utilizada para destacar os temas de acordo e desacordo expostos pelo autor, bem como os argumentos apontados por ele no texto; b) a competência estratégica para reconhecer a oposição e resumi-las em poucas palavras a partir da focalização das palavras-chave; c) a competência gramatical para construir o sentido de oposição a partir da concatenação das ideias em oposição pelo uso de conectivos como ‘porém’ e a expressão ‘até certo ponto’; e d) a competência sociointercultural para expressar sua opinião baseado nas conclusões retiradas do texto. Ao emitir sobre a sua opinião sobre a genética, o leitor conscientemente se mostra favorável aos argumentos textuais afirmando que sua ‘visão é semelhante a do autor’: A.2.4b.2 sou a favor da engenharia genética – minha visão é semelhante a do autor pois apoio totalmente o uso das célulastronco na minha visão a solução da maior parte dos problemas humanos, sou a favor do uso dos transgênicos e contra a sua continuidade se este causa impactos ambientais, porém apoio o aprofundamento das pesquisas neste ramos. Assim como o autor sou contra a clonagem humana não só por questões religiosas, mas por acreditar ser algo desnecessário e desumano. O guia de interpretação - encontrar benefícios e malefícios da ciência genética direciona também a forma como o leitor conduz suas opiniões para o texto. Durante toda a atividade, o leitor expõe claramente, em primeira pessoa, quais são seus pontos de acordo e desacordo: ‘apoio’ as células-tronco porque elas são ‘a solução’ para ‘problemas humanos, ‘sou a favor’ do uso de transgênicos e dos estudos para evitar ‘impactos ecológicos’, ‘sou contra’ a ‘clonagem humana’. Nesse último assunto, o leitor impõe um argumento diferente do autor: é contra a clonagem ‘não só por questões religiosas’. Ou seja, o leitor está de fato em diálogo com o texto expondo que concorda 272 que clonagem é algo ‘desnecessário’ conforme exposto no texto, mas ao mesmo tempo ele relata um sentido pessoal de que também não concorda porque isso está em desacordo com suas próprias crenças ‘religiosas’. A negociação e a acomodação de sentidos aqui aparecem quando: i) o leitor destaca a posição favorável do autor do texto de ser contra a clonagem; e ii) a reforça incluindo um argumento pessoal de que questões religiosas seriam, para ele, um reforço nessa atitude contrária a tal prática. Note-se também a forma como o leitor expõe seus argumentos pontualmente indicando que, para ele, o assunto mais importante é ‘células-tronco’: A.2.4c.2 células tronco – assim como o autor sou 100% a favor de seu uso. Afinal os embriões que seriam descartados por clinicas, passam a ter função importante na cura da humanidade. Acredito que pode ser comparado à doação de órgãos, ao invés de descartar como se fosse algo inútil, utilizar para o bem de outras pessoas. O leitor, mais uma vez, se aproxima da opinião exposta pelo autor do texto, afirmando que assim como ele, é ‘100% a favor de seu uso’ pois embriões que seriam de qualquer maneira descartados passam a ser utilizados como fontes de cura, para ‘o bem de outras pessoas’. É importante considerar também, no extrato, a maneira como o leitor busca novos argumentos para reforçar a sua posição afirmando que usar as células-tronco para a cura pode ser ‘comparado à doação de órgãos’, pois em ambos os casos se pode salvar vidas. Esse não é um sentido exposto no texto, mas é indicado pelo leitor como fonte de reforço à sua aprovação para a utilização de células-tronco em ciência genética. É deveras interessante observar como o leitor é específico ao estabelecer diálogo com o texto (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2010): ele inicia a interação da leitura expondo que há vantagens e desvantagens no uso da ciência genética, destaca de forma clara e contundente quais são esses aspectos, indica as marcas linguísticas que confirmam tais possibilidades, e ainda reforça a sua opinião transitando entre os lados da discussão argumentativa e adicionando novos argumentos ligados à sua realidade e ponto de vista. No caso do leitor 28 da turma A abaixo, ele reformula suas primeiras interpretações de leitura que tratavam da ‘manipulação genética’ para o campo da ‘ética’ na ciência dos genes. As interpretações construídas por ele demonstraram que o informante procurou focalizar os tópicos discutidos com relação às ações dos cientistas 273 ou da sociedade aprovadas ou não, o que se encaixava no fio interpretativo da palavra ‘ética’. Ao realizar as atividades de discussão e responder sobre a atitude do autor do texto ele declara: A.2.4a.28 depende, ele é parte contra e parte a favor é contra a clonagem e a favor dos transgênicos, com tanto que não comprometam a produção e totalmente a favor das célulastronco. Verifica-se que o leitor procura deixar claro para si mesmo as posições do autor encontradas no texto. Embora a pergunta esteja relacionada à posição do autor com relação à engenharia genética, o leitor estabelece que, no texto, há argumentos favoráveis e desfavoráveis a diferentes práticas dentro da engenharia genética. As primeiras possibilidades de leitura do informante relataram que o texto falaria sobre ‘manipulação genética’, ‘DNA’ ou ‘mudança genética’. De acordo com os dados das atividades 2 e 3, o leitor precisou reformular seu pensamento para construir uma interpretação voltada ao comportamento ético na genética e destacar os temas discutidos no texto. O fato do leitor explicar os pontos em que o autor é a favor e contra demonstram que para ele não faria mais sentido falar da ciência genética como um todo, pois há pontos em que se pode concordar ou discordar, como acontece no texto. Ou seja, ele observa que assuntos genéricos da ciência genética não respondem aos temas expostos e para que se destaque a opinião do autor é preciso demonstrar as construções argumentativas e seus resultados no texto. Ao ser indagado sobre a sua própria opinião com relação à ciência genética, o leitor retorna a um ponto mais genérico deste campo de estudo: A.2.4b.28 interessante é a evolução da tecnologia humana atravéz[sic] dos tempos. O estudante não expõe sua opinião particular sobre nenhum dos pontos discutidos no texto, mas sim à ‘tecnologia’ da ciência e à sua evolução. O leitor reconhece que a ciência genética é importante para a sociedade, e que ela evolui com o tempo, podendo trazer benefícios tais como os apontados pelo autor do texto. Na atividade seguinte, ao ser indagado sobre o ponto que lhe chama mais atenção, o leitor responde: 274 A.2.4c.28 células tronco, sou a favor pois se elas se transformam em qualquer célula especializada do corpo, as técnicas de uso devem ser continuadas. O leitor destaca justamente o tema mais polêmico e utiliza o primeiro argumento exposto no texto que justifica a sua utilização na genética. Ele ainda dialoga com o texto, informando que as ‘técnicas devem ser continuadas’, pois tais células são importantes para a ‘evolução da tecnologia humana’. Vejam-se como as interpretações do leitor se encaixam entre questões textuais e sentidos construídos para o texto: a) A reformulação das primeiras possibilidades: o texto não fala de manipulação genética conforme hipótese estabelecida na pré-leitura, e sim de ética na ciência genética dentro dos assuntos transgênicos, clonagem e células-tronco; b) O destaque das informações emitidas: o leitor não destaca uma opinião geral do autor sobre a ‘engenharia genética’, mas focaliza os resultados expostos pelo autor de ser favorável ou contra algumas práticas por questões éticas; c) A negociação do leitor adicionando outros conhecimentos e opiniões: o leitor declara que a engenharia genética é interessante, pois ‘evolui atravéz[sic] dos tempos’ e é necessário que, a célula-tronco, por sua importância de se transformar em qualquer célula do corpo, demanda que outras técnicas sejam ‘continuadas’. Esses encaixes acontecem porque os itens lexicais selecionados pelo autor para construir um texto motivam tanto o conhecimento linguístico presente neles quanto ativações sociais e culturais presentes na mente do falante num processo dialógico (KLEIMAN, 2002; BAKHTIN, 2009). Ao negociar