Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística
Rua Barão de Jeremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA
Tel.: (71) 3263 - 6256 – Site: www.ppgll.ufba.br – E-mail: [email protected]
LUCIELEN PORFIRIO
A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE
SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE
Vol. I
SALVADOR
2013
2
LUCIELEN PORFIRIO
A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE
SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE
Vol. I
Trabalho de tese apresentado ao Programa de Pósgraduação em Letras e Linguística, do Instituto de
Letras da Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Doutora
em Letras.
Orientadora: Prof. Dra. Serafina Maria de Souza
Pondé
Coorientadora: Prof. Dra. Denise Maria Oliveira
Zoghbi
SALVADOR
2013
3
Sistema de Bibliotecas da UFBA
Porfírio, Lucielen.
A competência comunicativa e o processo de construção de sentidos textuais : a função da
palavra-chave / Lucielen Porfírio. - 2013.
2 v.: il.
Inclui apêndices e anexos.
Orientadora: Profª. Drª. Serafina Pondé.
Co-orientadora: Profª. Drª. Denise Zoghbi.
Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2013.
1. Língua portuguesa (Ensino médio) - Estudo e ensino. 2. Literatura (Ensino médio) - Estudo
e ensino. 3. Palavras-chave. 4. Competência comunicativa. I. Pondé, Serafina. II. Zoghbi,
Denise. III. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. IV. Título.
CDD - 469.8
CDU - 811.134.3(07)
iv
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de
comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e
fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia.
Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos
pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por uma extrema
simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.
Clarice Lispector
v
O cansaço não me abandona. Nos últimos dias ele tem sido meu companheiro de dia todo,
mesmo que eu tente dispensar a sua presença.
Mergulhada nas palavras e em frente ao computador, as ideias borbulham e por vezes me
assustam e me deixam ansiosa e com medo da força com que vêm à mente. Em meio a tantas
palavras e possibilidades que elas evocam, eu fico tímida, pequena, com medo de não
conseguir concretizar tudo o que penso!
Palavras... Como pode algo tão simples causar tantas sensações?
São elas que me fazem expressar tudo o que quero em frente a uma página branca.
São elas que concretizam o meu desafio de defender um projeto acadêmico.
São elas que por um lado explicam quem eu sou, de onde eu vim e o que eu quero!
São elas que, quando faltam, causam tristeza, desconforto...
São elas que, quando vêm na hora errada, pedem passagem para a expressão de emoções tão
fortes que fica difícil concretizar em “simples” palavras.
E são elas também que transformam em realidade os sonhos, as carícias, os sentimentos...
E são elas... Somente elas que podem me ajudar a alcançar alguns dos desafios que tenho pra
mim! Saber usá-las nesse momento é o desafio que se impõe antes de chegar ao ponto final...
E será que existe ponto final?
Lucielen Porfirio
vi
Este trabalho é dedicado a:
Miguel e Nilva Porfirio, meus pais, pelo exemplo de dedicação,
compreensão e apoio constante. Por me ensinarem a buscar
meus sonhos e por serem exemplos de honestidade e caráter.
Everton D. Porfirio,
meu irmão mais velho,
pela sua presença constante nas conversas,
puxões de orelha, incentivo, apoio e consolo nos momentos mais difíceis.
Geison M. Porfirio e Wagner A. Porfirio,
meus outros dois irmãos
por me incentivarem a aceitar os riscos e a batalhar por meus objetivos,
pela presença constante e, por vezes, confortante.
Ângela Brandalise Gavazzoni,
minha “nona”,
pela preocupação contínua e pelo seu jeito simples
de achar que sua neta já era uma doutora
pelo simples fato de ter escolhido o magistério como profissão.
7
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar a Deus, pelo dom da vida, por me acariciar e sempre estar pertinho
de mim em todos os momentos da minha vida.
À minha orientadora, Prof. Serafina Pondé, que, ao aceitar se encontrar com aquela
menina, ainda um pouco perdida na UNIOESTE – Cascavel – PR, me deu a chance de
ter uma orientadora sempre presente, me auxiliando e incentivando nos meus planos, se
fazendo sempre disponível para todo o tipo de apoio que eu precisei durante esse longo
percurso de quase quatro anos.
À minha coorientadora, Prof. Denise Zoghbi, pelas contribuições de suma importância
durante o processo de qualificação e por ter abraçado a coorientação de uma forma
sempre muito presente, constante, disponível e amiga.
À professora Terezinha Costa-Hübes que, ainda em processo inicial do projeto, acalmou
a ansiedade daquela menina ávida por realizar um bom trabalho; pelo apoio e orientação
durante montagem e envio do projeto junto ao comitê de ética.
Aos colegas da turma DINTER UFBA-UNIOESTE, pela troca de experiências, pelos
lanches animados que incendiavam e aqueciam nossas manhãs e tardes, pelas conversas
amigas, apoio para os momentos difíceis da pesquisa e por proporcionarem momentos
de grande crescimento, aprendizagem, diálogo e reflexão, por fazerem parte da minha
história e tornarem esse processo inesquecível e um pouco mais alegre e cativante.
Em especial, aos colegas Otacílio e Larissa, pela parceria, troca de palavras, apoio,
amizade, companheirismo nessa caminhada pessoal e acadêmica.
Ao Prof. Sávio Siqueira, pela amizade e apoio demonstrados sempre, pelas inúmeras
conversas de incentivo, auxílio e questionamentos. Em especial, por incendiar ainda
mais os desejos dessa menina de buscar novas terras, novas possibilidades, novos
desafios.
Aos professores da UFBA, pela disponibilidade em ir até Cascavel e lecionar módulos
intensos, discutir, refletir, orientar, trocar ideias e incentivar os questionamentos da
turma DINTER. Pelos momentos de crescimento e aprendizagem proporcionados.
Também, aos professores da UFBA que me receberam de braços sempre abertos para
auxiliar no que fosse preciso e pela preocupação constante em me fazer sentir sempre
em casa.
Ao Núcleo de Educação da cidade de Cascavel – PR que prontamente me auxiliou ao
contato com as escolas envolvidas na pesquisa.
À direção, à coordenação e às professoras das escolas participantes da pesquisa, que não
mediram esforços para que as aulas fossem cedidas e os dados pudessem ser coletados
de forma tranquila.
Aos alunos informantes pelo aceite, envolvimento e participação na pesquisa.
8
Aos colegas e alunos da UNEB – Campus II - que, em meio ao processo de
doutoramento, também me receberam de forma aberta e disponível como parte
integrante daquele colegiado. Pela paciência demonstrada mediante os momentos finais
de construção e defesa desta pesquisa.
A todos aqueles que já faziam parte da minha história, amigos queridos, e também às
novas amizades que chegaram durante essa trajetória do doutorado, em Salvador ou em
Cascavel e que, direta ou indiretamente, estiveram presentes durante momentos
importantes de reflexão, afastamentos necessários, conversa ou lazer.
[Digite uma
citação do
9
documento
ou
o resumo de
uma questão
RESUMO
interessante.
Você pode
posicionar a
caixa de texto
A interpretação de textos é um processo complexo por natureza, que dependeemdequalquer
aspectos não apenas linguísticos, mas também cognitivos e extralinguísticos. lugar
Para do
interpretar um texto, todo leitor deve, inicialmente, identificar quais as informaçõesdocumento.
são
Use a guia
relevantes e formular as representações mentais sobre o que é veiculado como
Ferramentas
mensagem para estabelecer comunicação. Para tanto, o leitor deve levantar hipóteses,
de Caixa de
fazer inferências e ativar seus conhecimentos prévios, que incluem tanto conhecimentos
Texto para
linguísticos que o leitor toma como ponto inicial quanto os de mundo – extralinguísticos
(ECO, 1979; KOCH, 2009; KLEIMAN, 2002). E mais, o leitor deve localizaralterar
as a
formatação
da
principais ideias contidas num texto, as quais estão expressas nos itens lexicais e nas
caixa de texto
relações lexicais, semânticas e pragmáticas estabelecidas entre eles. É razoável admitir,
da citação.]
assim, que a identificação de palavras de um texto e a análise das relações estabelecidas
a partir delas constituem elementos de alta relevância para um trabalho de análise
interpretativa. Tal identificação leva o leitor a ativar sua competência comunicativa e a
estabelecer uma interação mais próxima com o texto, destacando elementos,
descartando outros, (re)construindo estratégias de leitura que o levam a produzir sentido
textual. Desse modo, a identificação das palavras-chave pode auxiliar o leitor nesse
trabalho. Isso porque essas palavras possuem o poder de conduzir a construção de “fios
condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 111) que ajudam a identificar o tema
principal do texto e as informações dado/novo, ativar conhecimentos de mundo do
leitor, auxiliar no estabelecimento de opiniões próprias do leitor, hierarquizar sentidos
globais ou macroestruturas (DIJK; KINTSCH, 1983). O que se propõe neste trabalho é
que, a partir da localização de palavras-chave e de relações que ocorrem a partir delas, o
leitor possa desenvolver a sua competência comunicativa ao interpretar um texto,
ancorando-se em marcas linguísticas ali presentes e tecendo relações de sentido com
todos os conhecimentos por ele armazenados. Assim, assumindo que as interações entre
as palavras de um texto e os conhecimentos prévios do leitor são elementos importantes
na interpretação textual, o objetivo desta pesquisa é analisar de que maneira essas
relações auxiliam o leitor no desenvolvimento da comunicação com o texto, partindo da
identificação das palavras-chave. Para a coleta de dados, duas turmas de 3º Ano de
ensino médio de uma escola pública da cidade de Cascavel-PR foram selecionadas e
pediu-se aos alunos para identificarem até cinco palavras-chave em três textos com
gêneros e temas diferentes, justificando suas escolhas. A análise foi conduzida com o
intuito de verificar como as palavras-chave apontadas pelos alunos revelam sentidos e
os auxiliam no processo interpretativo. Os dados demonstraram, de forma genérica, que
as palavras-chave funcionaram como uma superestratégia (KATO, 1999), ou como um
elemento importante da competência estratégica dos leitores (HYMES, 1995) na
ancoragem de diversos processos do ato interpretativo, tais como a hierarquização de
sentidos, a organização das informações textuais, a ativação de conhecimentos de
mundo armazenados pelo leitor, e que influem na produção do sentido, na confirmação
ou reformulação das possibilidades de leitura construídas pelo leitor e na negociação de
sentidos.
PALAVRAS-CHAVE: Interpretação
comunicativa, sentidos textuais.
de
textos,
palavras-chave,
competência
10
ABSTRACT
Text comprehension is a complex process which depends either on linguistic aspects or
cognitive and extra linguistic ones. To interpret a text, the reader must, initially, identify
which information is relevant and formulate mental representations about what the
message is in order to establish communication. So, the reader has to hypothesize,
make inferences and activate his previous knowledge, which include either linguistic
and text knowledge, which are taken as an initial point, or world knowledge – which
means extra linguistic information (ECO, 1979; KOCH, 2009; KLEIMAN, 2002). Also,
the reader must locate the main ideas inside the text, which are expressed in the relation
among lexical items and its lexical, semantic and pragmatic features. It seems
reasonable to admit that the identification of specific words of a text and the analysis of
the relation established based on them are considered relevant elements to text
comprehension. Such identification makes the reader activate his communicative
competence and establish a closer interaction with the text, highlighting some elements,
rejecting others, (re)constructing reading strategies which lead to text meaning
production. Therefore, keywords identification can help the readers on text
interpretation activity. This is so because such words have the power of conducting the
semantic guide strings (CAVALCANTI, 1989) which help to recognize main theme or
given-new relations on the text, activate reader´s world knowledge, assist on the
establishment of readers own opinions, detach global meanings or macrostructures
(DIJK; KINTSCH, 1983). What is mainly proposed in this research is that considering
the keywords location in a text and the observation of their relations as a primary base,
readers can develop their communicative competence in order to interpret a text, getting
fixed on linguistic marks and constructing meaning relations with previous knowledge.
So, assuming that text words interaction and readers’ previous knowledge are relevant
elements in text interpretation, the goal of this research is analyzing the way these
relations help readers on developing their communication with the text, based on
keywords identification. For the data collect, two groups of third grade students in a
public high school in the city of Cascavel – PR were selected. They were requested to
identify up to five keywords in three texts with different genders and themes, and
explain why they selected such words. Analysis was conducted in order to discuss how
the keywords indicated by the students revealed text meaning and helped them on the
interpretation process. Data have shown that, in a general way, keywords were used as a
super strategy (KATO, 1999), or as an important element of readers strategic
competence (HYMES, 1995) on fixing different processes of interpretation acts, such as
identifying main meanings, organizing text information, activating readers previous
knowledge which influence on the way meanings are constructed, text interpretation
possibilities are confirmed or reformulated by the reader, and meanings negotiation are
established.
KEYWORDS: Text interpretation, keywords, communicative competence, text
meanings.
11
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Modelo de interação verbal............................................................................. 82
FIGURA 2 – Divisão dos sintagmas segundo Halliday (1985) ............................................ 84
FIGURA 3 – A função da palavra-chave ............................................................................. 285
12
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – Os níveis de cooperação textual ................................................................... .. 41
QUADRO 2 – Relação entre processos e participantes ........................................................ .. 87
QUADRO 3 – Relações entre função, organização e sistema .............................................. .. 88
QUADRO 4 – Atividades realizadas nas coletas piloto e definitiva .................................... 143
QUADRO 5 – Organização da discussão de dados .............................................................. 146
13
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 – Expectativas profissionais dos informantes das turmas A e B ................... 135
GRÁFICO 2 – Frequência das leituras das turmas A e B .................................................... 136
GRÁFICO 3 – Tipos de leituras realizados pelas turmas A e B .......................................... ..137
GRÁFICO 4 – As dimensões da competência comunicativa nos extratos da escolha das
palavras-chave ....................................................................................................................... 157
GRÁFICO 5 – A classificação da utilização das palavras-chave nas justificativas dos
estudantes .............................................................................................................................. 179
GRÁFICO 6 – Palavras-chave indicadas que revelam fatores sociointerculturais .............. 200
14
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 – A utilização das competências na escolha das palavras-chave ...................... 153
TABELA 2 – A incidência da competência gramatical nas justificativas dos alunos .......... 158
TABELA 3 – A incidência da competência discursiva nas justificativas dos alunos .......... 162
TABELA 4 – Levantamento das palavras-chave – Texto 01 ............................................... 164
TABELA 5 – Levantamento das palavras-chave – Texto 02 ............................................... 169
TABELA 6 – Levantamento das palavras-chave – Texto 03 ............................................... 175
TABELA 7 – A incidência da competência sociointercultural nas justificativas dos
alunos ..................................................................................................................................... 182
TABELA 8 – Palavras-chave que indicam a ativação de fatores sociointerculturais........... 198
TABELA 9 – A incidência da competência sociointercultural e discursiva nas
justificativas dos alunos ......................................................................................................... 203
TABELA 10 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 1........... 226
TABELA 11 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – texto 1 ............... 228
TABELA 12 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 2........... 239
TABELA 13 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 2 .............. 240
TABELA 14 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – Texto 3 ......... 249
TABELA 15 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 3 .............. 252
15
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
DINTER –
Doutorado Interinstitucional
UNIOESTE -
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
UFBA -
Universidade Federal da Bahia
LC -
Linguística de Corpus
LA -
Linguística Aplicada
LE -
Língua estrangeira
LM -
Língua materna
A.1.3.4
Classificação dos informantes por turma (turma A), Texto de
pesquisa (texto 1), Atividade considerada (atividade 3), leitor
(informante 4).
Cap.
Capítulo
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................
1 LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS .......................................................
1.1 LÍNGUA E SUJEITO LEITOR ......................................................................................
1.2 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO LINGUÍSTICA.................................................
1.3 A LEITURA E O FUNCIONAMENTO DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO .....
1.4 OS TIPOS DE CONHECIMENTO E SUA INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO ..
1.4.1 O conhecimento linguístico ..........................................................................................
1.4.2 O conhecimento textual ................................................................................................
1.4.3 Os conhecimentos de mundo ........................................................................................
1.4.3.1 Os esquemas de conhecimento ..................................................................................
1.5 ESTRATÉGIAS DE LEITURA ......................................................................................
18
24
24
29
39
46
47
49
54
64
68
2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ..... 73
2.1 O CONCEITO DE COMPETÊNCIA ............................................................................ 75
2.2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA......................................................................... 77
2.2.1 A competência gramatical ........................................................................................... 81
2.2.2 A competência sociointercultural ................................................................................. 88
2.2.3 A competência discursiva ............................................................................................. 98
2.2.4 A competência estratégica ............................................................................................ 105
2.3 A PALAVRA-CHAVE ................................................................................................... 109
3 PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................................. 128
3.1 AS DATAS E O NÚMERO DE AULAS DA(S) COLETA(S) ...................................... 130
3.2 A ESCOLHA E O PERFIL DAS TURMAS .................................................................. 131
3.3 A SELEÇÃO DOS TEXTOS DE PESQUISA................................................................ 138
3.4 AS ATIVIDADES REALIZADAS ................................................................................. 142
3.5 OS PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE DE DADOS ............................................... 146
3.5.1 A análise do primeiro questionamento de pesquisa ..................................................... 147
3.5.2 A análise do segundo e terceiro questionamentos de pesquisa .................................... 148
4 O USO DA PALAVRA-CHAVE COMO ESTRATÉGIA PARA
COMPREENSÃO TEXTUAL – A UTILIZAÇÃO DA COMPETÊNCIA
COMUNICATIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS .............................................. 151
4.1 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO TEXTUAL ............ 151
4.1.1 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência gramatical. ....... 157
4.1.2 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência discursiva ......... 162
4.1.3 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência
sociointercultural. ................................................................................................................. 181
4.1.4 O diálogo entre as competências – a utilização da competência comunicativa
como forma de interagir com o texto .................................................................................... 200
5 A PALAVRA-CHAVE COMO GUIA NA LEITURA, CONSTRUÇÃO E
NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS ...................................................................................... 223
5.1 A (RE)CONSTRUÇÃO DAS POSSIBILIDADES INICIAIS DE LEITURA E A
FOCALIZAÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS .................................................................... 225
5.2 A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS ................................................................................ 261
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 289
17
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 298
Volume II
APÊNDICES
Apêndice A - Plano de trabalho da coleta piloto ................................................................... 307
Apêndice B - Plano de trabalho da coleta definitiva ............................................................. 311
Apêndice C - Questionário sociocultural aplicado às turmas ................................................ 318
ANEXOS
Anexo A - Os dados dos questionários socioculturais .......................................................... 322
Anexo B - Dados das turmas A e B ....................................................................................... 332
Anexo C - Levantamento das palavras-chave indicadas pelos alunos .................................. 405
18
INTRODUÇÃO
Interpretar um texto é um processo que envolve diferentes aspectos que não a
simples leitura e decodificação das palavras ali presentes. As questões linguísticas
presentes no texto levam o leitor a compreender os objetivos do autor com a produção
textual e a estabelecer relações com o seu próprio conhecimento para construir a
compreensão. Pode-se dizer com isso que o processo interpretativo se inicia nas
relações linguísticas entre as palavras em um texto e prossegue na interação com os
mais diversos tipos de conhecimento armazenados pelo leitor no contato com a
realidade por intermédio da língua.
Pesquisadores têm demonstrado a importância de se considerar os níveis de
compreensão dos alunos, tais como o conhecimento de mundo ou enciclopédico, o
processo de reconstrução das informações presentes na leitura, o conhecimento textual,
as capacidades cognitiva e de decodificação linguística envolvidos na interação autorleitor (KLEIMAN, 2001, 2004; KATO, 1999; KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). O
que chama a atenção, no entanto, é um ponto em comum entre as pesquisas realizadas
em leitura: considerar os aspectos envolvidos no processo de interpretação textual.
Argumenta-se a favor de um processo interacional e dialógico entre autor e leitor
por meio daquilo que está exposto no texto (KLEIMAN, 2002; COLOMER;CAMPS,
2002; CAVALCANTI, 1989). Nessa relação, o leitor depara-se com o que está
linguisticamente exposto na página e movimenta todos os seus conhecimentos prévios
que incluem aspectos linguísticos, textuais e de mundo, para formular uma
representação do texto. Ou seja, o leitor não é passivo na leitura; ao contrário, ele ativa
toda sua carga de conhecimentos e os utiliza de forma estratégica para realizar
inferências, conectar informações, procurar marcas linguísticas e, assim, construir
sentido(s) para o texto.
Desse modo, o processo de compreensão textual é complexo e demanda de uma
série de atitudes por parte do leitor para construí-lo. Vários autores afirmam que há
pistas linguísticas no texto que servem de apoio para que o leitor estabeleça essa
interação durante a leitura (KLEIMAN, 2002, 2004; CAVALCANTI, 1989;
ANTUNES, 2012; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Reforça-se, portanto, com base
nesses pesquisadores, a ideia de que há, de fato, na manifestação textual, elementos que
possibilitam o estabelecimento de uma relação interacional durante a leitura, e que
19
levam à ativação de aspectos já conhecidos pelo leitor que incluem o conhecimento da
língua em si, dos gêneros e tipos textuais e dos conhecimentos construídos social e
culturalmente que o levam à representação formal do texto.
O que se quer dizer com isso é que, ao ler um texto, o leitor ativa a sua
competência comunicativa (HYMES, 1995; LLOBERA, 1995; SAVIGNON, 1997)
para estabelecer comunicação e construir sentidos. A competência comunicativa inclui a
habilidade de usar as formas da língua em contextos adequados para interagir com o
outro, neste caso, o autor, a partir de: a) características próprias da língua, tais como as
organizações linguísticas de frases, parágrafos, textos e o contexto em que ocorrem; e b)
das atitudes a ela relacionadas, tais como construir e negociar sentidos, juízos de valor e
características socioculturais (HYMES, 1995). Ou seja, é uma ativação de diferentes
dimensões da competência comunicativa que faz com que o usuário estabeleça uma
comunicação eficaz com o texto e produza representações a partir dele. Tais dimensões
envolvem:
a) A competência gramatical: a movimentação dos conhecimentos a respeito
dos elementos da língua e a combinação entre eles (HORNBERGER, 1995),
tais como aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e lexicais;
b) A competência discursiva: a conexão realizada entre o uso da língua e
enunciados ou textos previamente conhecidos que levam o leitor a
estabelecer laços textuais que ligam os sentidos intra e intertextos (CELCEMURCIA, 2007);
c) A competência sociolinguística: a ativação e o desenvolvimento de
conhecimentos que envolvem a adequação do uso da língua a fatores e a
regras sociais que influem no ato comunicativo (HYMES, 1995). Considerase também, para este trabalho, a ideia de que fatores de contexto
(SCOLLON; SCOLLON, 2001) e a movimentação da cultura influenciam na
produção de sentidos (KRAMSCH, 1998; MENDES, 2008; 2011). Sendo
assim, propõe-se que o leitor desenvolve tanto aspectos sociais, quanto o
contexto de vivência e as diferentes culturas movimentadas ao interpretar um
texto. (cf. cap. 2.2.2). Com base neste argumento, a competência
sociolinguística será, então, renomeada competência sociointercultural;
d) A competência estratégica: o domínio das estratégias de comunicação verbal
e não verbal que podem ser utilizadas para estabelecer comunicação
(CANALE, 1995).
20
Parte-se, assim, nesta pesquisa de tese, do pressuposto de que leitura é um
processo interacional entre autor e leitor por meio do texto (KLEIMAN, 2002; 2004), o
qual demanda uma atitude estratégica do leitor para a ativação de sua competência
comunicativa (HYMES, 1995) na produção de sentidos. Antunes (2012) afirma que o
léxico - ou as palavras - é um elemento da composição do texto que apresenta funções
de “criar e sinalizar a expressão dos sentidos e intenções, os nexos de coesão, as pistas
de coerência” (ANTUNES, 2012, p. 24). Neste mesmo sentido, Cavalcanti (1989)
argumenta que, a partir de itens lexicais chave, é possível estabelecer uma interação
entre leitor - autor - texto, desenvolvendo-se uma interpretação. A autora explica ainda
que há itens considerados “contextualmente relevantes” (CAVALCANTI, 1989, p.
122), os quais refletem o ponto de vista do leitor na compreensão geral. Neste sentido, é
possível observar a forma como tais itens se relacionam ou tecem “fios condutores
semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 111) que possibilitam ao leitor a construção da
interpretação. E, ainda, é importante, na visão da autora, considerar a maneira como os
chamados itens lexicais chave e as consequentes relações semânticas podem ser
observados pelo leitor na compreensão de um texto.
Assim, considera-se que as palavras escolhidas pelo autor para a construção
textual não são aleatórias, pois elas estão ali justamente porque produzem sentidos que
concretizam o objetivo do autor numa relação de sentidos. Desse modo, o leitor, ao
perceber essas relações, encontra no texto um sentido específico e o reconstrói em
macroestruturas (DIJK, 1977a; 1997b; DIJK; KINTSCH, 1983) impondo um sentido
global que interage com os seus conhecimentos prévios (KLEIMAN, 2002; 2004;
KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010; COLOMER; CAMPS, 2002). Há, então, uma
relação constante entre: a) marcas linguísticas identificadas pelo leitor em um texto, as
quais são denominadas nesse trabalho de palavras-chave; b) os conhecimentos prévios
do leitor; e c) a forma estratégica como os dois primeiros elementos interagem na
produção de sentidos.
Sendo assim, o problema principal que se coloca neste trabalho é pesquisar de
que maneira a seleção das palavras-chave pode ajudar o leitor na movimentação de seu
conhecimento prévio e funcionar como uma estratégia para estabelecer comunicação
durante a leitura e construir interpretação textual. Com base neste problema, três
questionamentos norteadores são propostos para esta pesquisa:
1) Ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características
diversas tais como gramaticais (ex. a classe gramatical da palavra ou suas
21
relações semânticas), sociointerculturais (ex. um sentido social, ideológico
ou cultural construído para a palavra) ou discursivas (ex. a relação temarema na frase ou no texto) relacionadas à competência comunicativa do leitor
e que o levam a (re)construir sentido(s) do texto(s)?
2) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou
reconstrução das interpretações iniciais feitas pelo leitor durante o processo
de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de
sentidos?
3) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar
sentidos intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o
texto e para si mesmo?
Para que se possam responder os questionamentos apresentados, organiza-se este
trabalho de tese em cinco capítulos. No primeiro deles, discute-se como o processo de
leitura é compreendido e os conhecimentos envolvidos no processo de interpretação.
Fala-se sobre o funcionamento da leitura, os fatores envolvidos, a visão de língua e
texto, e esclarecem-se pressupostos teóricos que baseiam todo o processo de construção
desta pesquisa.
No segundo capítulo, fala-se sobre o conceito de competência comunicativa e a
maneira como os leitores a desenvolvem para construir comunicação, no caso deste
texto, interação durante a leitura. Discute-se também sobre o conceito de palavra-chave
e se argumenta a favor do uso dessas palavras como uma estratégia (portanto, também
como uma forma de desenvolver a competência estratégica dos leitores) na construção e
organização dos sentidos textuais.
No terceiro capítulo, descrevem-se os aspectos metodológicos utilizados para a
construção da pesquisa. Selecionam-se duas turmas do 3º ano de ensino médio de uma
escola pública da cidade de Cascavel – PR e três textos utilizados para a observação das
leituras dos estudantes. Também se explica a construção dos planos de trabalho, os
quais foram realizados em dois momentos – coleta piloto e definitiva - com atividades
escritas para a verificação da maneira como os alunos interagem com o texto durante a
leitura e os motivos pelos quais selecionam as palavras-chave.
No quarto capítulo, discute-se a seleção das palavras-chave pelos alunos visando
responder ao primeiro questionamento da pesquisa. Sendo assim, analisam-se, nos
dados, os argumentos dos leitores para a construção da sua interpretação, considerando
aspectos discursivos, gramaticais ou sociointerculturais. Busca-se demonstrar, neste
22
capítulo, a maneira com que a maioria dos leitores construiu interpretação e como eles
basearam suas escolhas de palavras-chave para desenvolver uma série de aspectos da
competência comunicativa envolvidos no processo.
No quinto capítulo, discutem-se as atividades apresentadas aos alunos como um
todo, procurando responder os segundo e terceiro questionamentos da pesquisa, e
demonstrando a maneira como os leitores constroem, fixam e negociam sentidos
estabelecendo relações de sentido intra e intertexto. A partir da seleção de informantes
participantes da pesquisa, demonstram-se como eles relacionaram os fios semânticos
condutores (CAVALCANTI, 1989) da sua interpretação desde o momento da préleitura até o processo de discussão do texto.
Nas Considerações Finais, tecem-se discussões a respeito das observações feitas
nos dados que embasam as respostas às questões norteadoras e que levam a reflexões
mais intensas sobre o processo de leitura, o desenvolvimento da competência
comunicativa e a consideração dos diferentes fatores envolvidos quando se fala em
compreensão de textos.
Além disso, apresentam-se as referências utilizadas para a construção, tessitura
das reflexões e propostas realizadas para esse trabalho e ainda, mostram-se, nos
apêndices, os planos de trabalho utilizados para as coletas de dados e o questionário
sociocultural aplicado aos alunos. Nos anexos, expõem-se os dados classificados e
utilizados para a análise.
Em suma, nessa pesquisa, investiga-se a maneira como os alunos ancoram seus
conhecimentos a partir do desenvolvimento da competência comunicativa para
compreender os mais diversos tipos de texto. Nesse sentido, discutiu-se a maneira com
que os leitores teceram relações de sentido durante o processo de interação na leitura
com o intuito de desvendar alguns dos elementos envolvidos ali que auxiliam
professores e leitores no desenvolvimento de um diálogo mais eficaz nas aulas de
interpretação textual.
É importante destacar que a análise foi realizada tendo como ponto de partida a
palavra-chave o que não esgota as possibilidades de discussão sobre a função dessas
palavras no desenvolvimento da competência comunicativa e no estabelecimento de
guias interpretativos pelos leitores. Ao contrário, esta pesquisa visa fomentar ainda mais
discussões em que se possa considerar o processo estratégico que ocorre no momento da
leitura, desenvolvendo a competência comunicativa dos alunos leitores e os levando a
23
um processo constante de negociação de sentidos que podem enriquecer ainda mais o
trabalho com leitura em contexto pedagógico.
24
1 LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS
O processo de ler e interpretar um texto implica no conhecimento, dentre outros
aspectos, sobre quais caminhos percorrer para organizar as ideias que nele estão
contidas (CASTELLO-PEREIRA, 2003). No entanto, esse processo de procurar e
organizar as informações textuais não é uma tarefa das mais fáceis, pois envolve vários
aspectos, complexos por natureza, que incluem questões cognitivas, linguísticas e
extralinguísticas.
A compreensão de um texto representa uma possibilidade de desenvolvimento
intelectual, de representação e formulação do conhecimento. Quando um leitor
consegue interpretar e compreender as ideias contidas num texto, o exercício mental a
que ele se submete envolve múltiplas possibilidades e esquemas, além de exigir
aprendizado. Embora ainda não se tenha certeza sobre tudo o que ocorre no nível
cognitivo do indivíduo durante a leitura, evidências apontam para vários mecanismos
desencadeados no processo, dos quais, provavelmente, nem mesmo o leitor tem
consciência.
Discutem-se, nesse capítulo, as formas pelas quais o processo de leitura e
interpretação é construído. Não se pretende, nesse trabalho, esgotar todas as formas de
(re)pensar o processo de leitura, mas fala-se sobre um processo de interação entre leitor
e autor via texto, no qual o sentido vai, aos poucos, sendo construído. Assim, divide-se
este capítulo em subtópicos que perpassam o conceito de língua e sujeito (leitor), texto,
a discussão sobre o processo de leitura e interpretação, os mecanismos envolvidos nele,
assim como a apresentação dos vários tipos de conhecimento que devem ser
considerados ao trabalhar-se com interpretação textual.
1.1 LÍNGUA E SUJEITO (LEITOR)
O ser humano, enquanto ser basicamente social, tem a necessidade de se
comunicar com seus pares para transmitir informações, convencer, persuadir, informar.
Essa necessidade é satisfeita pela utilização da língua enquanto manifestação verbal, a
qual pode se realizar a partir das mais variadas formas de concretização dos signos
linguísticos, tais como oral, imagético, gestual ou escrito. Sendo assim, a língua (e suas
diferentes formas de manifestação) é um objeto de pesquisa, com muitas possibilidades
de discussão e que vem há muito tempo tentando ser explicada por pesquisadores.
25
Destaca-se que não se pretende discutir aqui sobre todas as diferentes formas de pensar
a língua. Ao invés disso, vai-se explicá-la, basicamente, como forma de interação verbal
entre indivíduos participantes de uma comunidade.
Mas como a língua se constitui? Na visão de Bakhtin (2009), a língua só pode
ser pensada a partir da interação entre indivíduos de uma comunidade. Isso quer dizer
que a língua é produto das relações entre sujeitos inseridos em uma sociedade,
organizados de uma determinada maneira, e, ao mesmo tempo, é a partir dela que essas
relações se constroem. O autor afirma que a língua ganha vida a partir das interações
entre falantes de uma comunidade podendo ser alterada conforme a evolução social
dessa comunidade. Para ele, “a língua aparece como uma corrente evolutiva
ininterrupta” (BAKHTIN, 2009, p. 93), em que significados sociais são construídos, os
signos.
Pode-se dizer que, nessa visão, a língua não é apenas um sinal linguístico gráfico
ou fonético, mas a produção de uma realidade compartilhada e construída pelos
membros de uma sociedade na qual questões ideológicas, sociais, culturais estão
inseridas, constituindo também as consciências individuais. Essas consciências são
resultado de construções resultantes da interação pela linguagem. Em outros termos, a
língua é constituída de signos que resultam de uma interação pela linguagem. Essa
interação interfere, por sua vez, na compreensão da língua - em qualquer tipo de
compreensão dada por meio da linguagem, no caso desta pesquisa por meio de textos
escritos - e na constituição das consciências individuais. Nas palavras de Bakhtin
(2009),
[...] não basta colocar dois homo sapiens quaisquer para que os signos
se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam
socialmente organizados que formem um grupo (uma unidade social);
só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência
individual não só nada pode explicar, mas ao contrário, deve ela
própria ser explicada a partir do meio ideológico e social (BAKHTIN,
2009, p. 35).
A língua é, assim, produto de uma construção dos sujeitos de uma comunidade,
o que se dá pela interação das consciências individuais, as quais, por sua vez, foram
previamente construídas também pela língua. Ou seja, há uma relação constante de
construção e reconstrução da língua e da consciência dos indivíduos no processo de
interação verbal. Isso significa que quando se usa a língua para interagir verbalmente
com membros da comunidade se (re)constroem signos e pode-se estar alterando a forma
26
como as consciências e a própria língua se constituem. Sendo assim, “realizando-se no
processo da relação social, todo signo ideológico, e, portanto, também o signo
linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social
determinados.” (BAKHTIN, 2009, p. 45).
Ao perceber-se como parte da construção da língua o usuário se dá conta que é
necessário utilizar o contexto do qual a língua emerge para dar a ela sentido. Isso
significa que, na visão bakhtiniana, a língua não pode ser resumida a formas linguísticas
utilizadas para comunicação e sim como resultado do processo de construção sígnica
ocorrido entre falantes. Na ótica do autor:
para o locutor, o que importa é aquilo que permite que a forma
linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo
adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o locutor
a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e
sempre igual em si mesmo, mas somente enquanto signo sempre
variável e flexível [...] o receptor, pertencente à mesma comunidade
linguística, também considera a forma linguística utilizada como um
signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre
idêntico a si mesmo (BAKHTIN, 2009, p. 96).
Há assim, a participação de um conjunto de contextos possíveis para a
construção da enunciação1. É na relação das consciências dos sujeitos com as relações
mais diversas ali presentes (sociais, econômicas, culturais) que a língua se constitui
como tal. Isso significa que, ao ser utilizada para comunicação, a língua está carregada
de sentidos vivenciais.
Bakhtin (2009) utiliza o termo ‘palavra2’ para referir-se a essa língua dotada de
significado social. Sem essa significação ela é apenas um sinal não compreensível pela
comunidade. Para que seja compreendida, a palavra precisa ser transformada em
enunciação, que se realiza como resposta a alguma coisa na construção de um diálogo.
Assim, a palavra está em um território comum entre o locutor e o interlocutor, fazendo
com que os sujeitos da interação dela tomem posse dentro de um contexto social. Em
outros termos, a palavra é influenciada pelas relações interacionais entre indivíduos
1
Enunciação, na visão de Bakhtin (2009), é um produto de um ato de fala, com objetivos específicos e
concretizado numa situação comunicativa. É de natureza social, isto é, produto de dois indivíduos
socialmente organizados.
2
Bakhtin (2009) utiliza o termo ‘palavra’ para referir-se à manifestação da língua como enunciação. Isso
significa que o termo ‘palavra’ utilizado aqui está voltado a um contexto mais amplo, como língua ou
enunciação. Neste trabalho, mais adiante (cf. cap. 2.2) fala-se mais sobre o conceito de ‘palavra’. Ainda,
utiliza-se o termo palavra-chave que se refere às palavras utilizadas pelos leitores para interagir com o
texto, carregar e construir sentidos textuais.
27
numa relação dialógica de (re)construção. Nas palavras de Dahlet (1997), “a língua
aparece então sob o efeito da dialogização da memória dos locutores como
necessariamente ouvida e construída por cada um através de um jogo de signos –
palavras instáveis” (DAHLET, 1997, p. 68).
Neste trabalho, admite-se que o texto constitui-se como uma enunciação,
resultado de um ato de fala, com objetivos estabelecidos e voltados para um interlocutor
que deve, por sua vez, compreendê-lo na situação real de produção, ou seja, na
comunidade linguística. Nesse sentido, a interpretação de textos seria uma forma de
construção na qual o texto (ou a enunciação conforme denominada por Bakhtin, 2009)
torna-se meio de expressão e de criação dos interlocutores. Assim, o texto torna-se, de
acordo com Koch e Elias (2010), uma forma de manifestação da língua enquanto
lugar de interação de sujeitos sociais, os quais dialogicamente se
constituem e são constituídos, e que por meio de ações linguísticas e
sociocognitivas constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido,
ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de
organização textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que
a língua lhes põe à disposição (KOCH; ELIAS, 2010, p. 07).
Em suma, a língua é produto da interação de sujeitos sociais, que numa relação
de (re)construção constante nela interferem e ao mesmo tempo são por ela influenciados
armazenando para si uma carga de conhecimentos (também socialmente construídos –
vide ‘conhecimentos de mundo’ no cap. 1.3.4 e competência comunicativa no cap. 2).
Neste trabalho, assume-se que o texto constitui-se como uma das formas de
manifestação da língua construída socialmente. Mas qual o papel do sujeito perante o
texto?
Se tomarmos a visão de leitura enquanto uma interação entre autor e leitor via
texto3 (KLEIMAN, 2002; CAVALCANTI, 1989), esse sujeito não apenas recebe o
texto como sinal linguístico, mas com ele interage, construindo conhecimento
(LENCASTRE, 2003). Na visão de Bakhtin (2009) o sujeito torna-se parte do processo
de construção da língua e é o corresponsável pela concretização da palavra enquanto ato
enunciativo. É na interação da palavra com os infinitos conhecimentos que o sujeito
possui e utiliza durante o processo que significados são construídos.
Viu-se que o sujeito tem uma consciência individual construída por meio da
utilização da língua e essa consciência, por interferência da língua, tem características
3
Discute-se a concepção do processo de leitura na seção 1.3 deste trabalho.
28
compartilhadas com a comunidade em que ele vive. Ao interagir com outros usuários da
língua ele utiliza sua consciência e, ao mesmo tempo, deixa-se (re)construir pelo
processo da interação verbal. Ou seja, o sujeito não é nem produto e nem produtor, mas
um coprodutor da língua ao trocar enunciações constantes.
Neste trabalho, fala-se sobre o processo de interpretação textual, o que permite
denominar o sujeito, daqui em diante, como sujeito leitor, ou simplesmente leitor. Este
deve ser percebido como aquele que constrói significado, utilizando as pistas do texto e
relacionando-as com sua consciência já existente (LENCASTRE, 2003). Isso porque, no
ato de compreensão textual o sujeito leitor se coloca na posição de interlocutor e é na
interação com as palavras proferidas pelo autor que ele consegue construir
compreensão. A interpretação dada ao texto é a contrapalavra. Ou seja, ela não é nem a
palavra única dada pelo leitor e nem a palavra única do autor (BAKHTIN, 2009); é,
portanto, resultado da interação entre ambos.
Neste sentido o sujeito leitor é ativo, utilizando seus conhecimentos, formulando
perguntas, criando estratégias de leitura, (re)formulando pensamentos e dialogando com
o autor. Ele segue as pistas linguísticas deixadas no texto e com elas interage
construindo conhecimento. Sendo assim, as palavras do texto só assumem um sentido4 a
partir da construção de uma representação feita pela atividade interativa do sujeito
leitor. Em sua atividade de leitura, o sujeito tem uma responsabilidade para com a
construção da interação: isso inclui releituras, análise de palavras e frases, inferências,
ativação de conhecimentos, construção da representação do sentido global (KLEIMAN,
2002).
Para Dijk e Kintsch (1983) o sujeito leitor faz adivinhações a partir de um
conjunto de informações textuais iniciais as quais são sustentadas por vários tipos de
informação tais como títulos, palavras, sentenças tópico, conhecimento sobre possíveis
ações ou eventos subsequentes, e informação contextual (DIJK; KINTSCH, 1983).