sentidos para o texto, o leitor expõe alguns desses seus conhecimentos como se estivessem adicionados aos conhecimentos expostos pelo autor numa rede de relações que constrói sentido(s). No caso do primeiro informante selecionado para a turma B, o leitor 12, abaixo, indicou nas atividades iniciais a presença de ‘prós e contra’ e de ‘várias opiniões’ a respeito da ciência genética. Nas atividades seguintes, assim como os leitores anteriores, limita o assunto ‘genética’ aos três temas expostos no texto e declara que estes transitam entre ‘benefícios’ e ‘riscos’ em suas aplicações (cf. cap. 5.1, p. 245-246). Ao ser indagado a destacar a posição do autor, o informante generaliza a opinião do autor para uma aprovação, mas aponta para os limites de tal posição favorável: 275 B.2.4a.12 o autor concorda com o uso da genética para evolução e melhoria de produtos e condições de vida, desde que estas não apresentem riscos a sociedade ele acredita que o uso de célulastronco por exemplo podem sim e devem ser utilizadas pois podemos com elas criar um fim para inúmeras doenças. O leitor indica que há, de forma geral, uma aprovação por parte do autor, mas isto está limitado à apresentação de benefícios para a sociedade e não de riscos, e cita como exemplo a questão da grande vantagem do uso da célula-tronco por ‘criar um fim para inúmeras doenças’. Ao dialogar com o autor via texto (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998; KOCH, 2009), o leitor destaca a opinião do autor – ‘o autor concorda com o uso da genética’ - e indica em primeira pessoa do plural que também é favorável à utilização de células-tronco – ‘podemos com elas criar um fim para doenças’. O leitor utiliza sua competência discursiva para destacar a argumentação do texto e sua competência sociointercultural para se colocar juntamente ao autor na defesa da utilização do desenvolvimento da célula-tronco. Ainda, ele traz à tona uma série de conhecimentos de mundo e negocia sentidos particulares afirmando que tem ‘a mesma opinião do autor’ e acredita que se for usada para ‘melhorias’ e ‘curas de doença’ a evolução é benéfica: B.2.4b.12 tenho a mesma opinião que o autor acredito que se a engenharia genética for usada para fins de pesquisar e criações de melhorias, curas de doença e et. estes deve sim se aprofundar e promover uma evolução genética. Note-se que o primeiro fio condutor se mantém nessa atividade, pois o leitor declara abertamente seu acordo com a posição do autor e confirma também sua própria posição favorável uma vez que geram ‘melhorias’ e ‘curas’ mas que isso tudo deve ser feito mediante a pesquisa para ‘promover a evolução genética’ a fim de evitar os ‘riscos’. Na atividade seguinte, ele expõe também a sua opinião particular e declara o quanto a ciência genética pode ser benéfica: B.2.4c.12 indubitavelmente foi as células tronco pois com elas podemos produzir, recriar, modificar todos os tecidos do corpo humano, imagine poder curar doenças atualmente sem cura, corrigir deficiências poderia evitar uma população livre de doenças e males, seria incrível Quando o leitor é indagado sobre o assunto que lhe chama mais atenção, ele indica que ‘indubitavelmente’ é ‘células-tronco’ e aponta para a maneira como se 276 impressiona com as possibilidades que podem ser geradas a partir da pesquisa: curar doenças atualmente incuráveis, corrigir deficiências, ter uma população livre de doenças e males. O leitor demonstra que está, de fato, em diálogo com o texto, porque para ele ‘seria incrível’ se tudo isso realmente fosse possibilitado pela pesquisa em ciência genética. Destaca-se a maneira como o leitor realiza aqui duas tarefas estratégicas: a) confirma suas possibilidades de leitura de encontrar prós e contras para a pesquisa em ciência genética e evitar seus riscos; e b) expõe sentidos criados e percebidos por si mesmo na relação com o texto – ‘seria incrível’ curar doenças, corrigir deficiências e ter uma população livre de males. O leitor 07 também da turma B aponta para a construção de uma cadeia de sentidos liderada pela ideia de haver um debate em questões genéticas (atividade 1) especificamente em transgênicos, clonagem (atividade 2) e células-tronco (atividade 3), os quais apresentam aspectos positivos e negativos. O fato interessante a respeito desse leitor é que ele declarou já na segunda atividade que acha que a clonagem é ‘uma coisa sem precisão’ (cf. cap. 5.1 p. 247). Ou seja, desde a primeira leitura efetiva do texto, o leitor já demonstra que está, de fato, dialogando com o texto e construindo sua opinião. Na primeira pergunta de discussão do texto, o informante destaca que, no debate, o autor é a favor da ciência genética, mas possui restrições quanto à influência na vida dos seres humanos: B.2.4a.7 ele é a favor desde que isso não influencia os seres humano. Quando se posiciona com relação ao texto, ele mantém o guia interpretativo de haver pontos favoráveis e contrários evidenciando quais são os aspectos de acordo por parte do autor – ‘ele é a favor’. Embora o autor tenha exposto posições diferentes em cada um dos tópicos, o leitor generaliza a posição do autor para favorável à prática da engenharia genética, mas influenciado pelas informações textuais ele limita essa posição a não arriscar a vida de ‘seres humanos’. Na atividade seguinte, embora declare que, na sua opinião, a ciência genética é algo bom – ‘eu gosto’ – ele indica que há limites no uso da genética pela interferência na cadeia alimentar, mas há também a grande vantagem de ‘usufruir da tecnologia’: 277 B.2.4b.7 eu gosto, porém tem seus prós e contras, se pudermos não usar tanto a genética melhor. Prós é poder usufruir da tecnologia e contra é interferir a cadeia alimentar. Há uma adição de aspectos ao que o leitor observa no texto: ele se diz favorável, desde que tais aspectos sejam considerados em seus lados positivos e negativos. Ou seja, ele segue a mesma linha argumentativa do autor do texto: ser favorável à ciência genética e avaliar riscos e benefícios de seu desenvolvimento. Ao relacionar sentidos textuais e pessoais, na sequência, o informante ainda busca expor sua própria realidade na negociação de sentidos quando declara que não encontra mais ‘frutas saborosas’ no supermercado e que ‘nada é como antigamente’. Para o leitor, isso é uma consequência dos estudos genéticos aplicados em alimentos transgênicos: B.2.4c.7 transgênicos, hoje em dia é difícil entrar em supermercado e encontrar frutas saborosas, a maioria tem transgênicos. Nada é como antigamente. Por um lado é bom porque assim estamos evoluindo grandes estudos, novas tecnologia. Porem a cada ano que passa as coisas mudam mais. O informante está consciente dos sentidos criados pelo texto de que há vantagens e desvantagens no uso da ciência genética e reflete sobre quais serão as consequências do avanço dos estudos, da nova tecnologia porque a ‘cada ano que passa as coisas mudam mais’. Em outros termos, o leitor identifica, de fato, os sentidos criados pelo texto sobre benefícios e malefícios da ciência genética e procura dialogar refletindo sobre as novas possibilidades que tal ciência poderá agora trazer na vida dele. Ele reconhece os aspectos benéficos que pode viver em sua realidade, afirmando que ‘estamos evoluindo’ mas também reconhece os aspectos negativos refletidos na sua vida cotidiana, pois não encontra ‘mais frutas saborosas’ no supermercado. Note-se a forma como comportamentos cotidianos se fazem presentes no diálogo com o texto: o leitor reclama do fato da produção de transgênicos influenciar em sua vida, pois as frutas que ele costuma consumir não são mais tão ‘saborosas’. Ele reconhece, na manifestação linguística do texto, comportamentos culturais que são ativados por meio de um armazenamento de conhecimentos em que língua e cultura sempre se encontram. É uma rede de sentidos socioculturais que extrapolam os limites do linguístico e interagem de forma constante em contextos específicos e que 278 possibilitam o leitor a questionar, refletir, imaginar as possibilidades para um determinado texto (KRAMSCH, 1993; 1998 - cf. cap. 2.2.2). Para o texto 3, discutiu-se na seção anterior que os leitores formaram uma cadeia de sentidos nas quais procuraram encaixar sentidos limitados a: sete – fase/face – vida – abandono – sofrimento. Outro aspecto importante da análise foi o fato de que os leitores utilizaram sua carga de conhecimentos de mundo ainda de forma mais contundente do que nos textos anteriores, pois, de fato, o gênero poema fornece ao leitor uma possibilidade de criação maior (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1989). Ao focalizarem a palavra ‘Deus’ para interagir com o texto na produção de sentidos, eles recorreram a cargas culturais ativadas pela palavra (cf. cap. 4.1.3, p. 193-194; 196) e focalizaram os fios semânticos de abandono e tristeza na vida (cf. cap. 5.1, p. 251-252). O leitor 21 da turma A declara, nas primeiras expectativas, a possibilidade de falar sobre sete faces diferentes. Na segunda atividade, ele limita tais faces a fatores de personalidade, questionamento e sentimentos, sendo que na terceira atividade, indica palavras-chave que justifiquem esse encaixe (cf. cap. 5.1, p. 255-256). Nas duas primeiras atividades de discussão do texto, o leitor expõe que o tema principal está, de fato, relacionado às sete faces da vida do autor e que elas se diluem em sete estrofes com características da personalidade do autor: A.3.4a.21 as sete faces da personalidade do autor. A.3.4b.21 são sete estrofes e em cada uma há uma característica da personalidade do autor O leitor destaca como tema principal sete faces da personalidade do autor, e ainda indica que em cada estrofe há uma característica diferente dessa personalidade. O leitor procurou selecionar essas características ao escolher as palavras-chave (cf. cap. 5.1, p. 254): ‘deslocado’, ‘introspectivo’, ‘coração vasto’, ‘cheio de desejos’. Nas atividades de discussão do texto, o leitor mantém o mesmo guia interpretativo de que o tema principal é ‘as sete faces’ e que o título aponta, para ele, que é possível encontrar em cada uma dessas estrofes uma face diferente. Ao ser indagado sobre o objetivo do autor, o leitor afirma que o texto foi escrito para externar sentimentos, sem a preocupação de descrever ‘uma história linear’: A.3.4c.21 na minha opinião, este texto não foi escrito com a finalidade de que outras pessoas leiam, poetas são 279 introspectivos, nem sempre escrevem para os outros, na minha opinião ele escreveu para tentar explicar ou expor sua personalidade, para passar ao papel sua angústia, sua essência, e não para construir uma história linear. Verifica-se, também, que o leitor procura demonstrar os sentidos que constrói para o texto afirmando que o poeta se faz perguntas, ‘é introspectivo’ e isso justifica o fato de não escrever uma ‘história linear’ já que ele só quer ‘expor sua personalidade’. Outro detalhe importante é a maneira como o leitor interage com o texto a partir das características do gênero, tal como a emotividade. O informante indica que poetas ‘nem sempre escrevem para os outros’ e que, nesse caso, procura passar ‘sua angústia’, ‘sua essência’. Ou seja, o leitor constrói fios interpretativos bastante nítidos neste extrato: há sete faces da vida do autor, expostas em características diferentes da sua personalidade, que não refletem uma ‘história linear’, mas demonstram introspecção, perguntas, sentimentos. É interessante também observar nesse excerto, que o leitor declara em primeira pessoa – ‘na minha opinião’ – que o autor fala sobre sua ‘personalidade’, sua ‘angústia’, sua ‘essência’. Fica claro aqui o estabelecimento do diálogo: o autor expõe sete faces da sua vida e, para o leitor, tais faces relacionam-se a uma angústia e a uma essência própria do personagem. Outro fator importante nesse exemplo é que o leitor demonstra que está consciente da influência do gênero para a construção de sentidos: ‘poetas são introspectivos’ e não escrevem necessariamente com a ‘intenção de que outras pessoas leiam’, pois querem apenas demonstrar sentimentos. O leitor utiliza sua carga de conhecimentos textuais (ECO, 1979; KLEIMAN, 2002; DIJK, 2002) e impõe para o texto uma possibilidade de interpretação que pode diferenciar da ‘sua opinião’, pois reconhece que o gênero permite essa esse jogo de criação literária (ANTUNES, 2012) a partir dos conhecimentos de mundo de leitores diferentes. O informante 3 da turma A, a seguir, também construiu possibilidades iniciais de interpretação voltadas para as sete fases de vida do personagem e na terceira atividade, afirmou que utiliza as palavras-chave para marcar algumas fases, talvez as mais aparentes no texto (a 4ª e 5ª fases que marcam a fase adulta de ser um ‘homem sério’ e o ‘abandono’ conforme apresentado na seção 5.1, p. 256). Ele ainda marca os aspectos de sofrimento passados pelo personagem e os liga a uma das fases da vida. Na discussão do texto, nas duas primeiras perguntas o leitor afirma que o tema principal do texto é a 280 vida do autor, caracterizada em ‘faces’, e que há um acontecimento ‘principal’ para cada uma delas: A.3.4a.3 a sua vida dele [sic] A.3.4b.3 as 7 faces são da vida do autor, caracterizando cada uma pelo seu principal acontecimento. O leitor reafirma que o texto trata das faces de vida e procurou, na sua interpretação, compreender que há um ‘principal acontecimento’ na vida do personagem o qual seria a ideia de ‘abandono’ ou de ‘passar por uma dificuldade’ conforme exposto na atividade de seleção das palavras-chave (cf. cap. 5.1, p. 256). Ao ser solicitado a reconhecer o objetivo do autor e a incluir comentários pessoais a respeito do texto, o leitor declara: A.3.4c.3 o objetivo foi de dividir a vida dele em 7 faces e contar cada uma delas, porem acredito que ele poderia ter sido mais esclarecedor porque alguns versos não tem como entender do que ele fala. Guiado por suas possibilidades de leitura, o leitor declara a sua interpretação de que o autor relata cada uma das sete faces da vida dele. Ele critica a maneira como isso foi realizado e afirma que ‘não tem como entender o que ele fala’. Note-se que embora o leitor declare que o poema poderia estar mais claro, ele constrói um sentido baseado nas palavras e relações feitas durante a leitura. A declaração do estudante corrobora as declarações da maioria dos alunos durante as atividades de que o poema foi o texto mais difícil de compreender. No entanto, o que se observou, nos dados, é que o leitor movimentou uma gama maior de conhecimentos de mundo para apoiar suas interpretações o que não acontece de forma tão frequente e nítida nos textos anteriores. De fato, o gênero do texto e a construção em sequência fornecem ao leitor um conforto maior na hierarquização de sentidos. No caso do poema, a recorrência a conhecimentos de mundo leva o leitor a fazer suposições a partir da sua realidade o que o deixa mais desconfortável porque segundo ele, é mais difícil de compreender ‘do que ele fala’. É fundamental o fato da movimentação de conhecimentos de mundo para a compreensão dos leitores porque a palavra está em um território comum entre o locutor e o interlocutor (BAKHTIN, 2009), fazendo com que os sujeitos da interação dela 281 tomem posse dentro de um contexto social. Ou seja, a palavra é influenciada pelas relações interacionais entre indivíduos. Pode-se dizer, assim, que a interpretação de textos seria uma forma de construção onde a palavra (o texto) torna-se meio de expressão e de criação dos interlocutores. O sujeito leitor torna-se o corresponsável pela concretização da palavra enquanto ato enunciativo, pois é na interação dela com os infinitos conhecimentos que significados são construídos (BAKHTIN, 2009). No caso do poema, os leitores constroem possibilidades justamente na interação não só com o texto, mas com realidades e conexões culturais possibilitadas pela relação entre palavras e realidade concreta. Isso pode acontecer também com outros gêneros textuais, mas, de acordo com os dados, no poema esse aspecto fica mais nítido na interpretação dos leitores. O leitor seguinte também declara a mesma dificuldade na leitura por estabelecer possibilidades baseadas em conhecimento de mundo, e não exatamente em aspectos textuais expostos. Na primeira e segunda atividades, o