Assim, o leitor entra não somente com a decodificação do material linguístico do texto,
mas com todo o seu sistema cognitivo construído pela utilização da língua na
compreensão leitora. Sendo assim, também na visão de Dijk e Kintsch (1983), o sujeito
leitor não é um mero observador do discurso, mas um participante ativo na relação
comunicativa. O discurso é feito para afetar ações verbais e não verbais ou suas
condições tais como conhecimento, crenças, opiniões ou motivações.
4
Fala-se mais sobre o conceito de palavra e significado, sentido no cap. 2.3 deste trabalho de tese.
29
Reitera-se aqui a visão de língua e sujeito (leitor) para este trabalho: língua é
compreendida como uma construção de sujeitos inseridos em uma situação social, que
auxilia na formação das consciências individuais e ao mesmo tempo é (re)construída por
estas. O sujeito (leitor) é aquele que ao deparar-se com a enunciação (no caso deste
trabalho o texto escrito), utiliza ativamente sua carga de conhecimentos socialmente
construídos para interagir e produzir novos conhecimentos e compreensão.
Tendo definido alguns dos conceitos que embasam o processo de construção da
leitura (língua e sujeito leitor), trata-se, a partir de agora, do objeto da leitura: o texto.
Procura-se explicar como ele é visto nesse processo de interação autor-leitor.
1.2 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO LINGUÍSTICA
Conforme foi discutido na seção anterior, a língua pode manifestar-se de diferentes
formas a partir da interação entre os indivíduos de uma determinada comunidade. Para
os fins do presente trabalho de tese, foca-se a discussão em textos escritos. Assim, antes
de falar sobre a leitura e seu processo propriamente dito, faz-se necessário explicar o
ponto de partida pelo qual ela se realiza, ou seja, o texto escrito. Este deve apresentar
uma série de características para que possa, de fato, transmitir comunicação.
De acordo com Koch (2009), o texto escrito deve ser considerado como uma forma
de atividade verbal humana que se utiliza de signos linguísticos escritos para
demonstrar ações individuais com objetivos e motivados por alguma coisa. Isto é, para
que um texto se concretize enquanto tal, parte-se de uma motivação psicossocial que se
materializa numa manifestação linguística (KOCH, 2009). Essa pesquisadora procura
demonstrar ainda que o objeto textual é caracterizado a partir das intenções do usuário
da língua (o autor) que, em uma determinada situação comunicativa, seleciona o que e
como vai dizer. Nas palavras da autora:
[...] existe em primeiro lugar a necessidade social, para cuja realização
se elabora um texto, cujo conteúdo se fixa de acordo com a situação
comunicativa e a intenção do falante, passo a passo chega-se ao nível
superficial do texto em forma de elementos linguísticos sucessivos [...]
(KOCH, 2009, p. 17)
Ou seja, para atingir seus objetivos, o autor faz uso de elementos de cunho
linguístico em interação com um contexto social e cultural com a intenção de atingir
seus interlocutores. Para tanto, ele precisa planejar, escolher o léxico mais adequado e
30
considerar os conhecimentos compartilhados com o leitor. Isto quer dizer que há sempre
um determinado objetivo para a produção textual, que só pode tornar-se aparente por
meio da utilização do código linguístico.
Numa linha de pensamento similar, Beaugrande e Dressler (1981) postulam que
um texto funciona como uma ocorrência comunicativa que segue determinados
princípios5, os quais funcionam como um conjunto de elementos interligados. Nesse
funcionamento, eles tornam-se um sistema real no qual opções foram realizadas dentro
de uma estrutura particular para transmitir objetivos de comunicação. Assim, o texto é
um sistema de elementos interconectados, no qual se inserem diversos tipos de
conhecimento da comunidade linguística dos falantes, e, a partir do qual, o autor faz
determinadas escolhas com um objetivo estabelecido. Para Beaugrande e Dressler
(1981), a manifestação textual é uma forma global de estabelecimento de sentido por
meio de diferentes processos cognitivos e utilizações de diferentes tipos de
conhecimentos revelados no uso da língua.
Na visão de Dijk (1977a; 2002), o texto é um elemento macroestrutural que
fornece subsídios sintáticos, semânticos e pragmáticos para a construção de um sentido.
Para este autor, o produtor do texto, tendo uma determinada intenção, vai desdobrando
na estrutura linguística uma ideia global e vai construindo sentidos que devem ser
recuperados pelo leitor, que, no ato comunicativo, utiliza-se também de elementos
sociocognitivos.
Kramsch (1993) afirma que geralmente os aprendizes são expostos ao texto
como se esse fosse um objeto fechado sobre o qual não se tem o controle do significado.
A autora lembra que, ao contrário, é necessário pensar no texto como um ato
comunicativo que interage com um contexto específico e nessa interação produz
sentidos. Ou seja, o texto é produto da interação entre o que está escrito em uma página
e o contexto, principalmente cultural e histórico (KRAMSCH, 1993).
Sendo assim, o texto não é simplesmente um conjunto de sequências de frases
que se juntam para formar um sentido6 genérico. Antes, ele constitui-se como um
elemento linguístico que interage com um contexto social e cognitivo do autor e do
leitor e, nessa interação, determinadas proposições são construídas. Em outros termos,
há uma concretização de elementos linguísticos no texto que são compreendidos na sua
5
6
Vide os princípios da textualidade na seção 1.2.
Fala-se mais sobre o conceito de sentido na seção 2.3 deste trabalho de tese.
31
interação com diversos tipos de conhecimentos extralinguísticos (sociais, culturais,
cognitivos) e é a partir dessa relação que eles fazem sentido.
Ainda, deve-se dizer que, para que se considere um texto enquanto tal faz-se
necessário haver entre leitor e autor a pressuposição de um compartilhamento de
conhecimentos da mesma comunidade (KOCH, 2009), isto é, conhecimentos de mundo,
convicções, e pressupostos os quais são concretizados por meio das escolhas lexicais do
autor. Tal escolha não se dá aleatoriamente, mas é feita especificamente para levar o
leitor a ativar esquemas de conhecimentos7 que expressem as intenções do autor ao
escrever. Não se quer dizer com isso que o texto baseia-se somente nas intenções do
autor. Pelo contrário, essas intenções se caracterizam como uma atividade primária para
a realização textual. No entanto, para que haja a concretização do elemento textual, fazse necessário a inserção de ambos, autor e leitor, em uma comunidade, além da
organização dos elementos linguísticos, da pressuposição do compartilhamento dos
mesmos conhecimentos e da consideração dos conhecimentos de mundo. Koch (2009)
argumenta que se deve considerar texto como um elemento que
se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros de uma
atividade comunicativa global, diante de uma manifestação
linguística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de
ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional são capazes
de construir, para ela, determinado sentido (KOCH, 2009, p. 30)
Pode-se dizer, assim, que para que se constitua um texto, é preciso estabelecer
para ele um sentido. Do contrário, poderia ser caracterizado somente como um
amontoado de palavras que não transmite informação alguma.
Na visão de Eco (1993), o texto não é apenas um elemento no qual o autor entra
com as palavras e o leitor com o sentido. Para ele, “as palavras trazidas pelo autor são
um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar
passar em silêncio, nem em barulho” (ECO, 1993, p. 28). Isso quer dizer que o texto, na
situação de elemento comunicativo, expõe para o leitor alguns sentidos que devem ser
observados a partir do léxico selecionado e das suas relações linguísticas. Sendo assim,
a interpretação tem limites dentro dessa estrutura linguística. Em outros termos, pode-se
dizer que o texto forma-se pelos elementos linguísticos que estão ali presentes e que,
também devem ser respeitados na produção de sentido.
7
Vide conceito de esquemas de conhecimento na seção 1.4
32
A partir da discussão dos autores mencionados acima, deve-se enfatizar qual a
visão de texto eleita para o presente trabalho. Toma-se como ponto de partida a visão de
Koch (2009) de que texto é um elemento comunicativo feito com determinados
objetivos para uma situação comunicativa. Ainda, considera-se que, para que se tenha,
de fato, um texto, vários tipos de conhecimento sociocognitivo devem se fazer presentes
tanto na sua produção quanto na sua leitura, os quais auxiliam na construção de sentidos
(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; DIJK, 2002; DIJK; KINTSCH, 1983). E mais, é
preciso levar em conta que os elementos linguísticos presentes em um texto limitam a
sua interpretação e devem ser ativados com seus significados intrínsecos e textuais e
observados pelo leitor para o estabelecimento de compreensão textual (ECO, 1993).
Falou-se até aqui sobre o conceito de texto e o que subjaz a esse conceito, e
destacou-se que há, para o texto, uma produção de sentidos que não é aleatória –
depende dos elementos linguísticos ali presentes – e que interage com diversos tipos de
conhecimento – sociais e cognitivos – para que a compreensão se estabeleça. Ou seja,
há a influência de uma série de conhecimentos que entram em jogo na produção de
sentido textual.
Pode-se dizer que os sentidos do texto são construídos a partir da relação entre
as palavras formando uma informação global ou uma macroestrutura (DIJK, 1977a;
DIJK, 1977b; 2002). Beaugrande e Dressler (1981) elencam dois grupos de elementos
que fazem com que a manifestação textual seja concretizada: os elementos linguísticos
(ex. coesão e coerência) e os elementos pragmáticos (ex. intencionalidade,
aceitabilidade, informatividade, situacionalidade, intertextualidade). Para os autores,
esses aspectos constituem o que se pode chamar de “princípios da textualidade”, os
quais garantem para o texto a característica de ser comunicativo.
Os elementos linguísticos auxiliam no sentido da construção semântica à medida
que possibilitam a criação de um determinado retrato para o texto em termos
superficiais. Um desses elementos é a coesão, ou seja, a utilização de elementos da
língua que têm por função específica estabelecer relações textuais e ir, aos poucos,
tecendo a estrutura do texto (KOCH; ELIAS, 2010). Essas relações são internas ao texto
e são consideradas semânticas por estabelecer relações de sentido. Nas palavras de
Koch e Elias (2010): “A coesão, por estabelecer relações de sentido, diz respeito ao
conjunto de recursos semânticos por meio dos quais uma sentença se liga com a que
veio antes, aos recursos semânticos mobilizados com o propósito de criar textos”
(KOCH; ELIAS, 2010, p. 16).
33
Beaugrande e Dressler (1981) também concebem a coesão textual como sendo
uma interdependência entre os elementos da superfície textual – palavras, frases e
orações – e a maneira como estão ligados entre si a partir desses elementos. Para os
autores, pode-se dizer que a coesão seria o processo pelo qual uma sequencialização
mantém-se no texto por meio da utilização de componentes linguísticos, o que pode
ocorrer por diferentes mecanismos, tais como a referência, a substituição, a elipse, a
conjunção e a coesão lexical8.
No que diz respeito à coerência, Beaugrande e Dressler (1981) a definem como
sendo relações não explícitas no texto, mas que são utilizadas pelo leitor para construir
sentido. Em outras palavras, coerência é o estabelecimento de uma continuidade de
sentidos textuais dados pelas expressões ali presentes em relação com os conhecimentos
do leitor. Tais conhecimentos são classificados pelos autores como:
a) Conhecimento determinado: aquilo que é aceito para todos os indivíduos de
uma mesma comunidade linguística (ex.: todos os humanos são mortais);
b) Conhecimento típico: aqueles comuns à maioria dos usuários da língua (ex.:
humanos geralmente vivem em comunidades);
c) Conhecimento acidental: aqueles que são verdadeiros numa classificação de
situações (ex.: alguns humanos podem ser loiros).
Ou seja, a coerência não é um elemento dado pelo texto em si mesmo, mas pela
relação daquilo que ali está exposto com o que já se conhece dentro de uma cadeia de
possibilidades. A coerência é, então, o que permite que os sentidos sejam construídos a
partir dos conhecimentos prévios do leitor na interação com a manifestação textual, ou o
que permite que o leitor tenha reações do tipo: “este texto faz sentido”.
Na visão de Koch e Travaglia (2011) e Beaugrande e Dressler (1981), a
coerência é um princípio de interpretabilidade e liga-se ao sentido de forma global. Para
os autores a continuidade estabelecida pela coerência se dá num plano conceitual entre
os elementos do texto e os processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor
e receptor) e não são apenas do tipo lógicos, mas dependem de fatores socioculturais
diversos e de fatores interpessoais tais como as intenções da comunicação, as
influências do falante, as regras sociais. Nas palavras dos autores:
8
Koch e Travaglia (2011) discutem cada um desses fenômenos separadamente. No entanto, não se atém
aqui a eles porque embora façam parte da constituição do texto, não são objetos específicos e principais
desse estudo.
34
Considera-se, pois, a coerência como princípio de interpretabilidade,
dependente da capacidade dos usuários de recuperar o sentido do texto
pelo qual interagem, capacidade essa que pode ter limites variáveis
para o mesmo usuário dependendo da situação e para usuários
diversos, dependendo de fatores vários (como grau de conhecimento
sobre o assunto, grau de conhecimento de um usuário pelo outro,
conhecimento dos recursos linguísticos utilizados, grau de integração
dos usuários entre si e/ou com o assunto, etc.) (KOCH, TRAVAGLIA,
2011, p. 36)
Para Dijk e Kintsch (1983), a coerência também é entendida como o
estabelecimento de conexões significativas entre sentenças sucessivas no discurso e é a
maior tarefa de compreensão. Para os autores, os usuários da língua estabelecem
coerência assim que possível sem esperar pelo resto das orações ou sentenças. Ainda
segundo eles, a coerência pode acontecer em diferentes níveis:
a) semântico: a relação entre os elementos do texto e seus sentidos. Ou seja,
deve haver um respeito com as relações de sentido entre os significados dos termos
linguísticos presentes no texto;
b) sintático: o uso de meios sintáticos (tais como conectivos, pronomes) para
expressar uma coerência semântica. Ou seja, é a utilização de meios sintáticos para
(re)estabelecer a continuidade do sentido do texto;
c) pragmático: a relação do que está no texto com os atos de fala, ou seja, para a
satisfação de necessidades comunicativas, tais como um pedido, uma ordem, uma
promessa, uma súplica etc.
Deve-se lembrar, no entanto, que a coerência não se dá somente por um desses
níveis, mas pela conexão entre eles, o que de uma forma geral auxilia na produção de
uma macroestrutura do texto, ou seja, de um sentido geral para ele (DIJK; KINTSCH,
1983).
Assim, a coesão e a coerência indicam a maneira pela qual os elementos do texto
se juntam para fazer sentido. No entanto, não são capazes, por si mesmas, de garantir a
constituição de um texto. Beaugrande e Dressler (1981) elencam, além delas, elementos
pragmáticos que também constituem ‘princípios da textualidade’. Tais componentes
referem-se às atitudes dos usuários dos textos (tanto produtor9 quanto receptor) e ao
contexto de produção e recepção textual.
9
‘Produtor’ nesse trabalho está sendo usado como referência a quem produz o texto. ‘Receptor’, por sua
vez, está sendo usado como referência ao leitor. Opta-se por essa nomenclatura para não se confundir
com o termo ‘autor’ quando utilizado no singular para referir-se aos estudiosos escolhidos para construir a
posição teórica deste trabalho.
35
Desses elementos, um trata das atitudes do produtor – a intencionalidade – e o
outro, do leitor – a aceitabilidade. A intencionalidade refere-se à atitude do produtor de
confirmar suas intenções ou objetivos por meio do texto. Isso quer dizer que, ao
produzir um texto, o produtor tem objetivos a cumprir e pretende ser coeso e coerente
ao utilizar a língua para que seu receptor compreenda esses objetivos. Toda a produção
linguística tem uma intencionalidade e procura alcançar objetivos comunicativos.
Ainda na discussão sobre a intencionalidade, os pesquisadores utilizam as
máximas de Grice (1978 apud BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981) para demonstrar a
forma pela qual a produção linguística visa preencher objetivos e intenções. Assim as
seguintes características devem ser apresentadas pelo produtor:
1) cooperação: dar uma contribuição conversacional de maneira cooperativa a
partir daquilo que lhe é requisitado com um propósito e uma direção
estabelecida;
2) quantidade: contribuir numa quantidade adequada à informação almejada (não
deve fornecer mais informação que o necessário);
3) qualidade: não dizer o que acredita ser falso ou aquilo em que não há
evidências de verdade;
4) relação: ser relevante e usar tipos de conhecimento relacionados ao tópico,
úteis para atingir o seu objetivo;
5) maneira: usar formas adequadas de organizar e entregar textos. Deve ser
perspicaz (procurar demonstrar que aquilo que serve aos seus objetivos), evitar
obscuridade, evitar ambiguidade, ser breve, ser organizado (apresentar seu
material na ordem que lhe for requisitado).
A partir da aplicação das máximas de Grice, os usuários da língua planejam sua
interação comunicativa para alcançar determinados fins e assim gerenciam a situação
(atividade de conduzir a situação a um objetivo específico) e a monitoram (fazem uma
descrição ou narração das evidências necessárias para o seu objetivo).
Deve-se reiterar aqui que as atitudes do receptor também são importantes na
constituição do texto como ato comunicativo (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A
aceitabilidade diz respeito à atitude dos receptores da língua na comunicação, ou seja,
os receptores devem aceitar um enunciado como sendo coesivo e coerente, o que inclui
a sua capacidade de restaurar a continuidade do texto quando houver algum tipo de
confusão. É um princípio de cooperação do receptor à construção e à recuperação das
informações textuais.
36
De acordo com os princípios da intencionalidade e da aceitabilidade, pode-se
dizer que, para que um texto constitua-se enquanto comunicação, o falante monta seu
plano, prevê a sua contribuição, estabelece suas estratégias de organização das
informações e o interlocutor utiliza sua carga de conhecimentos compartilhados para
recuperar essas informações e dar sentido para o texto. Se não houver essa cooperação,
a textualidade pode ser prejudicada.
Observa-se, então, que outros dados também importantes na constituição do
texto são a quantidade e a qualidade das informações ali presentes, o que Beaugrande e
Dressler (1981) denominam informatividade. Para os autores, é a partir desse princípio
que se pode perceber a extensão pela qual uma manifestação linguística é constituída
por informação nova ou inesperada para os interlocutores. Na visão dos autores (ibidem,
p. 142-143), há diferentes graus de informatividade:
a) de primeira ordem: informações (ou nas palavras do autor, “ocorrências”)
que são esperadas e têm alto grau de probabilidade de acontecer no texto,
geralmente no que diz respeito ao conteúdo;
b) de segunda ordem: informações que ultrapassam a probabilidade de
frequência mais óbvia e que são necessárias para compor o cenário das
informações de primeira ordem;
c) de terceira ordem: informações completamente novas e inesperadas dentro
do conteúdo textual e são as mais interessantes, embora exijam do leitor
maior grau de atenção e recursos de processamento (buscar informações
específicas na estrutura textual, no contexto de ocorrência ou nos
conhecimentos prévios).
É no princípio da informatividade que o receptor do texto utiliza-se de
estratégias – tais como inferências, organização de linguagem, sequencialização de
informações, identificação de tipos textuais - para ligar o contexto do texto ao mundo
real. Pode-se dizer, assim, que a informatividade exerce uma medida de controle
importante na seleção e organização de opções sobre o conteúdo informativo presente
na comunicação.
Há ainda um princípio que indica os fatores pelos quais um texto torna-se
relevante para as situações de ocorrência, chamado situacionalidade (BEAUGRANDE;
DRESSLER, 1981). Este princípio está relacionado à competência sociolinguística10
10
Fala-se sobre a competência sociolinguística no cap. 2.2.2
37
dos usuários da língua para identificar o momento, o local, o contexto de produção e
recepção de um texto. Para os autores há duas formas de adequar a situação de
produção/recepção de um texto:
1) monitoramento: a função dominante de um texto é fornecer uma descrição da
situação geral de ocorrência;
2) gerenciamento: a função dominante é guiar a situação de maneira a favorecer
os objetivos do produtor do texto.
Os usuários da língua podem utilizar-se de diferentes estratégias11 para controlar
(monitorar ou gerenciar) a situação em que um texto ocorre e atingir objetivos
comunicativos.
Ressalta-se que os constituintes textuais acima elencados manifestam-se no nível
linguístico, mas recebem influências extralinguísticas. No interior do texto (produção ou
recepção), várias ligações podem ser estabelecidas, como, por exemplo, quando se
retoma outros textos para compor uma determinada manifestação linguística. É o que se
chama intertextualidade e que diz respeito à relação de dependência que se estabelece
entre os processos de produção/recepção de um texto e o conhecimento que os
participantes têm de textos anteriores a ele relacionados. (BEAUGRANDE;
DRESSLER, 1981).
A intertextualidade é importante porque a recuperação de leituras prévias é de
fundamental relevância para se estabelecer sentido para a produção ou leitura do texto.
Nas palavras de Koch e Elias (2010),
intertextualidade ocorre quando, em um texto, está inserido outro
texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória
social de uma coletividade. [...] é o elemento constituinte e
constitutivo do processo de escrita/leitura e compreende as diversas
maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende
de conhecimentos de outros textos por parte dos interlocutores, ou
seja, dos diversos tipos de relações que um texto mantém com outros
textos (KOCH; ELIAS, 2010, p. 86).
Para as autoras, a retomada de outros textos propicia a construção de novos
sentidos, visto que eles estão inseridos em uma nova situação comunicativa, ou seja,
precisam ser adaptadas pelo leitor no processo de compreensão textual. A
11
Fala-se mais sobre as estratégias em dois momentos deste trabalho: a) leitura enquanto processamento
estratégico em que o leitor lança mão de diferentes ações para compreender um texto (seção 1.4); e b)
conhecimento estratégico em que o usuário da língua utiliza ações para moldar sua competência
comunicativa à interação estabelecida (cap. 2.1.4).
38
intertextualidade pode ser explícita – quando há citação direta da fonte utilizada – ou
implícita – quando cabe ao leitor recuperar a fonte de citação para construir sentido.
O que se quer esclarecer com as explicações acima é que vários fatores
influenciam na constituição de um texto e que, esse, por sua vez, é um elemento
complexo, mas forma-se a partir de uma cadeia de constituintes que, interligados, o
constroem. Vê-se, assim, que o texto não é simplesmente a junção de uma palavra com
outra respeitando normas ortográficas ou regras impostas pela gramática normativa.
Embora as regras e organizações influenciem, para que se torne de fato a concretização
de um determinado objetivo, o texto precisa obedecer aos princípios de interação entre
falantes de uma mesma comunidade e expor ali um determinado posicionamento,
pensamento, ideia. No entanto, deve-se reiterar aqui que é a partir da utilização das
palavras dentro de um texto e da interação linguística que elas mantêm entre si que se
pode estabelecer as suas possíveis leituras e verificar quais objetivos são pretendidos.
Quando se fala em produções de língua, como é o caso do texto escrito, não se
pode analisá-las apenas cortando-as em partes pequenas tais como em frases ou
sentenças. Deve-se olhar para o texto como uma forma global de estabelecimento de
sentido por meio de diferentes processos cognitivos e usos de diferentes tipos de
conhecimentos (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). Assim, concebe-se que, para
recuperação de sentidos textuais, ou seja, para interpretá-los pela leitura, é necessário
considerá-los como parte constituinte de uma situação global de comunicação, em que
objetivos e intenções materializam-se numa manifestação linguística concreta,
obedecendo a determinados princípios linguísticos e extralinguísticos, os princípios de
textualidade (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).12
Falou-se até aqui sobre o texto, um dos elementos de pesquisa deste trabalho, a
forma como é constituído, e os princípios a ele subjacentes, os quais são considerados
no tratamento dos dados (cap. 4 e 5). Discute-se daqui em diante o processo de leitura
propriamente dito e os fatores envolvidos nesse processo.
12
Destaca-se que há trabalhos mais recentes que encaram os princípios da textualidade de forma em que
se classifica os elementos do texto propriamente ditos e os elementos que são condições para sua
efetivação enquanto texto. Antunes (2010) argumenta a esse respeito: "Nos estudos que tenho feito, na
sequência dessa e de outras propostas, optei por fazer uma pequena reordenação no quadro dessas sete
propriedades, concedendo certa saliência àquelas que, mais diretamente, pertencem à construção mesma
do texto. Assim, proponho, como propriedades do texto, a coesão, a coerência , a informatividade e a
intertextualidade. Proponho, como condições de efetivação do texto, a intencionalidade, a aceitabilidade e
a situacionalidade.Para justificar essa reordenação, alego que a intencionalidade e a aceitabilidade
remetem aos interlocutores e não ao texto propriamente." (ANTUNES, 2010, p. 33-34)
39
1.3 A LEITURA E O FUNCIONAMENTO DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO
Assim como o processo de produzir um texto é composto de vários elementos
complexos, o processo de interpretá-lo vai muito além da mera decodificação. Tal
procedimento implica em saber quais são esses elementos e como organizar as ideias
expostas pelo autor. Contudo, saber identificar tais aspectos é uma tarefa também
complexa que inclui processos cognitivos, linguísticos e extralinguísticos, os quais são
discutidos nesta seção do trabalho.
Freire (1983) afirma que “o ato de ler não se esgota na decodificação da palavra
escrita pura, ele se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (FREIRE, 1983, p.
11). Ao dizer isso, o autor demonstra que ler um texto vai muito além de decodificar as
palavras que ali estão expostas, mas supõe-se saber conectá-las a uma gama de
representações que envolvem questões sociais, culturais e pessoais que não deixam de
dialogar com as palavras que se encontram ali expostas. O que permite que um leitor, de
fato, compreenda um texto é a percepção de que há uma interdependência contínua
entre o que se encontra na materialidade linguística do elemento textual e o
conhecimento que ele, de fato, já possui sobre questões mais amplas do ambiente em
que vive.
Ainda, na visão de Freire (1983), “a leitura de um texto, tomado como pura
descrição de um objeto e feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura nem dela,
portanto, resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala” (FREIRE, 1983, p. 18).
Isto quer dizer que não se pode tomar o texto como um objeto passivo de junção de
informações codificadas, mas como algo que deve ser construído num processo
interativo entre informações linguísticas, mentais e sociais.
Lencastre (2003) reforça essa ideia ao conceituar o processo de interpretação
como algo dinâmico e construtivo em que os estímulos linguísticos encontrados no
texto associam-se a informações pré-existentes dispostas na memória do leitor para que,
assim, significados mais globais sejam construídos.
Alliende e Condemarin (1987) lembram que a interpretação de textos é uma
atividade que depende tanto de quem os produz quanto de quem os lê. Isso porque
conforme se discutiu na seção anterior, quando o autor se propõe a escrever um texto,
ele adota suas próprias estratégias para indicar seus objetivos. O leitor, por sua vez, ao
se deparar com um texto, tem diante de si uma quantidade de novas ideias, as quais
precisam ser apreendidas e compreendidas para que haja leitura efetiva.
40
Deve-se ressaltar que, ao se propor a ler um texto, o leitor utiliza sua gama de
conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, encontra um código ali exposto que deve ser
compreendido. É o que, por exemplo, crianças em fase de alfabetização devem aprender
a fazer: decifrar o código linguístico e compreender o que está escrito (KATO, 1999).
Assim, pode-se dizer que as ideias veiculadas por um texto requerem do leitor um
trabalho cognitivo bastante intenso, em que, no mínimo, duas etapas estão sempre
presentes: a decodificação e a compreensão.
A decodificação consiste na identificação de um elemento gráfico, ou seja, na
decifração do código13 linguístico utilizado pelo escritor. Nessa etapa, os sentidos
podem não estar desvelados ainda, pois o leitor pode decifrar o código, mas não ter a
devida compreensão da ideia presente no texto. Entretanto, para que o leitor possa
desenvolver uma compreensão do texto, esse código deve se apresentar dotado de
sentidos. Dessa forma, seria somente na etapa da compreensão que o leitor começaria a
montar imagens mentais sobre o conteúdo do texto por meio do levantamento de
hipóteses, de inferências e da busca dos significados que vão produzir um sentido
completo para o texto lido (ALLIENDE; CONDEMARIN, 1987).
As etapas de entendimento de um texto podem abranger ainda outros aspectos,
de certa forma, atrelados a esses. Para Eco (1979), a interpretação de textos é resultado
de um processo que depende, necessariamente, da cooperação do leitor. De acordo com
o autor, que faz uma discussão baseada em textos narrativos, esse processo se
desenvolve em duas ramificações principais: a das intensões14 e das extensões. No
âmbito das intensões, estariam as informações como a enciclopédia mental do leitor, o
conhecimento do código linguístico, o saber do indivíduo a respeito da tipologia e
organização dos textos (as estruturas discursiva e narrativa), as estruturas actanciais, isto
é, os papéis ocupados pelos personagens presentes no texto, e, ainda, as estruturas
ideológicas (julgamentos de valor, tais como a noção de bom e mau). No outro ramo da
bifurcação, estariam outros tipos de informação, incluindo aspectos tais como as
circunstâncias e o momento em que o texto foi produzido, a formulação de hipóteses e
as inferências primárias e, ainda, o conhecimento de mundo, que leitor usaria mais tarde
para a reformulação do texto.
13
Entende-se código aqui como os elementos da língua (morfemas, palavras, sintagmas, sentenças)
expostos em um texto.
14
Eco (1979) escreve intensões com ‘s’ para expressar o conceito semântico do termo. Intensões seria o
conjunto dos traços semânticos que as palavras/sentenças possuem como propriedades inerentes e que
podem ser alteradas ou mantidas a partir da combinação com outras (CASTILHO, 2010).
41
Embora Eco apresente seu modelo de processamento como uma composição de
vários submódulos (quadro 1), sugerindo um funcionamento sequencial consecutivo, ele
observa que não há caminhos obrigatórios na ordem de execução. Para o autor, a ordem
depende, fundamentalmente, da proficiência do leitor. O quadro (1) demonstra o
funcionamento do sistema de cooperação entre leitor e autor no momento da leitura.
QUADRO 1 - Os Níveis de cooperação textual.15
INTENSÕES
EXTENSÕES
ESTRUTURAS IDEOLÓGICAS
ESTRUTURAS DE MUNDOS
ESTRUTURAS ACTANCIAIS
PREVISÕES E PASSEIOS
INFERENCIAIS
ESTRUTURAS NARRATIVAS
ESTRUTURAS DISCURSIVAS
EXTENSÕES
PARENTETIZADAS
CONTEÚDO ACTUALIZADO
EXPRESSÃO
Manifestação linear do texto
CÓDIGOS E SUBCÓDIGOS
CIRCUNSTANCIAS DA
ENUNCIAÇÃO
Avaliando o diagrama de baixo para cima, verifica-se que o primeiro movimento
do leitor é tomar o texto como objeto de leitura (manifestação linear do texto) e aplicar
sobre ele todos os seus “códigos e subcódigos”16. Esses são obtidos paralelamente a
partir de acessos feitos à sua enciclopédia mental por meio de seleções de contexto e da
combinação de quadros textuais (frames ou esquemas), a fim de transformar o texto em
um nível primário de conteúdo.
15
In: ECO (1979, p. 76).
Segundo Eco (1979), os códigos e subcódigos abrangem o conhecimento linguístico do leitor aplicado
ao texto, como, por exemplo, o acesso ao léxico e a localização de propriedades semânticas das palavras.
16
42
Paralelamente, ele também promove a ativação das estruturas do texto que está
sendo lido, do tipo de enunciado, da linguagem utilizada, para, com base nisso tudo,
fazer suposições sobre o contexto social do texto. Eco denomina essa fase do
processamento “circunstâncias da enunciação”17. Todavia, ressalta-se que essas etapas,
por assim dizer, básicas de execução não são independentes do restante do
processamento. Para o funcionamento do sistema, deve haver uma dinâmica articulação
com os níveis superiores do diagrama, representados, de um lado, pelo ramo das
intensões, e de outro, pelo das extensões.
Ao aplicar o “código linguístico” e as “circunstâncias da enunciação” ao texto, o
leitor encontra indícios que lhe permitem fazer inferências primárias: as “extensões
parentetizadas”, que são indícios inferenciais ativados pelo leitor, mas deixados em
suspenso até que o texto seja melhor atualizado; as inferências são checadas conforme o
desdobramento da leitura. Em outras palavras, o leitor espera encontrar os indícios
necessários para confirmar as informações iniciais percebidas no material escrito; caso
contrário, ele tem de reformulá-las de acordo com as informações do texto.
Mediado pelas inferências primárias, o leitor tenta, a partir daí, encontrar uma
explicitação semântica de algumas partes do texto que ele já sabe serem essenciais para
a sua compreensão. Para tanto, ele vai se basear na “estrutura discursiva” e nos traços
semânticos fornecidos pelos itens lexicais, a fim de fazer o reconhecimento do tema –
denominado pelo autor de “topic” - do texto. É no módulo das estruturas discursivas,
portanto, que o assunto do texto é identificado (ECO, 1979). Esse reconhecimento não
se dá de uma única vez, mas vai acontecer em partes, conforme as hipóteses primárias
do leitor vão sendo confirmadas ou reconstruídas. Com base nas partes representadas
mentalmente a partir do assunto e dos itens lexicais já reconhecidos, o leitor consegue,
enfim, ampliar as propriedades semânticas do texto e estabelecer um nível de coerência
interpretativa - denominado pelo autor de “isotopia” - ou seja, “um conjunto de
categorias semânticas redundantes que tornam possível a leitura uniforme de uma
história” (ECO, 1979, p. 97). Conforme o autor, “o reconhecimento do tópico é um
movimento cooperativo (pragmático) que orienta o leitor para o reconhecimento das
isotopias como propriedades semânticas de um texto.” (ECO, 1979, p. 107).
Para que o leitor logre êxito quanto ao reconhecimento das redes semânticas de
um texto, é necessário que ele ative os itens lexicais com os quais se depara durante a
17
A utilização de aspas neste trecho de explanação do quadro de Eco (1979) refere-se aos termos
utilizados pelo autor.
43
leitura e que ele próprio considera como sendo os mais importantes. A representação
desses itens lexicais, segundo Eco (1979), constitui estruturas mentais do tipo frames18,
que são quadros de representações ativados pelo leitor durante todo o processo de
compreensão de um texto. À medida que a leitura evolui, esses quadros se reorganizam
e ocorre um processo de formulação do pensamento. O modo de organização das
informações a partir de frames constitui uma característica fundamental para o processo
de interpretação de textos.
A partir desses esquemas de representação, o leitor deve, na etapa seguinte, ser
capaz de sintetizar em uma única estrutura todos os quadros obtidos até o momento, a
fim de produzir uma “estrutura da narrativa” da história. Nesse módulo, denominado
por Eco “macroposição” de esquemas, o leitor identifica uma sequência de ações
percorridas durante o texto e as “encaixa” para formular a representação da narração.
Se, no entanto, durante a evolução da leitura, o leitor percebe algo no texto que
seja contrário à hipótese que já formulou e que, de alguma maneira, provoque a
“quebra” da representação que fez, ele se vê forçado a estabelecer novas expectativas e
possibilidades e a fazer disjunções, baseado em seu próprio conhecimento, promovendo
novas inferências. Trata-se, segundo Eco (1979), das previsões e dos passeios
inferenciais. Ao identificar uma nova ação que não era esperada em sua análise, o leitor
é levado a fazer uma previsão sobre qual será o novo curso dos acontecimentos. Para
isso, tem de “sair do texto” e fazer passeios sobre as possíveis inferências e, baseandose em seu conhecimento de mundo, estabelecer os chamados “mundos possíveis” para a
história. Nessa revisão, o leitor estabelece um mundo cultural com certo número de
personagens, que possuem determinadas propriedades e que assumem determinadas
atitudes de acordo com o texto, ao mesmo tempo em que se apoia em sua própria
cultura, confrontando esses “mundos possíveis” com o seu “mundo real”. Isso é
realizado no módulo das “estruturas de mundos”, fase em que o leitor faz julgamentos
de valor-verdade que estariam formados no seu léxico mental e no contexto em que
vive.
Por meio das inferências realizadas com base na narrativa, o leitor passa a
construir algumas lacunas abstratas ocupadas pelos “participantes” do texto e por suas
respectivas características e funções – as “estruturas actanciais”, na denominação de
Eco. O estabelecimento de actantes guia as opções, previsões e macroposições de
18
Na seção 1.4.3.1 deste trabalho, discute-se mais sobre frames, esquemas mentais e as formulações
mentais ativadas por meio do código linguístico.
44
quadros feitas pelo leitor no decorrer da leitura. A formulação e o preenchimento dessas
lacunas são essenciais no processo interpretativo pois indicam que o leitor foi capaz de
reconstruir as informações do texto adequadamente.
Sobre estas lacunas formadas a partir do texto, o leitor aplica seus próprios
julgamentos, formados por “estruturas ideológicas” presentes no seu código
enciclopédico, as quais se manifestam por juízos de valor (tais como a noção de
verdadeiro e falso). Assim, o leitor confere às lacunas actanciais marcas ideológicas,
que podem ser tanto negativas quanto positivas, presentes no seu conhecimento, e é
induzido a conferir perspectivas ideológicas ao texto.
Apesar da análise de Eco (1979) estar baseada em textos narrativos, há
elementos considerados por ele que são válidos para qualquer processo relativo à
interpretação. Para o autor, uma vez que os níveis não ocorrem de maneira hierárquica,
mas concomitantemente, todas as estruturas de representações semânticas formuladas
tornam-se mais claras conforme a evolução da leitura, ainda que nem sempre de forma
completa. Um leitor proficiente não decodifica, mas percebe as palavras, globalmente,
guiado pelo seu conhecimento prévio e por suas hipóteses de leitura. Durante o
processo, ele faz inferências e levanta hipóteses sobre significados que não estão
diretamente presentes no texto e os incorpora ao seu conhecimento.
Pode-se dizer, portanto, que o leitor faz um passeio constante entre o que está
linguisticamente marcado no texto e os conhecimentos outros que ele utiliza para
construir um sentido. É a relação constante entre os vários tipos de conhecimento que
fazem com que o processo de interpretação se realize.
Ainda, baseando-se nas postulações de Eco (1979), nota-se que o processo de
inferenciação e levantamento de hipóteses são essenciais para a interpretação, porque ao
testá-las em confronto com o texto, o leitor depreende o conteúdo e reconstrói sentidos
textuais e, consequentemente, o seu próprio conhecimento. Quando o objetivo da leitura
está claramente definido, as hipóteses são formuladas previamente pelo leitor e a
compreensão é facilitada, pois ele percebe mais rapidamente os sentidos presentes no
texto por meio da ativação mental dos itens lexicais e da percepção da relação entre
eles.
Numa visão similar à de Eco (1979), compreendendo a leitura enquanto
processo interativo, Colomer e Camps (2002) salientam que
45
o leitor baseia-se em seus conhecimentos para interpretar o texto, para
extrair um significado e esse novo significado, por sua vez, permitelhe criar, modificar, elaborar e incorporar novos conhecimentos em
seus esquemas mentais (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 23).
Em outras palavras, observa-se que o texto escrito propicia converter as
interpretações em realidade de conhecimento articulado, o que ocorre numa interação
intensa entre pensamento e linguagem (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002;
KLEIMAN, 2002). Durante esse processo, o leitor não registra tudo o que lê de forma
uniforme; pelo contrário, ele só registra aquilo que julga necessário. Tudo o mais
permanece semanticamente latente. Desse modo, o leitor deve perceber as relações entre
os itens registrados durante a leitura e formula a representação do texto.
Ainda para Colomer e Camps (2002), o leitor tem a possibilidade de apropriar-se
de diferentes tipos de conhecimento por meio da leitura e converter suas interpretações
em realidade material. É na interação que ocorre durante o processo de leitura que o
leitor consegue estruturar suas próprias ideias e operar de forma mais consciente com a
realidade linguística para construir sentidos diversos. Nas palavras das autoras:
[...] o leitor deve raciocinar e inferir de forma contínua. Isto é, deve
captar uma grande quantidade de significados que não aparecem
diretamente no texto, mas que são dedutíveis: informações que se
pressupõem, conhecimentos compartilhados entre emissor e receptor,
relações implícitas (temporais, de causa e efeito, etc) entre os
elementos do texto, etc (COLOMER, CAMPS, 2002, p. 31).
Para Kleiman (2002), a leitura compreensiva depende da interação à distância
entre autor e leitor por meio do texto, que se consolida por meio dos indícios deixados
nos textos pelo autor sobre suas intenções, opiniões etc., e que o leitor deverá identificar
para, a partir daí, tentar reconstruir o significado que estaria presente no texto.
Para a compreensão do que está lendo, então, o leitor precisa lançar mão de itens
linguísticos, tais como palavras, conectivos, sintagmas, e, a partir deles, estabelecer
ligações que o auxiliam nesse trabalho. De acordo com Kleiman (2002), “o leitor
constrói e não apenas recebe um significado global para o texto. Ele procura pistas
formais, antecipa essas pistas, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita
conclusões” (KLEIMAN, 2002, p. 65).
Para a autora, a partir do conhecimento já elaborado, o leitor se vê em condições
de transformar os sentidos pretendidos no texto em um novo conhecimento. Para isso,
46
entretanto, é necessário que o leitor aprenda a dominar as estratégias de controle do ato
de interpretação, percebendo as marcas formais e estabelecendo relações entre as ideias
do texto.
Ainda de acordo com Kleiman (2002), o leitor constrói sentidos estabelecidos no
texto por meio de um diálogo mental com o autor. Para tanto, o leitor utiliza seus
conhecimentos prévios, isto é, seus conhecimentos linguísticos, textuais, e
extralinguísticos que, de várias maneiras, contribuem para a interpretação.
Percebe-se, assim, que não se pode tratar a leitura de um texto como uma
atividade simplificada em que o leitor conhece apenas o código linguístico utilizado.
Juntamente às informações linguísticas, diversos tipos de conhecimento são ativados. A
próxima seção fala sobre esses conhecimentos e sua influência na forma como os
leitores compreendem um texto.