leitor afirma que o tema principal é a vida de Carlos e que ele acha que o autor ‘quer contar 7 passagens da sua vida’: B.3.4a.13 sua vida B.3.4b.13 acho que ele quer contar 7 passagens da sua vida Deve-se lembrar que o leitor 13 não estabeleceu nas suas primeiras hipóteses de leitura, possibilidades relacionadas a sete fases de vida, mas procurou encontrar elementos no texto que confirmassem as ‘várias personalidades’. (cf. cap. 5.1, p. 257). Ao chegar à atividade de discussão do texto, o leitor considera que o texto trata de sete passagens da vida de Carlos, nas quais se poderiam encaixar os aspectos de personalidade já construídos na atividade anterior. O leitor utiliza a expressão ‘acho’, que expõe a sua incerteza quanto ao assunto, o que também aconteceu na primeira leitura do texto. Isso indica que o leitor está consciente que usa conhecimentos que não estão no texto para estabelecer sentido. Na última atividade para expressar a sua opinião o leitor afirma: B.3.4c.13 ele quer contar sobre sua vida, mas ele deixou o texto devasado[sic] difícil de entender logo na primeira leitura. Veja-se que o leitor mais uma vez confirma suas possibilidades iniciais de que o texto fala sobre a vida do autor e, novamente, expõe sua incerteza na interpretação 282 afirmando que é ‘difícil entender logo na primeira leitura’. Note-se que no caso dos textos anteriores, os leitores estabeleceram sentidos baseados em marcas específicas do texto, tais como a sequência da narrativa e a marcação dos personagens e de suas diferenças no texto 1 e a divisão dos temas e pontos argumentados no texto 2 (cf. cap. 5.1, p. 236-237; 239-240). Eles utilizam as palavras como uma base de confiança para afirmar o que está no texto e quais as intenções e adicionam posições próprias ou novos argumentos às ideias expostas no texto. Isso não acontece com o texto 3 o que não quer dizer que os informantes não utilizem o processo de negociação e acomodação de sentidos. Na verdade, no texto 3, esse processo é ainda mais intenso, pois o leitor recorre com mais facilidade a conhecimentos de mundo e ativa sua competência sociointercultural para construir sua interpretação (cf. cap. 4.2.3, p. 199-201). Verificouse que o processo de diálogo acontece desde o momento do início da leitura fazendo com que o leitor realize inferências a partir daquilo que é possível de acontecer na sua comunidade e na sua cultura (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). É na relação estabelecida entre a língua, o texto e o contexto do leitor que ele procura as bases de construção das suas interpretações para este texto ou para qualquer texto a que seja exposto. O leitor 10 da turma B construiu um primeiro fio interpretativo a partir do qual o personagem tem um determinado caráter, que inclui o alcoolismo e o pensamento constante em mulheres. Aos poucos, a partir de características percebidas no texto, o leitor confirma essas expectativas e justifica as atitudes de ‘caráter’ do personagem por ter sido ‘abandonado’ por Deus (cf. cap. 5.1, p. 258-259). Na atividade de focalização do tema principal do texto, o leitor declara: B.3.4a.10 uma pessoa sem expectativa de vida, vive em função de festas e mulheres e modismos e vive sem rumo O estudante mantém o guia de suas interpretações voltado para o personagem que ‘vive sem rumo’, ‘sem expectativa de vida’ e que ‘vive em função de festas e mulheres’. Ao realizar a atividade de discussão do texto, o leitor confirma suas expectativas primárias e as destaca tentando colocá-las como uma base de confiança de suas interpretações. Na atividade seguinte, sobre a relação estabelecida entre o texto e o poema, o leitor volta à ideia das fases da vida do personagem divididas em estrofes: 283 B.3.4b.10 ele relata sete fazes[sic] da sua vida em 7 estrofes do texto O que acontece no caso do poema é que o leitor já reconhece que utilizou diversos tipos de conhecimento para construir sentido o que pode ser considerado uma negociação de sentidos. Isso porque os conhecimentos sociais, culturais e individuais dos estudantes apareceram fortemente na construção de sentidos durante a atividade de indicação das palavras-chave (cf. cap. 4.2.3, p. 193-198), o que significa que o leitor reconhece a movimentação maior de possibilidades. Na última pergunta ele utiliza novamente suas inferências para explicar o objetivo do autor: B.3.4c.10 passa o ar de melancolia de uma pessoa sem espectativa[sic] de vida O leitor claramente costura os fios das atividades anteriores e infere que o autor quer passar um ‘ar de melancolia’ porque é uma pessoa ‘sem espectativa[sic] de vida’. Note-se a maneira como os fios da interpretação são tecidos: o texto fala de uma pessoa com um caráter de alcoólatra e que só pensa em mulheres, é abandonado por Deus, está sem rumo e por isso resolve escrever para expressar toda a sua melancolia. No poema, os leitores não demonstraram tão nitidamente sentidos particulares. Isso porque o diálogo com o texto já se mostrou intenso na construção de sentidos a partir das inferências realizadas. Os leitores demonstram que esse diálogo, de fato, existe, mas não expõem suas percepções particulares a respeito do texto porque o texto é ‘difícil de entender’. O fato dos alunos não indicarem tais dificuldades nos textos anteriores pode residir no fato de que eles indicam que há uma base maior de confirmação das possibilidades de leitura. Nos textos anteriores ficou mais claro que questões relativas à competência discursiva, tais como a sequência textual, a divisão dos personagens, a construção de aspectos característicos do gênero são frequentemente utilizadas pelos leitores para colocar suas interpretações em bases mais fixas. No caso do texto 3, os informantes estão conscientes que essas bases textuais são mais fluidas e necessitam de suas inferências pessoais, as quais são possibilitadas pelo compartilhamento de conhecimentos prévios e da negociação de sentidos o que os leva a (re)construir a interpretação textual (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2011; KLEIMAN, 2002; 2004) 284 Os leitores indicam suas dificuldades baseados no fato de que, para os textos anteriores, conseguiram utilizar uma relação mais forte entre fatores discursivos e sociointerculturais o que os deixou mais confortáveis no estabelecimento de relações interpretativas, o que não aconteceu com o texto 3. Por terem que basear suas interpretações em conhecimentos de mundo (cf. cap. 1.4.4), os quais não são nitidamente identificáveis linguisticamente no texto, os leitores relatam oralmente durante a realização das atividades que sentem dificuldade na criação dos laços interpretativos. Em suma, o que se observou com relação à negociação de sentidos foi que os leitores utilizaram características importantes da sua competência comunicativa para realizar tal tarefa: a) Para o texto 01, os leitores procuraram realizar um diálogo de posicionamento pessoal quanto ao assunto educação ou diferença de classes, afirmando a necessidade que sentem de buscar alcançar níveis mais altos de escolarização. Eles ainda destacam fatores sociais informando que não há a necessidade de menosprezar os outros ou de apresentar atitudes de preconceito na busca por um conhecimento maior. Ou seja, eles realizam duas atividades concomitantemente: i) destacam os sentidos textuais de construção da crítica; e ii) expõem que também sentem a necessidade de buscar conhecimento, no entanto, sem as mesmas atitudes culturais do personagem do texto; b) Para o texto 02, os leitores ancoram sentidos que destacam a oposição dos argumentos do texto em relação aos temas propostos. Ao negociarem sentidos, os leitores demonstram seu diálogo intenso com o texto adicionando a esses argumentos outros fatores, agora pessoais, que reforçam tanto a construção argumentativa do autor do texto, quanto a sua posição a favor dele. Eles aprovam ou reprovam os argumentos baseados em outros fatores que corroboram ou contrariam o que está exposto pelo autor; c) Para o texto 03, os estudantes destacam as conexões sociointerculturais realizadas para a produção de inferências e estabelecimento de coerência para o texto. Eles reconhecem que sua ancoragem de sentidos está em inferências estabelecidas e criadas por eles mesmos para o texto e demonstram a maneira pela qual alguns pontos verificados no texto, podem, suportar essa relação a conhecimentos não expostos. 285 O que se observou, portanto, nesta seção, foi o fato de que os sentidos são negociados pelos leitores a partir de um diálogo entre os sentidos fixados e estabelecidos na atividade de leitura e de seleção das palavras-chave e os sentidos possíveis de serem adicionados, reconsiderados ou remodelados a partir de suas próprias experiências de vida. O que acontece é que as palavras-chave podem funcionar como essa estratégia dupla: confirmar sentidos encontrados no texto e remodelar ou adicionar novas possibilidades de criação a partir deles. Assim, pode-se dizer que a palavra-chave é, de fato, uma ferramenta estratégica importante para o trabalho com interpretação textual, pois, a partir dela, vários movimentos podem ser estabelecidos. A figura 3, abaixo auxilia a compreender as múltiplas funções da palavra-chave: FIGURA 3 – A função da palavra-chave PALAVRACHAVE COMPETÊNCIA COMUNICATIVA GRAMATICAL SOCIOINTER CULTURAL DISCURSIVA - identificação das classes de palavras - relação das classes de palavras inter texto - reconsideração da semântica da palavra inter texto - identificar elementos coesivos relacionando-os à coerência textual - sequenciação textual - identificação da relação tema-rema - reconhecimento de tipo e genero textual - salientar pistas linguísticas na construção da coerência - destacar tópicos discursivos - ativar conhecimentos de mundo do leitor - fazer conexões com a realidade cultural e social - contextualização do texto a partir da realidade vivida pelo leitor - estabelecer laços de criatividade ou emotividade GUIA INTERPRETATIVO - Confirmar ou reconstruir possibilidades iniciais de leitura - identificar e ancorar sentidos - reconhecer ideias em oposição (próprias ou do autor) - NEGOCIAR SENTIDOS: - adicionar novas informações ao texto; - expor ideias particulares relacionadas à sua cultura - discordar do autor - construir novas possibilidades 286 O primeiro movimento diz respeito à competência comunicativa, pois, como se viu no cap. 4, a palavra-chave pode auxiliar na canalização de sentidos de diferentes dimensões. O fato é que na interpretação dos alunos a palavra-chave não carrega simplesmente o seu significado literal, mas auxilia o leitor a canalizar vários tipos de conhecimento a partir das conexões que realiza para entender o texto. O segundo diz respeito ao processo de construção e negociação de sentidos, pois conforme se discutiu neste capítulo, a palavra-chave auxiliou os alunos a fixarem sentidos pré-construídos nas primeiras leituras confirmando ou reformulando suas possibilidades interpretativas e já impondo ao texto novas interpretações. Pela figura 3, a palavra-chave funciona como uma ativadora de dois lados no processo de interpretação: 1) o desenvolvimento a competência comunicativa; e 2) o estabelecimento de guias que direcionam a interpretação dos leitores. Ambos os aspectos não aparecem em isolamento e nem se anulam. Ao contrário, eles aparecem em círculos que indicam a sua movimentação constante e que se encontram em alguns pontos em comum. Isso explica o fato de que algumas repetições foram necessárias na análise de dados tanto do cap. 4, quanto do cap. 5: as estratégias de leitura dos estudantes se encontram durante o momento de construção de uma representação para o texto. Outro detalhe importante na figura acima é que cada um dos lados da figura ativa novas subestratégias que também atuam de forma concomitante. De um lado, ao desenvolver a competência comunicativa, os leitores estimulam as dimensões a ela relacionadas e movimentam uma série de conhecimentos prévios que os auxiliam a organizar as informações do texto para construir sentido global. No caso da competência gramatical, o que foi observado é que ela auxilia o leitor, principalmente a identificar classes de palavras, relacionar as palavras sintaticamente e semanticamente no texto, reconsiderar sentidos da palavra a partir das relações textuais, identificar elementos coesivos que auxiliam no estabelecimento da coerência. Para a competência discursiva, os fatores principais ativados pelos estudantes foram o estabelecimento de uma sequência de eventos para o texto, a identificação da relação tema-rema, o reconhecimento de tipo e gênero textual, a consideração de pistas linguísticas que levam à construção de coerência, e o destaque de tópicos discursivos. Quando a competência sociointercultural é desenvolvida, os leitores são levados a ativar conhecimentos de mundo, fazer conexões com a sua realidade cultural e social, contextualizar o texto a partir da sua própria realidade, estabelecer laços de criatividade e emotividade. 287 Deve ser lembrado, no entanto, que esses foram apenas alguns dos aspectos observados nos dados para esta pesquisa, e que é possível que outros elementos estejam sendo ativados e utilizados na construção da interpretação a partir da competência comunicativa. A questão principal aqui é que a palavra-chave, de fato, aparece como um ponto principal de apoio em meio ao processo de construção e criação de sentidos. Do outro lado da figura, de forma simultânea, outro fio aparece direcionando as interpretações dos leitores: as possibilidades construídas em um momento de pré-leitura e reconstruídas durante a interação com o texto. No cap. 5, os dados levaram à confirmação do fato de que é importante que os leitores realizem ações estratégicas para a construção de hipóteses para suas leituras, bem como para o reconhecimento de marcas linguísticas que possam confirmar ou levá-los à reconstrução de tais hipóteses. A palavra-chave aparece como uma importante ativadora dessa estratégia auxiliando o leitor a confirmar ou reconstruir as possibilidades de interpretação para o texto, identificar e ancorar sentidos, reconhecer ideias em oposição, tanto dele mesmo, quanto as do autor. Nesse sentido, o processo de diálogo para a construção da interpretação textual é intenso e o leitor também inicia um processo de negociação de sentidos que é guiado pela própria palavra-chave e pelos conhecimentos ativados pela sua identificação. Nesse processo os leitores adicionam novas informações ao texto, expõem ideias particulares relacionadas à sua cultura, discordam ou concordam com o autor, constroem novas possibilidades de leituras. Pode-se dizer com isso que a palavra-chave provoca um intenso processo dialógico do leitor com vários elementos: as ideias expostas pelo autor, o texto, os conhecimentos que ele evoca, os sentidos construídos por vários leitores participantes de uma aula de compreensão, por exemplo. É esse processo dialógico provocado pela palavra-chave que pode levar os leitores a utilizarem suas estratégias de leitura de forma mais eficaz, não somente para encontrar os sentidos intertextuais, mas também para relacioná-los a outras possibilidades de discussão a partir da sua própria cultura. Reitera-se o fato de que a discussão realizada neste capítulo está distante de ser uma discussão única para os fatos. O que se observou é que os leitores, de fato, fizeram relações de construção de sentidos que possibilitaram a eles o diálogo com o texto e a (re)formulação de seus pensamentos e compreensão. Pelos dados, os informantes expuseram sentidos particulares de diversas maneiras, o que significa que cada um dos excertos incluídos traz um ponto de vista diferente, e provavelmente, ao analisar novos 288 excertos, outras possibilidades, certamente surgiriam. Também se admite que há um processo de construção de compreensão da própria pesquisadora que perpassa os sentidos construídos pelos alunos, já que cada participante entra com sua própria visão de mundo no processo de construção de sentidos. É importante dizer aqui que, de acordo com a figura 3, acima, os processos não se anulam ou acontecem de forma isolada. Eles possuem linhas de conexão entre eles que, de forma global, levam o leitor a construir interpretações. Isso corrobora o fato de que leitura é um processo complexo que movimenta vários tipos de conhecimentos do leitor e que demanda uma atitude estratégica de estabelecimento de interação com o autor, o texto, a realidade (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998; CASTELLO-PEREIRA, 2003). 