1.4 TIPOS DE CONHECIMENTO E SUA INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO
Viu-se até aqui que, para interpretar um texto, há vários tipos de conhecimento
que interagem entre si. Pode-se classificá-los em três tipos: a) os conhecimentos que
envolvem questões linguísticas propriamente ditas, ou seja, o léxico de acesso ao texto
mais as organizações sintáticas e semânticas. Este conjunto é denominado
‘conhecimento linguístico’; b) os conhecimentos que envolvem a estrutura textual, ou
seja, conhecimentos relativos à organização do texto, denominados ‘conhecimentos
textuais’; e c) os conhecimentos que envolvem questões extralinguísticas e comuns à
comunidade da qual o leitor faz parte, tais como a sequência de eventos que envolvem
um acidente, por exemplo, ou a ida a um restaurante, denominados ‘conhecimentos de
mundo’. Deve-se destacar o fato de que todos estes tipos de conhecimentos se articulam
no processo interpretativo. Conforme Kleiman (2002),
O conhecimento linguístico, o conhecimento textual, o conhecimento
de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao
momento da compreensão, momento esse que passa despercebido, em
que as partes discretas se juntam para fazer um significado.
(KLEIMAN, 2002, p. 26).
Isso porque, de acordo com o que já se discutiu na seção anterior, a leitura é um
processo interativo em que se reconstroem constantemente representações culturais
(FREIRE, 1983). Ainda, destaca-se que essa interação entre leitor e autor não é
47
aparente, mas mental e silenciosa de forma que ela “se dá por meio do interrelacionamento não hierarquizado de diversos níveis de conhecimento do sujeito (desde
o conhecimento gráfico até o conhecimento do mundo) utilizados pelo leitor durante a
leitura” (KLEIMAN, 2004, p. 31).
Ao tratar-se de interpretação textual neste trabalho, considera-se que todos esses
tipos de conhecimento devem ser observados no processo de leitura. Discute-se cada um
dos conhecimentos em seções separadas desse trabalho.
1.4.1 O conhecimento linguístico
Kleiman (2002) refere-se ao conhecimento linguístico como sendo o processo no
qual o leitor identifica as palavras, ou unidades linguísticas, e as agrupa em frases (ou
unidades maiores) para, em seguida, ativar significados com base em seu conhecimento
sintático, lexical e semântico. Sem o domínio do conhecimento linguístico, a
compreensão do texto torna-se impossível.
Segundo
Castello-Pereira
(2003),
as
marcas
linguísticas
ativam
os
procedimentos intelectuais do leitor. Tais marcas devem ser observadas para que haja a
compreensão do que se está lendo, pois é por meio delas que o leitor seleciona,
compara, faz inferências e vai aos poucos tecendo relações de sentido. Isto quer dizer
que o leitor parte do conhecimento linguístico como ponto inicial para estabelecer
interação com o texto. Em seu estudo, a autora apresenta algumas técnicas de auxílio à
interpretação de textos, considerando a ideia de que a boa interpretação depende da
localização dos indícios deixados pelo autor e da coleta das informações para construir
o sentido do texto. À medida que o leitor percebe as palavras e estabelece para elas
conteúdo semântico, sua mente vai construindo e reconstruindo significados gerais,
recriando, percebendo e avaliando o texto.
Ainda de acordo com a autora, a marcação formal (tais como sublinhados,
marcações de parágrafos etc.) auxilia o leitor a concentrar sua atenção em determinadas
informações linguísticas e a interagir melhor com o texto a partir da relação estabelecida
entre o linguístico e outros conhecimentos do leitor.
No que diz respeito ao conhecimento linguístico, vale enfatizar a importância da
representação dos itens lexicais em relação ao conhecimento de mundo do leitor como
fatores fundamentais no processo interpretativo. Contudo, deve-se ter o cuidado de
notar que não é apenas a soma dos itens lexicais isolados e da sua representação
48
mental19 que levará o leitor a uma construção dos sentidos de um texto, mas a
identificação das relações estabelecidas entre as palavras, de um lado, e as sentenças,
parágrafos e o próprio texto, de outro. Isso porque as palavras, ou ainda, todos os
conhecimentos
relativos
ao
código
linguístico,
não
se
relacionam
apenas
estruturalmente, mas também semanticamente. Conforme Colomer e Camps
(COLOMER; CAMPS, 2002, p. 129), “as relações semânticas entre as palavras do texto
é uma das bases de compreensão da coerência de um texto e um elemento importante
para dar-lhe coesão”. Ou seja, as relações semânticas entre os itens lexicais (e, portanto,
armazenadas no conhecimento linguístico) levam o leitor a estabelecer conexões
essenciais para o processo interpretativo20.
Kleiman (2002) lembra que associados aos conhecimentos linguísticos de
construção de sentenças ou frases é que outros tipos de conhecimentos interagem para a
compreensão:
a compreensão de um texto escrito envolve a compreensão de frases e
sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de objetivos,
de intenções, muitas vezes de ações e de motivações, isto é, abrange
muitas das possíveis dimensões do ato de compreender (KLEIMAN,
2002, p. 10)
Ainda de acordo com Kleiman (2004), para que se crie uma atitude de leitura
estratégica perante o texto, deve-se sensibilizar o leitor para os indícios linguísticos
encontrados na superfície textual, pois são eles que possibilitam a criação de um quadro
hierarquizado das informações ali expostas, e auxiliam o leitor a encontrar as
referências do autor que dão coesão e funcionam ao nível macroestrutural do texto
marcando a linha temática.
Em suma, os conhecimentos linguísticos envolvem tudo o que o leitor conhece
sobre questões lexicais, sintáticas, semânticas e estruturais do texto que o ajudam a
estabelecer um ponto de partida para o estabelecimento dos sentidos mais gerais do
texto. Por tratar-se de um dos focos de discussão dos dados - as relações linguísticas e
extralinguísticas que acontecem entre palavras-chave e as demais palavras do texto para
estabelecer interpretação –, no capítulo 2 deste trabalho fala-se mais sobre o modo como
19
O processo de representação mental é de fato importante na construção da interpretação (ex.: modelo
de ECO (1979) e conceitos de frames de DIJK (2002)). O que se procura destacar é que o processo das
relações entre palavras auxiliam nessa representação.
20
Discorre-se especificamente sobre as relações linguísticas entre palavras e a maneira como os usuários,
a partir da ativação da sua competência comunicativa, codificam significados no sistema linguístico
propriamente dito no texto no cap. 2 deste trabalho.
49
o leitor utiliza e organiza o sistema linguístico para que as formas codifiquem diferentes
sentidos. Destaca-se uma questão importante: o processo de leitura envolve
conhecimentos linguísticos necessários. Tais conhecimentos são possibilitados pelo uso
do sistema linguístico o que permite a construção e a codificação de sentidos a partir da
competência gramatical e lexical do usuário. (cf. cap. 2.2.1).
1.4.3 O conhecimento textual
No que diz respeito aos conhecimentos textuais, esses constituem o “conjunto de
noções e conceitos sobre o texto” (KLEIMAN, 2002), ou seja, correspondem à
identificação do tipo de texto e da forma de discurso que o leitor está lendo. Quando o
leitor tem alguma proficiência, ele já dispõe tanto de uma estrutura formada do tipo do
texto (narrativo, informativo, descritivo, expositivo, argumentativo etc.) quanto da
manifestação concreta deste tipo, os gêneros, (ex. carta, notícia, artigo científico etc.), e
ativa essa estrutura quando se depara com um determinado texto. Quanto maior for seu
conhecimento textual e contato com os diferentes tipos de texto, mais fácil será sua
compreensão (KLEIMAN, 2002).
Em outros termos, os conhecimentos textuais “são aqueles que possuímos acerca
dos elementos de textualidade, dos tipos e gêneros textuais” e “não se confundem com
os conhecimentos linguísticos, embora estejam estreitamente relacionados a eles”
(OLIVEIRA, 2010, p. 60).
De fato, tipos textuais e gêneros textuais abarcam conceitos diferentes, mas
ambos influenciam a forma como olhamos para um texto e o compreendemos. Koch e
Elias (2010) denominam o conhecimento textual de conhecimento superestrutural ou de
gêneros textuais21, e afirma que eles são “a distinção das macrocategorias ou unidades
globais que distinguem os vários tipos de texto ou que permitem a identificação de texto
como exemplares da vida social” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 54) levando a extrair
informações mais ou menos esperadas dentro daquela categoria. Por exemplo, se o leitor
está diante de uma tirinha, espera encontrar ali alguma forma de humor, ou diante de
uma carta, espera encontrar ali o destinatário e o remetente. Os conhecimentos textuais
são capazes de influenciar a interpretação porque há uma estrutura esperada para a
21
As autoras classificam esse conhecimento como um subtipo do conhecimento interacional que seriam
todos aqueles conhecimentos relacionados às formas de interação por meio da linguagem.
50
retirada de informações que guia o leitor durante a leitura e o faz hierarquizar
determinadas informações dentro da estrutura global de sentido do texto.
De acordo com Bakhtin (2000), a língua vai-se compondo a partir da interação
dos sujeitos de uma comunidade, e nessa interação constitui-se com formatos aparentes
– embora possam ser constantemente alterados - que podem ser identificados pelo leitor.
Para o autor, “a língua escrita corresponde ao conjunto dinâmico e complexo
constituído pelos estilos da língua, cujo peso respectivo e a correlação, dentro do
sistema da língua escrita, se encontram num estado de contínua mudança” (BAKHTIN,
2000, p. 285).
Nesse sentido, Bakhtin (2000) afirma que os enunciados que se realizam no
processo interacional da língua são concretos e pertencentes a uma determinada
realidade independente do conteúdo que possuam. Ou seja, de acordo com os objetivos
do usuário da língua, ele seleciona o conteúdo e a composição adequados a uma forma
mais ou menos constante de apresentação, os gêneros do discurso. Para o autor:
o discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um
sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Quaisquer que
sejam o volume, o conteúdo, a composição, os enunciados sempre
possuem, como unidades da comunicação verbal, características
estruturais que lhes são comuns, e, acima de tudo, fronteiras
claramente delimitadas. (BAKHTIN, 2000, p. 293)
Em outros termos, na visão de Bakhtin (2000), ao emitir um enunciado o autor
tem um objetivo e leva em conta uma série de situações que interferem no cumprimento
desse objetivo, como o grau de informação, os conhecimentos de área, opiniões,
convicções, preconceitos. Tudo isso vai determinar a escolha do gênero do enunciado e
a sua composição. Nas palavras do autor, “o querer dizer do locutor se realiza acima de
tudo na escolha de um gênero do discurso. [...] todos os nossos enunciados dispõem de
uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN,
2000, p. 301, destaques do autor).
Deve-se destacar aqui que os conhecimentos textuais referem-se a duas
dimensões diferentes da manifestação linguística do texto: uma com relação à estrutura
e à organização linguística textual e outra com relação à realidade sócio-comunicativa
do texto em determinada situação de comunicação. Respectivamente, tais dimensões são
chamadas de tipos textuais e gêneros textuais. De acordo com Marcuschi (2003), tipos e
gêneros textuais são diferenciados conceitualmente da seguinte maneira:
51
a) usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de
sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua
composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
lógicas). Em geral os tipos textuais abrangem meia dúzia de categorias
conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição,
injunção. b) usamos a expressão gênero textual como uma noção
propositalmente vaga para referir os textos materializados que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam características
sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilos e composição característica. Se os tipos textuais são
apenas meia dúzia os gêneros textuais podem ser inúmeros, como, por
exemplo, telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance,
bilhete, reportagem [...] (MARCUSCHI, 2003, p. 22-23, destaques do
autor).
Pode-se perceber, portanto, que um determinado texto apresenta ambas
dimensões de formas diferentes. Por um lado, tem-se a manifestação organizacional e
linguística, ou seja, as tipologias textuais, que apresentam determinados traços
identificados pelo leitor e que o ajudam a estabelecer coesão para o texto. Isso quer
dizer que o tipo do texto auxilia no estabelecimento de uma sequência linguística visível
o que, por sua vez, auxilia no estabelecimento das relações semânticas no interior do
texto. Marcuschi (2003) afirma que:
entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles
serem definidos por seus traços linguísticos predominantes. Por isso,
um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma
sequência e não um texto. A rigor, pode-se dizer que o segredo da
coesão textual está precisamente na habilidade demonstrada em fazer
essa “costura” ou tessitura das sequências tipológicas como uma
armação de base, ou seja, uma malha infraestrutural do texto.
(MARCUSCHI, 2003, p. 27)
Por outro lado há o caso dos gêneros, no qual a influência é das organizações
sociais e culturais típicas em que a situação comunicativa geralmente ocorre, ou seja,
são os propósitos da comunicação. Para que se caracterize como um determinado
gênero, o texto apresenta, de fato, sequências linguísticas (ou tipologias) definidas, mas
também apresenta um propósito comunicativo22. De acordo com Marchuschi (2003), os
aspectos principais dos gêneros são sócio-comunicativos, o que não significa que a
forma (estrutural ou linguística) deva ser descartada. Ou seja, a definição de um gênero
é feita tanto pela forma quanto pela função.
22
O propósito comunicativo constitui também um dos princípios da textualidade discutidos na seção 1.2,
o que reforça a necessidade da identificação do gênero para a compreensão textual.
52
Para Koch e Elias (2010), os gêneros constituem formas padrão, no entanto
maleáveis, de estruturação da linguagem que permitem a comunicação. As autoras,
assim como Marcuschi, definem o gênero como uma realidade sócio-comunicativa e
dinâmica.
Destaca-se aqui um fato importante com relação ao gênero: os autores que
trabalham com a sua definição afirmam que eles têm um vínculo profundo com a
realidade social e cultural contribuindo para organizar as atividades comunicativas
(BAKHTIN, 2000; SWALES, 1990; MARCUSCHI, 2003; KOCH; ELIAS, 2010).
Swales (1990), também assumindo a posição do gênero enquanto ato
comunicativo, o define como uma formatação que contém uma classe de eventos
comunicativos, nos quais se compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Tais
propósitos são reconhecidos pelos membros da comunidade discursiva de origem e,
portanto, constituem o conjunto de razões (“rationale” – SWALES, 1990, p. 58) para o
gênero. Essas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e influenciam e
impõem limites à escolha de conteúdo e de estilo.
Sendo assim, os gêneros apresentam aos indivíduos da comunidade uma
determinada variedade de opções de uso da língua e também fornecem aos usuários da
língua um poder preditivo e interpretativo (BAKHTIN, 2000; MARCUSCHI, 2003) das
ações humanas nos contextos em que acontecem. Ao mesmo tempo permitem a sua
maleabilidade na composição textual.
Chega-se, aqui, a mais um apontamento interessante para este trabalho, sobre os
gêneros no que diz respeito à leitura: os gêneros recebem influência direta de estruturas
sociais recorrentes e típicas da cultura o que faz com que a leitura do texto dependa em
grande escala da compreensão da situação comunicativa em que está inserido o texto.
Por exemplo, se o leitor depara-se com um texto do gênero propaganda, espera
encontrar ali o motivo para que compre o produto anunciado, mesmo que a estrutura do
texto seja apresentada diferentemente do gênero proposto, como a de um poema (o que
Koch e Elias, 2010, denominam hibridização ou intertextualidade intergêneros). O que
faz com que o gênero seja caracterizado como uma propaganda, nesse caso, é sua
função de comunicação (convencer o leitor a consumir um determinado produto), e o
leitor, ao deparar-se com o gênero, já ativa, mentalmente, expectativas para determinada
ocorrência textual (p. ex. o que a propaganda está vendendo?).
Bakhtin (2000) procura explicitar a ideia de gênero enquanto base do processo
comunicativo, afirmando que:
53
Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a
organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar
nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de
imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero,
adivinhar-lhe o volume, a dada estrutura composicional, e prever-lhe o
fim, ou seja, desde o início somos sensíveis ao todo discursivo que,
em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se
não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se
tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se
tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação
verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 2000, p. 301-302).
Bonini (2002) faz uma releitura do conceito de superestruturas de Dijk e Kintsch
(1983) e procura demonstrar a forma como esse conceito é capaz de demonstrar a
identidade do texto na memória do leitor/produtor, objetivando estabelecer um conceito
psicolinguístico para a noção de gênero. Para o autor,
a partir do modelo de Kintsch e Van Dijk, a identidade do texto passa
a ser considerada um elemento importante do processamento, um
recurso imprescindível para se obter o seu conteúdo global, seja no
processamento de entrada (input) seja no processamento de saída
(output) (BONINI, 2002, p. 20)
Isto quer dizer que a identidade do texto, ou o seu gênero, é capaz de fornecer
aos falantes/leitores uma forma de estabelecer para o texto um conteúdo global
(macroestrutura) a partir de categorias convencionadas socialmente que preenchem um
propósito comunicativo. Os tipos textuais, que ajudam na composição microestrutural
dos textos, ou, como afirma Bonini (2002) na sua identidade, organizam essa ocorrência
na mente dos usuários da língua. Em sua pesquisa, o autor chega a alguns resultados
interessantes com relação ao estabelecimento do gênero como uma categoria cognitiva.
Para o autor,
as características microestruturais são apontadas constantemente pelos
sujeitos da pesquisa, o que o leva a supor que tenham importância
similar às próprias partes do esquema textual do gênero; ainda as
sequências textuais (ou como denominamos nesse trabalho os tipos
textuais), no geral, não são vistas como gêneros (com uma função
social específica). Funcionam assim como aparatos de textualização
ao que parece, quase sempre, como conhecimento automático
(BONINI, 2002, p. 160).
54
Tudo isso leva a supor que a identificação do gênero influencia fortemente a
forma como o leitor interage com o texto. Se ele está diante de um bilhete, por exemplo,
ele espera encontrar ali fatores linguísticos que confirmem a expectativa da informação:
há um recado importante para alguém. Por meio da identificação do gênero (e das
tipologias textuais nele usadas), o leitor é capaz de estabelecer expectativas importantes
com relação à leitura do texto que o guiam durante o processo e o auxiliam a estabelecer
um sentido.
Assim, os gêneros seriam uma manifestação concreta com formas mais ou
menos estáveis que se encontram na realidade social e cultural e que ajudam a
estabelecer comunicação (BAKHTIN, 2000). Os tipos textuais (ou sequências como
denominam alguns autores – Bonini, 2002; Swales, 1990) compõem tais gêneros e
estabelecem para eles uma forma linguística de ocorrência.
Este trabalho de tese não objetiva falar exaustivamente da influência de tipos e
gêneros textuais na interpretação de texto, mas admite que a sua identificação auxilia o
leitor na busca de sentidos. Assim, fala-se de gêneros textuais abrangendo o conceito de
tipos textuais e considerando que esses fazem parte da constituição dos primeiros,
contribuindo para a sua manifestação. Em outros termos, ao usar, aqui, o termo ‘gêneros
textuais’, não se desconsidera as tipologias. Ao contrário, admite-se a influência de
ambos, gênero e tipo textual, na composição do texto e de seus sentidos, compondo um
elemento único a que se vai denominar conhecimento textual. O leitor ativa tal
conhecimento a partir da competência discursiva (cap. 2.2.3) e a desenvolve aplicando-a
sobre o texto lido e construindo interpretação.
1.4.4 Os conhecimentos de mundo
Deve ser lembrado, conforme discussão realizada sobre o processo de leitura até
aqui, que, em qualquer trabalho de interpretação, o leitor necessita aplicar
conhecimentos previamente adquiridos, que podem ser linguísticos ou extralinguísticos.
Esses últimos são denominados conhecimentos de mundo e estruturam-se em quadros
mentais, os quais, para serem verbalizados ou escritos, precisam ser ativados. Ao
escrever o texto, o autor ativa esses conhecimentos de mundo e utiliza determinado
conjunto de palavras para expressar suas ideias; o leitor, por sua vez, ao deparar-se com
essas palavras, deve ativar suas próprias estruturas mentais, seus conhecimentos de
mundo e as representações semânticas para compreender as informações do texto.
55
Kleiman (2004), citando os trabalhos de Luria (1976), afirma que
é através da palavra - que não é apenas portadora de significados, mas
também de “unidades de consciência básica que refletem um mundo”
(LURIA, 1976 apud KLEIMAN, 2004) - que analisa-se e sintetiza-se
a informação externa que chega aos sentidos pessoais; que ordena-se,
do ponto de vista perceptual, o mundo; que codifica-se as impressões
individuais em sistemas. (KLEIMAN, 2004, p. 192)
Assim, os conhecimentos de mundo se organizam de forma relacionada a tudo o
que se conhece da realidade, tais como sequências de ações, possibilidades de
ocorrência
contextual
de
determinadas
palavras,
atuando
diretamente
no
estabelecimento de coerência textual e fazendo com que se possa impor um sentido ao
texto.
A influência do conhecimento de mundo na interpretação está no fato de que,
para que o leitor possa dizer que compreendeu o texto, ele precisa deduzir relações entre
frases, palavras, parágrafos e complementar com conhecimentos não necessariamente
explícitos no texto. Assim, o leitor utiliza todo o conhecimento que não está exposto no
texto para perceber indícios reveladores para sua leitura, ou seja, ele utiliza um
mecanismo contínuo de antecipação e confirmação para compreender o texto.
Koch e Elias (2010) reforçam a necessidade de se considerar o conhecimento de
mundo do leitor no momento de realizar leitura e afirmam que:
Se, como vimos, a leitura é uma atividade de construção de sentido
que pressupõe a interação autor-texto-leitor, é preciso considerar que,
nessa atividade, além das pistas e sinalizações que o texto oferece,
entram em jogo os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH;
ELIAS, 2010, p. 37).
As autoras denominam os conhecimentos que o leitor tem sobre fatos gerais da
sua realidade sociocognitiva de conhecimentos enciclopédicos e os conceituam como:
“conhecimentos gerais sobre o mundo – uma espécie de thesaurus mental – bem como a
conhecimentos alusivos a vivências pessoais e eventos situados de forma espaçotemporal, permitindo a produção de sentidos” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 42). Isto quer
dizer que vários conhecimentos subjacentes ao texto são ativados e interagem com os
demais tipos de conhecimento para que o sentido seja produzido.
De acordo com Lencastre (2003), “a compreensão é um processo construtivo,
em que a informação de um estímulo se associa com informação já existente na
56
memória. O ser humano constrói o conhecimento ao invés de simplesmente o receber”
(LENCASTRE, 2003, p. 16). Pode-se dizer, assim, que a interpretação de um texto tem
também dimensões subjetivas que dependem dos fatores contextuais, sociais, culturais,
o que determina quais significados recebem atenção e quais serão desconsiderados.
Nesse sentido, há uma ativação e uma ligação de significados que são pessoais e
que auxiliam o leitor a deduzir relações que não estão explícitas no texto, mas se
armazenam em um tipo de conhecimento sobre aquilo que o leitor conhece a respeito da
sua comunidade e da realidade em que vive. Ou seja, o conhecimento de mundo seria
um conjunto de relações extralinguísticas armazenadas pelos falantes previamente que
são ativadas durante a leitura e possibilitam ao leitor dizer quando um texto faz ou não
sentido na sua realidade.
Beaugrande e Dressler (1981) chamam atenção para o fato de que, subjacente às
informações linguísticas presentes em um texto, configura-se um mundo textual que se
relaciona com os conhecimentos do leitor limitando os sentidos possíveis a serem
estabelecidos. Para os autores, o mundo textual é uma configuração do conhecimento
que pode ser recuperado ou ativado, e, para defini-los é necessário estabelecer uma série
de probabilidades porque é um tipo de conhecimento que não é estanque ou clivado da
mesma maneira para todos os falantes da língua. Torna-se necessário assim, que o leitor
considere os demais conhecimentos necessários para interpretar um texto.
O leitor conhece muito do que pode ou não acontecer em um texto a partir do
estabelecimento de possibilidades reais para as sequências linguísticas de um texto. Por
exemplo, em um texto narrando um diálogo entre professora e alunos, um dos alunos
chega atrasado para a aula e diz: “Havia um congestionamento no caminho”. O leitor
que conhece a situação provocada por congestionamentos, já sabe que este é fator
causador de trânsito lento, horas de deslocamento e, consequentemente, do atraso para
aula. Isso tudo faz parte do conhecimento de vivência do leitor e não está
linguisticamente explícito no texto, mas pode ser inferido a partir dele por causa dos
conhecimentos de mundo envolvidos.
Stubbs (2001) afirma que as interpretações dependem muito do conhecimento
não linguístico, ou seja, do conhecimento de mundo. Isso porque as interpretações feitas
dependem também de um conhecimento não linguístico sobre ações recorrentes no
cotidiano (como p. ex. porque um policial pode estar cavando em um jardim – Stubbs
(2001)). A questão principal é que os falantes podem utilizar esse conhecimento para
57
dizer mais do que de fato dizem, pois há conhecimentos sedimentados na língua que
subjazem ao ato de comunicação, inclusive na leitura.
Em outros termos, pode-se dizer que muito do que está dito em um texto passa
por uma avaliação do conhecimento de mundo previamente armazenado e é somente
parcialmente especificado por questões linguísticas e gramaticais. As relações entre o
linguístico e o não linguístico é que capacitam o leitor a construir sentido e a impor para
o texto uma sequência possível de eventos. Dijk (2002) afirma que:
Para sermos capazes de interpretar um discurso, isto é, de atribuir-lhe
significado e referência, precisamos também de uma avaliação
substancial do conhecimento de mundo e este conhecimento pode ser
só parcialmente especificado no interior da linguística ou da
gramática, precisamente, no léxico (DIJK, 2002, p. 38).
O autor procura investigar a maneira como o conhecimento do leitor o auxilia a
construir macroestruturas para o texto, ou seu sentido global. Ele afirma que a análise
semântica do texto permite investigar como as sentenças presentes em um discurso
interagem/relacionam-se entre si para produzir uma representação conceitual. Os
aspectos relevantes do conhecimento de mundo são, assim, parte da representação
conceitual ou macroestrutura do texto que o leitor constrói na leitura. Em outros termos,
há um processo de construção que se inicia a partir das relações semânticas da estrutura
linguística do texto, é organizado de forma estratégica pelo leitor e produz as
macroestruturas, ou seja, o sentido global.
Reitera-se, assim, que há um processo de construção que se dá a partir das
relações linguísticas entre as palavras na superfície do texto, o que se chama
microestruturas
(DIJK;
KINTSCH,
1983).
Essas
interagem
com
questões
extralinguísticas para produzir um resumo mental do sentido textual, ou seja, a
macroestrutura do texto.
Em outra obra de Dijk, escrita em parceria com Kintsch (DIJK; KINTSCH,
1983), é dito que há uma relação intrínseca entre a microestrutura e a macroestrutura de
forma a levar o leitor a construir um sentido global. Colomer e Camps (2002) explicam
o modelo de Dijk e Kintsch (1983) da seguinte maneira:
para processar o conjunto do texto, o leitor elabora o que esses autores
chamam de macroestrutura mental do texto. Esta corresponde à
descrição semântica abstrata de seu conteúdo, ao resumo mental que o
leitor efetua do tema e das ideias principais. O leitor constrói essa
58
representação aplicando a cada uma das proposições macrorregras que
consistem em uma série de estratégias de síntese – operações de
supressão, generalização e construção da informação do texto, que
atuam da seguinte forma: a partir das primeiras informações, o leitor
contrasta a nova informação com a que possui. Se a nova informação
lhe parece redundante ou secundária, ele a descarta (macrorregra de
omissão); se encontra uma proposição com um conceito capaz de
englobar várias informações procede a isso (macrorregra de
generalização); e se não há uma proposição capaz de agrupar um
mesmo tipo de informação, passa a construir ele próprio a proposição
resumo (macrorregra de construção) (COLOMER; CAMPS, 2002, p.
45).
Isto significa que os conhecimentos do leitor, sejam linguísticos ou
extralinguísticos, são utilizados por ele de forma estratégica para que interprete um
texto. Mesmo sem ter consciência desses conhecimentos, o leitor lança mão daquilo que
já está armazenado em sua memória para dar sentido ao texto.
Dijk (2002) afirma ainda que os sistemas de conhecimento são responsáveis pela
adequação entre os sistemas cognitivos e os atos de fala23 nos contextos de ocorrência.
O autor diz que:
as condições sociais relevantes envolvidas nas formulações das regras
pragmáticas, como nas relações de autoridade, poder, papel e polidez,
operam sobre bases cognitivas. Isto é, elas só são relevantes na
medida em que os participantes têm conhecimento dessas regras,
podem usá-las e são capazes de relacionar suas interpretações sobre o
que está ocorrendo na comunicação às características sociais do
contexto (DIJK, 2002, p. 76).
Isto significa dizer que a compreensão textual envolve não somente o
processamento e interpretação de informações do texto – conhecimento linguístico mas também a ativação de informações internas e cognitivas. Reitera-se que, nesse
armazenamento, estariam presentes as experiências do leitor, as situações de eventos e
os conhecimentos de cultura e sociedade.
Assim, as palavras presentes em um texto constituem-se como um gatilho para a
ativação de diversos tipos de conhecimento a elas relacionados (armazenados em frames
– vide exposição na próxima seção deste trabalho). Isso porque nosso conhecimento
sobre a língua não é apenas relacionado às palavras enquanto forma linguística, mas
23
Atos de fala são entendidos nesse trabalho como as relações pragmáticas estabelecidas em um texto, os
quais permitem que o leitor compreenda as intenções e objetivos ali presentes tais como uma ordem, um
pedido, uma reclamação. (SEARLE, 1995)
59
também às combinações possíveis e previsíveis e de conhecimentos diversos, inclusive
os culturais, evocados por tais combinações (STUBBS, 2001)24.
Durante o processo de interpretação, a interação entre conhecimento linguístico,
textual e de mundo é, assim, recorrente e constante fazendo com que as expectativas do
leitor sejam confirmadas ou refutadas (ECO, 1979). Nesse sentido, o leitor vai
preenchendo de significados a manifestação linear do texto – realizando uma
interpretação semântica –, podendo também explicar o motivo pelo qual determinadas
compreensões são ou não possíveis (ECO, 2000).
É importante ressaltar que os traços da superfície textual levam a sinalizar e a
interpretar informações semânticas importantes na construção de um sentido. Esses
traços são as pistas de contextualização que contribuem para a construção de
pressuposições com relação ao texto (GUMPERZ, 1992). Dijk (2002) destaca a relação
entre questões linguísticas e contextuais, afirmando que,
podemos usar palavras, talvez palavras temáticas, para construir as
macroestruturas; e podemos ainda, usar macroestruturas na
compreensão das palavras (...) partimos da compreensão de palavras
para a compreensão de orações nas quais essas palavras tem várias
funções, e daí para sentenças complexas, sequências de sentenças e
estruturas textuais gerais. Mesmo assim, existe uma realimentação
contínua entre unidades menos complexas e unidades mais
complexas” (DIJK, 2002, p. 22).
É justamente essa possibilidade de interação contínua entre unidades menos e
mais complexas e a utilização de palavras temáticas para construir o sentido global do
texto que leva à suposição, neste trabalho, de que as palavras-chave concentram mais
informação do que dados puramente linguísticos. Elas guiam o leitor na ativação de
significados importantes, pessoais, sociais e culturais. Ou seja, além de concentrarem
conhecimento linguístico e textual, também auxiliam na ativação dos conhecimentos de
mundo. Isso porque, nas palavras de Dijk,
figuras de palavra podem chamar a atenção para conceitos
importantes, fornecer pistas de coerência global e local, sugerir
interpretações pragmáticas plausíveis (p. ex. uma promessa X uma
ameaça) e, de forma geral, dar mais estrutura aos elementos da
representação semântica para que a recuperação seja mais fácil (DIJK,
2002, p. 33)
24
Fala-se mais no cap. 2 deste trabalho sobre a maneira como o sistema linguístico é capaz de codificar
conhecimentos sociais, culturais, linguísticos, discursivos.
60
Ou seja, na escolha das palavras para um texto, o autor e o leitor concentram
todos os tipos de conhecimentos de que necessitam para a produção e para a
compreensão textual. No caso da leitura, especificamente, é a junção entre o
conhecimento das palavras e o conhecimento de mundo que leva o leitor a estabelecer
um dos princípios da interpretabilidade – a coerência (BEAUGRANDE E DRESSLER,
1981). A coerência é estabelecida, portanto, como um sentido para o texto (vide cap.
1.1) utilizando-se de elementos contextuais. Assim,
sempre que for possível aos interlocutores construir um sentido para o
texto, este será, para eles, nessa situação de interação, um texto
coerente. Ou seja, sempre que se faz necessário realizar algum cálculo
de sentido, com apelo a elementos contextuais – em particular os de
ordem sociocognitiva e interacional – já estamos entrando no domínio
da coerência. (CHAROLLES 1983 apud KOCH; ELIAS, 2010,p. 189)
Deve-se ressaltar ainda que a cultura faz parte desse conhecimento de mundo
que ajuda a compreender um texto. Para Kramsch (1993), a cultura de uma sociedade
contém previsões para assegurar a compreensão de significados, e os falantes dessa
sociedade fazem sua voz previsível para serem compreendidos em atos de comunicação.
Ou seja, a inserção de falantes dentro de uma determinada sociedade faz com que eles
precisem considerar questões culturais para a compreensão dos significados próprios a
tal comunidade linguística.
A autora trabalha numa visão de aprendizagem de língua estrangeira e afirma
que para que aprendizes possam compreender de fato a língua é necessário visualizar a
cultura não só como fatos e como significados, mas também como um lugar em que
aprendizes se esforçam para negociar sentidos. Isso porque os usuários da língua podem
emitir ecos do ambiente social em que vivem e, nesse caso, é preciso expressar os
pensamentos de uma maneira que sejam compreensíveis e originais num processo
dialógico. Para a autora, é por meio do diálogo com outros falantes, nativos e não
nativos, que aprendizes descobrem quais maneiras de falar e pensar eles compartilham
com outros e quais são únicas a eles (KRAMSCH, 1993, p. 27). A autora destaca ainda
que por meio da língua, pode-se ter acesso à cultura do outro e é pelos olhos dos outros
que se pode conhecer a si mesmo e ao outro. Sendo assim, o conhecimento armazenado
pelos falantes inclui aspectos culturais que permitem compreensão entre a comunidade
linguística, bem como a reconstrução do próprio pensamento.
61
Embora a autora discuta questões relativas à aprendizagem da cultura de uma
língua alvo (não nativa, portanto), o que, de certa forma, distancia-se da perspectiva
desse trabalho, percebe-se a importância da compreensão da cultura enquanto
significados sociais para a compreensão de qualquer língua, inclusive a língua materna.
A cultura faz parte de uma dimensão do uso da língua que se insere na interação entre
sujeitos de uma comunidade e, portanto, influi na forma de compreensão de textos
escritos25. De acordo com Bakhtin (2009) “nenhum signo cultural, quando
compreendido e dotado de sentido permanece isolado: torna-se parte da unidade da
consciência verbalmente construída.” (BAKHTIN, 2009, p. 38).
Stubbs (2001) faz um estudo baseado em corpus sobre como determinadas
palavras (chamadas pelo autor de palavras-chaves26) demonstram formas culturais de
compreensão da língua. O autor afirma que as palavras ganham significado cultural a
partir de seu uso em determinados contextos, pois, para o autor, o repertório de
significados compartilhados que circulam em uma comunidade é justamente parte do
significado de cultura (STUBBS, 2001, p. 165). Ele salienta que parece não haver
maneiras de separar o conhecimento linguístico do conhecimento cultural (STUBBS,
2001, p. 167) e demonstra como palavras tais como ‘ethnic’, ‘racial’ e ‘care’ ganham
conotações específicas devido ao uso frequente em determinados contextos. Em seu
estudo as duas primeiras palavras tem uma conotação relativa a algum tipo de violência
e a última tem uma conotação política (como em health care, political care etc). Essa
conclusão não é aleatória, mas empírica, pois o autor analisa quais os contextos mais
frequentes e recorrentes para o aparecimento dessas palavras em corpora
significativos27 da língua inglesa. O intuito do autor é demonstrar a forma como as
palavras são carregadas de sentidos culturais, os quais são automaticamente ativados
pelos falantes ao utilizá-las para a comunicação.
O fato é que há uma interface entre língua e cultura expressa nos conhecimentos
de mundo do leitor porque “a cultura é forma de ver e perceber o mundo que, de alguma
25
Fala-se mais sobre a maneira como a cultura é capaz de influenciar o uso do sistema linguístico pelos
falantes na seção 2.2.2.
26
As palavras-chave (keywords) utilizadas por Stubbs (2001) seriam as palavras núcleo utilizadas, em seu
estudo, a partir de uma frequência de ocorrência. O autor fala do campo da linguística de corpus com uma
perspectiva probabilística da língua e procura demonstrar a forma como tais palavras carregam
significados contextuais da comunidade falante. A perspectiva utilizada para palavra-chave neste trabalho
é diferente já que não considera a perspectiva quantitativa em um corpus (vide cap. 2.3)
27
Os corpora utilizados na pesquisa de STUBSS (2001) foram: LOB (Lancaster-Oslo-Bergen) Corpus;
FLOB and FROWN corpora; London-Lund Corpus; Longman-Lancaster Corpus; The Bank of English –
COBUILD (STUBBS, 2003).
62
forma é manifestada na linguagem, quer verbal quer não verbal” (DOURADO;
POSHAR, 2010, p. 44). Para essas autoras,
Conceber a cultura como só tendo existência no contexto social
implica reconhecer que ela é socioculturalmente construída nas
práticas discursivas, nas formas de ser, dizer e agir. Essa cultura,
denominada invisível; cultura que se constrói nas e pelas práticas
discursivas, sendo, portanto, constitutiva da língua (DOURADO;
POSHAR, 2010, p. 42).
Assim, as formas de construção de sentidos por meio da língua incluem as
formas de se fazer cultura. Ou seja, leitores se deparam com uma série de sentidos
culturais construídos a partir das palavras utilizadas por eles que estão, de algum modo,
implícitos no texto e são ativados pelo conhecimento de mundo.
Kramsch (1993) destaca a relação próxima entre língua e cultura e afirma que a
última tem implicações na forma como se produz conhecimento (e, consequentemente,
interpretação textual). A autora afirma ainda que a maneira como os leitores produzem e
partilham significados na língua são também codificados pela cultura numa interface
entre cultura e relações semântico-pragmáticas. Almeida Filho (2011), de certa forma,
concorda com esse ponto de vista ao afirmar que “a capacidade de desempenhar
comunicativamente numa língua inclui a incorporação dos sentidos culturais que
criaram o esteio invisível de sustentação de tudo o que se diz ou ouve nessa língua”
(ALMEIDA FILHO, 2011, p. 168).
Nesse sentido, língua e cultura encontram-se em um espaço comum para a
produção de sentidos e aos poucos permitem a construção de uma rede coletiva de
conhecimentos dos usuários que possibilita a comunicação. Kramsch (1993) destaca que
ao se estabelecer interação comunicativa em uma língua aparecem não somente vozes
individuais, mas conhecimentos históricos armazenados em uma sociedade - um
estoque de metáforas vividas pelos sujeitos –, além de categorias que os falantes de uma
comunidade usam para representar experiências previamente armazenadas. É como se
os interlocutores possuíssem uma memória comunitária socializada que lhes
permitissem a previsão, a construção, e a manutenção de sentidos.
Na visão de Lakoff e Johnson (1980) os falantes estruturam a língua e os
conceitos de forma metafórica fazendo com que todos os usuários da língua armazenem
conhecimentos comuns. Eles citam como exemplo a metáfora: “Discussão é guerra”. O
fato de se usar palavras tais como ganhar ou perder uma discussão, derrubar um
63
argumento, usar estratégias de convencimento, defender um ponto de vista, levam a crer
que isso só é possível porque o conhecimento do leitor está culturalmente ligado à
metáfora discussão=guerra (logo há ganhadores, perdedores, estratégias de combate e
de defesa etc). Caso haja culturas em que as discussões não sejam vistas como uma
guerra, os usuários deverão estruturar a língua de forma diferente. Isso significa que na
visão dos autores, a cultura vivida pelos usuários da língua influenciam nas formas que
armazenam os conhecimentos de mundo e automaticamente nas formas de (re)utilizar a
própria língua. Assim, pode-se dizer que há um ciclo em que as metáforas, construídas
culturalmente, são armazenadas na mente dos falantes (que compartilham esses
conhecimentos entre si) e criam novas formas de produção da língua e,
consequentemente, geram novas interpretações dos sentidos produzidos.
Isso quer dizer que, para compreensão de textos escritos, os quais são o foco
deste trabalho de tese, o leitor precisa ativar todos os conhecimentos relativos a
interações comunicativas prévias que interferem na forma de ler e compreender o que
inclui fatores culturais, sociais e experiências individuais. Solé (1998) argumenta que:
a leitura nos aproxima da cultura, ou melhor de múltiplas culturas e,
neste sentido sempre é uma contribuição essencial para a cultura
própria do leitor. Talvez pudéssemos dizer que na leitura ocorre um
processo de aprendizagem não intencional, mesmo quando os
objetivos do leitor possuem outras características, como no caso de ler
por prazer (SOLÉ, 1998, p. 46).
Reitera-se com isso que o conhecimento cultural que se acumula na vida em
sociedade, armazenado pelo leitor a partir da utilização da língua, é também ativado
durante o processo de interpretação textual. É uma rede de sentidos socioculturais que
extrapolam os limites do linguístico e interagem de forma constante em contextos
específicos e que possibilitam o leitor questionar, refletir, imaginar as possibilidades
para um determinado texto.
Em suma, considera-se ‘conhecimento de mundo’ todos os tipos de
conhecimentos extralinguísticos (discursivos, culturais, sociais e individuais) utilizados
pelo leitor para compreender um texto. É esse conhecimento armazenado pelo leitor, o
conhecimento de mundo, que o permite “preencher as lacunas do texto, isto é,
estabelecer os ‘elos faltantes’ por meio de inferências-ponte” (KOCH; ELIAS, 2010, p.
66). Durante a compreensão, os leitores ativam tais estruturas puxando alguns pacotes
64
particulares de conhecimento, chamados frames ou esquemas, usando-os para fornecer
um quadro geral do texto que estão lendo (DIJK; KINTSCH,1983, p. 46).
1.4.3.1 Os esquemas de conhecimento
A partir da discussão exposta na seção anterior, vê-se que o leitor, durante a
leitura, aplica ao texto uma carga de conhecimentos previamente armazenados,
produzindo sentido. Essa carga de conhecimentos pode ser armazenada em fatias de
informação agrupadas de acordo com as possíveis ocorrências, as quais são
denominadas esquemas de conhecimento ou frames. De acordo com Koch e Elias
(2010):
os conjuntos de conhecimento, socioculturalmente determinados e
vivencialmente adquiridos, sobre como agir em situações particulares
e realizar atividades específicas vêm a constituir o que chamamos de
“frames”, “modelos episódicos” ou “modelos de situação” (KOCH;
ELIAS, 2010, p. 56).
Para a autora, esses conjuntos de conhecimento permitem criar um quadro de
representação para o texto que possibilita avançar na leitura sem a geração de
ambiguidades ou estranhamento do conteúdo por parte do leitor. Por exemplo, numa
sequência textual em que é narrado um diálogo entre garçom e cliente em um
restaurante, o leitor espera encontrar certos tipos de situação e prevê muito daquilo que
pode ou não ser dito nessa narração. Seria estranho para ele deparar-se com uma frase
do tipo: “O guarda de trânsito pediu os documentos do rapaz” no meio dessa narrativa
pois os conjuntos de conhecimento para as situações são diferentes, embora a frase
esteja sintaticamente bem construída. Ou seja, o leitor ativa esquemas e subesquemas
numa sequência de situações e vai predizendo muito do que pode ou não ser dito no
texto (KATO, 1999).
Kleiman (2002) afirma que os esquemas permitem que o leitor seja econômico
nas possibilidades de representação para um texto. Isso porque eles limitam uma série
de eventos, impressões e ocorrências possíveis para a compreensão do texto. A autora
exemplifica tal situação a partir da frase: “vimos um acidente na estrada hoje. – Ah! por
isso você chegou tarde.” (KLEIMAN, 2002, p. 21). A codificação da palavra ‘acidente’
inclui a sequência de eventos: policiais na rua, trânsito intenso, congestionamento,
carros com vidros estilhaçados e amassados etc. Ou seja, acidente inclui aí uma série de
65
informações que dizem respeito à realidade que temos e estão armazenadas em
esquemas de conhecimento, os quais são acionados para a palavra ‘acidente’. A
interpretação do atraso é dada por esse compartilhamento de informações intrínsecas em
que, se houve acidente, houve também essa série de elementos que possibilitam a
interpretação de que o atraso é devido ao tempo perdido no trânsito por causa do
acidente.
Assim, para a autora, os itens lexicais motivam a ativação do conhecimento de
mundo do leitor de forma inconsciente. Ou seja, itens lexicais não são simplesmente
dados linguísticos. Eles são também insumo para ativações culturais e sociais da mente
do indivíduo (KLEIMAN, 2002), o que acontece por meio de um conhecimento
“estruturado que temos na memória sobre assuntos, situações, eventos típicos de nossa
cultura” e que “é chamado de esquema. O esquema determina em grande parte, as
nossas expectativas sobre a ordem natural das coisas” (KLEIMAN, 2002, p. 23).
Dijk (1977b) conceitua frames afirmando que são o conjunto de proposições
expressas em uma passagem, ou seja, um subsistema de conhecimento sobre algum
fenômeno no mundo. Mais especificamente, o frame contém informações sobre estados
do componente, ações ou eventos, sobre condições necessárias ou prováveis e
consequências. O autor acrescenta, ainda, que frames são “representações de
conhecimento sobre o mundo que nos capacitam a desempenhar atos cognitivos básicos
como percepção, ação, e compreensão de língua” (DIJK, 1977b, p. 19). Em outra obra
produzida com Kintsch (DIJK; KINTSCH, 1983), os autores ressaltam que
o esquema fornece ao leitor as bases para interpretar um texto. Uma
base textual coerente é obtida pela ligação de unidades semânticas
derivadas do texto com o insumo textual para o esqueleto conceitual
fornecido pelo esquema de conhecimento. Bases textuais são o
resultado do casamento entre esquemas de conhecimento e texto
(DIJK;KINTSCH, 1983, p. 48).
Nesse sentido, os esquemas de conhecimento parecem codificar aquilo que é
convencional na comunidade linguística e auxiliam o leitor na busca de sentidos por
meio da estruturação dos conhecimentos em fatias de informação. O nosso
conhecimento estaria assim organizado a partir de determinadas possibilidades de
comunicação.
É necessário ressaltar aqui que os esquemas de conhecimento não são porções
arbitrárias organizadas aleatoriamente. Eles são unidades cognitivas que trabalham em
66
paralelo ao conhecimento semântico do discurso e ativam conhecimentos socioculturais,
fazendo com que o texto possa ser reconstruído numa macroestrutura. O léxico do texto
e as informações mais genéricas sobre o seu uso são armazenados nos esquemas e
fornecem relações conceituais que definem parte da coerência semântica de um discurso
(DIJK, 2002).
A importância dos esquemas mentais na interpretação de textos reside
justamente no fato de que podem auxiliar na renovação ou atualização dos modelos
mentais previamente formados durante o processo de leitura de um discurso. Ou seja,
eles não são estanques, mas são reconstruídos à medida que novas informações
possíveis aparecem dentro de um determinado texto, fazendo com que o leitor
reconstrua seu conhecimento, ou complete-o. Dijk (2002) explica a importância dos
esquemas na compreensão do texto, afirmando que
as estratégias e esquemas constituem as bases para os processos
normais de interpretação hipotética: dada uma certa estrutura textual e
contextual eles permitem suposições sobre possíveis significados e
intenções – mesmo que as regras em um momento posterior levem á
rejeição daquelas hipóteses (DIJK, 2002, p. 81).
Colomer e Camps (2002) comparam o conceito de esquemas a uma tela online
na qual é possível inserir e organizar novas e velhas informações de forma que sejam
pertinentes e consistentes, ou seja, uma informação deve estar necessariamente
conectada à outra. Para as autoras, os esquemas são estruturas mentais que o sujeito
constrói à medida que interage com a sua comunidade linguística e auxiliam o leitor a
organizar todas as informações que recebe a partir da sua experiência. Nesse sentido, o
texto seria um ativador de vários esquemas mentais que se sobrepõem para a produção
de um sentido.
Beaugrande e Dressler (1981) classificam as formas de armazenamento mental
em diferentes conceitos. Para os autores:
a) frames28: são padrões globais que contêm um conhecimento de sentido comum
sobre o conceito central. Esses padrões afirmam a que pertencem as coisas e os
fatos que se encontram na realidade, mas não a ordem de acontecimento;
28
Neste trabalho pode-se encontrar também o termo frames como o termo utilizado por grande parte dos
autores (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2010) para referir-se a esse pacote de conhecimentos. Desta forma,
em alguns momentos, pode-se encontrar o termo esquemas e em outros frames, referindo-se ao mesmo
conceito.
67
b) esquemas: são padrões globais de eventos e estados na ordem de sequências
ligadas por proximidade ou causalidade. São usados em progressão e em ordem
para o estabelecimento de hipóteses;
c) planos: são padrões globais de eventos e declarações que levam a um objetivo
geral;
d) scripts: são planos estabilizados usados frequentemente para especificar papéis
aos participantes e suas ações esperadas. Isto é, eles têm uma rotina específica
de acontecimento.
Na compreensão de um texto, esses padrões se sobrepõem de forma a explicar
como um tópico deve ser desenvolvido (frames), como uma sequência de evento vai
progredir (esquemas), como os personagens do mundo textual vão buscar seus objetivos
(planos), como situações são organizadas para que certos textos possam ser
apresentados no momento oportuno (scripts) (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981, p.
91). No entanto, como todos esses conceitos tratam da forma como o leitor organiza
cognitivamente as informações durante a leitura do texto, utiliza-se, neste trabalho, o
termo esquemas (e, por vezes, frames) assumindo que essas são as unidades básicas de
armazenamento de informações do léxico em correlação com informações
extralinguísticas (KATO, 1999; DIJK, 1977a; DIJK; KINTSCH, 1983). Em suma, ao
referir-se ao termo esquemas nesse trabalho, assume-se que eles relacionam-se a pacotes
de conhecimento previamente armazenados pelo leitor que limitam as possibilidades de
aparecimento das situações textuais.
Lencastre (2003) afirma que são os esquemas que ajudam o leitor a estabelecer
uma filtragem das informações do texto, integrando-as num processo de constante
interação aos conceitos já arrolados em sua mente. A partir dessa relação, o leitor faz
inferências, organiza informações, (re)constrói hipóteses, ou seja, interpreta o texto. A
autora afirma ainda que a quantidade de conhecimento prévio de cada indivíduo influi
na maneira pela qual ele retira informações dos textos. Ou seja, há um processo de
controle das informações textuais de acordo com o que o leitor já conhece sobre o
assunto do texto. Os esquemas de leitores com um grau mais elevado de conhecimento
possuem mais variáveis disponíveis, o que pode auxiliá-los na identificação de
informações novas ou mais relevantes. Quando o leitor tem maior conhecimento prévio
do assunto textual ele antecipa mais informações e consegue perceber mais pormenores
no texto porque possui uma classificação de esquemas maior e mais organizada.
68
Em suma, pode-se dizer que os esquemas restringem as interpretações possíveis
a partir da ativação de seus possíveis elementos constitutivos, fazendo com que o leitor
realize inferências, destacando alguns conhecimentos e diminuindo a importância de
outros no interior do texto. Os esquemas são os responsáveis pela organização do
conhecimento exposto no texto, pela produção de pressuposições, inferências e
hipóteses, e pela atribuição de coerência ao texto. Ou seja, são eles que possibilitam a
utilização do conhecimento prévio do leitor sobre a situação textual exposta. No
entanto, eles não são utilizados aleatoriamente, mas de forma estratégica pelo leitor para
produzir sentido.
1.5 ESTRATÉGIAS DE LEITURA
Nota-se, pelo que se discutiu até o momento, que a leitura é um processo ativo
em que o leitor decide engajar-se num processo de estabelecimento de sentidos,
lançando mão de vários de seus conhecimentos. Em outras palavras, a leitura não é um
processo natural que acontece como um ato biológico, como caminhar, olhar etc. Ao
contrário, ela é um processo que demanda aprendizado de estratégias específicas para
compreender o que o autor diz por meio de um texto. Dijk e Kintsch (1983), ao procurar
estabelecer um modelo de trabalho cognitivo para a compreensão do discurso afirma
que a leitura é um processo estratégico. De acordo com os autores,
o processamento do discurso, assim como outros processamentos de
informações complexas, é um processo estratégico no qual uma
representação mental é construída do discurso na memória, usando
tanto tipos internos quanto externos de informação, com o objetivo de
interpretar (compreender) o discurso (DIJK; KINTSCH, 1983, p. 6).
Para os autores, uma estratégia envolve a ação humana durante interação
comunicativa, um comportamento controlado, consciente e intencional orientado por
um objetivo. Solé (1998), ao defender a ideia da leitura como um processo estratégico,
afirma que durante tal processo o leitor realiza ações diversas e conscientes, tais como
levantar hipóteses, checá-las, reconstruir significados, reler determinados trechos, fazer
marcações. Se o leitor percebe que não compreende algo no texto, ele deve repensar
suas estratégias29 para tentar resolver o problema de forma que a interpretação possa ser
29
Ou seja, o leitor utiliza sua competência estratégica para estabelecer comunicação com o texto. Tal
conceito será melhor explicado no cap. 2.2.4 deste trabalho.
69
construída. Assim, a leitura é sempre guiada pelos objetivos (sejam eles quais forem; até
mesmo a leitura por prazer ou como passatempo tem um objetivo) e pela ação do leitor
que interage com as palavras do texto para construir sentidos.
Pensar em leitura como um processo de elaboração de estratégias demanda que
se fale sobre o termo estratégia. O dicionário Houaiss (UAISS, 2009) traz o conceito de
estratégia como:
Estratégia: s.f. (1836) 1 MIL arte de coordenar a ação das forças
militares, políticas, econômicas e morais implicadas na condução de
um conflito ou na preparação da defesa de uma nação ou comunidade
de nações 2 MIL parte da arte militar que trata das operações e
movimentos de um exército, até chegar, em condições vantajosas, à
presença do inimigo 3 p.ext. arte de aplicar com eficácia os recursos
de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que
porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos
4 p.ext. ardil engenhoso; estratagema, subterfúgio
ETIM gr.
stratégía,as 'o cargo do comandante de uma armada, o cargo ou a
dignidade de uma espécie de ministro da guerra na antiga Atenas,
pretor, em Roma; manobra ou artifício militar' (UAISS, 2009)
Percebe-se que os dois primeiros conceitos relacionados ao verbete são de
categoria militar (MIL) e referem-se a uma “arte de coordenar ações” para realizar uma
organização que chegue “em condições vantajosas” na presença do inimigo. Ou seja, há
um objetivo a alcançar, há uma formação de plano para chegar nesse objetivo e há a
execução da ação. O terceiro conceito, que é apresentado como uma extensão por
derivação (p.ext), está relacionado a uma explicação eficiente de recursos que se utiliza
para alcançar um determinado objetivo. Pode-se dizer, a partir disso, que o termo
estratégia relaciona-se às ações empenhadas de maneira otimizada para alcançar um
determinado objetivo. Transpondo esse conceito para o caso da leitura, interesse dessa
pesquisa, pode-se dizer que estratégia de leitura são todas as ações empenhadas pelo
leitor e guiadas por um objetivo pré-estabelecido para alcançar a compreensão das
ideias presentes em um texto.
Na visão de Solé (1998), as estratégias de leitura tendem à obtenção de uma
meta; permitem avançar o custo da ação do leitor, embora não a determinem de forma
fixa e total; não estão sujeitas de forma exclusiva a um tipo de conteúdo ou a um tipo de
texto, podendo adaptar-se a diferentes situações de leitura. Dessa maneira, estabelecer
estratégias demanda esforço do leitor, ações que envolvem questões mais automatizadas
pelo leitor (cognitivas) e questões mais conscientes (metacognitivas) (KATO, 1999).
70
Kato (1999) afirma que o leitor recorre a mais de uma estratégia durante a
leitura, e as classifica em duas grandes ramificações: as cognitivas, que “são princípios
que regem um comportamento automático e inconsciente do leitor”, e as
metacognitivas, que são as que “regulam a desautomatização consciente das estratégias
cognitivas” (KATO, 1999, p. 124). Em sua pesquisa, a autora vai demonstrando a forma
como leitores controlam a sua leitura para depreender sentidos dos extratos textuais
utilizando
elementos
sintáticos,
lexicais,
semânticos,
pragmáticos
ou
seus
conhecimentos de mundo para realizar tal tarefa, ou seja, como se dá a utilização de
estratégias cognitivas. E também descreve sobre a forma como se controla
conscientemente o processo ao estabelecer objetivos, identificar aspectos, alocar a
atenção em partes específicas do texto, revisar, avaliar, tomar ações corretivas, o que
seriam estratégias metacognitivas.
Dijk e Kintsch (1983), ao criarem um modelo de compreensão do discurso de
base cognitiva, procuram estabelecer uma série de estratégias necessárias para explicar a
maneira pela qual se compreende um texto. Os autores chegam a algumas conclusões
sobre as estratégias, as quais podem ser resumidas em:
a) são componentes essenciais da nossa habilidade cognitiva para produzir e
entender enunciados de fala;
b) são partes ordenadas hierarquicamente pelo leitor;
c) são flexíveis e operam em vários níveis ao mesmo tempo, usam informações
incompletas, e combinam processamentos de leitura ascendentes e descendentes30;
d) são sensíveis ao contexto, ou seja, podem ser alteradas de acordo com
conhecimento de mundo armazenado pelo leitor.
Ainda, na visão dos autores, a utilização de estratégias compreende questões
linguísticas e extralinguísticas, as quais são utilizadas constantemente durante a
produção de sentidos. Nas palavras dos autores,
usuários da língua sempre manipulam estruturas de superfície,
palavra, frase e orações, informações pragmáticas do contexto assim
como dados interacionais, sociais e culturais. Isto é, um usuário da
língua tentará efetivamente avaliar os significados das partes de
discurso, corresponder referência, funções pragmáticas ou valores de
30
Processamento descendente, ou top-down, é uma abordagem não linear, que faz uso intensivo e
dedutivo de informações não visuais e cuja direção é da macro para a microestrutura e da função para a
forma. Processamento ascendente, ou bottom-up, faz uso linear e indutivo das informações visuais,
linguísticas, e sua abordagem é composicional, isto é, constrói o significado por meio da análise e síntese
do significado, das partes (KATO, 1999, p. 50).
71
atos de fala do discurso assim como outras funções interacionais,
sociais e culturais. (DIJK; KINTSCH, 1983, p. 78)
Ou seja, as estratégias utilizadas por qualquer leitor ao interagir com um texto
envolvem o controle, consciente ou não, de todos os conhecimentos prévios (já
explicados na seção anterior do presente trabalho de tese). Isso porque as estratégias
representam o conhecimento procedimental que se tem sobre a compreensão do
discurso como um conjunto aberto de opções (KINTSCH, DIJK, 1983) das quais o
usuário serve-se para estabelecer um conteúdo global para o texto (superestruturas).
Para os autores, essas estratégias precisam ser aprendidas e reaprendidas até serem
automatizadas.
Solé (1998) também argumenta sobre a necessidade da aprendizagem das
estratégias em idade escolar. São elas que vão guiar a forma como o leitor realiza a
representação dos diversos textos que se propõe a ler. Elas devem ser ensinadas de
forma consciente pelo professor, que demonstra a forma pela qual elas são utilizadas
para estabelecer sentidos textuais. Para a autora, ainda, o ensino dessas estratégias
compreendem a utilização de indicadores linguístico-textuais (como os títulos,
subtítulos, palavras específicas) e também de previsões, hipóteses, confirmações
baseadas nos conhecimentos extralinguísticos do leitor. Solé (1998) afirma também que
tais estratégias não são rígidas como um conjunto fixo de regras que deve ser seguido
com rigor no currículo escolar. Ao contrário, são procedimentos de ordem elevada que
envolvem o cognitivo e o metacognitivo e não podem ser consideradas como receitas
infalíveis, porque são individuais. Ou seja, são construções de procedimentos gerais.
Kato (1999) também argumenta sobre a necessidade dos leitores aprenderem
questões linguísticas e extralinguísticas associadas à construção de estratégias para a
leitura. Para a autora, a leitura pode ser entendida como um conjunto de habilidades que
envolvem estratégias de vários tipos. Essas habilidades seriam: a) encontrar parcelas
(fatias) significativas do texto; b) estabelecer relações de sentido e de referência entre
certas parcelas do texto; c) construir coerência entre as proposições do texto; d) avaliar a
verossimilhança e a consistência das informações extraídas; e) inferir o significado e o
efeito pretendido pelo autor (KATO, 1999, p. 107). Para que tais atividades sejam
realizadas, o leitor cria suas próprias estratégias e aos poucos as automatiza tornando-se
um leitor mais proficiente.
Em suma, a leitura de um texto para produzir sentidos ou para compreender as
ideias
ali
presentes
envolve,
de
fato,
a
aprendizagem
de
estratégias
e,
72
consequentemente, o controle de ações do leitor. Deve-se ressaltar, porém, que as
estratégias são construções individuais que demandam todos os conhecimentos que o
leitor tem para a construção de sentido, ou seja, a utilização de conhecimentos prévios
(linguísticos, textuais e de mundo) e, portanto, cognitivos, em associação à construção
de ações conscientes lideradas por decisões do leitor, as quais são metacognitivas. Neste
sentido, destaca-se que, no processo estratégico, não há um sucesso garantido na
representação e nem uma única representação do texto. As estratégias aplicadas são
como hipóteses de trabalho aplicadas sobre a estrutura e significado de fragmentos de
texto, e estas podem ser desconfirmadas por processamentos adicionais (DIJK;
KINTSCH, 1983).
No capítulo 2 desse trabalho, foca-se a discussão sobre a competência
comunicativa que seria a forma como o sistema linguístico é constituído no uso da
língua e como ele é codificado. Uma das dimensões da competência comunicativa
envolve justamente o uso de estratégias para estabelecer a comunicação e recuperar
sentidos, o que se denomina competência estratégica (cap. 2.1.4) e é o que se vai a
explicar no próximo capítulo.
Destaca-se aqui que nessa pesquisa procura-se considerar tanto estratégias
cognitivas quanto metacognitivas para a construção de sentidos, focando-se a maneira
pela qual o leitor seleciona marcações linguísticas (palavras-chave) para interagir com o
texto e a maneira pela qual ele fornece a essas marcações os mais variados sentidos,
procurando concentrar ali sentidos textuais gerais. Admite-se o fato de que leitores
podem usar as palavras-chave como uma estratégia de compreensão textual, o que os
auxilia na construção de sentido para o texto. Isso porque ao selecionar a palavra-chave
o leitor ativa toda a sua carga de conhecimentos prévios (linguísticos, textuais e de
mundo) e os utiliza para interagir com o texto.
73
2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS.
Viu-se pela discussão apresentada no cap. 1, que a língua, por meio de textos, é
capaz de demonstrar sentidos que o leitor precisa reconhecer no processo de leitura e
interpretação. Assim, procura-se agora discutir as formas pelas quais o sistema
linguístico é capaz de construir sentidos a partir das relações estabelecidas entre seus
componentes (intra e extra língua). De que maneira as formas escolhidas (palavras,
frases, orações, parágrafos e discurso) por um autor para produção de um texto
constroem e revelam sentido textual? Ou seja, quais seriam os aspectos presentes na
língua e dominados pelos usuários que os levam a compreender e produzir expressões
linguísticas?
Assume-se que a língua, enquanto meio de comunicação entre sujeitos, possui
características que permitem a comunicação e que atende aos objetivos dos usuários na
interação (vide seção 1.1). Isso significa que, por meio da língua, os usuários realizam
ações, tais como convencer, reclamar, pedir, desculpar-se etc., as quais se efetivam a
partir de um sistema que codifica várias dimensões – tanto linguísticas quanto
extralinguísticas – dessas ações e da comunicação em si.
Para Halliday (1985), a língua é um recurso que os falantes têm para construir
significados realizando seleções de determinadas expressões e suas organizações, as
quais se enquadram em um ambiente e atendem a um conjunto de possibilidades. Para o
autor, os enunciados da língua visam o cumprimento de três objetivos principais de
produção da língua(gem)31:
a) Ideacional: os enunciados servem para a expressão de um conteúdo e um
objetivo específicos. A organização estrutural das frases permite que se
identifique o conteúdo interno e qual o objetivo do autor. É nesse nível que
Halliday propõe que sejam identificados quais os processos (ações sendo
desenvolvidas) e os participantes (o que e/ou quem está envolvido nas ações);
b) Interpessoal ou interacional: enunciados servem para estabelecer e manter
relações. Essa função compreende o fato de que os usuários da língua trocam e
negociam significados com o intuito de manter a comunicação ativa e alcançar
31
A obra (HALLIDAY, 1995) foi consultada em inglês e as traduções são de minha autoria. O autor
utiliza do termo language, o que pode significar tanto língua quanto linguagem. Optou-se, aqui, pelo uso
de língua(gem) visto que tanto a língua quanto a linguagem são usadas para cumprir com os objetivos de
produção expostos.
74
efetivamente a interação entre dois indivíduos situados em uma comunidade e
mediados pela língua;
c) Textual: enunciados servem como um suporte para fazer ligações com os
próprios enunciados e com as características da situação comunicativa. Isso
significa dizer que a estrutura temática32 das orações compõe o caráter de
mensagem do texto, indicando de que se fala (tema) e o que se fala (rema) sobre
isso. É na composição das ligações entre essas mensagens que o texto se
solidifica criando uma unidade de sentido genérico capaz de ser extraído pelos
usuários.
Sendo assim, a análise linguística de um texto contribui para sua compreensão
porque capacita a mostrar como e porque o texto significa o que significa (HALLIDAY,
1985), e ainda capacita a dizer se o texto é bem sucedido ou fracassa em seus objetivos,
ou se é capaz de ligar características linguísticas a um contexto de situação e de cultura.
Para Halliday (1985), o texto deve ser considerado como uma unidade semântica e não
gramatical. No entanto, ele destaca que os significados são construídos por meio das
palavras e sem uma gramática – em outros termos sem uma teoria sobre isso - não há
maneiras de tornar a interpretação do texto explícita (HALLIDAY, 1985).
Nesse sentido, a análise linguística deve permitir o encontro dos sentidos
presentes nas palavras de um texto. Savignon (1997) afirma ainda que a Linguística se
subdivide em dois itens: a língua e a consciência da língua. Para a autora, o primeiro
conceito – a língua - está estritamente ligado às formas de comunicação pertencentes às
comunidades. Por sua vez, a comunicação é determinada pelos sentidos construídos
socialmente num compartilhamento de significados que, aos poucos, se refletem nas
mudanças sociais e, consequentemente, nas formas de interação. Ela afirma que língua
é cultura33 em movimento, uma combinação de significados que responde e influencia a
mudança social.
Sobre o segundo conceito - a consciência linguística - Savignon (1997) afirma
que essa extrapola a questão do código e concentra-se no reconhecimento de diferentes
aspectos, tais como: os recursos linguísticos e a compreensão de como a língua é usada
para negociar e criar sentidos; as formas linguísticas, as maneiras de construção do
discurso e compreensão do poder da língua; os direitos numa sociedade multicultural e
multilingual.
32
33
Explica-se mais sobre a estrutura temática e na relação tema-rema na seção 2.2.3 deste trabalho de tese.
O conceito de cultura será discutido na seção 2.2.2
75
Sendo assim, a língua sofre uma influência direta de fatores sociais, e o usuário
precisa desenvolver habilidades que permitam o uso da língua em correlação a tais
fatores socioculturais. No entanto, a maneira como essa língua é utilizada pode ser
refletida de forma diferenciada dentro dos estudos linguísticos.
Uma dessas diferenças de percepção conceitual reside no termo “competência”.
A partir dos estudos gerativistas de Chomsky (1965), tal conceito tem se alterado e foi
(re)construído diferentemente por outros autores que corroboram ou se opõe à visão
gerativa. Visto que esse é um conceito primordial para a construção deste trabalho,
expõe-se na seção seguinte qual a visão de competência para este trabalho.
2.1 O CONCEITO DE COMPETÊNCIA
Chomsky (1965), ao realizar seus estudos, procurou investigar as intuições e o
conhecimento que o falante tem sobre o sistema linguístico que o permite se expressar
em qualquer idioma, em qualquer situação de fala, e passou a chamar esse
conhecimento de ‘competência’. Ou seja, para o autor, o usuário já nasce com uma
marca genética que o capacita a construir a sua competência, já que o aprendizado
linguístico é espontâneo, bastando a exposição a uma língua. Para ele, “competência é o
conhecimento que o falante-ouvinte possui da sua língua” (CHOMSKY, 1965, p. 84,
grifos do autor). Por outro lado, o autor admite que a língua tem um lado pragmático,
que permite que os usuários a utilizem de acordo com suas necessidades momentâneas
e individuais, o que ele chama de performance e a conceitua como “o uso efetivo da
língua em situações concretas” (CHOMSKY, 1965, p. 84). No entanto, ele procura
demonstrar que sua preocupação está na determinação de um sistema subjacente de
regras dominado pelo falante ouvinte e não elege a performance como objeto de
estudos, embora a utilize como forma de observação do sistema 34.
Em outros termos, na visão de Chomsky (1965), a competência é uma
característica do falante-ouvinte ideal e a preocupação do linguista deve ser a sua
descrição a partir das exposições feitas nas combinações das formas linguísticas. Em
suas palavras: “a gramática de uma língua particular deve ser completada por uma
gramática universal que dê conta do aspecto criativo do uso da linguagem e que formule
as regularidades profundas que, por serem universais, são omitidas da gramática
34
Deve-se notar, no entanto, que a definição de competência proposta por Chomsky em 1965 já sofreu
várias alterações, estando, no momento, voltada para as questões biológicas da linguagem.
76
propriamente dita” (CHOMSKY, 1975, p. 86).
Assim, o pesquisador deve estar
preocupado com a descrição do que existe como realidade mental do sujeito que o
permite utilizar as formas linguísticas em associação.
Hymes (1995), de certa forma, se opõe ao pensamento gerativista proposto por
Chomsky (1965), elegendo para seus estudos a maneira como a língua se dá na
realidade e estudando, além dos aspectos gramaticais, também os culturais, sociais e
discursivos. Para Hymes (1995), a competência do falante está relacionada ao modo
como se utiliza a língua para interagir com os outros a partir de características próprias
da língua e das atitudes a ela relacionadas. Sendo assim, o usuário não nasce com um
dispositivo inato para a aquisição da língua, mas aprende a usá-la e a realizar atos de
fala35, tomando parte em interações linguísticas bem sucedidas e avaliando seus avanços
por meio de outros. Na visão de Hymes, é esse desenvolvimento da língua em uso que
o linguista deve estar preocupado em descrever e compreender.
Na oposição a Chomsky, Hymes (1995) constrói o conceito de competência
diferentemente da ideia gerativista. Na concepção do autor, o conceito está ligado à
noção de habilidade de usar o conhecimento das regras abstratas de uma língua nas
correspondências entre sons e significados de forma social e culturalmente apropriada.
O autor propõe então o conceito de competência comunicativa que envolve não só um
sistema de regras linguísticas, mas também um sistema de regras do uso da língua pelo
falante.
Hymes (1995) afirma ainda que a participação da língua na vida social é positiva
e produtiva, pois existem regras de uso sem as quais as regras gramaticais seriam inúteis
(HYMES, 1995). Pode-se dizer, então, que as realizações linguísticas dos falantes
compõem-se da forma linguística em si juntamente aos atos por ela realizados. Dentro
do processo de aquisição de uma língua, o usuário adquire não somente o conhecimento
da organização das orações, mas também um conhecimento de um conjunto de formatos
sociais, culturais e discursivos em que elas podem ser utilizadas. Para o autor, a
competência comunicativa é então definida como capacidade individual de uso da
língua em termos de conhecimento e de habilidade.
Elege-se para este trabalho de tese a proposta de competência comunicativa de
Hymes (1995), na qual aspectos linguísticos são utilizados em associação a aspectos
culturais, sociais e discursivos produzindo sentidos para um texto.
35
Os atos de fala, na visão de Searle (1995), são ações específicas realizadas pela linguagem as quais
dependem do objetivo do falante, tais como solicitar, desculpar-se, abrir uma reunião, queixar-se etc.
77
2.2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA
Conforme discutido acima, a competência, na visão de Hymes, inclui a
habilidade de usar as formas da língua em contextos adequados para produzir
comunicação. Assim, competência comunicativa seria o conhecimento que o usuário
tem sobre a língua que o capacita a interagir com os outros a partir de características
próprias da língua - tais como as organizações linguísticas de frases, parágrafos, textos e
o contexto em que ocorrem - e das atitudes a ela relacionadas, construindo e negociando
sentidos, juízos de valor e características socioculturais (HYMES, 1995).
Savignon (1997) afirma que a língua é comunicação e, nesse sentido, todas as
formas de uso da língua - no caso deste trabalho de tese, textos escritos - são meios de
se estabelecer comunicação. A autora, mesmo falando mais especificamente de uma
perspectiva de aprendizagem de língua estrangeira, admite que o desenvolvimento da
competência comunicativa é válida para falantes nativos de uma língua, e que é
necessário que se pense nas formas de garantir a sua evolução contínua para aumentar
as formas com que os indivíduos se comunicam. Vale lembrar que essa afirmativa é útil
também para a questão da leitura, uma vez que, conforme explicado no cap. 01, esse
processo é interativo, contextual e depende da negociação e construção dos sentidos
para que haja compreensão da informação textual.
Sobre a maneira como a língua é capaz de garantir comunicação e construção de
sentidos pelos usuários, Canale (1995) afirma que comunicação é a troca e negociação
de informações entre pelo menos dois indivíduos por meio do uso de símbolos verbais e
não verbais de modos orais, escritos e visuais e de processos de produção e
compreensão (CANALE, 1995). O ponto de vista adotado pelo autor é de que tanto o
conhecimento quanto a habilidade subjazem à comunicação real de modo sistemático e
necessário, sendo que ambos estão incluídos na competência comunicativa. Para ele, a
competência comunicativa deve ser desenvolvida no sentido de garantir algumas
características básicas da comunicação. O autor afirma que a atividade verbal
(CANALE, 1995):
a) é uma forma de interação social e, em consequência, é adquirida e usada a
partir de tal interação;
b) implica um alto grau de imprevisibilidade e criatividade em forma e
conteúdo;
78
c) tem lugar em contextos discursivos e socioculturais que regem o uso
apropriado da língua – enquanto sistema primordial de comunicação - os quais oferecem
referências para a correta interpretação das expressões linguísticas;
d) realiza-se sob limitações psicológicas e outras condições como restrições de
memória, fatiga e distrações;
e) sempre tem um propósito;
f) implica em uma linguagem36 autêntica oposta à linguagem inventada dos
livros didáticos;
g) realiza-se com sucesso ou não a partir da análise de resultados concretos.
Percebe-se com isso que, para a comunicação, faz-se necessário a utilização de
uma série de conhecimentos e habilidades individuais para interagir com outros falantes.
Ou seja, a noção de competência comunicativa compreende o fato de que há
conhecimentos particulares os quais se ligam a conhecimentos sociais para construir
interação, comunicação e sentidos.
Savignon (1997) afirma que a importância de se considerar a competência
comunicativa na compreensão do uso das expressões linguísticas está justamente no fato
de se garantir aos aprendizes um uso significativo da língua. Para a autora, a produção e
interpretação de um discurso estão relacionadas às necessidades dos usuários (e
apresentam seus conhecimentos). Além disso, os significados se desenvolvem em uma
relação dinâmica entre leitores (ou ouvintes) e suas experiências e expectativas, fazendo
com que a construção organizacional do texto seja importante somente dentro de uma
perspectiva de demonstrar os sentidos construídos. A autora destaca, ainda, que o
usuário da língua37 precisa saber selecionar as expressões linguísticas e respectivos
encaixes gramaticais inseridos em um contexto para garantir o alcance de determinados
objetivos tanto na compreensão quanto na produção de enunciados durante a interação.
Isso garante que os propósitos funcionais e sociais da língua determinem as
características semânticas de um enunciado.
Hymes (1995) procura pensar o processo de descrição e análise linguística
considerando que, dentro dele, as regras de uso social da linguagem devem estar
incluídas a fim de garantir uma descrição real para a maneira como os usuários
36
Para este trabalho, assume-se a noção corrente de que linguagem é o sistema mais amplo de
comunicação entre os seres humanos, a partir do qual a língua, com seu sistema específico de
funcionamento, é organizada (LYONS, 1977).
37
No caso da discussão realizada por Savignon (1997), esses usuários são os aprendizes de uma língua
estrangeira. Tal fato não anula a necessidade exposta pela autora de se compreender a seleção das
expressões linguísticas ligadas aos objetivos que se pretende com elas.
79
manipulam a língua para atingir determinados objetivos na interação. Para o autor, o
estudo comparativo que se faz do papel da língua mostra que a natureza e avaliação da
capacidade linguística variam de forma transcultural; inclusive as línguas que se
consideram parte de uma mesma língua – tais como as variações linguísticas ou os
dialetos - dependem em parte dos fatores sociais (HYMES, 1995).
O autor destaca ainda que, ao adquirir a língua, o usuário apreende não apenas o
conhecimento sobre suas formas de organização, posições sintáticas, possibilidades de
uso em uma determinada estrutura, mas também um conhecimento de um conjunto de
padrões e possibilidades em que tais formas podem ser utilizadas.
Destaca-se, então, a importância de se refletir, neste trabalho, sobre a utilização
do conhecimento do leitor na interpretação textual relacionado à sua competência
comunicativa: na identificação e escolha das palavras-chave, o leitor estaria fazendo
uma tentativa de usar a competência comunicativa na construção dos sentidos textuais,
seja pela posição sintática da palavra, pela posição textual, pelos sentidos discursivos ou
pela ativação de conhecimentos genéricos e sociais do aprendiz.
Salienta-se também que a noção de competência comunicativa se configura
como uma maneira de observar a construção dos sentidos da informação – no caso deste
trabalho, informação textual. Isso porque a junção de elementos linguísticos e
pragmáticos faz com que as construções de sentenças sejam analisadas de modo a se
perceber como os sentidos relacionam-se às formas escolhidas para construir um texto.
Tais questões linguísticas e pragmáticas são divididas em 4 dimensões, caracterizando o
conhecimento subjacente individual e a habilidade de uso da língua dividindo-se em
(HYMES, 1995; LLOBERA, 1995):
a) o grau de possibilidade: o que é possível construir usando o sistema
linguístico do indivíduo (léxico, sintaxe, morfologia, fonologia etc...). Ou seja, “se e
em que grau algo é formalmente possível” (HYMES, 1995, p. 37);
b) o grau de viabilidade: o que é possível construir dada a capacidade
psicolinguística do indivíduo (ex.: memória e percepção do sujeito). Isto é, “se e em
que grau algo é factível a partir dos meios de atuação disponíveis” (HYMES, 1995,
p. 37);
c) o grau de adequação: o que é conveniente dada a natureza do
acontecimento comunicativo (características do lugar, posição dos participantes,
fins, ato, instrumentos etc). Em outros termos, “se e em que grau algo é apropriado
em relação ao contexto em que se utiliza e se avalia” (HYMES, 1995, p. 37);
80
d) o grau de ocorrência: o que pode ou não ocorrer dada a possibilidade,
viabilidade e adequação de ocorrência ou a sua falta. Nas palavras de Hymes, (1995)
“se e em que grau algo se dá na realidade e, de fato, efetiva-se e a que
consequências ele leva” (HYMES, 1995, p. 37).
Percebe-se, assim, que o modelo de Hymes leva em consideração aspectos da
competência comunicativa em, pelo menos, quatro pontos diferentes: a habilidade do
uso das formas da língua, a dimensão mais ampla do controle do usuário da língua, a
viabilidade e a perspectiva etnográfica do contexto. Há uma combinação entre forma,
função e contexto social, fazendo com que o uso adequado da língua leve consigo tanto
a formulação estrutural de um enunciado para alcançar o objetivo, quanto o
reconhecimento das condições (contexto) e da adequação.
Autores que trabalham com a perspectiva da competência comunicativa
(CANALE, 1995; HYMES, 1995; HORNBERGER, 1995; LLOBERA, 1995;
SAVIGNON, 1997) afirmam, a partir dessas quatro dimensões, que a competência
comunicativa efetivamente realiza-se, e deve ser observada também, no contexto
pedagógico, em quatro componentes:
1) Competência gramatical38: compreensão de como os elementos da língua
combinam-se sistematicamente. Essa competência está ligada à habilidade
do uso dos componentes linguísticos (lexicais, morfológicos, sintáticos,
fonológicos), assim como componentes não verbais que auxiliam na
construção das expressões linguísticas;
2) Competência sociolinguística: compreensão do contexto social no qual a
língua é usada – papéis dos participantes, informações compartilhadas,
funções da interação;
3) Competência discursiva: a conexão realizada pelo uso da língua com uma
série de sentenças e enunciados para formar um todo dotado de unidade de
sentidos. Aqui estariam incluídas as habilidades de estabelecimento de
coesão e coerência para um texto;
4) Competência estratégica: as estratégias utilizadas pelo usuário para
compensar o conhecimento deficitário de algumas regras da língua, o que
pode incluir a paráfrase, a hesitação, a mudança em estilos e formas de
38
Autores que trabalham com competência comunicativa denominam essa dimensão de competência
gramatical. Para esse trabalho, admite-se que tal competência inclui aspectos linguísticos como sintáticos,
semânticos e também lexicais. Optou-se pela não utilização do termo competência linguistica para que
não se confunda com o termo utilizado por Chomsky na perspectiva gerativista.
81
registro, ou a repetição. Tal competência vai ser dependente do nível das
competências anteriores, pois a depender do tipo de conhecimento falho, o
usuário cria estratégias de compensação desse conhecimento em particular.
Destaca-se, assim, que a noção de competência comunicativa compreende todas
as formas de uso da língua que permitem interação, e, consequentemente, a leitura de
um texto. É na adequação das formas da língua ao uso permitido por ela que o leitor
pode, de fato, construir relações de sentido. Desse modo, Hornberger (1995) explicita
que a competência comunicativa é capaz de descrever o conhecimento e a habilidade
dos indivíduos para o uso adequado da língua nos acontecimentos comunicativos no
interior das comunidades linguísticas. Essa competência é variável dentro das relações
entre indivíduos (de acontecimento a acontecimento), através dos indivíduos e por
intermédio das comunidades falantes, e inclui tanto regras de uso quanto regras
linguísticas. (HORNBERGER, 1995)
A produção e compreensão de um texto39 são, de fato, um tipo de ação ou
acontecimento comunicativo. Portanto, é necessário que se compreenda como a
competência comunicativa é produzida para garantir a construção de sentidos nas
relações linguísticas estabelecidas em um texto. Fala-se, na sequência do trabalho, sobre
cada uma das dimensões da competência comunicativa, explicando seu funcionamento e
sua influência na produção e compreensão de expressões linguísticas em um texto.