289 CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegar ao final de um trabalho intenso de pesquisa como este é deveras cansativo, mas, ao mesmo tempo, gratificante. A inquietação de refletir sobre o processo pedagógico da leitura, o seu funcionamento e conhecimentos movimentados que possam resultar na reflexão das práticas vigentes da sala de aula foi e ainda é um processo constante desta pesquisa. O objetivo principal deste trabalho foi o de observar a maneira como os leitores interagem com a língua para a produção de sentidos textuais, com o intuito de desvendar como eles desenvolvem suas capacidades tanto para compreender quanto para negociar sentidos para um texto. Sendo assim, analisou-se a maneira como os leitores selecionados para essa pesquisa movimentam estrategicamente seus conhecimentos por meio da língua e como o diálogo é realizado durante a leitura levando-os a construírem interpretação textual num processo complexo e interacional. Nesse sentido, considerou-se não somente os conhecimentos que perpassam o código linguístico em si, mas todos os conhecimentos subjacentes a esse código que possam fazer com que os leitores construam interpretação fazendo ligações importantes para (re)construir e negociar sentidos textuais, sociais e individuais. Como uma consequência das análises realizadas, considera-se que essas podem se constituir como um ponto de partida para gerar novas discussões que auxiliem no planejamento de aulas de compreensão textual, visando interações mais ricas e mais efetivas no desenvolvimento das habilidades dos estudantes. Falou-se aqui (cf. cap. 1) que o processo de leitura e interpretação textual é interativo e que o leitor utiliza toda a sua carga de conhecimentos para compreender os sentidos e objetivos expostos pelo autor em uma manifestação linguística. Para tanto, há uma (re)construção de sentidos do texto a partir da percepção da relação entre palavras e os ditos conhecimentos prévios, que envolvem os conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo (KOCH; ELIAS, 2010, KOCH, 2009; KLEIMAN, 2001; 2002; 2004; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Isso porque a língua é concebida tanto como produto, quanto como produtora das relações entre sujeitos inseridos em uma sociedade e organizados de uma determinada maneira (BAKHTIN, 2009). Sendo assim, a língua ganha vida na interação entre os usuários, e é importante considerar que ela canaliza também aspectos sociais e 290 culturais (HYMES, 1995; KRAMSCH, 1993; MENDES, 2008), os quais interferem na produção de sentidos em todo e qualquer processo que envolva comunicação, inclusive no processo de leitura. Uma vez que a leitura envolve a compreensão da língua, não se poderia conceber o processo de leitura, neste trabalho, como algo estanque, clivado, em que o leitor deve simplesmente decodificar sinais expostos em uma página branca. No processo de leitura, o leitor tem uma tarefa essencial no ato interpretativo: movimentar todos os conhecimentos perpassados pela língua, considerar marcas linguísticas, ancorar conhecimentos, ativar culturas e vivências, hipotetizar e construir sentidos. Sendo assim, a leitura envolve a ativação e o desenvolvimento da competência comunicativa (HYMES, 1995; SAVIGNON, 1999; CANALE, 1995) do leitor. É a partir da habilidade dos usuários de dispor das formas da língua, fazer conexões linguísticas, textuais, sociais e culturais que o processo de comunicação de uma mensagem durante a leitura é construído. Supõe-se que a língua forneça elementos que ativam todos esses conhecimentos e auxiliam o leitor a canalizá-los na construção de sentidos. Antunes (2012) destaca que as palavras, de alguma maneira, se aproximam e se interligam, têm funções que permitem a composição do texto, tais como realizar nexos de coesão, criar e sinalizar a expressão de sentidos, ativar as matrizes cognitivas construídas social e culturalmente. Para a autora, as palavras funcionam como um guia com instruções e indicações de por onde o leitor pode seguir para a construção dos sentidos de um texto. Cavalcanti (1989) argumenta, justamente, a favor dos itens lexicais chave que funcionam como ilhas de confiança do leitor para tecer a rede de sentidos construída num texto. Essas marcas linguísticas, denominadas nesse trabalho de palavra-chave (cf. cap. 2.3), podem funcionar como uma superestratégia na ativação, direcionamento e canalização dos conhecimentos do leitor em direção à construção da interpretação. Desse modo, observou-se a seleção das palavras-chave por alunos de 3º. ano de ensino médio em três textos de diferentes gêneros e temas escolhidos para a pesquisa (cf. cap. 3). A questão principal foi verificar como a palavra-chave é utilizada pelo leitor para estabelecer comunicação com o texto e, a partir dessa seleção, como se revelam os conhecimentos ativados e movimentados pelo leitor no ato de compreender o texto. Mais especificamente, discutiram-se três questionamentos norteadores (cf. cap. 3, p. 128-130), os quais mostraram, pela análise de dados, resultados que indicam a necessidade de se pensar em formas estratégicas de usar a palavra-chave como ativadora 291 de diversos conhecimentos dos leitores em sala de aula e motivadora de negociações de sentidos interessantes para a compreensão da realidade dos estudantes. No cap. 4, que visou responder a primeira questão de pesquisa, os dados revelaram que as palavras-chave escolhidas pelos estudantes representam estruturas que extrapolam o conhecimento linguístico-gramatical e funcionam como matrizes construídas pelo leitor para expor sua representação da realidade. Uma interação constante entre as manifestações socioculturais e a língua é representada no uso e é ativada pela escolha do léxico da língua (ANTUNES, 2012), que é capaz de ativar conexões diversas para a construção de interpretação dos leitores. O desenvolvimento da competência comunicativa é um elemento contínuo, constante e de suma importância na construção de sentidos textuais. Isso porque, pelo que se observou nos extratos dos estudantes, eles utilizaram a palavra-chave como uma estratégia de canalização de diferentes conhecimentos: os gramaticais, discursivos e sociointerculturais. A palavra-chave foi utilizada como um elemento único dotado de subfunções que perpassam as diferentes dimensões da competência comunicativa e podem levar o leitor a realizar diferentes tarefas ao construir interpretações, tais como a hierarquização de sentidos textuais, a organização dos conhecimentos linguísticos dos informantes bem como das informações construídas a partir deles, a ativação de conhecimentos que envolvem a cultura e as relações sociais dos leitores. Os resultados demonstraram que aspectos particulares da língua são utilizados pelos leitores no diálogo com o texto. No que diz respeito à competência gramatical, verificou-se que os informantes destacaram palavras-chave de determinadas classes gramaticais que relatam conteúdos específicos internos ao texto. Por exemplo, eles utilizaram na maioria das indicações palavras de conteúdo, tais como substantivos ou adjetivos para identificar conteúdos da mensagem ou personagens do texto (cap. 4.1.1, p. 157-161). Ainda, no que diz respeito à mesma competência, observou-se que os leitores utilizaram palavras de classe fechada, tais como conjunções ou alguns advérbios, para demonstrar a maneira como constataram oposição ou consequência nas relações textuais (cap. 4.2.4, p. 213). Outro aspecto importante revelado pelos dados foi a maneira como os informantes utilizaram aspectos textuais e discursivos para relatar suas interpretações. Em vários momentos os leitores indicaram, por exemplo, palavras que destacaram para eles os personagens (textos 1 e 3), os temas (textos 1, 2 e 3), os tópicos discutidos no texto e a oposição entre eles (textos 1 e 2). Um detalhe importante no que diz respeito à 292 competência