2.2.1 A competência gramatical
De acordo com Canale (1995) a competência gramatical está relacionada ao
domínio do código linguístico verbal e não verbal. Nela estão incluídas as
características formais e informais da língua tais como o vocabulário, a formação das
palavras e frases, a pronúncia, a ortografia e a semântica. Essa competência centra-se
diretamente no conhecimento e na habilidade necessários para se empreender e
expressar adequadamente o sentido das expressões.
Halliday (1985) propõe uma linguística de base conceitual na qual as formas da
língua seriam utilizadas para um determinado fim, e não como um fim em si mesmas. O
autor afirma que existe uma multiplicidade funcional que se reflete na organização
interna da língua e a investigação da estrutura linguística revela, de algum modo, as
39
Cf. conceito de texto na seção 1.2.
82
várias necessidades a que a linguagem serve. Pode-se dizer que, nessa abordagem, a
pluralidade funcional se constrói claramente na estrutura linguística e forma a base de
sua organização lexical, semântica e sintática.
Há uma percepção, assim, de que o uso das formas é definido também por
razões pragmáticas. A organização das palavras na frase é vista na sua função de
organização da informação. Segundo Halliday (1985) a gramática codifica o significado
sem relacionar pequenas porções uma a uma. Ao contrário essa codificação se dá por
meio do isolamento de variáveis e de suas possíveis combinações na consecução de
funções semânticas específicas (HALLIDAY, 1985). Para o autor, as escolhas relativas
a elementos e posições gramaticais revelam sentidos diferentes. Em outros termos, os
sentidos dependem, de certa forma, da escolha de um item particular, do seu lugar no
sintagma, da sua combinação com outro elemento ou da sua organização interna. Então,
o que a gramática faz é separar todas essas possíveis combinações e ordená-las em suas
funções semânticas específicas.
Dik (1997), baseado no modelo funcionalista de Halliday, propõe que as
expressões linguísticas movem intenções e interpretações dos usuários da língua
permitindo interação. O modelo abaixo é proposto por Dik (1997):
FIGURA 1: Modelo de interação verbal40.
Informação pragmática
do falante
Informação pragmática do
destinatário
Formas do falante
Construtores do destinatário
INTENÇÃO
antecipa
reconstrói
INTERPRETAÇÃO
Expressão linguística
Para o autor, “a relação entre a intenção do falante e a interpretação do
destinatário é mediada, mas não estabelecida pela expressão linguística” (DIK, 1997, p.
08). Com base na figura 1, nota-se que as expressões selecionadas para construir um
40
In: DIK, 1997, p. 08
83
enunciado ativam duas ações diferentes: uma em relação ao objetivo do locutor, ou às
suas intenções, e outra em relação à recepção dada pelo interlocutor, ou à sua
interpretação. Assim sendo, o processo de produção e compreensão dos enunciados tem
uma base comum: a expressão linguística, a qual ativa conhecimentos de ambos
usuários em interação, incluindo seus conhecimentos pragmáticos que estabelecem as
possibilidades de uso da expressão. Isso quer dizer que as expressões linguísticas e as
formas de suas combinações são capazes de ativar representações mentais dos usuários,
ou os esquemas de conhecimento e suas relações41.
Para Dik (1997), a expressão linguística é uma função da intenção do locutor,
sua informação pragmática, e sua antecipação da interpretação do interlocutor, enquanto
a interpretação do interlocutor é uma função da expressão linguística, a informação
pragmática e a sua conjuntura sobre o que pode ser a intenção comunicativa do falante
(DIK, 1997).
O uso das expressões linguísticas selecionadas para a comunicação organiza,
antecipa, expõe possíveis interpretações entre os usuários da língua, pois ativam, entre
outras, informações pragmáticas as quais se encadeiam no sistema linguístico. Tanto a
produção quanto a interpretação possuem em comum a expressão linguística, base do
conhecimento gramatical dos falantes para que sentidos sejam (re)construídos e a
interação aconteça.
Moura Neves (1997) destaca que é na percepção das funções dos elementos
linguísticos em funcionamento que se pode compreender as relações ali estabelecidas e
as possíveis interpretações:
o exame dos itens de uma classe, vistos em seu funcionamento (em
sentido multifuncionais) leva à explicitação dos diversos processos
existentes na língua. O exame dos substantivos, por exemplo,
exploraria: a semântica vocabular (referenciação), a semântica das
relações (participação em eventos), a sintaxe (posição e função na
estrutura), a pragmática (organização da interação em termos de
definição de papeis na interlocução), a composição textual (a
organização da mensagem com unidades em termos de delimitação e
extensão, independem das unidades sintáticas) (MOURA NEVES,
1997, p. 66).
Desse modo, para que os sentidos textuais sejam construídos, há uma
combinação de pequenos significados construídos e relacionados nas frases, orações,
41
Vide cap. 1.4.3.1 sobre a noção de esquemas
84
parágrafos e discurso. Eles estão entrelaçados em uma teia de conexões, tecendo fios
semânticos (CAVALCANTI, 1989), os quais são identificados pelo leitor na
compreensão. Para que a competência gramatical seja desenvolvida, tais fios devem ser
reconstruídos pelo leitor por meio da identificação dos significados ali expressos e suas
ligações.
Na organização e construção dos sentidos, as classes das palavras e as posições
dos elementos na sentença são fundamentais. Isso porque as palavras têm funções
específicas nas frases ou sintagmas em que atuam e classificam-se de acordo com
características mais ou menos parecidas, tais como a posição no sintagma e a função
que exercem na construção de sentido (HALLIDAY, 1985). Isso significa que o foco
principal estaria na estrutura gramatical sendo explicada de acordo com os sentidos por
elas produzidos.
Halliday (1985) esclarece a sua proposta funcional concentrando-se na
explicação de unidades tais como os sintagmas. O autor propõe a figura abaixo para a
divisão dos sintagmas:
FIGURA 2 - Divisão dos sintagmas segundo Halliday (1985) 42
substantivos
Nominais:
comuns
próprios
pronomes
adjetivos
numerais
Determinantes
Verbo
Verbais:
Preposição
Adverbiais:
advérbio
conjunção
lexicais
auxiliares
Formas verbais43
Para o autor, esses grupos de palavras seriam os elementos, (ou, como ele
denomina, partes do discurso), da gramática funcional e não podem ser representados na
forma de estruturas completas separadas, mas, ao contrário, contribuem parcialmente
para uma linha estrutural única da oração.
Os grupos expostos na figura 2 devem ser analisados no sentido de perceber as
relações lógico-semânticas que mantém com as palavras a que se combinam. Ou seja,
42
43
In: Halliday (1985), p. 191
Do inglês: finite verbs (tradução minha)
85
há um motivo para o qual a organização dos sintagmas é utilizada pelo falante para
fazer sentido.
Como se percebe na figura acima, Halliday (1985) discute três grupos principais:
i) um que se concentra ao redor do substantivo, grupo nominal; ii) outro que se
concentra ao redor do verbo, grupo verbal; iii) e outro ainda que se concentra ao redor
do advérbio, grupo adverbial. A partir desses três grandes grupos, as classificações e
ocorrências linguísticas são analisadas tendo como base a função na sentença e a forma
como produzem comunicação. O autor procura demonstrar também que as preposições
e conjunções em algum ponto da oração têm sua função demarcada em relação às
demais categorias lexicais e também merecem atenção do ponto de vista funcional.
Na perspectiva funcionalista, a classificação é sustentada pelas suas funções
exercidas pelas palavras e pela forma como essas se posicionam para construir sentidos
e informações. Assim, num âmbito mais geral, elementos mais fixos (classe fechada,
tais como preposições, artigos, conjunções) se ligam aos elementos mais variáveis
(classe aberta, tais como substantivos, adjetivos e advérbios – LYONS, 1977) para
organizar os sintagmas e frases. Talvez seja exatamente esse o motivo pelo qual a
maioria dos sujeitos estudados neste trabalho tenha escolhido elementos de classe aberta
como palavra-chave (palavras que estão categorizadas nos três grupos principais
expostos por Halliday, 1985). As palavras de classe aberta auxiliam na organização do
conteúdo semântico das sentenças sem excluir a possibilidade de elementos de classe
fechada também auxiliarem na construção de sentidos. Ainda, tais palavras ocupam
funções sintáticas proeminentes na organização das sentenças, tais como sujeito, objeto,
predicado, ou, como veremos adiante no cap. 4, na estrutura tema-rema ou na
informação dado-novo.
Para Halliday (1985), uma propriedade fundamental da língua é que ela capacita
os seres humanos a construir um quadro da realidade, a fim de dar sentido à sua
experiência e àquilo que ocorre ao seu redor. A oração é a unidade gramatical mais
significante, porque ela corporifica um princípio geral para modelar a experiência, isto
é, o princípio de que a realidade é composta de processos.
Nesse sentido, os sistemas de significação geram estruturas léxico-gramaticais
que são plausíveis: há, então, verbos e substantivos para enquadrar a análise da
experiência tanto de processos quanto de participantes, formando um todo integrado
entre os elementos e os significados presentes no texto. Os conceitos de processo e
participante, na compreensão desse autor, são categorias semânticas que explicam, de
86
maneira bem ampla, como os fenômenos do mundo real são representados como
estruturas linguísticas. Ou seja, há um sistema de transitividade em que os processos são
as ações que são realizadas pela língua caracterizadas semanticamente no uso de verbos.
Já os participantes são aqueles que estão diretamente envolvidos no processo, pois se
referem diretamente ao verbo e realizam uma ação por meio desse verbo.
É o sistema de transitividade que, para Halliday (1985), constrói o mundo da
experiência em um conjunto manejável de tipos de processos que são reconhecidos na
língua e a estrutura pela qual eles são expressos. O autor afirma que a estrutura
semântica básica para a representação de processos consiste de três componentes: o
próprio processo, os tipos particulares de função participante e as circunstâncias
associadas ao processo, na oração. Cada um desses acontecimentos deve ser
caracterizado de acordo com a sua função e expressam um determinado significado. Os
processos geralmente são realizados pelo grupo verbal, os participantes pelo grupo
nominal e as circunstâncias pelo grupo adverbial ou preposicional. O autor classifica os
processos em:
1) Processos materiais: ato de fazer ou realizar algo como em:
a. O prefeito dissolveu o comitê 44
(os participantes são um agente – o prefeito - e um objetivo45 – o comitê);
2) Processos mentais: ato de sentir, pensar, perceber, passar por uma experiência,
como em:
b. Ela gostou do presente.
(o participante que sente o processo precisa ser humano e o outro pode ser tanto
um objeto quanto um fato);
3) Processos relacionais – processos de ser, estar, tais como:
c. Ela é uma linda mulher.
(pode ser intensivo em que o participante é alguém ou algo; circunstancial em
que há uma relação de tempo, lugar, maneira, causa, acompanhamento, questão
ou papel; possessivo em que há uma relação de posse);
4) Processos comportamentais – processos fisiológicos ou de comportamento
psicológico (ex. sonhar, tossir, respirar, sorrir). Ex.:
d. Ela estava chorando por mim;
44
Os exemplos foram retirados da obra de Halliday (1985) e foram traduzidos do inglês (traduções de
minha autoria).
45
Do inglês: goal. (tradução minha)
87
5) Processos verbais – processos de dizer algo (ex. dizer, falar, proferir etc.), tais
como o que segue:
e.
João disse que estava com fome;
6) Processos existenciais – algo existe ou acontece, como em:
f. Tem uma festa hoje à noite46.
Para Halliday (1985), é na interposição dos elementos envolvidos no processo
que os sentidos são construídos. Ou seja, a organização da frase revela, além de uma
combinação de elementos lexicais, uma relação de processos semânticos entre esses
elementos que possibilitam a codificação de sentidos ali associados. Esses sentidos
constroem a função do ato comunicativo do falante e regulam a interpretação do
ouvinte. O autor propõe o seguinte quadro para resumir os processos, significados e
participantes:
QUADRO 2 - Relação entre processos e participantes47.
Tipo de processo
Material:
Ação
Evento
Comportamental
Significado da categoria
Fazer
Fazer
Acontecer
Comportar-se
Mental
Percepção
Afeição
Cognição
Verbal
Sentir
Ver
Sentir
Pensar
Dizer
Relacional
Atribuição
Identificação
Existencial
Ser
Atribuir
Identificar
Existir
Participantes
Agente
Objetivo
Aquele que se comporta
(behaver)
Experienciador
Fenômeno
Falante
Alvo
Símbolo (token), alvo
Carregador, atributo
Identificado, identificador
Existente
Na visão do autor, os sentidos textuais vão aos poucos sendo construídos por
meio da organização que os usuários fornecem à língua. Moura Neves (1997) demonstra
que há organizações no nível da frase e no nível do texto que atendem às funções da
linguagem propostas por Halliday (1985), tal como explanado no início deste capítulo.
Cada uma das funções atende a um nível de organização fazendo com que as relações
entre função, organização e sistema linguístico sejam assim estabelecidas:
46
47
O autor propõe isso a partir da estrutura da língua inglesa: verbo there to be.
In: HALLIDAY (1985, p. 131).
88
QUADRO 3 - Relações entre função, organização e sistema 48
FUNÇÃO
Ideacional
Interpessoal
Textual
ORGANIZAÇÃO
Dos significados
Da interação
Da informação
SISTEMA
Coesão
Relações humanas
Estruturação da informação
(dado/novo)
Percebe-se com os dois últimos quadros acima que há uma ligação constante
entre a maneira como os significados são codificados no sistema da língua e a forma
como eles organizam os sentidos gerais da comunicação. Ainda, a maneira como as
palavras são organizadas na função ideacional (carregar um conteúdo intencionado e se
organizar em processos e participantes) auxilia na construção das funções interpessoal e
textual da língua numa relação constante e intrínseca formando uma rede de relações.
O que se pode observar é que nessa explicação do funcionamento dos elementos
linguísticos há um aspecto fundamental: a língua codifica sentidos, intenções e permite
interpretações. Essa codificação seria o que os usuários armazenam como conhecimento
gramatical e os utilizam para efetuar ações em sua realidade. O conhecimento
linguístico seria o ponto de partida para ativar outros tipos de conhecimento a ele
atrelados, sejam esses conhecimentos culturais, sociais ou discursivos.
2.2.2 A competência sociointercultural
A segunda dimensão da competência comunicativa, na visão dos autores
estudados (HYMES, 1995, CANALE, 1995; HORNBERGER, 1995; SAVIGNON,
1997), seria a competência sociolinguística. Canale (1995) propõe que esse conceito
relaciona-se à identificação da medida em que as expressões são produzidas e
entendidas adequadamente em diferentes contextos sociolinguísticos, tais como a
situação social dos participantes, os objetivos, a interação e as normas e convenções da
interação.
Para o autor, a adequação dos enunciados está relacionada ao equilíbrio entre o
significado, a forma e o contexto. Em outros termos, os enunciados devem ser
48
In: Moura Neves (1997 p. 72).
89
compreendidos na medida em que um significado dado - incluindo funções
comunicativas, atitudes e proposições/ideias - é representado por meio de uma
configuração verbal/não verbal, que é característica em um contexto sociolinguístico.
De acordo com Kramsch (1993), o contexto é formado por pessoas em diálogo
uma com a outra, dizendo coisas sobre o mundo em que vivem e fazendo declarações
sobre elas mesmas e suas relações pessoais. Em meio a esse diálogo, há uma troca e
negociação de significados que pertencem ao estoque de conhecimentos gerais comuns
da comunidade e que desenham uma variedade de textos presentes e passados. Em
outros termos, contexto é a matriz criada pela língua enquanto discurso como uma
forma de prática social.
Partindo-se do princípio de que o contexto envolve pessoas, mundo em que se
inserem, troca de significados, conhecimentos da comunidade, o que, em processo
relacional, permite a formação de uma matriz de compreensão, pode-se dizer que o
contexto admite uma complexidade de elementos que contribuem para a construção de
sentidos na língua. Hornberger (1995) e Hymes (1995) propõem que o contexto seja
analisado diante do acrônimo SPEAKING49, sendo assim definidos:
S - Setting (lugar): lugar, hora, circunstâncias físicas e definição cultural da
ocasião;
P - Participants (participantes) - quem são os envolvidos e quais as
características e relações dos indivíduos no processo comunicativo;
E - Ends (fins): resultados esperados da interação e objetivos;
A - Act sequence (sequência dos atos): forma e conteúdo que a mensagem deve
ter para carregar sentidos pretendidos;
K - Key (entonação) – o tom e a maneira selecionados pelo usuário para
comunicar-se;
I - Instrumentalities (instrumentos) – canais e formas utilizadas para a realização
do ato de fala;
N - Norms (normas) – as regras de interação e interpretação necessárias;
G - Gender (gênero) – o gênero do texto escolhido para a interação tal como um
poema, mito, piada, conversa, conferência.
49
Optou-se por manter o termo original da obra em inglês (SPEAKING) pelo fato das traduções não
apresentarem um acrônimo específico no português que mantenha o sentido do termo. Sendo assim,
mantém-se o termo em inglês com a respectiva tradução (de minha autoria) para explanações.
90
Conclui-se, com a ideia de Hymes (1995), que contexto envolve tanto fatores
sociais (pessoas, lugares, comunidade de fala etc.) quanto fatores culturais
(comportamentos, intenções, regras culturais), a partir dos quais se pode propor uma
competência sociolinguística. Tal competência é crucial na interpretação de enunciados
por seu significado social – a função comunicativa e a atitude do usuário (p. ex. quando
uma expressão não está clara pelo seu significado literal pode-se interpretá-la a partir de
indicações não verbais, tais como o contexto sociocultural e gestos).
Nesse sentido, Scollon e Scollon (2001) indicam que as regras do contexto são
tão importantes quanto as regras linguísticas para a produção de sentidos textuais. Eles
chamam esse aspecto de ‘gramática de contexto’ e o definem como o elemento utilizado
pelos usuários da língua para compreender os sentidos dos atos de fala dentro das
circunstâncias em que ocorrem. Os autores procuram explicar as características
envolvidas nos fatores contextuais, e desenvolvem, nesse sentido, explicações mais
específicas que Hymes (1995) e Hornberger (1995). Eles destacam que a gramática de
contexto deve considerar sete elementos:
a) Cena: localização – saber que lugar é mais adequado para que determinados
objetivos da comunicação sejam atingidos (ex. se for uma reunião de
negócios deve acontecer provavelmente numa sala comercial e não no meio
de uma praça); tempo - saber qual o horário para a realização de um ato de
fala (ex. se for uma reunião de negócios para discutir políticas de empresa
ela deve acontecer em horário comercial); espaços - saber os espaços ou o
lugar ocupado pelo usuário no ato de fala (ex. o juiz, ao começar um
julgamento, deve estar sentado no lugar a ele apropriado. Ele não poderia
fazer isso na mesa de um bar); o tópico – criam-se expectativas sobre o que
se está falando durante um evento comunicativo (ex. numa reunião de
negócios não se espera a discussão do filme que foi assistido na noite
anterior. Caso isso aconteça e o chefe da reunião diga “Talvez seja melhor
nos concentrarmos nos pontos de pauta de hoje”, é provável que ninguém
mais fale no assunto); o gênero – reconhecer o tom e a forma que o ato
comunicativo deve tomar (ex. não se pode contar uma piada em meio à
discussão das políticas de uma empresa);
91
b) Entonação50 – o tom ou a maneira de uma comunicação (ex. um tom
relaxado de muitas risadas combina mais com uma festa do que com uma
reunião de negócios);
c) Participantes: quem são eles e que papéis eles apresentam;
d) Forma da mensagem: decidir o meio em que se veicula a mensagem
(televisão, telefone, voz, discurso, email etc.) Isso não é só uma questão de
meio utilizado, é também uma questão de conteúdo e estrutura social. (ex.
um acordo de negócios feito oralmente ou por telefone não tem valor legal
algum);
e) Sequência – a ordem em que os eventos devem ocorrer. É ela que define a
participação e a alternância dessa participação nos eventos comunicativos.
Eventos, principalmente os formais, têm uma agenda de acontecimentos que
ocorrem a partir dos atos de fala realizados (p. ex. se estivermos diante de
uma crônica que narre a rotina de uma aula de ensino básico, por exemplo,
espera-se encontrar ali a sequência dos eventos, tais como sinal de entrada,
chegada da professora, início da aula, alternância entre as falas professor e
aluno etc. Se essa sequência for quebrada o autor deve apresentar uma
intenção clara para isso para que o leitor possa compreender o texto);
f) Padrões de coocorrência: componentes contextuais que se associam durante
o acontecimento do ato de fala. (p. ex. o componente de gênero ‘piada’
geralmente acontece com a entonação de ‘humor’ (o que é esperado e
padronizado). Uma piada pode até ser contada de forma séria – p. ex., se
alguém se ofender, o tom de humor pode deixar de existir - mas isso seria um
resultado inesperado51).
Deve-se destacar que alguns desses componentes contextuais são manifestados
de forma explícita e outros permanecem implícitos. O usuário da língua, ao engajar-se
no evento comunicativo, procura tais elementos de contexto e os utiliza para construir
sentido. Por exemplo, se o leitor está diante da leitura de uma narrativa literária, esperase encontrar ali um tópico sendo narrado, a participação dos personagens em sequência,
50
Do inglês “Key” (chave) – tradução minha. Optou-se pelo uso da palavra ‘entonação’ por representar
melhor o sentido do termo nesse contexto.
51
Os autores denominam os fatores esperados de “marked” e os fatores inesperados de “unmarked”.
92
a localização adequada ao tópico discutido, a comunidade em que ela se realiza, entre
outros fatores contextuais que devem ser percebidos para que o texto faça sentido52.
Bakhtin (2009) afirma também que a língua configura-se de acordo com um
conjunto de contextos possíveis, nos quais os elementos linguísticos assumem uma
forma social e interacional. Para o autor, “na prática viva da língua a consciência do
locutor e do receptor (...tem a ver...) com a linguagem no sentido do conjunto de
contextos possíveis de cada forma em particular” (BAKHTIN, 2009 p. 98). Sendo
assim, para a construção de um ato comunicativo, há uma relação nítida e necessária
entre os elementos utilizados para compor um enunciado (competência gramatical) e o
contexto social e cultural em que ocorrem (competência sociolinguística).
Viu-se anteriormente que Halliday (1985) propõe que a linguagem tem uma
função interacional, ou seja, ela assume o papel de trocar informações, posições,
necessidades e objetivos entre os interlocutores. Ao usar a língua, o falante tem um
objetivo e um propósito e ele faz uso das expressões para deixar esse propósito claro.
No entanto, é na troca das expressões que esses objetivos são expostos e se
(re)constroem como uma oferta, uma reclamação, uma declaração, uma necessidade etc.
Halliday (1985) afirma que a língua funciona como um meio de alcançar recursos
especiais e essencialmente não linguísticos, tais como comandos ou ofertas. Por meio da
língua desenvolvem-se recursos léxico-gramaticais para declarações e questões os quais
servem como ponto de partida para uma série de funções. Assim, ao interpretar a
estrutura das sentenças pode-se ganhar uma compreensão geral da função que ela
apresenta na interação.
Reitera-se aqui que o contexto envolve tanto fatores sociais quanto culturais.
Assim, no interior da competência sociolinguística desenvolvida por Canale (1995),
Hymes (1995), Hornberger (1995), há um elemento importante e não trabalhado de
forma clara: a cultura. Celce- Murcia (2007) propôs, no mínimo, uma alteração na
terminologia de Canale (1995): que a terminologia competência sociolinguística seja
modificada para competência sociocultural. A autora faz isso mediante o
reconhecimento do fato de que há um conhecimento cultural anterior necessário para
interpretar e usar uma língua efetivamente.
Na visão da autora, a competência sociocultural refere-se ao conhecimento
pragmático do falante inserido em um momento cultural e em um contexto de
52
Cf. seções 1.4.3 e 1.4.3.1 sobre o conhecimento de mundo e a forma como este é formatado
cognitivamente em esquemas mentais que interagem durante a leitura.
93
comunidade específicos. Isso inclui o conhecimento de variação linguística com
referência às normas socioculturais da comunidade (CELCE-MURCIA, 2007). Ainda,
para a autora, os componentes dessa competência seriam:
a) Fatores contextuais sociais: idade, gênero, status, distância social e suas relações
uns com os outros, poder e afeição;
b) Apropriabilidade estilística: estratégias de polidez, adequação, sentido de
gêneros e registros;
c) Fatores culturais: conhecimento anterior do grupo ou comunidade, diferenças
dialetais e regionais, e consciência transcultural.
Assim, além daqueles elementos expostos acima por Hymes (1995), deve-se
destacar que no interior da competência comunicativa, ou mais especificamente da
competência sociolinguística, deve-se considerar a importância do conceito de cultura
(CELCE-MURCIA, 2007; SCOLLON;SCOLLON, 2001).
Para Almeida Filho (2011), a cultura sempre está em constante movimentação e
consiste nas crenças, conhecimentos, comportamentos, pensamentos, concepções de
uma comunidade. Nas palavras do autor,
cultura é para o homem o seu conjunto de crenças, conhecimentos e
técnicas, além de modos de pensar e agir formulados durante a história
de seu determinado grupo ou sociedade. Representa, portanto, a
interação humana com o meio (a natureza) em que vive e viveu certo
grupo de seres humanos. Podemos dizer que cultura é uma eterna
catalisadora e que nunca vai se caracterizar como alguma coisa
estática ou imutável. Sua mutabilidade é, sem dúvida, alguma coisa
inerente à sua existência. Vale lembrar que a cultura nasce com a
operação social via linguagem e é nela mantida em constante
reajustamento ao longo do tempo. (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 160)
Pode-se dizer, portanto, que língua e cultura, juntas, refletem uma forma de
compreender e representar a realidade. Para Kramsch (1998), a cultura deve ser
entendida como parte de uma comunidade discursiva que compartilha um espaço social,
uma história e imaginários comuns53. A autora afirma ainda que seus membros podem
reter, nas comunidades onde estiverem, um sistema comum de padrões de percepção,
crença, avaliação e ação. A esses padrões a autora denomina cultura.
53
Na seção 1.4.3 discutiu-se a maneira como a cultura faz parte do imaginário comum de uma
comunidade e auxilia na construção dos esquemas mentais dos indivíduos os quais são utilizados durante
a leitura.
94
Reitera-se, então, que a cultura faz parte de como o usuário da língua percebe o
mundo ao seu redor e é codificada no uso que se faz da língua, tanto na fala quanto na
escrita. Kramsch (1998) também destaca que, se falantes de línguas diferentes não
conseguem se entender, não é porque as línguas que falam não podem traduzir tudo o
que se diz uma para outra. Até certo ponto isso pode acontecer de forma mais ou menos
adaptável e tranquila. O que acontece é que eles não compartilham alguns conceitos
subjacentes às palavras e codificados nelas pela comunidade de fala. Ou seja, eles
recortam a realidade e categorizam a experiência de forma diferenciada por pertencerem
a culturas diferentes.
A autora destaca que a língua apresenta minimamente três aspectos: a)
expressão, b) corporificação e c) simbolização da realidade cultural. O primeiro aspecto,
da expressão, acontece porque as palavras podem refletir as atitudes e crenças do autor e
podem relatar experiências dos usuários dentro da comunidade. O segundo, da
corporificação, significa que enunciados permitem que as experiências dos usuários
sejam (re)criadas e que novos significados no uso da língua sejam (re)construídos e
compreendidos. O terceiro, da simbolização, expressa que a língua é um sistema de
signos que tem um valor cultural, pois os usuários identificam a si mesmos e aos outros
no uso da língua, como uma identidade social.
Nesse sentido, a língua não é um código livre da cultura, distinto da maneira
como as pessoas pensam ou se comportam, mas, ao invés disso, ela tem um papel
primordial na perpetuação da cultura. Segundo a autora, o uso da língua escrita é
também formado e socializado por meio da cultura. Isso significa dizer que se deve
pensar tanto no que é apropriado escrever a alguém quanto em quais circunstâncias,
quais gêneros textuais devem ser empregados (formulário, carta comercial, panfleto
político), pois tais aspectos são sancionados por convenções culturais. As formas de uso
da língua e ainda, as normas de interação e interpretação formam parte do ritual
invisível imposto pela cultura. Ou seja, seguir tais padrões é uma maneira cultural de
trazer ordem e previsibilidade para o uso que as pessoas fazem da língua (KRAMSCH,
1998).
Percebe-se, portanto, que em adição ao contexto social (sincrônico) e histórico
(diacrônico), existe o imaginário de representação de uma comunidade, ou a cultura, o
qual também é mediado pela língua. O fato primordial desse imaginário e
representações é que os sentidos são construídos não somente por meio do que os
falantes dizem uns aos outros na expressão linguística em si, mas também a partir do
95
que eles fazem com as palavras em sua comunidade para responder a demandas desse
meio.
Tais representações organizam o conhecimento sobre o mundo dos usuários da
língua, o qual é utilizado para prever interpretações, informações, eventos e
experiências assim como (re)construir significados sociais e pessoais54. Sendo assim, há
um processo de relação entre culturas diferentes para a produção de sentidos.
Kramsch (1998) aponta justamente para a necessidade de se produzir
conhecimento a partir de uma relação próxima entre língua e cultura. A autora destaca
que os termos transcultural ou intercultural podem referir-se tanto a limites políticos de
nações-estado, quanto a limites de culturas diferentes dentro de uma mesma
comunidade. Para a autora, o termo “intercultural pode referir-se a comunicação entre
pessoas de diferentes culturas étnicas, sociais e de gênero dentro dos limites da mesma
língua nacional” (KRAMSCH, 1998, p. 82), e essa comunicação pode se dar por meio
do diálogo entre classe trabalhadora e classe alta, por exemplo, ou entre as posições de
homem e mulher, ou entre gays e heterossexuais. Assim sendo, o termo intercultural
considera a comunicação entre pessoas que transitam em diferentes áreas da mesma ou
de outras comunidades (MENDES, 2008).
A autora também atenta para outro termo que deve ser considerado: o conceito
de multicultura. Para ela, “multicultural” (KRAMSCH, 1998) é mais frequentemente
usado de duas maneiras: a) em termos de sociedade, indicando a coexistência de pessoas
de várias etnias e formações diferentes como uma sociedade multicultural; e b) em um
sentido individual, caracterizando que pessoas pertencem a várias comunidades
discursivas e, portanto, têm os recursos linguísticos e estratégias sociais para se
identificarem como parte de muitas culturas e maneiras de usar a língua. Ainda, a autora
indica que a identidade cultural de indivíduos multiculturais não é aquela de falantes
nativos múltiplos, mas se realiza a partir de uma multiplicidade de papéis sociais ou
posições do sujeito que eles ocupam seletivamente a depender do contexto social no
qual eles se encontram no tempo (KRAMSCH, 1998).
Isso quer dizer que intercultura e multicultura fazem parte da formação dos
sujeitos que se comunicam e interpretam um texto. Assim, ao se falar sobre intercultura,
considera-se membros de formações discursivas diferentes em contato para (re)construir
54
Conforme discussão apresentada na seção 1.4.3.1, os esquemas mentais são capazes de (re)codificar
relações do mundo (inclusive cultura) no conhecimento individual.
96
um sentido textual e o termo multicultura refere-se a diferentes posições ocupadas pelos
sujeitos e que interferem nas suas maneiras de interpretar a realidade.
Foca-se a discussão, agora, em uma questão primordial para a compreensão dos
dados deste trabalho de tese: i) parte-se da ideia de que, em uma sala de aula, indivíduos
com diferentes discursos e culturas encontram-se em um ambiente interacional, no qual
a língua é usada como mediadora na construção de conhecimento (ou seja, é um
ambiente multi e intercultural por natureza); ii) fala-se sobre leitura como um processo
interativo em que se utiliza todos os conhecimentos do leitor para (re)construção dos
sentidos textuais (vide cap. 1). Desse modo, os sentidos individuais e sociais das
diferentes formações e discursos, interferem, ao mesmo tempo, na forma como, quantos
e quais sentidos textuais são construídos.
Portanto, considera-se que há uma multiplicidade de culturas que perpassa a
linguagem textual e auxilia na interpretação e construção de sentidos, o que poderia ser
chamado de abordagem intercultural na compreensão de textos.
De acordo com
Mendes (2011), a abordagem intercultural considera que a cultura deve ser incorporada
em qualquer trabalho com a língua (ou “língua-cultura” nas palavras da autora
(MENDES, 2011, p. 148)) a partir de uma visão flexível, constituindo-se de ações,
informações, símbolos, práticas os quais só podem ser compreendidos numa visão
dialógica.
Em trabalho anterior, Mendes (2008), apoiada na visão de Kramsch (1998),
defende a necessidade do esforço de professores para promover interação, integração e
cooperação entre indivíduos e suas culturas, partilhar experiências, construir diálogos
para refazer significados. Para a autora, quando se ensina línguas (materna ou
estrangeira), mundos e culturas entram em interação representados na língua. Ela dá a
essa interação o nome de abordagem intercultural e afirma que, em um processo de
ensino e aprendizagem de línguas, deve haver um ir e vir constante e uma negociação de
conflitos entre culturas para a edificação de um novo conhecimento, mais sólido e
comum a todos. A autora destaca que:
através da criação de um diálogo entre culturas, no qual a troca e
análise de experiências, o respeito às diferenças, a intersubjetividade
tenham lugar, é possível construir um espaço de um terceiro tipo,
formado pela interseção das experiências de professores e aprendizes,
formado em parte pelas interpretações de mundo de cada um e de
todos ao mesmo tempo, da comunhão de vontades, desejos, anseios;
da busca pela descoberta de um lugar no qual (con)viver com a
97
diferença seja a porta para que as diferentes vozes possam ser ouvidas.
(MENDES, 2008, p. 73).
É a partir da criação de um terceiro espaço, comum entre as diferentes
perspectivas dos envolvidos no processo de interação, que os usuários podem construir
um diálogo pelo qual é possível reformular a própria cultura e também compreender a
do outro. Kramsch (1993) declara que a única maneira de construir compreensão da
língua é desenvolver uma terceira perspectiva, ou seja, um espaço comum de
negociação entre locutor(es) e interlocutor(es), que os capacita a terem uma visão
individual e ao mesmo tempo social. É esse terceiro espaço que uma educação
intercultural deve estabelecer (KRAMSCH, 1993; MENDES, 2008).
Assim, destaca-se a necessidade de se abordar as diferentes culturas no processo
de leitura. Se o processo de leitura é interativo, em que leitor e autor dialogam e
constroem sentidos baseados no texto, então seria impossível conceber o ensino da
leitura como se somente o que está na página deve ser compreendido. Há sentidos
presentes na construção da vida social e cultural do leitor que devem ser utilizados no
momento da leitura. Desse modo, utilizar esses conhecimentos na construção da
habilidade de realizar comunicação durante a leitura e no desenvolvimento da
competência estratégica (vide cap. 2.2.4) nada mais é que priorizar a história de vida do
aprendiz e sua cultura para a construção de novos significados que reforcem os seus
posicionamentos e o façam dialogar com o texto ao produzir sentidos.
Mendes (2010) destaca que
de fato, o que está além da língua, ou antes da língua, que não pode
ser descartado, com certeza, é toda a rede sociocultural que a envolve
e faz com que ela seja usada de um modo específico, em determinado
contexto; uma entre tantas outras possibilidades (MENDES, 2010, p.
77).
Sendo assim, pode-se dizer que, no uso desses conhecimentos construídos
culturalmente e subjacentes à língua, o leitor produz sentidos.
Deve-se destacar que neste trabalho considera-se a necessidade de se pensar no
uso da língua a partir de uma visão em que aspectos socioculturais subjazem a esse uso.
Considera-se, assim, para as análises realizadas nesta pesquisa, que tanto o conceito de
multiculturalidade proposto por Kramsch (1998) - em que cada usuário pertence ao
mesmo tempo a várias comunidades discursivas - quanto a ideia de interculturalidade no
98
ensino de línguas proposta também por Kramsch (1998) e por Mendes (2008; 2010;
2011) - em que há uma diversidade de culturas étnicas dentro de uma mesma
comunidade – contribuem para a posição de que o conhecimento que o usuário tem
codificado para a produção de interação comunicativa o auxilia na construção da
interação e o faz (re)construir sentidos, tanto individuais quanto sociais.
Portanto, para esse trabalho de tese, propõe-se o uso do termo “competência
sociointercultural” ao invés de “competência sociolinguística”, considerando: 1) a visão
inicial de Hymes (1995) de que há fatores e regras sociais que influenciam no ato
comunicativo, o que ele chama de competência sociolinguística; 2) a visão de Scollon e
Scollon (2001) de que há uma gramática de contexto (para além da gramática da língua
em si) que contribui para a maneira como as interações acontecem produzindo sentidos;
3) a visão de Kramsch (1998) e Mendes (2008) de que há um diálogo constante entre os
diferentes discursos, contextos, comportamentos, ações, pensamentos – o que vem a ser
a(s) cultura(s) - dos quais o indivíduo faz parte, levando à produção de sentidos e à
(re)significação da realidade e do próprio texto. Partindo-se dessa ideia, considera-se
que a maneira como os alunos justificam suas escolhas de palavras-chave para a
interpretação textual pode estar sendo influenciada por questões de contexto que
incluem tanto fatores sociais quanto interculturais.
2.2.3 A competência discursiva
Na visão de Canale (1995) a competência discursiva está relacionada ao modo
como se combinam formas gramaticais, estruturas e significados para produzir e
compreender um texto falado ou escrito em diferentes gêneros. É a partir da
competência discursiva que o usuário estabelece relações textuais intra e intertextos.
Segundo Halliday (1985), a descrição de uma língua e a análise de textos não
são – ou não deveriam ser – duas operações distintas ou não relacionadas. Ao contrário,
são dois aspectos da mesma tarefa interpretativa que acontecem lado a lado. Para o
autor, textualmente, os elementos da língua organizam-se para a produção de uma
mensagem, dividindo-se em dois aspectos55:
55
Moura Neves (2001) explica os termos tema e rema da seguinte forma: “Enquanto mensagem a oração
se compõe de tema – o ponto de partida da mensagem – e rema, a mensagem propriamente dita. O tema é
geralmente a peça recuperável, ou dada, da informação, enquanto o rema, é em geral, a parte nova, a parte
que o usuário apresenta como de impossível recuperação, seja no texto, seja na situação” (MOURA
NEVES, 2001, p. 33).
99
1. o tema: que seria o ponto de partida da mensagem, aquele sobre o qual o
conteúdo é produzido ou do que se fala. É o elemento com função de foco da
sentença (o rótulo é funcional e não depende necessariamente da posição na
sentença) numa determinada estrutura organizacional. Assim, parte do
sentido da sentença depende do elemento escolhido como tema. Em outros
termos, elementos com função de foco da sentença podem assumir a posição
de tema, quando é deles que se fala. (p. ex., na frase: “Se a princípio você
não for bem sucedido” – o elemento principal aqui, ou o tema, é a condição
exposta pela conjunção ‘se’ (HALLIDAY, 1985, p. 51));
2. o rema: aquilo que se fala sobre o tema ou o que se desenvolve enquanto
informação sobre o objeto referido. É o desenvolvimento do tema. De acordo
com a proposta do autor, o tema geralmente apresenta-se primeiro na
sentença e depois vem o rema organizando a estrutura da sentença em partes
para análise.
Dentro dessa estrutura, processos semânticos simultâneos ocorrem dando a ela
aspectos de experiência, de troca interativa ou de mensagem. Ou seja, a oração acaba
sendo identificada com um tema, um sujeito e um agente num complexo que faz com
que funções comunicacionais, sintaxe e semântica, estejam em constante interação.
A estrutura tema-rema é a base da organização da sentença como mensagem.
Essa construção pode-se dar em vários níveis: na frase, no parágrafo, no texto, e todos
eles inter-relacionados constroem a ideia de sentido textual. Todos os componentes das
metafunções da linguagem expostas por Halliday (1985) – ideacional, textual e
interacional – auxiliam na construção total do tema, por vários aspectos:
a) o elemento ideacional revela que, no tema, há sempre um conteúdo que pode
incluir processos, participantes, ou circunstâncias;
b) o elemento textual que pode ter qualquer combinação no tema: i) continuativa –
sinais que assinalam que a interação está em percurso tais como sim, agora, oh etc.;
ii) estruturais – elementos temáticos tais como pronomes relativos que auxiliam na
ligação dos elementos do texto; iii) conjuntivas – elementos que impõe algum
sentido dentro da sentença e que são importantes para a sua compreensão, tais como
as conjunções;
c) o elemento interpessoal que garante a troca de interlocutores tais como
vocativos, perguntas simples de sim e não, entre outros.
100
Reitera-se aqui que, para Halliday (1985), a estrutura temática pode ser dar no
nível da oração, da sentença ou do texto como um todo. Essas relações entre o elemento
de que se fala (tema) e o que se fala sobre isso (rema) se constroem numa relação de
continuidade textual. Em outros termos, os temas se interpõem numa cadeia de relações
se estendendo e incluindo temas anteriores e posteriores. Dentro da organização de um
parágrafo, por exemplo, haveria a sentença tópico – como um tema – e as sentenças de
apoio – como um rema. O autor afirma que “a organização temática das orações (e
complexos de orações quando relevantes) expressam e também revelam o método de
desenvolvimento do texto” (HALLIDAY, 1985, p. 67).
Para o autor, há uma conexão contínua entre a estrutura temática e as unidades
de informação fazendo com que o discurso se construa na língua. Essas “unidades da
informação” são denominadas por Halliday (1985) de relação dado-novo. Para ele, o
novo é aquilo que o interlocutor é convidado a perceber como elemento importante ou
inesperado, e o dado é aquilo que já foi apresentado ao interlocutor ou que ele já
conhece. Essa estrutura tem a especial função de guiar o leitor para interpretar a
estrutura do texto da forma pretendida pelo autor. O autor esclarece que as estruturas
dado-novo e tema-rema não são a mesma coisa, embora haja uma relação entre elas. O
tema é o que eu, falante, escolho como meu ponto de partida. O dado é o que o ouvinte
já sabe ou tem acessível quanto a conhecimentos da mensagem. Em suma, para o autor,
a relação de tema-rema é orientada pelo falante e a de dado-novo é orientada pelo
ouvinte (HALLIDAY, 1985).
Pode-se dizer que há um entrelaçamento constante entre os tópicos selecionados
pelo autor e aqueles usados para compreensão do leitor. Nessa relação, a interação da
leitura se constrói e os fios semânticos são tecidos (CAVALCANTI, 1989), produzindo
um sentido global para o texto (macroestrutura56 - DIJK, 1977a; 1977b).
Beaugrande e Dressler (1981) também afirmam que o texto se constrói numa
cadeia de informações que se relacionam de forma contínua. Para os autores, há uma
configuração subjacente ao texto (como elemento linguístico) – o “mundo textual”57 que permite o estabelecimento de laços e possibilidades dentro do texto, os quais podem
ou não ligar-se ao mundo real (tome-se o exemplo de textos fictícios: há um mundo
textual possível que se distancia do mundo real). Para os autores, a construção de
mundos textuais é uma atividade rotineira da comunicação humana porque para
56
57
Vide cap. 1.4.3 sobre explicação do conceito de macroestrutura.
Vide cap.1.4.3.1.
101
qualquer ato comunicativo construímos hipóteses, reconstruímos possibilidades,
relacionamos elementos.
Essa relação de elementos é permitida pela organização dos elementos em si e
pelas possibilidades que elas carregam no texto, fazendo com que novas informações
sejam sempre adicionadas, formando uma cadeia de relações que levam ao sentido. Dijk
(2002) afirma que
em cada ponto do discurso deve haver, pelo menos uma nova
informação, (nós não podemos repetir a mesma sentença
seguidamente), e que esta nova informação deve ser apropriadamente
ligada à informação antiga, a qual pode ser textual (introduzida antes
no mesmo discurso) ou contextual (derivável do conhecimento do
ouvinte sobre o contexto comunicativo e sobre o mundo em geral)
(DIJK, 2002, p. 48).
A competência discursiva (HYMES, 1995; CANALE, 1995; LLOBERA, 1995)
é justamente o elemento desenvolvido pelos usuários que permite que o texto seja
construído como uma concatenação de informações que interligam o exposto e o não
exposto – que pode ser inferido. Percebe-se, pela discussão acima, que o texto é uma
construção que expõe um sentido global pela ligação entre vários elementos, sejam eles
linguísticos ou extralinguísticos. Essa junção só é possível pela utilização e
engajamento dos interlocutores no (re)estabelecimento desse sentido.
No modelo de Celce Murcia (2007), a competência discursiva é um componente
central da competência comunicativa pois, para ela, a criação de textos como atos de
fala é o coração da linguagem. De acordo com a autora, a competência discursiva
refere-se à seleção, à sequenciação e à organização das palavras, estruturas e enunciados
para alcançar uma mensagem total. É nesse ponto que o conhecimento sociocultural e o
objetivo comunicativo entram em intersecção com os recursos léxico-gramaticais
(competência gramatical) para expressar mensagens e atitudes na criação de textos
coerentes (CELCE-MURCIA, 2007). A autora descreve algumas subáreas da
competência discursiva, tais como o encontro/estabelecimento de:
- coesão58: convenções com relação ao uso de referência (anáfora/catáfora),
substituição, elipse, conjunções e redes lexicais;
58
Falou-se no cap. 1.2 sobre o conceito de texto e os princípios da textualidade. Dentre tais princípios, as
ideias de coesão e coerência foram discutidas com maior especificidade. Admite-se que tais conceitos,
enquanto princípios da textualidade, fazem parte da compreensão de texto dos usuários da língua ou da
construção de competência discursiva.
102
- dêiticos: base situacional alcançada por meio do uso de pronomes pessoais,
termos de espaço, e referências internas do texto (p. ex., ‘na tabela seguinte’, ‘a figura
acima’);
- coerência: expressão de propósito/objetivo por meio de um conteúdo adequado,
esquemas, organização das informações velhas e novas, manutenção da continuidade
temporal e outros esquemas de organização por meio de meios reconhecidamente
convencionais;
- estrutura de gênero: esquema formal que permite ao usuário identificar um
segmento do discurso como uma narrativa, uma entrevista, um encontro, uma palestra,
um sermão etc.
Percebe-se que o discurso pode ser concebido como uma questão de textualidade
(coesão, coerência, organização de gênero). No entanto, ele também pode ser percebido
como uma questão que envolve aspectos mais amplos de comunidade e formação
discursivas das quais um usuário faz parte.
Scollon e Scollon (2001) propõem três aspectos diferentes da construção do
conceito de discurso: a) a percepção das relações gramaticais e semânticas entre
sentenças capazes de construir um texto (p. ex. noção de coesão e coerência); b) a
consideração dos usos mais funcionais da língua em contextos sociais, tais como a
influência dos aspectos sociais e culturais na construção do sentido textual (p. ex., a
formação do gênero e seus aspectos sociais adequados); e c) a consideração de sistemas
mais amplos de comunicação os quais contém linguagens específicas de áreas com
posições ideológicas bem definidas e com formas de relações interpessoais entre
membros bem claras (p. ex., a posição dos sujeitos por meio de relações de poder, ou as
questões ideológicas implícitas no discurso). Para os autores, quatro características
definem um discurso como um sistema (SCOLLON; SCOLLON, 2001):
a) ideologia59: os membros mantêm uma posição ideológica e reconhecem um
conjunto de características extra-discursivas que os definem como um grupo;
b) socialização: é alcançada primeiramente por meio de formas preferenciais de
discurso construídas dentro e fora de casa, em situações públicas, em contextos
governamentais e de negócios;
59
A ideologia, para Scollon e Scollon (2001), é vista como as características históricas, sociais e de
crenças de um grupo que interferem na forma como as relações sociais são compreendidas pelos
indivíduos dessa comunidade.
103
c) formas de discurso: um conjunto de formas preferidas de organização
discursiva serve como um guia ou símbolos de pertencimento do indivíduo a um grupo
e sua identidade60;
d) as relações de face (identidade interpessoal dos indivíduos em comunicação
ou, em outros termos, a forma como eles se veem socialmente): são prescritas para o
discurso entre os membros da comunidade ou entre tais membros e os de fora61.
Todas essas características concatenadas fazem com que o discurso seja uma
construção social e necessária para a ideia de comunicação. A partir da ideia das
relações semânticas entre palavras e frases, pode-se construir um sentido, o tópico
discursivo, que se liga a outros tópicos presentes na sociedade e que ecoam entre
falantes durante a interação da leitura.
Dijk (1977a) afirma que da mesma maneira que sentenças se combinam com
sentenças para produzir discursos, e esses, por sua vez, também se combinam com
outros discursos para produzir conversações e diálogos. Se o processo de leitura é
concebido como uma interação entre leitor e autor por meio de um texto, pode-se dizer
também que ali há um diálogo constante que é capaz de produzir novos sentidos. Tal
diálogo se dá, de forma relacional, pela relação entre diferentes discursos e que são
utilizados pelo leitor, por meio do uso de sua competência discursiva.
Ainda, na visão de Dijk (1977a), a categorização semântica do discurso deve
receber um nível de organização: o de macroestruturas, as quais são associações de
sentidos de sequências organizados hierarquicamente para formar sentido global. Em
particular, mostra-se que condições semânticas de coerência ocorrem em noções como
tópico da conversação e tópico do discurso. Estes últimos estariam relacionados ao
nosso comportamento linguístico e discursivo, capaz de demonstrar o assunto sobre o
qual trata o discurso ou parte dele. Isto é, somos capazes de produzir outros discursos,
ou partes de discurso, expressando esse “sobre algo”, assim como se faz quando se
estabelece sentido para o texto na produção de resumos, títulos, conclusões ou
pronunciamentos (de certa forma, o que se produz durante a interpretação de texto é um
novo discurso – ou parte dele -, a partir de um texto lido, permeado pelos sentidos
produzidos pelo leitor). Dijk (1977a) se preocupa em desvendar a questão que
60
Scollon e Scollon (2001) concebem identidade como uma construção que o indivíduo faz de si mesmo
baseada nas relações sociais que ele mantém. Em outros termos, o indivíduo percebe sua própria
identidade como pertencente aos grupos em que atua.
61
Do original: outsiders (tradução minha). A melhor tradução encontrada para o termo foi relacionada a
membros de fora de uma determinada comunidade.
104
possibilita que regras semânticas permitam a habilidade dos usuários da língua de
resumir um texto em um tópico principal.
Embora o autor trabalhe com uma abordagem discursiva e cognitiva para a
leitura, e não com a ideia de desenvolvimento da competência comunicativa, pode-se
dizer que, para ele, há uma ligação intrínseca e constante entre questões semânticas (o
que para Hymes (1995) estaria presente na competência gramatical) e questões
discursivas (o que para Hymes (1995) estaria presente na competência discursiva). Para
Dijk (1977a), as relações entre proposições e sentenças em um discurso não podem ser
descritas somente em termos semânticos e há uma ligação forte entre essas proposições
(por meio da repetição, p. ex., ou do uso do conhecimento de mundo do usuário) que
permite que conceitos sejam relacionados e uma macroestrutura global do texto seja
construída. Há uma organização hierárquica das informações do texto que vai se
sobrepondo e possibilitando o estabelecimento de um sentido geral e sentidos a ele
relacionados.
Em outra obra, Dijk (1977b) afirma que são os fatos linguísticos do texto que
apoiam a visão de construção de macroestruturas. Isso porque o texto contém sentenças
tópico e porque se usa pronomes e artigos definidos pressupondo a presença de
macroproposições. Ainda, pode-se ter macroconectivos no discurso que ligam uma
proposição a uma sequência geral ou a sequências gerais62. Essa utilização e
possibilidade de formação de macroestruturas são permitidas pela existência dos frames
(vide cap. 1.4.4.1) que facilitam a representação do conhecimento e a ligação de
relações lógicas de ação e percepção.
O fato principal da discussão feita por Dijk (1997a; 1977b) é a percepção de que
as macroestruturas indicadas por ele possibilitam que o usuário da língua crie formas
textuais mais convencionais, ou discursos, que agem no estabelecimento da
comunicação textual. Tal comunicação é dada por meio do uso da competência
discursiva do falante, o que é justamente a proposta de Hymes (1995), Canale (1995),
Llobera (1995).
Tanto Dijk (1977a) quanto Hymes (1995), e ainda Celce-Murcia (2007), indicam
a necessidade de se perceber que há estruturas comuns no discurso que se compõem
como ações necessárias para o estabelecimento do processo comunicativo. Na visão de
62
É o que pode ter acontecido, por exemplo, na indicação da conjunção “mas” por um aluno como
palavra-chave: o intuito da escolha estava em abordar a oposição nítida apresentada entre os personagens
do texto. Fala-se mais sobre isso na análise de dados deste trabalho de tese cap. 4.1.1
105
Dijk (1977a; 1997b), essas estruturas são essenciais porque: a) cada texto é um
subconjunto do conjunto de ações discursivas que ocorre na comunidade; b) a
consideração cognitiva ou filosófica da ação humana deve ser geral
em natureza e
pertencer a fatores discursivos da sociedade; c) textos são, em essência, ações
discursivas; e d) para cada cultura há limites semântico-pragmáticos no estabelecimento
de macroestrutura global (ou sentido global), os quais podem se tornar convencionais.
Isso significa que participantes não somente reconhecem propriedades específicas do
texto, mas também as tornam normativas para as demais ações discursivas que
vivenciam.
Considera-se, assim, neste trabalho de tese, a ideia inicial de competência
discursiva proposta por Hymes (1995), a partir da qual essa competência relaciona-se ao
modo em que os usuários combinam formas gramaticais e significados para
compreenderem um texto falado ou escrito em diferentes gêneros. Adiciona-se a isso o
fato de que há formatos sociais de texto, os gêneros, os quais são reconhecidos e
normatizados pelos usuários, fazendo com que se criem superestruturas textuais que
permitem a construção de sentido (DIJK, 1977a; 1997b). Ainda, considera-se que todo o
texto é um discurso e que com ele outros discursos interagem e envolvem questões tais
como cultura e ideologia, que auxiliam na formatação do discurso e interferem em sua
interpretação (DIJK, 1977a; SCOLLON; SCOLLON, 2001). A isso, vai-se denominar
daqui em diante competência discursiva.
2.2.4 A competência estratégica
Canale (1995) destaca que a competência estratégica compõe-se do domínio das
estratégias de comunicação verbal e não verbal que podem ser utilizadas para
estabelecer comunicação. As duas razões principais indicadas pela autora para a
proposição da existência dessa competência são:
a) compensar as falhas na comunicação devido a condições limitadoras na
comunicação real ou a insuficiente competência em uma ou mais das outras áreas da
competência comunicativa;
b) favorecer a eficácia da comunicação por meio do uso de recursos retóricos,
entonação, manutenção do laço comunicativo etc. Por exemplo, falar de forma lenta e
baixa deliberadamente com uma intenção retórica ou então, usar uma paráfrase como
estratégia, caso o falante não se lembre de uma palavra ou frase em específico.
106
Celce-Murcia (2007) também conceitua o termo competência estratégica como
um mecanismo, composto de diversos elementos, que o usuário da língua utiliza a seu
favor para produzir enunciados que cumpram com seus objetivos. Para tanto, alguns
tipos de estratégia são descritas:
a) cognitivas: essas são as estratégias o usuário faz uso da lógica e da análise
para ajudar a si mesmo a aprender a língua delineando, resumindo,
destacando, organizando e revisando materiais;
b) metacognitivas: envolvem o planejamento da aprendizagem separando
tempo de análise e estudo, autoavaliando a produção feita com vistas ao
objetivo proposto, e ao progresso alcançado. Ela é alcançada pelo
monitoramento e percepção dos erros que os alunos aprendem do professor e
do feedback dos colegas. Neste ponto o aprendiz compensa falhas de
conhecimentos parciais ou incompletos adivinhando significados de palavras
do contexto ou a função gramatical das palavras a partir de pistas formais;
c) relacionadas à memória: estratégias que ajudam aprendizes a lembrar ou a
recuperar palavras pelo uso de acrônimos, imagens, sons ou outras pistas.
Nessa visão, o uso da competência estratégica pode ser tanto algo inconsciente
(cognitivamente - automatizado por meio de conhecimentos linguísticos, discursivos ou
socilinguísticos) quanto algo realizado de forma consciente (metacognitivamente – em
que o leitor seleciona ações planejadas e pensadas para realizar interação com a língua).
No que diz respeito à leitura (vide cap. 1.5), Kato (1999) também propõe o uso
de estratégias, por parte leitor, para que esse processo seja desenvolvido de forma
efetiva. Para a autora, é na aprendizagem de habilidades conscientes (metacognitivas)
que o leitor desenvolve proficiência leitora automatizando seus conhecimentos
(habilidades cognitivas) e fazendo ligações durante a leitura.
Existe, portanto, uma ligação intrínseca entre as estratégias cognitivas e
metacognitivas. A proposta de Hymes (1995) considera a competência estratégica como
habilidade de compensar falhas de qualquer tipo de conhecimento para não quebrar a
comunicação entre usuários da língua. Sendo assim, a aprendizagem das estratégias e a
sua automatização fazem parte do desenvolvimento da competência estratégica e
auxiliam na efetivação das atividades comunicativas dos usuários da língua. CelceMurcia (2007) também destaca a utilização de estratégias tais como:
- realização: aproximação, circunlocução, alternância de códigos, mímicas etc.;
107
- protelar ou ganhar tempo: uso de frases do tipo: “onde eu estava mesmo?”;
“você poderia repetir?”;
- o auto-monitoramento: usar frases que permitem a auto correção tais como:
“quer dizer...”;
- interação: apelos para esclarecimento, negociação de significados, ou que
envolvam a compreensão e a checagem da confirmação;
- social: (no contexto de aprendizagem de língua estrangeira) a procura por
falantes nativos para praticar, ativamente procurando oportunidades de usar a língua
alvo.
Ou seja, a competência estratégica seria o desenvolvimento de formas de
utilização da língua que permitem ao usuário manter a comunicação e alcançar seus
objetivos. No caso específico da leitura e tendo como pressuposto que este é um
processo estratégico (vide cap. 1.5), deve ser lembrado que há um conjunto de
habilidades necessárias para utilização dos conhecimentos para que se produza de fato
interação com o texto.
Dijk e Kintsch (1983) destacam que no processo estratégico não há um sucesso
garantido na formulação e nem uma única representação do texto. Para o autor, aplicamse hipóteses de trabalho sobre o ato comunicativo (discursivo na visão do autor) em que
estruturas e significados interagem no processamento de construção de sentido.
Ainda na visão de Dijk e Kintsch (1983), há várias estratégias usadas na
produção, compreensão, e reprodução do discurso. Parte dessas estratégias pode ser
chamada de linguísticas especialmente as que ligam a superfície sentencial e textual às
representações semânticas subjacentes. Outras envolvem o uso de conhecimento de
mundo, conhecimento episódico, opiniões, crenças, atitudes, interesses, planos e
objetivos. Hymes (1995), de certa forma, corrobora com essa ideia ao afirmar que a
competência estratégica atua em consonância com as competências linguísticas,
sociolinguísticas e discursivas, criando mecanismos associados a cada uma dessas
habilidades para interagir no ato comunicativo.
Percebe-se, portanto, que a construção do conceito de competência estratégica
está ligado não a uma habilidade específica, mas às outras três competências
(gramatical, sociointercultural e discursiva) de forma constante e não hierárquica.
Quando o usuário apreende determinadas formas de compensar conhecimentos não
adquiridos para estabelecer comunicação, ele também está atuando sobre seu próprio
aprendizado para tornar-se comunicativamente eficiente.
108
Destaca-se aqui que a leitura pode ser entendida como um conjunto de
habilidades que envolvem estratégias de vários tipos (ou seja, a leitura é considerada um
processo estratégico conforme discutido no cap. 1.5). De acordo com Kato (1999), o
leitor constrói mecanismos variados – as estratégias – para ler e restabelecer sentido do
texto. Nessa construção, ele pode utilizar fatores linguísticos (destacar sintagmas ou
parcelas de informação sintática ou semântica do texto); fatores textuais (p. ex.
estabelecer ligações de sentido entre referentes ou construir coerência); fatores
extralinguísticos ou pragmáticos (avaliar a consistência das informações de acordo com
a realidade). Essa visão de leitura como um processo estratégico (SOLÉ, 1998; DIJK;
KINTSCH, 1983; DIJK, 1977a; KATO, 1999) corrobora com a ideia do usuário da
língua precisar desenvolver um tipo de competência específica, a estratégica (HYMES,
1995; CANALE, 1995; HORNBERGER, 1995; CELCE-MURCIA, 2007), para criar
sentidos na língua, o que no caso deste trabalho, referem-se aos sentidos textuais.
Reitera-se que a questão principal estabelecida na noção de competência
estratégica como uma das dimensões da competência comunicativa é o fato de que
usuários da língua sempre manipulam as estruturas de superfície (palavras, frases,
orações), ou então informações pragmáticas do contexto (social e cultural) para avaliar,
(re)construir, encontrar sentidos.
Solé (1998) destaca que são as estratégias – ensinadas e aprendidas - que ajudam
a construir uma interpretação para o texto. Para a autora, elas devem ser desenvolvidas
como uma habilidade aprendida (ou como a competência estratégica, na visão de
Hymes (1995)) que leva o leitor a criar ações durante a leitura ou a comunicação com o
texto.
Destaca-se, agora, a importância da competência estratégica como parte
integrante da competência comunicativa do usuário, mais especificamente do leitor:
quais seriam as estratégias que o permitem utilizar seu acervo de conhecimentos para
construir sentido para um texto? Falar sobre todas as estratégias de compreensão
utilizadas pelos leitores seria impossível ou, minimamente, cansativo. No entanto, o que
se propõe para este trabalho é que o reconhecimento da palavra-chave para um texto
pode funcionar como um mecanismo de ativação – ou como uma estratégia - das várias
dimensões da competência comunicativa, permitindo ao leitor construir sentidos
textuais. Isso porque para que o leitor possa reconhecer uma ou mais palavras-chave do
texto, ele deve inserir nessa escolha um conjunto de sentidos construídos durante a
leitura. Ou seja, pensa-se que ele usaria a seleção da palavra-chave como uma estratégia
109
para diferentes ações tais como: lembrar-se do assunto abordado pelo texto (estrutura
tema-rema), focalizar a relação dado-novo, identificar aspectos culturais e ideológicos
do texto, destacar aspectos linguísticos importantes para a construção de um sentido
principal (tais como selecionar verbos de um determinado campo semântico ou
adjetivos que caracterizem as descrições realizadas no texto), entre outras.
No entanto, que aspectos estariam envolvidos no conceito de palavra-chave e o
que permite que ela seja considerada como uma estratégia de leitura? Discute-se, assim,
na próxima seção, o conceito de palavra-chave para este trabalho de tese.
2.3 A PALAVRA-CHAVE
Reiterando: para interpretar um determinado texto, as relações linguísticas e
extralinguísticas ali presentes tornam-se cruciais para que o leitor possa estabelecer uma
interação com o autor por meio da página escrita, estabelecendo para ela sentidos. Podese concluir que, pela explanação realizada, as palavras de um texto e suas relações com
as demais palavras selecionadas pelo autor contribuem para a interpretação. Mas de que
maneira algumas palavras de um determinado texto se destacam nessa relação de
sentidos e auxiliam na interpretação? O objetivo dessa seção concentra-se na elaboração
do conceito de palavras-chave (itens lexicais chave – CAVALCANTI, 1989), as quais
são capazes de tecer fios semânticos interpretativos e fornecer as principais ideias
presentes em uma manifestação textual.
Antes de iniciar a conceituação de palavras-chave, é importante observar o que,
convencionalmente, é chamado de palavra e de item lexical. Para Kempson (1980), o
termo palavra deve ser reservado para a manifestação concreta de elementos
morfológicos, fonológicos e semânticos em combinação fazendo com que tal arranjo
produza um determinado elemento verbal. Em outro plano, aquilo que se encontra
registrado no léxico com diferentes sentidos particulares seria o item lexical, como o
que, por exemplo, acontece com a palavra ‘manga’ que tem, no mínimo, dois registros
de itens lexicais: um como a fruta, e outro como parte de uma roupa. Ou seja, para a
autora, a caracterização do significado do item lexical é feita em termos de uma única
representação semântica para cada item. A autora fornece o exemplo do item lexical
‘correr’, que deve ser representado distintamente, para as sentenças:
1) Ele correu na São Silvestre.
2 ) O carro está correndo bem.
110
Embora em ambas as sentenças possa-se perceber um componente semântico em
comum (movimentar-se de um lugar para outro), elas apresentam uma distinção clara
quanto à maneira de realização do verbo ‘correr’. Na sentença (1), tem-se característica
de movimento corporal do ser humano, e na (2) de um movimento passivo em que o
carro recebe uma ação humana. O falante do português consegue estabelecer essa
diferença pela manifestação desse item lexical nas sentenças acima. Isto quer dizer que
embora o item lexical ‘correr’ tenha um significado - ou vários – intrínseco(s) a ele, a
sua manifestação em uma sentença ou texto e as relações com as demais palavras ali
encontradas fornecem os componentes semânticos que ele pode ou não ter.
Castilho (2010) também procura conceituar ‘palavra’ num âmbito de discussão
sobre o léxico do falante. Para o autor, a palavra é tida como um elemento que dispõe de
características fonológicas (apresenta um esquema rítmico), morfológicas (apresenta
uma organização dada por morfemas), sintáticas (é organizada em um dado sintagma),
semânticas (repassam uma ideia) e gráficas (vêm separadas por vírgulas ou espaços em
branco). Já os itens lexicais seriam aqueles que, por convenção, estão registrados no
léxico, o qual o autor define como: “um conjunto de categorias cognitivas e traços
derivados que são representados nas palavras por meio da lexicalização63”
(CASTILHO, 2010, p. 110).
Assim, há, no léxico, os chamados itens lexicais que são o produto de um
inventário de categorizações cognitivas com traços semânticos próprios. Esse inventário
é virtual, ocorre anteriormente à sua utilização e, na condição de usuários de uma
língua, lança-se mão desse inventário para a criação de palavras, o que o autor chama de
lexicalização. Em outras palavras, o léxico, composto de itens lexicais, é pré-verbal e
nos permite usar o vocabulário, ou palavras, as quais são usadas como elementos
concretos pós-verbais. Deve-se chamar a atenção aqui para o fato de que se os itens
lexicais são pré-verbais e registrados mentalmente, eles concretizam-se em palavras e,
por isso, ocorrem tantos problemas ao conceituar um termo e outro. De fato, utilizam-se
itens lexicais registrados cognitivamente para a expressão e comunicação social, e a
concretização desses itens com características fonológicas seriam o que Castilho (2010)
denomina ‘palavras’. Ou seja, pode-se dizer que palavras e itens lexicais seriam duas
faces do mesmo elemento: o léxico.
63
Lexicalização para o autor é entendida como “o processo por meio do qual conectamos o léxico,
entendido como um inventário pós-verbal, a um conjunto de produtos concretos, ou seja, as palavras”
(CASTILHO, 2010, p. 110)
111
O autor chama a atenção ainda para o fato de que, durante a interação verbal
com a língua, o falante toma decisões sobre como usar seu léxico mental por meio dos
itens lexicais registrados, e como adaptar, ativar ou desativar as propriedades
semânticas ali presentes para se comunicar. Nesse sentido, a lexicalização, ou a
verbalização do léxico, não é individual, mas social, o que implica que tal fenômeno
ocorra associado a sentidos culturais, sociais, enciclopédicos construídos e armazenados
pelos usuários da língua.
Antunes (2012) corrobora essa ideia e afirma que
as palavras que ocorrem em um texto não cumprem apenas a função
de ‘significar’; elas não são relevantes, apenas, porque carregam um
determinado significado. São parte constitutiva de uma armação que
dá sustentação à unidade do texto, e, portanto, interferem em sua
coerência (ANTUNES, 2012, p. 66).
Isto significa que não se deve olhar apenas para o significado literal das
palavras, mas para suas relações no texto capazes de formar uma unidade total. A autora
ainda aborda o fato de que a utilização do léxico para expressão de sentidos textuais se
dá não apenas pela escolha das palavras em si, mas também para que o autor possa
expor seus objetivos e o leitor, por sua vez, seja capaz identificá-los durante a leitura.
Ou seja, o léxico refletido na seleção das palavras é capaz de codificar sentidos culturais
e sociais aliados às questões linguísticas.
Numa visão similar em que cultura e ambiente social influenciam na
concretização lexical, Biderman (2001) postula que cada comunidade traduz, em sua
língua, a sua visão do mundo e a realidade que lhe é própria por meio do léxico e da
gramática. Pode-se dizer, então, que a realidade da comunidade linguística vai sendo
traduzida e codificada no léxico da língua. Ao procurar discorrer sobre o conceito de
‘palavra’, a autora afirma que tal denominação depende da sua caracterização dentro da
comunidade linguística. Assim, para ela:
a nossa tese é a de que não é possível definir palavra de maneira
universal, isto é, de uma forma aplicável a toda e qualquer língua. A
afirmação mais geral que se pode fazer é que essa unidade
psicolinguística se materializa, no discurso, com uma inegável
individualidade. Os seus contornos formais situam-na entre uma
unidade mínima gramatical significativa – o morfema – e uma unidade
sintagmática maior – o sintagma. Pode-se afirmar também que a velha
gramática grega não estava errada, ao considerar que a sentença é
composta de palavras (BIDERMAN, 2001, p. 115).
112
De acordo com a autora, para que se delimitem as unidades léxicas dentro de
cada língua, deve-se partir de critérios fonológicos, gramaticais (morfossintáticos) e
semânticos. Nos critérios fonológicos, deve ser possível observar na unidade léxica uma
sequência fônica para a sua concretização que impõe a ela limites de início e fim.
Acentuações e pausas são partes importantes da delimitação da palavra. No que diz
respeito aos critérios gramaticais, considera-se a classificação da palavra de acordo com
critérios morfológicos e sintáticos e a função por ela exercida na sentença. Como
critérios semânticos, considera-se que cada palavra deve ter um valor de significação no
interior da língua. Tal critério é a chave decisiva que identifica a unidade léxica
expressa no discurso. A autora admite ainda que as unidades léxicas (ou lexemas)
podem e, de fato, são caracterizadas no interior de cada língua, mas deve-se considerar
o todo e os significados globais do enunciado e do discurso para determinação do item e
de seus significados.
Outro autor que procura trabalhar na conceituação dos itens lexicais e na
representação de seus sentidos é Cruse (1987). Para ele, uma forma de conceituar item
lexical - usada na maioria dos dicionários -, seria: i) por sua forma (fonológica e
gráfica); ii) por sua função gramatical; e iii) por seu significado. O autor considera três
aspectos da delimitação do item lexical:
a) Delimitar a forma do item lexical sintagmaticamente, isto é, conseguir
definir em uma sentença onde estão os limites entre os itens lexicais;
b) Observar que muitos deles operam diferentemente em uma variedade de
ambientes gramaticais, por exemplo, a palavra ‘abaixo’ pode funcionar como
preposição de localização ou como verbo;
c) Separar os itens lexicais pelo caráter semântico, mesmo dentro da mesma
forma, como por exemplo, a palavra ‘banco’ pode significar tanto a
instituição financeira, quanto, o objeto utilizado para sentar-se.
De acordo com Cruse (1987), um determinado item lexical mantém relações
contextuais com outros itens, ou seja, “o significado de uma palavra é refletido nas suas
relações contextuais” (CRUSE, 1987, p. 16). Isso quer dizer que o item lexical em si e
as relações de contexto que ele assume em determinada sentença ou texto são
mutuamente influenciáveis e interdependentes, fazendo com que o leitor olhe para tal
item dentro desse contexto específico. Em outros termos, para Cruse (1987), o item
113
lexical ganha sentido na interação com os outros itens da sentença e os seus
constituintes semânticos são construídos nessa interação.
No entanto, é importante dizer aqui que não se pode apoiar a ideia de que o item
lexical não apresenta características internas e que só ganha significado a partir dos
outros itens. Cada item lexical tem, de fato, significado por si mesmo, ou seja, o
significado literal (OLIVEIRA, 2008; ULMMANN, 1964). Por outro lado, admite-se
que esses significados internos, em determinados contextos, como em um texto
específico, por exemplo, constroem sentidos maiores e mais completos, os quais o leitor
não pode deixar passar incólumes para a construção do processo interpretativo. Para a
compreensão de um item lexical o leitor deve, assim, partir do sentido primário ou
literal (OLIVEIRA, 2008) e procurar perceber na relação com outros itens textuais os
sentidos ali estabelecidos.
Alguns autores adicionam ao conceito de item lexical, uma correlação semântica
com outras palavras do código. Para Lyons, (1977) pode-se dizer que os lexemas termo utilizado pelo autor para se referir a item lexical - e outras unidades
semanticamente relacionadas dentro de um dado sistema linguístico, pertencem a um
mesmo campo semântico ou são membros dele, o que significa que eles relacionam-se
entre si semanticamente. Na visão do autor, o significado das palavras e frases é
apreendido e mantido pelo uso da língua em situações de comunicação. Para ele, os
lexemas não possuem uma única forma, mas são entidades abstratas associadas a um
conjunto ou mais de formas. Por exemplo, as palavras ‘digo’ e ‘disse’ seriam ambas
formas do mesmo lexema: o verbo ‘dizer’. Em suma, pode-se dizer que “lexemas são as
palavras e sintagmas que um dicionário registraria sob entradas separadas” (LYONS,
1977, p. 28).
Percebe-se, a partir da discussão acima, que as palavras relacionam-se a outros
elementos no interior da língua e a partir dessa relação sentidos podem ser construídos.
Ou seja, há uma relação próxima entre palavras que ocorrem num mesmo contexto para
a produção de sentidos. Nesse sentido, Miller (1981) afirma que questões sintáticas e
semânticas dos itens e suas relações linguísticas influem nas interpretações que lhes são
dadas. Para o autor, as definições das palavras sempre vêm, de uma forma ou outra,
juntamente com as sentenças em que estão, ou seja, as interpretações dos traços
semânticos das palavras devem ser dadas a partir das sentenças em que se inserem.
Tudo o que uma pessoa sabe ou acredita está armazenado em seu léxico mental e as
114
palavras que utiliza para se comunicar não são aleatórias, mas aparecem numa cadeia de
relações com outras que expressam sentido comunicativo.
Ullmann (1964), por sua vez, afirma que as palavras 64 são elementos com
características fonológicas, sintáticas e semânticas, e embora tenham um significado
literal a elas sofrem a influência do contexto para o estabelecimento de seus
significados. Assim, os contextos em que uma palavra ocorre, ou seja, suas associações
em contextos imediatos e culturais são capazes de construir sentidos na comunicação.
Para o autor, “Todas as palavras, por muito precisas e inequívocas que possam ser,
extrairão do contexto uma certa determinação que pela própria natureza das coisas, só
pode surgir em elocuções específicas” (ULLMANN, 1964, p.109).
Pode-se dizer, então, que as palavras são entidades complexas, pois recebem
cargas culturais, emocionais e sociais de acordo com sua utilização e suas associações
contextuais. Assim, embora seus sentidos próprios também sejam ativados, o contexto
em que ocorrem é capaz de fornecer às palavras o significado de uso imediato. Essa
relação de sentidos possíveis deve ser recuperada pelo interlocutor ao interagir com o
texto escrito.
Antunes (2012) também dá destaque a essa relação de sentidos estabelecida
pelas palavras na produção de textos. Para a autora, as relações de sentido, no texto, são
significativas porque promovem a sua continuidade semântica. Sendo assim, é pela
configuração das palavras relacionadas entre si e pela representação linguísticocognitiva que se dá a elas que se pode estabelecer uma unidade semântica. A autora
afirma que “Não é o sentido particular de cada palavra que confere unidade ao texto. É a
rede de sentidos criada, explícita ou implicitamente, pelas palavras presentes à linha do
texto” (ANTUNES, 2012, p. 40).
Assim, com o intuito de padronizar a utilização dos termos item lexical e palavra
e tendo em vista a discussão acima apresentada, considera-se: i) a ideia de Castilho
(2010), de que a utilização do léxico não ocorre independente dos sentidos culturais,
sociais e enciclopédicos trazidos pelo falante e ii) as palavras têm, de fato, um sentido
literal intrínseco a elas (ULLMANN, 1964; OLIVEIRA, 2008), mas, ao mesmo tempo,
assumem sentidos específicos em determinados textos pela configuração relacional dada
entre elas. Utiliza-se, assim, daqui por diante, o termo palavra65 para referir-se a
64
Utiliza-se o termo palavra por ser o termo usado pelo autor para sua explanação. No entanto observa-se
que o autor não teve a preocupação de diferenciar palavra e item lexical.
65
O uso de sublinhados neste trabalho de tese é para chamar a atenção ao conceito específico.
115
determinadas concretizações linguísticas daquilo que a comunidade linguística dos
falantes armazena socialmente e registra por itens lexicais. Essa concretização dos itens
lexicais em palavras é utilizada em contextos específicos (como nos textos a serem
trabalhados com os alunos). Em outros termos, palavras e itens lexicais são ambos parte
do léxico: os itens lexicais contribuem com seu significado intrínseco, pré-verbal, e
assumem sentidos na cadeia de relações semânticas entre palavras na manifestação
textual.
Destaca-se, com isso, que, ao usar o termo palavras-chave66, neste trabalho,
admite-se que tais palavras referem-se a itens lexicais que possuem um inventário de
caracterizações cognitivas com traços semânticos definidos para além da mera junção
de elementos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos.
Fala-se, ainda, neste trabalho, sobre dois termos importantes e que ainda não
foram devidamente explanados: significado e sentido. Conforme se discutiu, para Lyons
(1977), o lexema é composto de um significado que não acontece sozinho, mas está
ligado aos significados de outros lexemas. A partir dessa associação, o sentido da
expressão é produzido como afirma o autor: “o sentido de uma expressão é uma função
dos sentidos dos lexemas que a compõem e da sua ocorrência numa construção
gramatical particular” (LYONS, 1977, p. 170). O autor ainda afirma que sentidos teriam
a ver com referência, a qual é a relação existente entre uma expressão e aquilo que ela
designa ou representa em ocasiões particulares de enunciação. Assim, a referência seria
os sentidos produzidos por um item lexical (lexema) em contexto.
Ao discutir questões relativas ao significado, Ullmann (1964) considera que os
diferentes elementos linguísticos possuem algum tipo de significado. Morfemas, por
exemplo, são significativos, assim como as combinações mantidas por eles. Todos os
significados dessas combinações desempenham seu papel na construção de um
significado total para a expressão. O autor sugere três termos para a configuração de
significado: a) nome: que seria uma configuração fonética da palavra, os sons que a
constituem além de outros aspectos fonéticos, tais como o acento; b) sentido: que seria a
informação que o nome comunica ao ouvinte; e c) coisa: aspecto ou acontecimento não
linguístico acerca do qual falamos. Para ele, todos esses termos estão em associação na
construção de significados tanto da palavra, quanto da sentença. Isso porque, na visão
do autor, a relação existente entre nome e sentido é recíproca e reversível e é a isso que
66
Fala-se do conceito específico de palavra-chave na sequência do trabalho.
116
ele chama de significado (ULLMANN, 1964, p. 119). A preocupação do autor está
voltada à discussão do significado referencial que trata justamente dessa relação
recíproca e reversível entre nome e sentido, considerando significados múltiplos e
relações associativas entre as palavras e não discute o significado operacional que trata
das coisas, ou da ocorrência da palavra na fala dos indivíduos de uma dada comunidade.
No entanto, deve-se atentar para o fato de que, neste trabalho, considera-se que a
ocorrência do item lexical em contextos específicos e que conhecimentos de mundo
(sociais e culturais) diversos influem na forma como o leitor interpreta um texto. Em
outras palavras, na visão proposta por este trabalho, as palavras teriam, além das
relações internas com outras palavras, um significado operacional no texto e na
comunidade de fala. Assim, com o intuito de padronizar a utilização dos termos significado e sentido - parte-se do pressuposto: i) de Biderman (2001), de que a
conceituação da palavra depende da sua caracterização dentro de uma determinada
comunidade linguística; e ii) de Ullmann (1964), de que palavras trazem inerentes a si
traços semânticos, que permitem a sua caracterização em dicionários, por exemplo.
Utiliza-se, desta maneira, o termo significado para o que está relacionado inerentemente
aos itens lexicais em si mesmos. Ainda considerando que: i) palavras não acontecem
aleatoriamente (LYONS, 1977; ULLMANN, 1964; MILLER, 1981; BIDERMAN,
2001), e que ii) sua associação com outras palavras é capaz de fornecer a ela sentidos
específicos (inclusive influenciados por fatores sociais e culturais), vai-se reservar o
termo sentido para aquilo que é produzido pelo enunciado específico em que um item
ocorre.
Chama-se atenção, agora, para a questão de que, para os objetivos desse trabalho
de tese, ao falar-se em palavras–chave, focaliza-se em determinados itens lexicais que
auxiliam na busca da unidade de sentidos para um determinado texto. Para alguns
autores da Linguística de Corpus (LC) (p. ex. SARDINHA 1999a; STUBBS, 2001),
uma das várias possibilidades de estudos linguísticos baseados em palavras-chave seria
a de identificar, por meio delas, os possíveis conteúdos discutidos em um texto.
Segundo SARDINHA (1999b) que teoriza a partir de uma perspectiva probabilística e
estatística da linguagem, as palavras-chave, por definição, são aquelas que possuem
uma frequência estatisticamente superior em um corpus de pesquisa em comparação a
um corpus de referência, e que, em conjunto, refletem a ideia principal do conteúdo
textual. Nessa perspectiva, a palavra-chave pode aparecer como um núcleo semântico
sobre o qual o pesquisador lança seu olhar, faz o seu recorte e procura perceber o que
117
ela revela dentro de seu corpus de pesquisa. Assim, a presente pesquisa concentra-se no
objetivo de perceber a influência da palavra-chave na interpretação de textos, mas se
distancia da área da Linguística de Corpus por não apresentar uma perspectiva
quantitativa da linguagem. Justifica-se a não opção por essa linha de pesquisa porque
não seria possível incluir aí a visão particular dos alunos na busca pela palavra-chave e
a sua interpretação para tais palavras, fato esse que se procura investigar na análise de
dados desta tese.
Entre os vários objetivos das pesquisas em LC, pode-se analisar o gênero de um
texto, as diferenças lexicais de ambiente linguístico em que uma determinada palavra
ocorre no corpus, ou ainda os padrões léxico-semânticos (ou padrões lexicais) de
ocorrências das palavras no corpus de pesquisa. Apresentam-se, nos próximos
parágrafos, algumas formas de discussão sobre tais padrões a título de exemplificação
de como uma palavra-chave pode ser analisada tendo em vista suas manifestações
linguísticas em determinados contextos.