discursiva, foi o fato de que se observou, tanto nos dados analisados no cap. 4 quanto no cap. 5, que a percepção do gênero textual influenciou a interpretação gerada pelos alunos. Os leitores ao identificarem a característica do gênero textual de que há uma crítica no texto 01, uma oposição argumentativa no texto 2, ou uma emotividade no texto 3, por exemplo, selecionaram esse aspecto tanto como indicador do tema e do sentido textual como um todo (cap. 4.1.2, p. 180-181), quanto como guia no estabelecimento das possibilidades interpretativas e no direcionamento das negociações estabelecidas para o texto (cap. 5 p. 230; 248; 263; 270; 278; 283-284). Destaca-se também a maneira como os leitores utilizaram fatores sociais e culturais no diálogo com o texto durante a leitura e na negociação de sentidos. Neste trabalho, denominou-se essa competência de sociointercultural por se considerar que, na produção de sentidos, é relevante a consideração de aspectos sociais e culturais e a interação entre eles na sala de aula e na realidade vivida pelos alunos (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008, 2010; 2011). Os dados demonstraram a pertinência de se considerar tais aspectos na forma como os estudantes compreendem os textos porque os leitores indicaram características de suma importância na construção de sentidos: realidades vividas pelos estudantes, tais como a diferença de classes e a necessidade de se pensar na evolução da ciência para o bem da sociedade; a necessidade de valores éticos no trato com seres humanos; a relação estabelecida entre crenças religiosas, opiniões pessoais, personalidade e emoções (cap. 4.2.3, p. 198-199). Além disso, observou-se que a cultura e as relações sociais são destacadas pelos informantes ao interpretar e negociar sentidos para o texto, pois os estudantes indicaram suas opiniões, crenças e ações realizadas por eles na comunidade em que vivem (cap. 5.2, p. 265-268; 277-278). Esses aspectos socioculturais foram utilizados pelos leitores na indicação de um diálogo com o autor na leitura do texto e demonstraram a necessidade de se pensar que tais fatores, de fato, entram em uma interação constante nas aulas de compreensão textual. Este trabalho, portanto, aponta para um resultado interessante no que diz respeito à competência sociointercultural: considerar que aspectos sociais e culturais de todos os sujeitos envolvidos nos processos pedagógicos, tal como a leitura, são tão importantes na construção de sentidos quanto aspectos discursivos ou gramaticais, pois eles auxiliam os leitores a dialogarem com o texto, com o professor e com outros estudantes de forma mais efetiva e a repensarem seus posicionamentos. 293 Embora se tenha classificado as ocorrências das justificativas e das palavraschave para diferentes dimensões da competência comunicativa, não se julga que esses são caminhos fixos para todos os leitores na construção de sentidos. Ao contrário, os leitores utilizam vários conhecimentos e ao se admitir que cada estudante tenha uma relação com uma determinada cultura, construída social e individualmente, considera-se também que há produções de sentidos que podem ser sempre diferentes. Pode-se dizer ainda, que há a importância, nesse ponto, de se considerar o diálogo entre essas culturas, línguas e variedades de posição dos usuários, pois é a partir dele que os estudantes poderão desenvolver mais e melhor sua competência comunicativa e criar sempre novos sentidos para a realidade que vivem, interagindo com ela, moldando-a, questionando-a, acomodando-a de acordo com seus conhecimentos. Ressalta-se, assim, que o processo de interpretação textual é rico e abre uma gama de possibilidades de formalização dos conhecimentos dos leitores. É nesse aspecto que se considera a importância da utilização do léxico – ou das palavras-chave em aulas de interpretação textual: elas, de fato, funcionam como ativadoras dos vários tipos de conhecimento do leitor e como canalizadoras da competência comunicativa no ato de leitura. Não se fala aqui de aulas em que as palavras sejam selecionadas como mera construção de vocabulário desconhecido, ou como motivadoras para explicações gramaticais (leia-se gramática normativa). Ao contrário, argumenta-se a favor da seleção de palavras dotadas de conteúdos textuais e que possibilitam novos diálogos entre as culturas que estão em choque na sala de aula e que movimentam a discussão, a reflexão, a reconstrução de sentidos e que fornecem aos estudantes uma habilidade de possuir uma consciência estratégica de lidar com a língua de forma mais eficaz. No cap. 5, discutiu-se a segunda e terceira questões de pesquisa e chegou-se à confirmação da ideia de que o processo de leitura não é linear, o que significa que o leitor não segue sempre o mesmo caminho na construção de interpretação para aquilo que ele lê. O fato principal é que o leitor lança possibilidades de leitura a partir de indícios encontrados no texto e, de forma interativa, ele reorganiza as informações que aos poucos vai encontrando na manifestação textual e que o levam a construir um sentido global e mais seguro para o texto. Nos dados observados nesta pesquisa, os informantes utilizaram a palavra-chave como um espaço de segurança para a ancoragem de seus conhecimentos e confirmação ou reconstrução das possibilidades de interpretação lançadas por eles. Em outros termos, a palavra-chave aparece aqui como o elemento base em que o leitor se apoia 294 para ali escolher e confirmar o seu caminho de construção da interpretação. Os estudantes procuraram marcas linguísticas no texto que validassem suas possibilidades de leitura, e quando não a encontraram, refizeram tais possibilidades, direcionados por dois aspectos principais: os conhecimentos ativados durante a leitura do texto, ou o desenvolvimento da sua competência comunicativa, e os guias estabelecidos para a sua interpretação. Pode-se dizer, assim, que os leitores costuram sentidos utilizando dois pontos principais nesse processo: as possibilidades construídas no início da leitura e os indícios encontrados no texto que confirmam ou reconstroem as possibilidades interpretativas. A palavra-chave foi utilizada pelos leitores como o ponto em comum entre esses dois lados, como se eles estivessem costurando dois pedaços de tecido e a palavra-chave funcionasse como o local onde eles passam a agulha para fixar o fio que eles utilizam para demonstrar o sentido global. Se compararmos o processo de compreender um texto com o processo de costurar uma peça de roupa, poderíamos dizer que a costureira utiliza toda a sua habilidade para cortar o tecido, fazer as medições, colocar os fios na agulha para costurar as partes do tecido, e aos poucos, ela produz a peça de roupa imaginada. O leitor também utiliza toda a sua habilidade – a competência comunicativa – para observar e utilizar o tecido – o texto – e a partir dele realizar estratégias de medição e costura de relações semânticas que fornecem a ele sentido. Tanto a costureira quanto o leitor partem de um objeto que lhes permite a criação: a costureira parte do tecido que ela escolhe, e o leitor parte da manifestação textual. Ambos manuseiam seus objetos a partir de sua habilidade e constroem novas perspectivas a partir dessa realidade: a costureira constrói sua peça de roupa e o leitor constrói sentidos textuais e pessoais. Ainda, nesse processo de comparação, a costureira precisa aprender onde ela pode fixar os pontos da costura que mantenham sua roupa inteira, sem buracos inesperados. Para isso, habilidosamente, ela utiliza a agulha, que pode auxiliá-la no processo de fixação dos pontos da costura. O leitor também procura fixar os pontos que podem lhe revelar sentido e a palavra-chave funciona para ele como o guia de fixação desses pontos, como se fosse a agulha condutora do fio que liga as unidades do texto. Ele procura, no texto, os pontos por onde essa agulha passa e, aos poucos, estabelece relações de sentido que revelam para ele onde os fios podem ser fixados fornecendo uma segurança na (re)construção de seus conhecimentos. 