Padrões lexicais são todas as regularidades que acontecem com uma palavra e as
associações que ela mantém e que fornecem a ela e ao seu contexto significados
importantes (STUBBS, 2001). Autores da área (SARDINHA, 1999a; 2000a; STUBBS,
2001) procuram definir os padrões lexicais de uma palavra a fim de encontrarem no uso
da língua informações que revelem seus comportamentos linguísticos. Na maioria das
vezes, é por meio destes padrões lexicais que os pesquisadores têm a possibilidade de
identificar ambientes linguísticos importantes para o significado das palavras. Neste
campo de pesquisa (SINCLAIR,1991; PARTINGTON,1998; SARDINHA, 2000c), as
ocorrências dos padrões se distribuem em três grandes grupos: colocação, coligação e
prosódia semântica.
A colocação baseia-se no item lexical associando-o ao cotexto67, ou seja, referese a uma relação sintagmática entre as palavras, ou em outros termos, à coocorrência de
itens lexicais em uma frase ou texto. Por exemplo, o item lexical ‘causar’ tende a (co)ocorrer de maneira mais frequente com itens tais como ‘problemas’, ‘prejuízo’, ‘danos’,
‘morte’, ‘impacto’, como mostra o exemplo:
1) O vendaval causou grandes prejuízos para a população do local;
67
Co-texto: seria o ambiente verbal imediato em que uma palavra acontece fazendo com que ela assuma
sentidos. (Koch, 2010)
118
Além da coocorrência, os itens lexicais podem associar-se gramaticalmente. Os
autores denominam essa associação de coligação. Mais especificamente, a coligação é a
companhia gramatical mantida pelo item lexical e as posições que ele geralmente tem
na sentença. Um exemplo de coligação (SARDINHA, 2000b), tomando por referência o
item lexical ‘só’ do português ilustra essa situação68:
2) Eu só vi alguns cartazes por aí. (sentido de restrição, exclusão, seleção);
3) O PFL prevê que a tensão só vai diminuir após a volta de FHC. (sentido de
condição);
4) Ninguém lá faz benfeitoria. Só fazem filhos e feitiçaria (sentido de crítica).
A coligação ‘só + verbo’ fornece à palavra núcleo como em 2, um sentido de
restrição, exclusão e seleção. Já a coligação ‘só + vai’ indicando futuro assume o
sentido condicional como em 3 e a coligação ‘só + faz,’ ‘fazem’ assume o sentido de
crítica como em 4. O autor explana sua posição baseado em ocorrências retiradas de seu
corpus de pesquisa e esses exemplos são apenas algumas das coligações mantidas pelo
item lexical ‘só’. Outras possibilidades ainda são discutidas no estudo, inclusive
comparando exemplos da fala e da escrita.
Destaca-se que é necessário reparar na interligação dos padrões para que se
produza sentido, ou seja, a coligação ou a colocação por si só não podem garantir o
significado de uma palavra núcleo ou o sentido da sentença em que ocorre. A coligação
do item lexical ‘só’ com verbos, por exemplo, não é capaz de fornecer significados
gerais da palavra, mas se dissermos que ela ocorre com um determinado tipo de verbos
pode-se ter uma ideia de seus possíveis sentidos.
Desse modo, além da colocação e da coligação, os itens lexicais também podem
se associar por meio de um uso frequente em determinado ambiente semântico, a
prosódia semântica (SARDINHA,1999ª; 2000b). A prosódia semântica é exatamente a
carga semântica que esse item assume a partir das suas associações mais frequentes.
Esse fenômeno pode levar o item a receber uma carga semântica tanto negativa, quanto
positiva ou neutra a depender das palavras com que mais frequentemente aparece e das
suas cargas semânticas. Por exemplo, o item lexical ‘acontecer’ tem uma prosódia
semântica que poderá ser tanto negativa quanto neutra, dependendo do contexto em que
68
Exemplos extraídos de um estudo de caso da língua portuguesa feito por Sardinha (2000a)
119
ocorre ou da carga semântica das palavras que coocorrem com ele. Assim, quando
acompanhado por itens que não contém um conteúdo semântico nítido, como ‘coisa’ e
‘algo’, será neutro:
5) Algo aconteceu para que ela tenha mudado sua opinião;
Porém se acompanhado de palavras como ‘crime’ e ‘acidente’ o efeito é
negativo, pois tais palavras têm características semânticas socialmente negativas:
6) Um crime horrível aconteceu no bairro noite passada 69;
A determinação da prosódia semântica não só depende do que o próprio item
lexical traz em si, mas também do contexto e das palavras associadas com as quais
aparece. Ou seja, a palavra recebe determinadas características semânticas a partir da
relação linguística com outras, as quais, por sua vez, caracterizam o ambiente
linguístico, positivo, negativo ou neutro, em que se inserem.
Nota-se que os três padrões podem fornecer insumos lexicais, sintáticos e
semânticos para a interpretação de palavras e destas nas sentenças em que
frequentemente ocorrem. Isso acontece porque o nosso conhecimento não está
relacionado somente a palavras individuais, mas às suas combinações e ao
conhecimento cultural nelas enxertado (STUBBS, 2001)70. Segundo este autor, às vezes
uma palavra pode acionar esquemas ou referências a outras palavras correlacionadas a
ela, podendo-se extrair dessas combinações a identificação do assunto do texto. Ele
parte da ideia de que o significado está disperso entre as palavras que coocorrem no
texto e que elas compartilham características semânticas (STUBBS, 2001, p. 63). Ou
seja, a partir das palavras e seu ambiente é possível descrever significados mais
extensos e que não fazem parte apenas do significado primário de uma determinada
palavra71.
Utiliza-se aqui o exemplo dos padrões lexicais da colocação, coligação e
prosódia semântica, para demonstrar que a distribuição das palavras observadas em um
69
Os exemplos 5 e 6 são de minha autoria.
A questão do componente cultural e do conhecimento de mundo foi discutido também no cap. 1.4.3 do
presente trabalho.
71
Embora o autor não faça a conceituação entre palavra e item lexical, observa-se que ele utiliza o termo
palavra com o mesmo sentido que se usa nesse trabalho: como a concretização dos elementos listados no
léxico dos falantes da língua.
70
120
corpus, pode fornecer subsídios linguísticos interessantes para o auxílio à identificação
dos tópicos dos textos, proporcionando uma base empírica para sua interpretação
(STUBBS, 2001). Isso acontece porque, ao ler um determinado texto, o leitor procura
estabelecer para ele um sentido a partir das relações linguísticas que ali são
estabelecidas e que incluem relações sintáticas, semânticas, pragmáticas, textuais e
também discursivas. Entretanto, deve-se notar que os padrões, per se, não dariam conta
de explicar de que forma as palavras utilizadas para a construção de determinadas
sentenças são capazes de revelar sentidos culturalmente construídos e que fazem com
que o leitor ative esquemas mentais (DIJK, 2002; KRAMSCH, 1993) específicos dessa
cultura. Como se disse, a perspectiva de estudos da LC é quantitativa e empírica e
procura, na frequência de ocorrência, questões linguísticas intrínsecas às palavras, não
se preocupando com a maneira pela qual essas relações influem na interação entre autor
e leitor.
O que Sardinha (1999a; 2000c), no campo empírico e probabilístico da
Linguística de Corpus, denomina palavras-chave, para Cavalcanti (1989), teorizando
no campo da Linguística Aplicada (língua estrangeira) são itens lexicais chaves. A
autora parte do pressuposto de que problemas de interpretação de textos em língua
inglesa estão relacionados a sinais-chave: os denominados itens lexicais chaves. Para
ela,
[...] os itens lexicais chaves são um elo de ligação entre leitor e texto e
entre as suas características; a partir deles e da sua relação com outros
itens lexicais do texto, molduras, esquemas e valores são ativados pelo
leitor. O conceito de um elemento chave no texto depende
imediatamente dos outros itens a ele associados, fazendo com que a
integração das palavras estabeleça um sentido para o texto.
(CAVALCANTI, 1989, p. 81).
A autora afirma ainda que itens lexicais chaves são expressões cujo significado
baseia-se no contexto no qual eles são usados, ou seja, são caracterizados na relação
com outros itens identificados. O argumento da autora é que:
[...] itens lexicais chaves centralizam informação que tem relações
diretas no texto e relações pragmáticas indiretas na interação leitortexto. Eles servem como espinha dorsal para o estabelecimento de
conteúdo proposicional e força ilocucionária, ativam estruturas de
conhecimento (esquemas ou frames) e os sistemas de valores do leitor;
e subjazem à construção do pressuposto em relação ao todo ou parte
do texto (CAVALCANTI, 1989, p. 75).
121
O que se quer dizer com isso é que a observação de itens lexicais chaves é
essencial no processo interpretativo auxiliando na ativação dos esquemas (vide item
1.4.4.1 deste trabalho) e ainda centralizando informações textuais importantes para a
compreensão.
Associados aos itens lexicais chaves aparecem outros itens72 - denominados por
Cavalcanti (1989) de associativos, contextualizantes e iterativos - os quais são
responsáveis pela indicação do conteúdo semântico, da coesão textual, de como as
orações se relacionam entre si e, ainda, servem como ponto de apoio para o leitor no
estabelecimento da força ilocucionária e do conteúdo proposicional do texto. Para que
itens sejam considerados chaves, na visão de Cavalcanti (1989), devem apresentar
algumas características básicas:
a) Não podem ser itens isolados. Eles vêm com outros itens dentro do texto (p.
ex. associativos e generalizantes);
b) Aparecem repetidas vezes no texto e guiam o leitor através da organização
retórica;
c) Ativam potenciais estruturas de conhecimento do leitor e são resultado da
escolha cuidadosa do autor;
d) São alvos de modificação através de itens restritivos (ex. adjetivos ou
palavras com essa função);
e) Associam-se aos itens associativos (de coocorrência frequente) para construir
coesão lexical – se relacionam semanticamente com tais itens;
f) Apoiam-se a itens iterativos, os quais são aqueles que concretizam a
repetição dos itens lexicais com base na referência ou remissão;
g) Associam-se a itens contextualizantes, isto é, itens que auxiliam o leitor a
identificar
intenções
do
autor
–
ex.
modalizações,
comparações,
generalizações – e estabelecem força ilocucionária ao texto.
Em outros termos, os itens lexicais chave, na visão da autora, teriam o poder de
ativar a interação do leitor com o autor por meio das relações linguísticas estabelecidas
no texto. Adicionadas às características acima, duas propriedades básicas são intrínsecas
aos itens lexicais chave: a propensão à saliência e à direcionalidade de âmbito.
72
A referida autora não utiliza o termo palavra-chave, mas item lexical chave. O termo escolhido para
análise de dados nesse trabalho é, no entanto, palavra-chave por se tratar da concretização específica de
um elemento lexical em contexto e situação específicos (vide conceito específico de palavra-chave ao
final desta seção).
122
A propensão à saliência seria a propriedade de um item lexical de ser localizado
e repetido em partes importantes do discurso, de servir de referente para manter a
coesão textual, de associar-se a outros itens lexicais chave, de ser modificado para
limitar sua interpretação e de ser incluído como membro importante de relações
clausais. Tal propriedade, na visão da autora, pode ser explicada em subitens da
seguinte maneira:
a) Localização: plano principal do discurso que focaliza o fenômeno em
questão (nível global); ou plano principal de uma oração como informação
dado-novo;
b) Colocação: coocorrência de itens comumente associados formando um
ambiente coesivo;
c) Iteração: é repetido nos planos do discurso pela repetição propriamente dita,
pelo uso de sinônimos ou quase sinônimos, uso de superordenados (ex. o uso
no texto do item ‘comportamento’ referindo-se a um item anterior como
‘desobediência’), uso de termos generalizantes (p. ex. o uso do item
‘pessoas’ ao invés de ‘estudantes’), referência pronominal e elipse;
d) Restrição: modificado para restringir seu significado (p. ex. o uso de
adjetivos) e limitar o escopo interpretativo (embora para a autora essa é uma
propriedade menos forte);
e) Relação: membro de relações de contraste, ou comparações, ou sequenciação
do tipo causa-consequência. (ex. coordenação e subordinação).
A segunda característica, da direcionalidade de âmbito, está relacionada à
propriedade de itens lexicais chaves de direcionar a ativação de esquemas e de sistemas
de valores do leitor. É essa propriedade que permite a delimitação do tópico do texto e a
determinação das intenções da comunicação presentes no texto e pode acontecer em três
perspectivas:
1) Semântica: o item supre insumo semântico que canaliza a ativação das
estruturas de conhecimento do escritor e do leitor em direção ao tópico do
texto. Ou seja, ajuda a canalizar as pressuposições e expectativas realizadas
durante as predições do processo de leitura;
2) Pragmática: direciona as intenções subjacentes potenciais no texto e ativa
sistemas de valores do leitor que baseiam a força ilocucionária do texto;
3) Semântico-pragmática: ativa estruturas de conhecimento e sistemas de
valores simultaneamente.
123
Reitera-se aqui que as palavras, embora tenham significados intrínsecos a elas,
ganham sentido nas relações que assumem nos textos em que ocorrem e que sua análise
pode revelar informações importantes presentes na manifestação textual. É o que
Cavalcanti (1989) faz em seu estudo. Ela procura demonstrar que os leitores de língua
estrangeira focalizam algumas palavras (“itens lexicais chave” na terminologia da
autora) dentro dos seus textos de estudo para produzir sentido textual e pragmático. Para
tanto, demonstra como tais itens interagem no texto e com o leitor para a produção de
interpretação numa negociação de sentidos entre autor e leitor por meio do texto. O
argumento da autora é que a centralização da informação textual é dada nas relações
semânticas que acontecem de forma direta no texto e ainda, nas relações pragmáticas
que acontecem indiretamente na relação leitor-autor (CAVALCANTI, 1989, p. 75).
Em sua pesquisa, ainda, a autora faz uma seleção dos itens lexicais chave numa
comparação entre as características dos itens por ela selecionados com os identificados
pelos leitores demonstrando a maneira pela qual os sujeitos da pesquisa os focalizam
durante a leitura para produzir sentidos. Como resultado, a pesquisadora propõe que, em
livros didáticos de língua estrangeira, assim como em LM, atividades de leitura incluam
questões como a identificação de itens lexicais chave como itens salientes do texto, os
quais devem ser estudados como elos semânticos e pragmáticos estabelecidos no texto,
assim como analisados no que diz respeito à organização retórica textual e ao conteúdo
proposicional. Isso porque, para ela, tais itens representam instrumentos úteis para
analisar o aspecto pragmático da interação dos informantes com o texto base.
Ainda em seu trabalho, a autora seleciona alunos de pós-graduação da
Universidade de Lancaster, que já estão convivendo com a leitura em língua estrangeira
(LE) há alguns anos. Isso quer dizer que sua proficiência em LE pode ser considerada
de bom nível, e pode ser, como de fato foi, comparada com a leitura em língua materna.
Embora as leituras tenham ocorrido em tempos distintos, os problemas e indicações dos
informantes não foram de grande diferença. De acordo com a própria autora, a
perspectiva dos itens lexicais chave pode também ser utilizada no âmbito da língua
materna, o que, de fato, acontece no presente trabalho. Esta pesquisa concentra-se
justamente na leitura em língua materna, partindo do pressuposto de que os itens
lexicais chave constituem-se como focalizadores de sentido(s) textual(is) e auxiliam na
construção de estratégias para a compreensão de textos.
Deve-se argumentar que a ocorrência de itens lexicais chave (ou como são
denominados, neste trabalho, palavras-chave) não é aleatória. Se fosse assim,
124
ferramentas computacionais, como os buscadores virtuais, não teriam sucesso algum, e
ainda a seleção de determinadas palavras como chave para a produção de textos
acadêmicos não faria sentido. Antunes (2012) destaca justamente o fato de que algumas
palavras aparecem em um texto com determinada saliência. Para a autora,
pensar nos efeitos decorrentes da escolha das palavras é reconhecer
que, em um texto, uma palavra expressa mais que um sentido; ela
serve também à expressão de uma intenção, de um propósito (às vezes
mais de um!), em função do que determinadas palavras (e não outras)
são particularmente escolhidas. (ANTUNES, 2012, p. 43).
Sendo assim, a escolha de uma palavra em si não significa que sozinha ela é
capaz de dar sentido a um texto todo, mas que ela lidera uma cadeia de relações
específicas como se fosse uma agulha costurando os pontos e amarrando partes para a
construção de uma roupa toda.
Na perspectiva da interação autor leitor via texto, Kleiman (2002), trabalhando
na perspectiva da língua materna, busca descrever aspectos que constituem a leitura, a
qual, para ela, é uma atividade complexa, que envolve processos cognitivos e na qual o
leitor deve estar engajado para construir sentido. Para a autora:
a compreensão de um texto escrito envolve a compreensão de frases e
sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de objetivos,
de intenções, muitas vezes de ações e de motivações, isto é, abrange
muitas das possíveis dimensões do ato de compreender, se pensamos
que a compreensão verbal inclui desde a compreensão de uma charada
até a compreensão de uma obra de arte (KLEIMAN, 2002, p. 10)
A autora explica que há uma série de conhecimentos que entram em jogo
durante a leitura: conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo (vide cap. 1) e que
tais conhecimentos são ativados por meio das palavras presentes no texto de forma
inconsciente. Isso significa que palavras não são simplesmente dados linguísticos, mas
são também insumo para ativações culturais e sociais da mente do indivíduo e que o
leitor faz inferências por meio das relações entre elas no texto. São essas inferências que
permitem a compreensão. Daí a importância de se analisar a forma como essas
interações entre palavras, leitor, autor e texto ocorrem linguisticamente na produção de
sentidos e consequentemente na compreensão textual, conforme discutido no cap. 1. E
ainda, a maneira como o usuário utiliza a língua como forma de expressão de sentido ou
125
construtora de sentidos linguísticos e extralinguísticos tal como discutido no conceito de
competência comunicativa neste capítulo.
Kleiman (2002) ainda afirma que o leitor, ao perceber algumas palavras
presentes no texto e as organizações entre elas, prevê muito daquilo que ele vai
encontrar no texto. Essa tarefa é importante na leitura, pois o auxilia na busca de
informações que confirmem previsões e hipóteses já realizadas. Como se vê no decorrer
deste trabalho, as palavras-chave são capazes de auxiliar o leitor nessa busca de
informações que confirmam expectativas e o ajudam a compreender melhor o texto.
Assim, os elementos formais do texto (p. ex. determinadas palavras, coesão, coerência)
funcionam como um elo que permite ligar as diferentes partes do texto semanticamente
para produzir sentido (KLEIMAN, 2002).
A autora afirma, ainda, que marcas formais do texto - tais como nominalização,
adjetivação, uso de elementos coesivos - auxiliam na reconstrução das intenções do
autor. Por exemplo, a utilização do advérbio ‘talvez’ relativiza o comprometimento do
autor com a verdade da afirmação, ou da conjunção adversativa ‘mas’ demonstra para o
leitor que há uma refutação ali implícita. O leitor não pode deixar tais marcas passarem
despercebidas, pelo contrário, ele deve estar ciente dessas marcas para a reconstrução de
sentidos. Assim, elementos lexicais do texto devem ser identificados para que se
construam posições argumentativas internas ao texto e objetivos implícitos sejam
determinados.
Em suma, Kleiman (2002) assume a postura de que há um esquema de
cooperação entre autor e leitor via texto (o que se denomina interação leitor autor –
CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2002) que leva à construção de sentidos mediante o
encontro de marcas linguísticas específicas ou de saliências, tais como, coerência, itens
lexicais, coesão, ativação de conhecimento de mundo. Tanto para Kleiman (2002),
quanto para Cavalcanti (1989) e Antunes (2012), o autor faz escolhas conscientes das
palavras para a produção textual e o leitor, para interagir com o texto, procura nessas
escolhas a construção de sentidos internos e a posição do autor. As atitudes do autor e
do leitor perante o texto só podem ser percebidas/ construídas a partir dos traços
linguísticos que ali estão. É essa percepção de elementos linguísticos que auxiliam o
leitor a reconstruir um quadro referencial, hierarquizar informações, estabelecer coesão.
Kleiman (2002) não fala em palavras-chave propriamente ditas, mas admite a existência
de marcas lexicais que auxiliam o leitor na tarefa de dar sentido ao texto, o que reforça a
ideia de que atividades de interpretação que consideram a presença de marcas
126
linguísticas salientes podem, de fato, ajudar o leitor na compreensão efetiva e ainda,
levá-lo a um posicionamento mais consciente perante os argumentos expostos no
discurso sob leitura.
Da mesma maneira, Antunes (2012) também não conceitua o termo palavrachave, mas admite a importância da escolha de determinadas palavras para a construção
de sentido textual. Para a autora, as palavras não têm a função única de possuir um
significado intrínseco que se junta a outros significados. Para ela, as palavras são parte
constitutiva de uma rede de relações que sustenta a ideia de texto e interferem na forma
como se produz sentidos para ele. A autora afirma ainda que é importante, de fato, a
identificação de algumas palavras no texto, pois elas são capazes de se ajustar a
determinações semânticas e pragmáticas construídas no texto. Há, a partir das palavras
escolhidas, uma “operação interpretativa, reflexiva, que mobiliza, além de outros, o
conhecimento do léxico da língua” (ANTUNES, 2012, p. 83).
Ao que parece, esse reconhecimento do léxico perpassa as dimensões da
competência comunicativa explorada na seção 2.1. O léxico parece ser o elemento
utilizado para desenvolver tais competências e apreender formatos de uso da língua que
se adaptam aos objetivos dos usuários e estabelecem iteração comunicacional. Segundo
Antunes (2012):
Aplicar-se à análise de como os textos são construídos, são
estruturados e expressos em sequências, de quais recursos lexicais nos
valemos para torná-los capazes de funcionar como peças da interação
verbal é tentar compreender, também, a função das unidades lexicais
no exercício da linguagem verbal (ANTUNES, 2012, p. 91).
É justamente a compreensão das unidades lexicais na interação verbal do texto
que se procura investigar nesse trabalho. Admite-se que a seleção das palavras-chave é
um recurso estratégico utilizado pelos leitores para construir um sentido global a partir
das várias relações (linguísticas e extralinguísticas) estabelecidas durante a leitura.
Antunes (2012) também admite que as palavras funcionam como pistas para guiar o
processo de interpretação. A autora afirma:
É isto: as palavras são “pistas de superfície”; pistas não totalmente
autônomas, mas pistas, indicações, instruções. É como se, por meio
delas, quem fala ou quem escreve fosse nos indicando, a nós, leitores
e ouvintes: ‘por aqui’, ‘por lá’, ‘ao contrário’, ‘volte’, ‘relacione’,
‘adicione’, ‘compare’, ‘exclua’, ‘conclua’ etc. [...] as palavras, em
127
geral, respeitam as demarcações de seus significados de base.
(ANTUNES, 2012, p.96-97 – aspas da autora).
Diante dessa explanação, reforça-se a importância das palavras na construção de
sentidos para o texto. Ainda, pode-se dizer que elas funcionam como um componente da
competência estratégica que possibilita a utilização das demais competências linguistica, sóciointercultural e discursiva. Ou seja, o usuário pode empregá-las como
um elemento de apoio para a utilização da sua competência comunicativa. Neste
trabalho, daqui em diante, opta-se pela utilização do termo palavra-chave ao invés de
item lexical chave, considerando que se tem uma concretização de um elemento lexical
em um contexto e situação específicos73. Parte-se da ideia de que elas focalizam
sentidos textuais – proposta de Cavalcanti (1989) – acrescentados à argumentação de
Kleiman (2002) de que marcas linguísticas formais são importantes na construção de
sentidos textuais. Essa afirmação tem o intuito de demonstrar que, por meio das
denominadas palavras-chave, pode-se estabelecer uma relação estratégica do leitor com
o texto que facilite a sua compreensão.
Em suma, utiliza-se o termo palavra-chave para referir-se aos itens salientes no
texto que auxiliam o leitor a construir uma cadeia de relações semânticas e pragmáticas
para a construção de sentido textual. Admite-se ainda que tais palavras são marcas
formais do texto que levam o leitor a interagir com ele e a identificar sentidos. Reiterase que se considera que palavras-chave são uma ferramenta da competência estratégica
capaz de ativar elementos linguísticos, discursivos e sociointerculturais que auxiliam na
construção de um sentido global para o texto, assim como para a identificação de
sentidos particulares.
Discutem-se, agora, os procedimentos metodológicos adotados para chegar-se a
uma situação de escolha das palavras-chave pelos sujeitos da pesquisa e a maneira como
os dados são tratados.
73
Parte-se da diferença entre item lexical e palavra exposta nas p. 110-115 deste trabalho.
128
3 PERCURSO METODOLÓGICO
Partindo de uma abordagem qualitativa, de cunho interpretativista (LUDKE;
ANDRE, 1986; MOITA LOPES; ERICKSON, 1992), a presente pesquisa de tese tem a
intenção de observar as relações estabelecidas entre as palavras-chave e o texto como
um todo na construção de sentidos pelo leitor, a partir de pressupostos linguísticos e
extralinguísticos.
Sendo assim, toma-se como ponto de partida a escolha, pelos alunos, de
palavras-chave presentes nos textos selecionados para a pesquisa, com o objetivo de
demonstrar a forma como esses itens interagem com outros no texto e com o
conhecimento prévio do leitor construindo assim sentido(s) textual(is). O problema
principal que se coloca neste trabalho é pesquisar de que maneira a seleção das
palavras-chave pode ajudar o leitor na movimentação de seu conhecimento prévio, na
identificação do sentido e do propósito global do texto e funcionar como uma estratégia
para estabelecer interação durante a leitura e construir interpretação textual.
Com base nesse problema colocado para a pesquisa, os questionamentos
norteadores são expostos, a seguir, para que guiem as escolhas metodológicas realizadas
para o desenvolvimento do trabalho:
1)
Certas palavras encontradas em um texto podem fornecer pistas
linguísticas relacionadas às informações presentes nesse texto, as quais
devem ser identificadas pelo leitor (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998;
ANTUNES, 2012). Então, pode-se dizer que ao selecionar as palavraschave, os leitores, mesmo que de forma intuitiva, consideram
características diversas tais como gramaticais (ex. a classe gramatical
da palavra ou suas relações semânticas), sociointerculturais (ex. um
sentido social, ideológico ou cultural construído para a palavra) ou
discursivas (ex. a relação tema-rema na frase ou no texto) relacionadas
à competência comunicativa do leitor e que o levam a (re)construir
sentido(s) do texto(s)?
2)
Ao iniciar a interação com um texto por meio da leitura, o leitor
considera algumas relações léxico-semântico-pragmáticas entre as
palavras que observa e formula possibilidades interpretativas. Essas
possibilidades interagem com todo o conhecimento do leitor na
produção de sentidos como num diálogo entre leitor e autor por meio
129
do texto (KLEIMAN, 2002; CAVALCANTI, 1989). Assim, a seleção
das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou
reconstrução das interpretações iniciais74 feitas pelo leitor durante o
processo de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na
construção de sentidos?
3)
As palavras selecionadas pelo autor para produzir um texto estão
organizadas e relacionadas a partir de conhecimentos linguísticos,
textuais e de mundo compartilhados na comunidade linguística em que
tal texto está inserido (KLEIMAN, 2002; KOCH; ELIAS, 2010;
KOCH; TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).
Então, o leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para
identificar sentidos intra e inter texto, assim como para negociar novos
sentidos para o texto e para si mesmo?
Faz-se necessário, portanto, o desenvolvimento de alguns passos metodológicos
que serão descritos neste capítulo. A princípio, deve-se ter em mente que, para que
fosse feita uma coleta de dados a partir da qual se pudesse contar com maiores detalhes
e informações, optou-se por realizar uma coleta piloto com duas turmas diferentes em
duas escolas públicas estaduais da cidade de Cascavel – PR. Uma delas foi selecionada
para a pesquisa definitiva e a outra foi descartada por possuir características similares.
Tal coleta foi realizada no segundo semestre do curso de doutorado (2010.2) e a partir
dela chegou-se a algumas conclusões importantes para a coleta definitiva, tais como a
adequação do número de textos e de questões propostas nas atividades.
Após as devidas adaptações, a coleta definitiva foi realizada com a intenção de
arrolar os dados necessários para responder os questionamentos da tese. A referida
coleta foi feita depois da formulação do plano de trabalho75, o qual foi construído
durante os últimos meses do segundo semestre (2010.2) e os primeiros meses do
terceiro semestre do curso (2011.1), sendo esse também o período em que tal coleta se
74
Alguns autores que trabalham com leitura denominam essas interpretações primárias de “hipóteses de
leitura” (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, (1998); COLOMER;CAMPS, 2002). No entanto, deve-se lembrar que
o termo não se refere a hipóteses de pesquisa e sim às formulações de interpretação feitas pelo leitor ao se
deparar com um determinado título, formato textual ou palavras em um texto. Com o intuito de evitar
confusão de termos, nesta pesquisa utiliza-se o termo “questionamentos” ou “questões norteadoras” para
referir-se aos pontos principais que suscitam a investigação aqui apresentada. E utiliza-se o termo
“possibilidades, interpretações ou formulações iniciais de leitura ou interpretação” para as primeiras
ideias que o leitor constrói ao iniciar a interação com um determinado texto.
75
Os planos das coletas piloto e definitiva encontram-se, respectivamente, nos anexos A e B deste
trabalho.
130
realizou. Para essa coleta foram selecionadas também duas turmas – uma do período
matutino e outra do período noturno – na mesma escola pública da cidade de Cascavel.
A seguir, explicam-se todas as decisões metodológicas tomadas, incluindo o
processo de seleção das turmas, dos textos, das atividades realizadas e das palavraschave. Todos os instrumentos de coleta de dados utilizados nessa pesquisa foram
pensados e criados pela pesquisadora com o intuito de alcançar os objetivos expostos no
projeto de tese e responder os questionamentos norteadores da pesquisa.
3.1 AS DATAS E O NÚMERO DE AULAS DA(S) COLETA(S)
A coleta piloto foi realizada com duas turmas de ensino médio entre os dias 28
de setembro e 05 de outubro de 2010, com o objetivo de testar tempo, atividades e
outros detalhes que eventualmente pudessem surgir para a coleta definitiva. A escolha
da data foi realizada devido a dois fatores principais:
a) Em contato com a escola, as professoras da disciplina de língua portuguesa
alertaram para o fato de que ao final do mês de outubro seria difícil para elas
cederem algumas aulas para a coleta devido à realização dos trabalhos e provas
finais do ano letivo;
b) A coleta piloto precisaria ser finalizada ainda antes do fim do segundo semestre
de 2010, visto que, no primeiro semestre de 2011, haveria o estágio de pesquisa
a ser cumprido em Salvador. A intenção era a de que entre a coleta piloto e a
definitiva, se tivesse algum tempo para reorganização, reflexão e replanejamento
das atividades. Assim, visto que a coleta piloto foi feita em início de outubro,
ainda se teria 3 (três) meses para repensar a coleta definitiva.
Já a coleta definitiva de dados foi realizada entre os dias 14 e 24 de fevereiro de
2011 (semestre 2011.1), anterior ao período de cumprimento de estágio de pesquisa em
Salvador. A razão para a data foi aproveitar o início das aulas na escola pública
selecionada em Cascavel-PR e ainda trazer os dados para as orientações que deveriam
ser realizadas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O número de aulas utilizadas para a aplicação das atividades também foi
diferenciado para a coleta piloto e para a definitiva. Na coleta piloto foram selecionadas
duas aulas (geminadas) para o trabalho com dois textos. No entanto, viu-se que o
número de aulas não foi suficiente para aplicação das atividades, principalmente pela
131
necessidade de que os alunos escrevessem todas as respostas76, o que demandou muito
tempo. Assim, para a coleta definitiva, foram selecionadas 5 aulas para o trabalho com
os três textos (duas aulas geminadas77, outras duas aulas geminadas, e mais uma aula).
Três fatores principais foram pensados para as coletas de dados (tanto a piloto
quanto a definitiva) e serão descritos na sequência deste trabalho: 1) a escolha e o perfil
das turmas; 2) a seleção dos textos de pesquisa; 3) a elaboração e a aplicação das
atividades.
3.2 A ESCOLHA E O PERFIL DAS TURMAS
Escolheu-se realizar a pesquisa de tese com alunos de 3º ano de ensino médio
porque se supõe que tais alunos já têm familiaridade com a língua, uma caminhada
escolar e proficiência maior de leitura se comparados com alunos de séries anteriores.
Em contato com as escolas, escolheram-se duas turmas para a coleta piloto – uma do
período matutino e outra do noturno – em duas escolas públicas. O motivo da escolha
de duas turmas em períodos e escolas diferentes foi justamente o de observar se, de fato,
contextos diversos poderiam trazer resultados diferenciados com relação às
interpretações e ainda validar a utilização de turmas diferentes para a coleta definitiva.
Uma das turmas de 3º ano de ensino médio tinha 26 alunos e a outra 21 alunos,
totalizando 47 alunos em duas escolas Estaduais da cidade de Cascavel78.
Notou-se, a partir da coleta piloto, que a quantidade de dados de duas turmas já
era suficiente para que se pudesse responder os questionamentos norteadores 79 da
pesquisa. Isso porque cada uma das turmas teria em média 30 alunos e para cada aluno
seriam aplicados três textos durante a coleta definitiva de dados, o que significaria, em
média, 180 atividades a serem analisadas. Assim, para tal coleta, optou-se por manter o
número de duas turmas.
Outro ponto interessante com relação às turmas foi a diferença das respostas e da
participação observadas entre os trabalhos realizados com os grupos da coleta piloto. A
participação e o envolvimento dos alunos do matutino pareciam ser maiores que os dos
alunos do período noturno. Ainda, as respostas dadas aos questionamentos feitos
76
Vide descrição das atividades na seção 3.4
A sugestão das turmas que tinham aulas geminadas foi da professora da escola, pois segundo ela,
trabalhos com leitura e interpretação são mais efetivos quando não se tem o corte para aulas posteriores.
78
Opta-se por não incluir, durante a análise de dados ou descrições metodológicas, os nomes das escolas,
professores ou alunos envolvidos no processo.
79
Cf. início do cap. 3 (p. 129-130).
77
132
apresentavam possibilidades diferenciadas entre os dois turnos. Procurou-se verificar se
essa diferença se dava entre as escolas ou entre os turnos. Conversou-se, então, com a
coordenação e com professoras de ambas as escolas (que possuíam turmas em outras
escolas) que, quando questionadas se a maior diferença estaria entre turnos ou escolas, a
resposta foi, no geral, a mesma: os alunos de turnos diferenciados geralmente
apresentavam posicionamentos distintos com relação à leitura, o que nem sempre
acontece com escolas diferentes, embora todos os grupos, de fato, tenham
suas
peculiaridades.
A partir disso, optou-se por realizar a coleta definitiva dos dados em uma mesma
escola, visto as grandes semelhanças entre as duas instituições escolares utilizadas na
coleta piloto. Tais semelhanças devem-se principalmente ao fato de que ambas as
escolas situam-se em locais próximos da cidade, atendendo, de acordo com as
coordenações, o mesmo perfil socioeconômico de alunos. No entanto, mantiveram-se os
turnos diferenciados – um matutino e outro noturno.
Além disso, percebeu-se outro fator importante para a coleta definitiva: delinear
o perfil dos alunos a serem trabalhados em cada grupo, uma vez que atividades de
interpretação podem ser influenciadas pelas experiências dos alunos com culturas,
comportamentos e estilos de vida diferentes80. Criou-se, então, um questionário
sociocultural81, que foi aplicado nas turmas da coleta definitiva com o intuito de traçar o
perfil dos sujeitos pesquisados e observar se algumas das informações por eles
fornecidas poderiam, de alguma maneira, ser influenciadas pela classe econômica,
gostos pessoais, profissão dos pais etc.
Em suma, as turmas selecionadas para a coleta definitiva foram compostas de
dois grupos de 3º ano de ensino médio, assim classificadas: Turma A: matutino – 32
alunos e Turma B: noturno – 42 alunos.
A escola selecionada para a pesquisa está localizada no centro da cidade e abarca
aprendizes de várias regiões da cidade, embora sejam priorizados alunos que morem
próximo ao local da escola. Apresenta-se, em seguida, uma descrição feita com base nas
respostas dadas ao questionário sociocultural aplicado aos alunos das turmas A e B
selecionadas para o trabalho.
Na turma A, notou-se que, dos 32 alunos pesquisados, a maioria tem 16 anos
(somente dois com 17 anos) e dividem-se em 26 meninas e 6 meninos. Ainda, desses
80 Cf. cap. 1.3.4 sobre conhecimento de mundo e cap. 2.2.2 sobre competência sociointercultural.
81
O questionário sociocultural encontra-se no apêndice C deste trabalho.
133
alunos, somente 3 nasceram fora de Cascavel ou da região Oeste do Paraná. Já a turma
B possui 44 alunos, dentre eles, 20 meninas e 22 meninos, a grande maioria também
nascidos em Cascavel ou região Oeste do Paraná (30 alunos). Ressalta-se o fato de que
nem todos os alunos de ambas as turmas participaram de todas as atividades, fazendo
com que as atividades destes alunos faltosos fossem descartadas. Assim, o total de
alunos incluídos na análise são 29 para a turma A e 26 para a turma B.
Com relação à idade da turma B, notou-se uma diferença grande, se comparada à
turma A: a maior parte dos alunos encontra-se na faixa etária dos 16 aos 18 anos (pouco
mais que 50% dos alunos pesquisados), embora houvesse alunos de diferentes idades acima de 20 anos - incluindo um participante de 42 anos de idade. Observou-se,
também, que as turmas são bastante diferenciadas no que diz respeito a gênero: a
primeira turma é predominantemente feminina, enquanto a segunda possui um número
balanceado de meninas e meninos.
No que diz respeito ao perfil de formação educacional dos alunos da turma A,
foi demonstrado que a grande maioria dos alunos cursou ensino fundamental em escola
pública e todo o ensino médio na escola da pesquisa (somente 7 cursaram parte do
ensino médio em outra escola pública). Os alunos são, na sua maioria, estudantes
(embora 9 deles trabalhem como estagiários para auxiliar na renda familiar) e sempre
frequentaram a escola no período diurno.
Na turma B, ficou evidenciado também que a maior parte cursou todo o ensino
fundamental e médio em escola pública, mas 18 participantes sempre estudaram na
escola da pesquisa. Os demais cursaram parte de seu ensino médio em outras escolas
públicas da cidade. Ainda com relação à turma B, 17 alunos afirmaram que estudaram
quase todo o ensino médio no período diurno e os demais sempre estudaram no noturno.
O motivo para haver diferença entre os alunos que sempre estudaram no diurno – turma
A – para os que estudaram parte no diurno e parte no noturno ou totalmente no noturno
pode ser explicado pelo número de alunos que trabalham na turma B: 20 dos alunos
pesquisados. Ou seja, no que diz respeito ao perfil estudantil e profissional dos alunos,
verificou-se que na turma A, a maior parte dos sujeitos é estudante, enquanto que na
turma B, mais de 50% da turma já possui atividades profissionais. A maioria dos
134
trabalhos dos alunos volta-se à área de prestação de serviços gerais (recepcionista,
auxiliar de escritório, auxiliar de serviços gerais etc.)82.
O perfil familiar dos alunos da turma A inclui famílias de 4 a 5 pessoas, na sua
grande maioria, com renda média de 3 a 7 salários mínimos. Ainda, a maior parte dos
pais possui ensino médio completo e há uma tendência maior para mães mais
escolarizadas (4 mães têm ensino superior completo e apenas 2 pais o possuem). Com
relação à turma B, as famílias possuem na sua maioria 4 membros (13 alunos), notandose a presença de famílias grandes (6 alunos têm famílias com 6 ou mais membros). A
renda das famílias é menor que a turma A, uma vez que quase todos os alunos possuem
renda familiar de 1 a 5 salários mínimos. Na turma B ainda, os dados revelam que o
nível de escolarização dos pais é relativamente baixo: a maioria possui nível de ensino
fundamental incompleto (8 mães e 10 pais) e um número maior de mães (8 mães e 5
pais) com nível médio completo.
O nível socioeconômico das turmas pode ser percebido também no perfil de
atuação profissional dos pais: tanto na turma A quanto na turma B a maior parte dos
pais possui trabalhos ligados à prestação de serviços (autônomo, gerente de vendas,
pedreiro, professora, operador de máquinas, motorista de caminhão etc). Com relação às
mães, tanto na turma A quanto na B houve um grande número de mães que são donas
de casa (8 na turma A e 15 na turma B).
Com relação às expectativas profissionais demonstradas pelos alunos, também
nota-se uma diferença grande entre os grupos A e B. No primeiro grupo, 100% dos
alunos pesquisados declararam que pretendem prestar ENEM (Exame Nacional de
Ensino Médio) e um maior número (comparados à turma B) pretende frequentar
universidade pública (17 alunos – mais de 65% da turma), sendo que nenhum aluno
declarou que não pretende cursar universidade. Ainda, os dados revelam que em média
50% dos alunos da turma A pretende fazer algum curso relacionado às ciências médicas
ou da saúde (medicina, psicologia, enfermagem etc).
No segundo grupo, 7 alunos declararam que não pretendem prestar ENEM e 4
afirmaram que não pretendem prestar vestibular. Cerca de 44% da turma pretende
cursar universidade pública (13 alunos) sendo que um número igual de alunos declarou
que pretende estudar em universidade pública ou privada. Entre os cursos pretendidos
82
Vide anexo A deste trabalho os dados dos questionários socioculturais tabulados. Não se pode observar
um padrão nítido quanto à profissão dos alunos, visto que na maioria dos casos são profissões bem
diferentes. Todas, no entanto, voltadas à prestação de serviços.