295 Não se quer dizer com isso que o leitor parte de um ponto sempre fixo e estanque para a construção de sentidos. Ao contrário, ele percebe, no texto, as criações possibilitadas pela interação e é a partir delas que ele tece relações com o seu conhecimento e coloca as bases de ancoragem de sua construção: os sentidos. Outro aspecto importante observado é que a palavra-chave funciona com subfunções no que diz respeito à negociação de sentidos, tais como: fixar sentidos inter e intratexto(s), adicionar a esses sentidos construções e percepções criadas na sua realidade por intermédio da língua, construir ideias em oposição ou de acordo com o autor. Os dados revelaram que, já ao selecionar as palavras-chave, os leitores destacam sentidos importantes para eles mesmos, fazendo com que tais sentidos sejam também destacados para um diálogo pessoal. Isto quer dizer que a seleção das palavras-chave não funcionou somente como ancoragem de conhecimentos movimentados no ato de leitura, mas também como instigadora de conhecimentos pré-formulados pelo leitor que corroboram ou refutam o que está no texto. No caso da negociação de sentidos, é como se o leitor fizesse uma análise que indica, para ele, se seus sentidos estão bem formatados, construídos, organizados e adicionasse detalhes dos quais ele sente falta. Por exemplo, no texto 01, os leitores demonstraram a concordância com algumas posições dos personagens ou a reprovação a atitudes demonstradas ali. Para o texto 02, os leitores destacaram argumentos importantes expostos pelo autor, mas a eles adicionaram outras possibilidades que reforçaram a necessidade de pesquisas no campo genético. Para o texto 03, os alunos indicaram uma série de conhecimentos utilizados durante a interpretação do texto que reforçaram para eles as possibilidades de criação e inferência. Voltando à comparação com a costureira, nesse momento é como se a peça de roupa construída estivesse passando por um exame de produção, no qual ela procura perceber pontos falhos, ou repensar formas de construir novos detalhes para a mesma peça ou para peças futuras. O que se notou também é a necessidade de incentivar os estudantes nesse processo de negociação. Como as atividades tinham somente o intuito de perceber como o processo estava se dando para os leitores, não se incentivou novas possibilidades de diálogo e não se promoveu discussões mais acirradas sobre tais sentidos. Principalmente no texto 03, que é um texto que suscita maior criatividade dos leitores, verificou-se uma certa insegurança para a produção de novas possibilidades para o texto como se os 296 conhecimentos que eles já possuíam da realidade e que foram utilizados para a interpretação não fossem suficientes na indicação de opiniões ou percepções a respeito do texto. Isso pode significar que o incentivo aos estudantes a um processo de diálogo mais constante em que eles tenham consciência da discussão realizada via texto e dos conhecimentos utilizados para construir sentidos pode levá-los a representações mais efetivas de seus próprios conhecimentos e a valorizarem aquilo que produzem a partir da sua realidade. É na discussão do texto com eles mesmos e com os demais alunos que o processo de diálogo entre culturas, representações, matrizes cognitivas e comportamentos pode levar os leitores a um processo de reflexão sobre o que o texto produz e o que ainda se pode produzir a partir disso. Prosseguindo com a metáfora da costura de uma roupa, a costureira vai aos poucos criando novas peças a partir da sua experiência e da conversa com seus clientes ou com outras colegas de profissão. O leitor, por sua vez, também cria novas possibilidades de construção de sentidos a partir das interações e diálogos que realiza com outros leitores, o professor, textos variados e com a sua própria realidade sociocultural. Deve ser lembrado que, se no processo de interpretação, os leitores utilizam seus conhecimentos prévios, incluindo aí fatores sociais e interculturais particulares. É necessário considerar também o fato de que os conhecimentos de vários participantes do processo de leitura podem, de fato, enriquecer ainda mais o processo de construção de sentidos. Reitera-se que quanto mais reflexões e possibilidades forem evocadas pelos leitores durante a compreensão, mais sua competência comunicativa se desenvolve, mais ligações com outros conhecimentos eles constroem e mais eles se sentem capacitados a realizar intervenções e reinterpretações da sua própria realidade e dos textos aos quais forem expostos no decorrer de suas vidas. Neste momento, destaca-se a importância do olhar do outro – do pesquisador e do professor - no processo de construção de sentidos ao considerar os conhecimentos dos diversos leitores para a compreensão não só de textos, mas também da realidade. Conforme se notou nos dados, a leitura de textos está longe de ser um processo fechado em sentidos expostos no código linguístico. Isso significa que é primordial que sejam possibilitadas em aulas de leitura, as conexões e ligações a conhecimentos diversos para que os leitores possam, de fato, iniciar um processo constante de negociação de sentidos. 297 Reitera-se também o fato de que a palavra-chave pode ser utilizada como uma ferramenta interessante para promover diferentes atividades nessa construção do processo interpretativo: a canalização de diferentes dimensões da competência comunicativa e o auxílio aos leitores na organização das informações a que são expostos; a ancoragem de sentidos durante a leitura; a incitação ao diálogo com o texto; a negociação de diferentes sentidos. O incentivo a essas atividades leva o leitor a refletir sobre suas realidades e aguçar seu senso crítico perante o texto, dialogando com ele, aceitando perspectivas ali expostas, reconstruindo outras, adicionando novas possibilidades de reflexão, revisitando sua própria realidade e cultura. É importante ressaltar que essas foram apenas algumas das possibilidades observadas para esse trabalho e se admite que outras reflexões ainda possam ser realizadas, pois a palavra é que carrega os signos sociais, culturais e ideológicos construídos em uma determinada sociedade e sem ela a comunicação e a consciência individual não se concretizam (BAKHTIN, 2009). Ou seja, a palavra, ao mesmo tempo, carrega uma construção social e outra individual permeada pelas relações prévias, construindo uma espécie de conhecimento coletivo, o qual é dinâmico, reformula-se no passo a passo e no diálogo com o texto e com o outro, e expressa manifestações culturais importantes. Não se teve a preocupação imediata, nesse trabalho, de realizar discussões mais práticas sobre como aulas de leitura devem ser conduzidas para a movimentação mais efetiva dos conhecimentos dos leitores e para construção de diálogos. O objetivo aqui foi compreender de que maneira os informantes desenvolveram seus conhecimentos para interpretar um texto e negociaram sentidos. Certamente, se forem evocadas novas reflexões sobre como o processo de leitura se realiza e outros aspectos influentes no ato de interpretar e compreender não somente o texto, mas aquilo que é trazido à tona por meio dele, pode-se considerar esta uma pesquisa digna de frutos profícuos para futuros professores e pesquisadores. Ressalta-se que é a interação entre diferentes conhecimentos de leitores diversos que torna o processo de interpretação mais rico e possibilita discussões que possam levar os leitores a construírem uma habilidade estratégica e consciente de leitura (por exemplo, ao identificarem a palavra-chave), na qual eles sejam incitados a dialogar com o texto e a construir novos sentidos para si mesmos, sua comunidade bem como para todo e qualquer texto a que sejam expostos. 298 REFERÊNCIAS ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: Língua, literatura, produção de texto. São Paulo: Moderna, 2005. ALLIENDE, Felipe; CONDEMARIN, Mabel. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. ALMEIDA FILHO, José Carlos P. de. Língua-cultura na sala e na história. In: MENDES, Edleise. Diálogos interculturais: Ensino e formação em português língua estrangeira. Campinas, SP: Pontes, 2011, p. 159-171. ANTUNES, Irandé. 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