135
para os alunos desse grupo, a maior parte planeja cursar graduações da área de ciências
exatas (engenharias, arquitetura, agronomia) e um número similar pretende cursar
graduações relativas à área administrativa. Veja-se o gráfico I a seguir para a
observação das carreiras profissionais desejadas pelos informantes:
GRÁFICO 1 – Expectativas profissionais dos informantes das turmas A e B
Nota-se, portanto, uma grande diferença entre o perfil de interesses profissionais
da turma A e B: o primeiro grupo tem maior interesse em ciências médicas e da saúde e
o segundo tem maior interesse em cursos orientados para as ciências exatas. Tal
interesse pode influenciar a interpretação da turma A no texto 2, cujo tema é engenharia
genética o que, em princípio, seria mais interessante para os sujeitos dessa turma. Ou
seja, o tema do texto 283 pode provocar uma maior interação dos alunos da turma A.
Esse fato é analisado na discussão dos dados.
Quanto ao perfil das turmas com relação à leitura, viu-se nas respostas dos
questionários que a maioria dos alunos, tanto na turma A quanto na turma B, declarou
ter dificuldades para realizar avaliações de interpretação textual. Os sujeitos
pesquisados ficaram divididos entre as respostas em que afirmavam possuir dificuldades
ou em que pretendiam progredir até a data dos testes do ENEM e do vestibular. Quando
questionados com relação às suas maiores dificuldades, grande parte dos alunos tanto da
83
A descrição dos textos de pesquisa são realizadas na seção 4.1 deste trabalho uma vez que ao descrever
os textos algumas interpretações já realizadas na análise podem ser trazidas à discussão.
136
turma A quanto da B, afirmou ter algum tipo de dificuldade, seja para responder as
questões da professora ou as do livro, seja para entender o assunto geral do texto.
Outro dado importante é a forma como os alunos selecionam os textos para sua
leitura. A maior parte deles, de ambos os grupos, afirmou selecionar os livros pelos
temas específicos, pelo título ou por resumos o que, a princípio, confirmaria a afirmação
de que dados iniciais do texto guiam o leitor no estabelecimento de possibilidades
interpretativas e, consequentemente, na escolha das palavras-chave (questionamento 2).
Tal afirmação também será discutida na análise dos dados.
Ainda, há um número diferenciado entre os alunos das turmas A e B que
declararam realizar leituras frequentes como se pode ver no gráfico II abaixo:
GRÁFICO 2 – Frequência das leituras das turmas A e B
Na turma B, notou-se uma diferença grande entre os alunos que declaram não ler
com frequência para os que leem todos os dias, dividindo a turma em dois perfis de
alunos bem diferentes no que diz respeito à preferência em leitura. Já na turma A,
observou-se um maior número de alunos que declara ler quase todos os dias ou de duas
a três vezes por semana, o que caracteriza a turma A como de leitores mais frequentes.
Esse dado é ainda reforçado pelo número de livros que os alunos dizem ter lido no ano
anterior: para a turma A, 13 alunos dizem ter lido mais de três livros e outros 13
afirmam ter lido no máximo 2, o que faz com que a turma tenha um comportamento
mais assíduo com relação à frequência das leituras; para a turma B, o maior número de
137
alunos (17 alunos) afirma ter lido no máximo dois livros, o que caracteriza a turma
como de leitores menos aplicados.
Vejam-se, agora, os tipos de leituras realizados pelos alunos. O gráfico III a
seguir auxilia nessa observação:
GRÁFICO 3 – Tipos de leituras realizados pelas turmas A e B
Entre os tipos de leitura favoritos estão livros de literatura em geral – maior para
a turma A (os quais foram indicados como na sua grande maioria romances – 8 alunos
para a turma A e 2 para a turma B) e revistas que tem um número similar para ambos os
grupos. Entre as revistas mais citadas estão aquelas de conhecimentos gerais ou notícias
tais como Veja, Super Interessante, Isto é, Época, não se excluindo apontamentos a
revistas de fofocas ou femininas84 (Caras, Capricho, Toda Teen). Um apontamento
interessante está no número igual de livros técnicos indicados pelos sujeitos dos dois
grupos. No entanto, os temas indicados foram bem diversificados estando, na sua
maioria, relacionados às respectivas profissões dos leitores que já trabalham.
Outro dado importante diz respeito à utilização da internet. Conforme os
gráficos acima há um grande número de alunos que afirma não ler frequentemente ou
que diz ler pouco. No entanto, a maioria dos alunos declarou possuir na internet a
ferramenta de uso diário para se manter informado e fazer trabalhos escolares, o que
significa que há um grande número de leituras realizadas na internet. Em ambas as
84
Vide dados no anexo A deste trabalho.
138
turmas, os alunos declararam possuir computador com internet em suas residências
(98% dos alunos pesquisados). O número de 2% que afirma não possuir computador
com internet é relativo a estudantes da turma B (5 estudantes), o que reforça os dados de
que alunos dessa turma realmente têm menor acesso a atividades de leitura diária. Entre
os sites mais visitados pelos alunos estão os de redes sociais (50 indicações85 para a
turma A e 16 para a turma B) e de portais de notícias (15 indicações para a turma A e 14
para a turma B).
Com relação ao tempo gasto na internet diariamente, nota-se também uma
diferença. Para a turma A, a maioria dos alunos passa um tempo médio de 3 a 4h na
internet por dia e para a turma B, a maior parte dos alunos declarou usar o recurso entre
1h e 2h diárias. Tal dado pode ser justificado pelo fato de que nessa turma um número
maior de alunos possui, além dos estudos, atividade profissional, o que reduz
consideravelmente o tempo livre para utilização da internet como atividade de lazer,
assim como para atividades de leitura diversificadas ou para estudo. Essa observação é
ainda reforçada pelos dados fornecidos pelos alunos: na turma A o número de horas
semanais dedicadas aos estudos é maior (entre 2 e 5h) do que na turma B (menos de 1h
até 2h).
As descrições expostas sobre o perfil dos alunos certamente são importantes para
a análise de dados deste trabalho de tese. Isso porque a maior ou menor interatividade
dos alunos com determinados contextos e interesses influencia na maneira como leem
os textos. Por exemplo, na primeira crônica, cujo tema é educação e profissão, os dados
do perfil econômico das famílias e das pretensões profissionais dos alunos podem trazer
algumas diferenças com relação à forma com que interagem com o texto por meio da
palavra-chave. Outro exemplo pode estar no que diz respeito ao segundo texto. Este
possui um tema relativo às ciências da saúde (engenharia genética) o que poderia
produzir uma interação diferenciada da turma A com relação à turma B pelo fato dos
interesses da primeira com relação ao assunto serem maiores do que a segunda. Tais
observações são discutidas na análise dos dados.
3.3 A SELEÇÃO DOS TEXTOS DE PESQUISA.
85
Na tabulação dos dados, os sites foram contabilizados pelo tipo de site indicado, o que justifica o
número maior (50) que o número de alunos da turma (34). Assim, se um aluno indica Facebook e Orkut
como sites mais pesquisados, eles serão contabilizados duas vezes na indicação para redes sociais.
139
O passo metodológico seguinte foi selecionar os textos de pesquisa. Essa fase é
importante porque os textos são a base da qual se está partindo para analisar as relações
linguísticas e extralinguísticas mantidas entre as palavras que auxiliam na produção de
sentido textual. Ou seja, é dos textos que se parte para a discussão da questão de que o
leitor, por meio da palavra-chave, identifica as relações mantidas entre as palavras e os
demais conhecimentos subjacentes à manifestação textual, e, a partir disso, seu trabalho
de encontrar um sentido global é facilitado. É ainda com base nos textos que se pode
analisar se, partindo da identificação das interligações entre as palavras-chave, o texto e
os conhecimentos de mundo, o leitor interpreta e expõe sua compreensão textual,
influenciado por tais relações.
Assim, com o intuito de verificar as relações linguísticas mantidas entre palavras
e de descrever que tipo de comportamento linguístico as palavras desse corpus mantêm
entre si que são capazes de revelar significados textuais importantes, optou-se pela
seleção de textos, tanto da coleta piloto, quanto da definitiva, seguindo os seguintes
critérios:
a)
Pertencer ao uso comum, diário dos alunos. Devido ao fato da pesquisa
se realizar em ambiente pedagógico – ensino médio – decidiu-se fazer a
seleção de textos presentes em livros didáticos das escolas de pesquisa,
uma vez que esses materiais contêm textos que devem ser compreendidos
em aulas de interpretação;
b)
Apresentar tipologias e gêneros textuais diferentes, a fim de verificar se a
seleção de palavras-chave é influenciada pela identificação do próprio
leitor com determinadas formas construtivas dos textos. De fato, sabe-se
que o tipo textual, assim como seu gênero, influi na interpretação
(KLEIMAN, 2002; KOCH, 200986). Isto é, alguns alunos podem ter um
maior conhecimento linguístico de textos informativos, tais como
reportagens, por exemplo, e consequentemente teriam maior facilidade
de interpretação nesse gênero. A utilização de tipos e gêneros diferentes
pode auxiliar na observação sobre a relação que existe entre os gêneros
(conhecimentos textuais) e a interpretação construída pelos alunos;
c)
Expor temas diversificados. O fato de o aluno conhecer um determinado
tema mostra que seu conhecimento enciclopédico com relação àquele
86
Cf. cap. 1.3.3.
140
assunto é maior, o que indica maior interação do leitor com o texto
(KOCH, 2009). Assim, com diferentes temas, é possível verificar os
vários modos de interação com os diferentes assuntos tratados;
Os mesmos textos foram selecionados para serem aplicados às duas turmas
selecionadas, com o intuito de realizar uma análise comparativa e observar as
interpretações de grupos diferentes. O motivo para isso foi o de realizar uma descrição
mais criteriosa das diferentes relações mantidas pelos itens, a partir do ponto de vista de
diferentes leitores.
Sendo assim, primeiramente para a coleta piloto, dois textos foram escolhidos
com base nesses critérios:
- Texto 1: uma crônica de Rubem Alves, intitulada “Política e jardinagem”
presente em um dos livros didáticos trabalhados da rede pública estadual de Cascavel
(“Português: Língua, literatura, produção de texto”87) e trata do tema relações
políticas.
- Texto 2: uma poesia de Manoel Bandeira, intitulada de “Poética” retirado de
outro livro utilizado na rede pública estadual de ensino (Português linguagens.
Literatura, Produção de texto, gramática Vol.388) e fala sobre o tema lirismo.
Ambos os textos89 seguem os critérios estabelecidos: são retirados de livros
didáticos escolhidos pelas professoras para trabalhar nas turmas da(s) escola(s), têm
gêneros diferentes (crônica e poesia), e expõem temas diferentes (respectivamente
política e lirismo).
A partir do trabalho com os textos, percebeu-se que os critérios foram válidos
para a coleta piloto, sendo que a diferença entre gêneros textuais se destacou entre eles.
Então, optou-se por aumentar o número de textos a serem trabalhados na coleta
definitiva para três a fim de verificar quais as reais diferenças de interação o assunto, o
gênero e o formato textual podem trazer. Tal decisão foi baseada na primeira questão da
pesquisa, ou seja, saber se o leitor utiliza a palavra-chave para canalizar diferentes
níveis da competência comunicativa (gramatical, discursiva, sociointercultural). O
objetivo principal com essa escolha foi utilizar um maior número de textos para
demonstrar nas palavras-chave os motivos pelos quais alguns sentidos se sobrepõem a
outros na interpretação dos alunos e observar a forma como as dimensões da
87
ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Ed. Moderna, São Paulo,
2005.
88
CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. 5 ed., Atual editora, São Paulo, 2005.
89
Os textos encontram-se no apêndice A deste trabalho de tese juntamente com as atividades propostas.
141
competência comunicativa foram utilizadas pelos informantes em manifestações
textuais diferentes.
Assim, no caso da coleta definitiva, foram selecionados três textos com base nos
mesmos critérios da coleta piloto, os quais são listados90 a seguir:
1) O primeiro texto: uma crônica de Moacyr Scliar intitulada “Nada como a
instrução”. A crônica foi retirada do livro didático Português linguagens.
Literatura, Produção de texto, gramática Vol.391. O texto selecionado tem
tipologia narrativa e apresenta três personagens: o narrador, o senhor e o menino
que dialogam em torno de um assunto cotidiano: a escolarização e suas
consequências na classe social dos personagens;
2) O segundo texto - um artigo de opinião intitulado “O dilema genético” de
Marcelo Gleiser, o qual também foi retirado do livro didático Português
linguagens. Literatura, Produção de texto, gramática Vol.3. Esse texto é de
formato dissertativo informativo com tipologia argumentativa, em que o autor
procura demonstrar críticas e benefícios da evolução da ciência genética
focalizando três subtemas principais: os transgênicos, a clonagem e as célulastronco;
3) O terceiro texto: um poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Poema
de sete faces”. O texto foi retirado do livro “Português: Língua, literatura,
produção de texto”92. No poema, construído em sete estrofes, Drummond relata
algumas fases de vida apontando emoções vividas, principalmente tristeza,
comoção e angústia.
Os três textos apresentados são trabalhados com os alunos a partir de atividades
de leitura que visem responder os questionamentos da pesquisa. Os exercícios
realizados são analisados nos capítulos 4 e 5 observando-se a escolha das palavraschave pelos alunos e a maneira como eles constroem as interpretações, bem como
focalizam sentidos textuais.
90
Todos os textos de pesquisa encontram-se no apêndice B deste trabalho e uma descrição dos textos é
realizada no cap. 4.1
91
CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. 5ª edição, Atual editora, São Paulo,
2005.
92
ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Ed. Moderna, São Paulo,
2005.
142
3.4 AS ATIVIDADES REALIZADAS
Os planos de trabalho93 elaborados tanto para a coleta piloto quanto para a coleta
definitiva visaram à observação da interpretação realizada pelos alunos. Vale a pena
lembrar que, uma semana antes das atividades serem aplicadas, fez-se uma visita à
escola para conversar com os alunos sobre quais atividades seriam realizadas para que
eles não se sentissem avaliados com o trabalho. Explicou-se a pesquisa e esclareceu-se
que o objetivo principal era refletir sobre a construção do processo de interpretação que
leitores de ensino médio apresentam com relação aos mais diversos textos.
Para a elaboração dos planos de trabalho, pensou-se em atividades94 divididas
em três momentos para contemplar a leitura como um processo interativo e global: préleitura – exercício 1; leitura - exercícios 2 e 3; discussão do texto - exercício 4. No
entanto, deve-se notar que se verificou, na coleta piloto, que as atividades, por serem
todas escritas, demandavam muito tempo para sua realização por parte dos alunos.
Embora se tenham mantido os três momentos, o número de questões foi adequado da
seguinte maneira:
a) Na coleta piloto foram propostos dois exercícios na atividade de pré-leitura,
incluindo a análise do título a ser realizada de forma oral; um exercício na atividade de
leitura - a escolha das palavras-chave; e quatro perguntas na discussão do texto. Já para
a coleta definitiva foram realizados um exercício de análise do título na fase de préleitura; dois exercícios na leitura; e um exercício com três perguntas na atividade de
discussão do texto;
b) Na coleta piloto, o momento de leitura foi realizado em um único exercício - a
seleção das palavras-chave. Já para a coleta definitiva, esta fase foi subdivida em duas
partes – as primeiras interpretações (exercício 2) e o levantamento das palavras-chave
(exercício 3). A divisão desta fase em duas partes teve o intuito de observar, mais
claramente nos dados, a maneira como os leitores construíam os fios semânticos
(CAVALCANTI, 1989) que conduziam sua interpretação (questionamento de pesquisa
2). Com o intuito de esclarecer a apresentação das atividades, foi elaborado o quadro a
seguir que demonstra as diferenças entre as coletas e a escolha das atividades:
93
Os planos de trabalho da coleta piloto e definitiva estão, respectivamente, nos anexos A e B deste
trabalho de tese.
94
Vide atividades expostas no plano de trabalho – Apêndice B
143
QUADRO 4 – Atividades realizadas nas coletas piloto e definitiva
Atividade
Pré-leitura
Questão de
pesquisa
observada
2
2
Leitura
2
1
Discussão
3
Coleta Piloto
1)
Análise do
título – atividade oral
2)
Primeira
leitura – anotação das
interpretações
3) Escolha das
palavras-chave
Coleta definitiva
1)
Análise do título
– atividade escrita
2) Primeira leitura –
anotação das
interpretações
3) Escolha das palavraschave
Quatro (4) perguntas –
Três (3) perguntas –
atividade escrita
atividade escrita
Assim sendo, as atividades são descritas a seguir organizadas de forma a
responderem os questionamentos da pesquisa, os quais são retomados e relacionados à
escolha das atividades:
1) Para a checagem do primeiro questionamento - a relação entre a escolha da
palavra-chave e a utilização da competência comunicativa do leitor na
construção de sentidos95:
Num primeiro momento, explicou-se aos alunos o conceito (genérico e não com
detalhes teóricos) das palavras-chave, afirmando que são palavras que auxiliam na
focalização de sentido textual e na construção de um sentido global para o texto.
Na sequência, foi proposta uma atividade de leitura (exercício 3), na qual os alunos
deveriam imaginar que teriam que explicar o texto uma semana depois e não poderiam
ter acesso a ele. Deveriam, assim, escolher até 5 palavras para anotar e lembrar do texto.
Os alunos foram solicitados então a selecionar as palavras-chave e explicar os motivos
para a sua escolha. Essa atividade foi primeiramente realizada de forma oral para que
todos os alunos realmente a compreendessem e, logo após, foi fornecido tempo para que
todos os alunos anotassem suas justificativas.
Essa foi a terceira atividade proposta de leitura do texto (momento de leitura), pois
os alunos precisavam ter uma familiaridade maior com o texto para que selecionassem
as palavras-chave. As anotações feitas pelos alunos nessa atividade foram analisadas
95
Todos os questionamentos norteadores são encontrados na primeira seção do cap. 3 (p. 129-130). Eles
estão respectivamente relacionados aos passos 1, 2 e 3 da escolha das atividades.
144
com o intuito de observar quais sentidos textuais os leitores estavam hierarquizando no
texto e a maneira que, para o leitor, a palavra-chave estaria tecendo relações de sentido
com base em aspectos gramaticais, discursivos ou sociointerculturais.
2) Para a verificação do segundo questionamento - a utilização da palavra-chave
como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais do
leitor:
Antes de começar efetivamente os exercícios de leitura, realizou-se uma
conversa a fim de preparar os alunos para as atividades e deixá-los mais confortáveis
com a presença da pesquisadora. Neste sentido, perguntas que abrangem aspectos gerais
sobre leitura foram realizadas tais como: “Que tipo de texto você gosta de ler?” “Você
acha difícil de ler crônicas/ artigos informativos/ poemas?”, “Onde você encontra esse
tipo de texto?”96 etc.
Na sequência, um exercício de análise do título (atividade 1) para levantamento
das possibilidades de interpretação dos alunos (ou hipóteses de leitura – KLEIMAN,
2002; KATO, 1999; SOLÉ, 1998; COLOMER;CAMPS, 2002) foi proposto na
atividade de pré-leitura. A utilização de atividades de leitura prévia, como a discussão
sobre o título (SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 2001; 2004; COLOMER; CAMPS, 2002;
CASTELLO-PEREIRA, 2003), é um recurso importante para a construção do processo
de leitura, pois ativa as expectativas do leitor e o faz formular possibilidades
interpretativas as quais ele procura confirmar ou refutar durante a interação com o texto.
É, portanto, uma estratégia97 para orientar os conhecimentos do leitor na interação com
o texto e guiar suas interpretações.
Nesse sentido, propôs-se como pré-leitura (atividade 1 de todos os textos
trabalhados) um exercício de ativação das possibilidades de interpretação a partir da
leitura do título para que os alunos pudessem construir suas primeiras ideias a respeito
do conteúdo do texto. Discutiu-se, então, com os estudantes quais conhecimentos o
título do texto lhes trazia e quais as possibilidades de interpretações a que poderiam
recorrer. Os alunos foram solicitados a anotar essas primeiras ideias.
Na sequência do trabalho, uma atividade de leitura (atividade 2) foi realizada, na
qual os informantes tiveram um tempo para fazer uma leitura rápida do texto e anotar as
primeiras interpretações que construíram. O intuito, nesta atividade, foi o de analisar
96
97
Vide questões discutidas no plano de trabalho da coleta de dados definitiva do anexo B deste trabalho.
Cf. cap. 1.4 – estratégias de leitura e cap. 2.2.4 – competência estratégica.
145
como as interpretações dadas na atividade da análise do título ligam-se às compreensões
construídas quando o aluno lê o texto de maneira mais efetiva.
Nessa fase do trabalho, os alunos se envolveram com o texto e com a atividade. No
entanto, como em todas as turmas, os estudantes mais tímidos preferiram não se
manifestar oralmente, mas tiveram a oportunidade de participar de forma escrita. Isso
fez com que as atividades de todos os alunos pudessem ser consideradas, observando-se
maneira pela qual formulações iniciais construídas pelos leitores para interagir com o
texto (atividade 1) ligam-se às interpretações dadas na atividade de leitura (atividade 2)
e no apontamento das palavras-chave (atividade 3).
3) Para o terceiro questionamento – a palavra-chave pode auxiliar tanto na
identificação, quanto na criação e negociação de sentidos:
Sabe-se que é necessário que os alunos possam evocar e reconstruir seus
próprios pontos de vista com relação aos mais diversos textos para que se formem bons
leitores (FREIRE, 1983; MENDES, 2008; KRAMSCH, 1993). Assim, os alunos foram
solicitados a demonstrar como julgavam a posição do autor e suas opiniões, ou como se
posicionavam perante o texto.
Foi proposto, então, um exercício de discussão do texto (Atividade 4) no qual os
estudantes foram solicitados a: i) destacar características do conteúdo textual (qual o
objetivo (posição) do autor do texto?; alguma das palavras-chave te ajuda a perceber
esse objetivo?; qual o tema abordado pelo autor?); e ii) indicar qual opinião eles
construíam a respeito do texto (Você concorda com o que o personagem narrador pensa
da instrução?; O que você acha da engenharia genética?; Inclua comentários seus a
respeito do texto – textos 1, 2 e 3 respectivamente)98.
O intuito foi observar a maneira como os leitores reforçam ou negociam sentidos
a partir da relação entre a focalização de algumas informações textuais mais salientes –
dadas nas atividades 1, 2 e 3 da construção de possibilidades de leitura e da escolha das
palavras-chave – e a construção das opiniões dos alunos – dadas na atividade 4 da
discussão do texto.
Um apontamento importante a ser realizado aqui é que todas as atividades foram
realizadas de forma oral em um primeiro momento e depois foi dado um determinado
tempo aos alunos para que anotassem suas respostas. A intenção não foi realizar uma
98
Vide as perguntas da atividade 4 e de todas as demais atividades de cada texto no apêndice B deste
trabalho.
146
coleta baseada nas informações orais que os alunos forneceram, mas sim nas
informações escritas para que fosse possível analisar com maior critério as atividades
realizadas por cada aluno. Isso porque muito da oralidade se perde durante a coleta dos
dados, apesar das aulas terem sido gravadas99. Assim sendo, optou-se por manter, na
coleta definitiva, todas as atividades escritas para que os alunos pudessem, de fato,
expor o seu ponto de vista e as suas palavras-chave, mesmo que tenham sido oralmente
discutidas com a turma.
Após a aplicação das atividades de leitura, sentiu-se a necessidade de organizar a
maneira pela qual se pretendia discutir os dados arrolados para que os questionamentos
da pesquisa fossem devidamente respondidos. Sendo assim, fala-se agora sobre a
organização da análise apresentada nesta tese.
3.5 OS PROCEDIMENTOS PARA A ANÁLISE DOS DADOS
Com os dados em mãos, o primeiro ponto observado foi o de que havia um grande
número de informações a serem utilizadas na análise o que demandaria muito espaço
para ser discutido em apenas um capítulo. Optou-se, então, por dividir a análise em dois
momentos diferentes – capítulos 4 e 5 – organizados conforme quadro a seguir para que
respondessem às três questões de pesquisa:
QUADRO 5 – Organização da discussão de dados
Capítulo 4
Questão de pesquisa
1
Capítulo 5
2e3
Atividade analisada
Leitura – a seleção
da palavra chave
(terceira atividade)
Organização dos dados
1)
Dimensões da
competência comunicativa –
gramatical, discursiva,
sociointercultural
2)
Texto
Todas – Pré-leitura, 1)
Leitor
leitura e discussão 2)
Texto
Com base no quadro 5 acima, explica-se a seguir, com maiores detalhes, a maneira
pela qual a discussão é realizada.
99
O motivo para a gravação das aulas não foi utilizar os dados orais, mas o de verificar, se necessário,
alguma adequação ou algum apontamento que possa ser realizado durante a análise dos dados. Ou seja, os
dados orais não serão utilizados efetivamente, mas se necessário poder-se-á contar com eles para suporte
aos dados escritos.
147
3.5.1 – A análise do primeiro questionamento de pesquisa.
O capítulo 4 foi reservado para discussão do primeiro questionamento:
1) Ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características diversas
tais como linguísticas, sociointerculturais ou discursivas relacionadas à sua
competência comunicativa e que o levam a (re)construir sentido(s)
para o
texto(s)?
Para a análise, se estudou a atividade de escolha das palavras-chave. Esta foi a
terceira atividade proposta aos alunos com a intenção de analisar a primeira questão de
pesquisa. Procurou-se discutir nesta fase a maneira como as palavras escolhidas pelos
alunos para interagir com o texto e suas respectivas justificativas demonstram a
utilização de algum dos níveis da competência comunicativa: gramatical, discursiva e
sociointercultural ou de todos eles em interação.
Foram selecionados excertos das atividades dos alunos que pudessem
demonstrar a maneira pela qual os aspectos gramaticais (ex. classe gramatical, a
organização sintática, ou a semântica da palavra), discursivos (ex. o gênero do texto e
sua organização, a relação tema-rema, a sequenciação textual), sociointerculturais (ex.
aspectos culturais, ideológicos, sociais ou contextuais) e a interação entre eles, foram
utilizados pelos alunos para focalizar ou canalizar os sentidos por eles construídos a
partir da escolha da palavra-chave.
No capítulo 4, organizou-se a discussão dos dados sob dois aspectos principais:
a) em cada um dos textos selecionados foi analisada a maneira como as
diferenças entre os textos (gênero, tema e conhecimentos subjacentes) influenciavam a
forma como os leitores estavam utilizando sua competência comunicativa para produzir
sentidos;
b) em cada uma das duas turmas (A e B), para a análise de cada texto, foram
incluídos excertos do material produzido pelos alunos de forma que conhecimentos de
mundo de ambas as turmas pudessem ser observados na produção de sentidos. Neste
caso, dados dos questionários socioculturais aplicados foram utilizados em comparação
às interpretações apontadas pelos alunos.
A discussão é feita com base na tabulação das palavras-chave com relação à
utilização da competência comunicativa em suas diferentes dimensões – gramatical,
148
discursiva, sociointercultural100 - para estabelecer interação do leitor com o texto. Essa
observação gerou uma subdivisão do capítulo, sendo feita, em primeiro lugar, a análise
das dimensões separadamente e, num momento seguinte, a análise de todas as
competências em interação.
Outro fato importante que a análise toma como ponto de partida é a escolha de
extratos de informantes que demonstrem essa relação. A escolha dos extratos foi
realizada a partir de aspectos observados na maioria dos alunos como forma de
exemplificação e não com o intuito de esgotar as possibilidades de interpretação de
todos os leitores. Sendo assim, a escolha de determinados alunos para a análise justificase pelo fato de mostrar o que a maioria dos alunos faz em seus apontamentos sem tornar
a discussão exaustiva. Por exemplo, se grande parte dos extratos dos alunos demonstra
que há uma sequenciação textual ou uma influência do gênero textual na escolha das
palavras-chave - o que demonstra a utilização da competência discursiva - seleciona-se
então extratos de alunos, de ambas as turmas, que mostram esse aspecto e realiza-se
uma discussão a respeito dele.
Ainda, deve-se alertar para o fato de que se pode apresentar um número
diferenciado de extratos analisados (p. ex., selecionam-se 4 extratos para a discussão de
aspectos gramaticais e 12 para a discussão da competência discursiva). Isso acontece
principalmente porque houve uma indicação maior para as competências discursiva e
sociointercultural, o que demanda um maior número de extratos para a explicação da
maneira como os leitores constroem a interpretação.
Em suma, no cap. 4, a discussão é realizada observando-se, em cada texto e nas
duas turmas, somente a atividade da palavra-chave e nela a construção dos sentidos a
partir da utilização da competência comunicativa subdividida em suas dimensões:
competência gramatical, competência discursiva, competência sociointercultural e a
interação entre todas elas.
3.5.2 A análise do segundo e terceiro questionamentos de pesquisa.
O capítulo 5 foi reservado para a discussão do segundo e terceiro questionamentos:
100
A competência estratégica (cap. 2.2.4) compreende estratégias utilizadas pelo leitor que se diluem nas
demais competências para compensar conhecimentos não adquiridos e manter a comunicação verbal.
Sendo que a palavra-chave é justamente uma estratégia de utilizar conhecimentos diversos para canalizar
sentidos, supõe-se que toda vez que se fala em palavra-chave, fala-se também na utilização da
competência estratégica. Volta-se a falar sobre isso de forma mais clara no início do cap. 4.
149
2) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou
reconstrução das interpretações iniciais feitas pelo leitor durante o processo de
interação da leitura organizando os conhecimentos do leitor na construção de
sentidos?
3) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos
intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si
mesmo?
Para a análise, observaram-se as possibilidades de leitura construídas desde o
início da interação com o texto, bem como suas confirmações ou reconstruções e a
posterior negociação de sentidos pelos informantes.
Nessa fase, examinou-se a maneira pela qual os estudantes indicaram suas
interpretações na atividade de pré-leitura e como confirmaram ou reconstruíram suas
interpretações a partir da seleção das palavras-chave (questionamento 2). Ainda nesse
momento da pesquisa, analisou-se como os estudantes negociaram sentidos com o texto,
posicionando-se com relação a ele e expondo algumas de suas opiniões (questionamento
3).
A fim de organizar a discussão realizada neste capítulo, optou-se por selecionar
excertos de alguns alunos e discuti-los a partir da observação de todas as atividades
desse mesmo informante (desde a pré-leitura até a discussão do texto). Sendo assim, a
discussão foi realizada verificando-se dois aspectos principais:
a) os textos: a maneira como os leitores constroem as interpretações em cada um
dos textos propostos para a pesquisa;
b) os leitores: ao selecionar-se um leitor, analisam-se todas as atividades deste
informante (p. ex., seleciona-se o aluno 2 da turma A e discutem-se as atividades
produzidas por ele desde a pré-leitura até a discussão do texto. Da mesma forma, o
leitor 4, 10 ou 20 da turma A ou B101).
Para que a análise não se tornasse repetitiva, optou-se pela seleção de
informantes que representassem observações feitas em grande parte dos excertos da
turma, tais como o apontamento de algumas palavras em detrimento de outras ou a
indicação, nos excertos, de aspectos sociais ou culturais similares. Também no cap. 5,
não se pretendeu fazer uma análise que esgotasse as possibilidades de discussão dos
101
A numeração dos alunos foi separada primeiramente por turma, depois pelo número do texto (1, 2 ou
3), pelo número da atividade proposta e pelo número do aluno. Por exemplo, a numeração A.1.3.4 referese a uma atividade da turma A, texto 1, atividade 3, aluno 4.
150
dados, com a mesma intenção de evitar repetições desnecessárias, mas procurou-se
demonstrar como grande parte dos estudantes relatou a construção de sentidos. Reiterase que se partiu da utilização dos apontamentos de alguns dos estudantes como exemplo
das observações feitas.
Para que fosse possível validar os exemplos, demonstrou-se, de forma
quantitativa, em tabelas, os aspectos observados, tal como o apontamento da mesma
palavra por vários alunos na atividade de pré-leitura.
Assim sendo, o que vai se notar no cap. 5 é que a análise é organizada,
metodologicamente, em duas frentes principais: i) a indicação das possibilidades de
leitura no início da interação com o texto e a confirmação ou reconstrução dessas
possibilidades durante todo o processo de leitura; e ii) a negociação ou criação de
sentidos demonstrada pelos leitores.
Em resumo, no cap. 5, discutem-se, por texto e por leitor, os dados de todas as
atividades propostas, do início ao fim, com o intuito de analisar a confirmação ou
reconstrução das possibilidades iniciais de leitura e a negociação de sentidos.
Com a metodologia devidamente descrita e as escolhas justificadas, parte-se
agora para a análise dos dados no intuito de responder aos questionamentos
apresentados para esta tese.
151
4
O
USO
COMPREENSÃO
DA
PALAVRA-CHAVE
TEXTUAL
–
COMO
ESTRATÉGIA
PARA
A UTILIZAÇÃO DA COMPETENCIA
COMUNICATIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS.
Neste capítulo, discutem-se os dados a partir de um aspecto principal de análise:
a maneira pela qual os informantes produzem sentidos, baseando-se na escolha das
palavras-chave como estratégia de leitura. Em outros termos, o que se pretende neste
capítulo é responder a primeira questão de pesquisa: ao selecionar as palavras-chave, os
leitores consideram características diversas tais como gramaticais, sociointerculturais ou
discursivas relacionadas à sua competência comunicativa e que o levam a (re)construir
sentido(s) para o texto(s)?
Com o intuito de organizar as informações encontradas neste capítulo, duas
frentes principais são consideradas, conforme apresentado no cap. 03:
a) Discutir o desenvolvimento da competência comunicativa em suas diferentes
dimensões, a partir da observação das justificativas dos alunos para a escolha
das palavras-chave para as turmas A e B. Para tanto, utiliza-se tabelas além
das informações indicadas pelos próprios alunos;
b) Analisar, em cada texto, a maneira pela qual os estudantes revelam fatores
gramaticais, discursivos, sociointerculturais, isoladamente e em interação,
durante a sua interpretação na escolha estratégica da palavra-chave e na
construção de sentidos. Assim, seleciona-se também, em cada texto, extratos
da atividade de escolha das palavras-chave pelos alunos, os quais foram
considerados relevantes para demonstrar tais questões.
Admite-se, contudo, que não se tem a intenção de fazer uma análise exaustiva de
todos os aspectos da competência comunicativa em todas as justificativas. O que se
pretende é destacar pontos para o debate sobre a importância da competência
comunicativa na construção de sentidos textuais.
4.1 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO TEXTUAL
Conforme discutido nos capítulos 1 e 2 do presente trabalho de tese, pressupõese que o processo de leitura aconteça a partir da interação leitor-autor via texto. Isto
quer dizer que as palavras escritas em um texto interagem com os conhecimentos
152
individuais e sociais do leitor e, a partir disso, promovem um diálogo que o capacita a
produzir sentidos.
Parte-se ainda do pressuposto de que o usuário desenvolve a habilidade de usar a
língua em contextos adequados para produzir comunicação, o que vem a ser a já
referida
competência
comunicativa
HORNBERGER, 1995; LLOBERA, 1995
(HYMES,
102
1995;
SAVIGNON,
1997;
). Se leitura é um processo de interação -
ou de utilização da competência comunicativa - que se passa entre leitor e autor, de que
modo tal competência é usada para produzir os sentidos textuais?
De fato, o primeiro e principal questionamento colocado nessa tese tem o intuito
de pesquisar de que maneira a competência comunicativa auxilia o leitor a canalizar
seus conhecimentos para construir sentido(s) para o texto103. Assim, vai-se analisar, em
cada um dos três textos, as justificativas dadas pelos alunos para a escolha de suas
palavras-chave e a maneira como esses argumentos revelam o uso dos níveis da
competência comunicativa – gramatical, discursivo, ou sociointercultural –, notando
também o diálogo existente entre todos esses níveis e demonstrando como tal
competência auxilia na interpretação.
É importante ressaltar que se parte do pressuposto de que a utilização de uma
palavra-chave é uma das formas de se utilizar a competência estratégica para interagir
com o texto e estabelecer sentido. Isso porque, conforme explicitado no cap. 1, a
escolha de palavras temáticas ou de marcações linguísticas (KLEIMAN, 2002) é uma
forma de ativar conhecimentos diversos, sejam eles linguísticos ou extralinguísticos,
pertencentes ao conhecimento prévio do leitor, que dialogam com o texto e levam à
produção de macroestruturas significativas (DIJK, 2002). Sendo assim, assume-se que,
ao escolher as palavras-chave104, a competência estratégica já é utilizada na
movimentação dos conhecimentos prévios do leitor, sendo considerada como ponte de
interação para todas as demais competências105. Então, fala-se em competência
estratégica toda vez que se utiliza uma palavra-chave para interagir com o texto e para
movimentar conhecimentos do leitor e, portanto, não se utiliza um espaço específico
neste texto para discorrer sobre essa competência, pois ela é considerada durante toda a
análise a partir da observação das palavras-chave.
102
Cf. cap. 2.
Cf. cap. 3.
104
Cf. cap.2.3.
105
Cf. cap. 2.2.4 – competência estratégica.
103
153
Outro destaque importante é que o léxico106 (ANTUNES, 2012), escolhido pelo
estudante, ganha efeitos de sentido a partir das relações que estabelece no texto e fora
dele, na realidade do estudante. Isso porque “as palavras tem a cor, o cheiro, o gosto da
terra em que circulam, da casa em que habitam” (ANTUNES, 2012, p. 47). O léxico
assim está completamente vinculado às experiências linguísticas, discursivas, sociais e
culturais do usuário da língua e faz com que o repertório de escolhas constitua pistas do
pertencimento dos usuários a certos grupos. Isso acontece na interação que os leitores
estabelecem com os três textos a partir da escolha da palavra-chave: há uma relação
importante e básica entre a forma como a palavra é usada, as relações discursivas
expostas no texto e o pertencimento social e cultural dos usuários a uma comunidade.
Para iniciar a discussão, vale notar que as justificativas utilizadas pelos alunos
para a escolha das palavras revelam que algumas das competências foram usadas de
forma mais contundente que outras. A tabela 1 abaixo demonstra a classificação das
indicações sobre a utilização das palavras-chave nas dimensões da competência
comunicativa. Os números contabilizados e tabulados são referentes às indicações
realizadas para cada competência nos extratos dos alunos para a atividade 3, o que
significa que em um excerto pode haver mais de uma competência sendo observada,
conforme se discute na sequência deste trabalho. Veja-se a tabela:
TABELA 1 – A utilização das competências na escolha das palavras-chave
Competência
Texto 01
Texto 02
Texto 03
Total
Total de indicações
Gramatical
Turma A Turma B
2
1
0
0
0
1
2
1
04
Discursiva
Turma A Turma B
17
28
25
21
17
22
59
71
130
Sociointercultural
Turma A Turma B
21
17
23
21
28
24
72
62
134
A partir da tabela 1, verifica-se que, em especial, duas competências se destacam
e se sobrepõem na interação dos alunos com o texto para produzir sentido:
a) discursiva : foram 130 ocorrências no total entre as turmas A e B contendo
um grande número de justificativas (75 indicações o que significa mais de
106
Considera-se a palavra-chave como uma escolha lexical, ou como uma seleção do léxico do estudante
para interagir com o texto (vide cap. 2.3). Sendo assim, quando se fala em palavra-chave, fala-se também
em léxico. Antunes (2012) destaca justamente a importância do léxico na construção de sentidos da
língua.
154
57% do total) em que há uma interação com a competência
sociointercultural. Embora se explique mais sobre as ocorrências da
competência discursiva na próxima seção deste trabalho, alguns exemplos
dessas ocorrências são colocados aqui. No primeiro deles, logo abaixo, notase a preocupação do aluno em concentrar a mensagem do texto nas palavraschave107, ou seja, construir uma macroestrutura (DIJK, 2002) que dê sentido
informativo ao texto:
B.2.3.18 transgênicos108, clonagem, infertilidade, célula-tronco,
curar. Eu escolho estas palavras como palavras-chave porque, a
meu ver, elas resumem a mensagem do texto.109
No segundo, verifica-se que o estudante, aluno 23 da turma A, escolhe as
palavras-chave como forma de demonstrar os personagens e a sequência
narrativa da crônica:
A.1.3.23 instrução: um guia, um caminho, um conhecimento.
Senhor: sabe que há alguém mais velho. Jovem: saber que há
alguém mais novo. Ensinamento alguém vai ensinar algo a
outro, o senhor, ou o rapaz. Estudo: sabendo que a um diálogo,
senhor, e jovem e um ensinamento sabe-se tem por fim o estudo,
a educação de um deles.
Como se pode ver nos exemplos acima, o que se observa nas ocorrências da
competência discursiva são fatores tais como a sequenciação do texto, a
construção de coerência e coesão, a remissão, a relação tema-rema ou dadonovo, a relação entre o gênero textual e a interpretação dada, os quais são
demonstrados e discutidos na seção 4.1.2 deste trabalho.
b) sociointercultural: Foram 134 ocorrências no total. Assim como na
competência discursiva, viu-se, em muitas das ocorrências, uma interação
mais clara entre a competência discursiva e a sociointercultural, o que
107
Tabelas das palavras-chaves escolhidas e a classificação para sua escolha de acordo com as
justificativas dos alunos são mostradas na sequência deste trabalho. Pode-se encontrar a lista completa
das palavras-chave indicadas pelos alunos no anexo C.
108
O destaque em itálico nas justificativas dos alunos é utilizado para demonstrar as palavras-chave
selecionadas pelos informantes. No caso do sublinhado, quando aparecer, é aplicado aqui para destacar
alguns trechos das justificativas feitas pelos alunos. Para realizar explicações das palavras utilizadas pelos
alunos nos excertos durante a discussão, utiliza-se aspas simples.
109
A indicação da numeração é referente a: 1) turma a que o aluno pertence (neste caso turma A), 2)
texto interpretado (texto 01), 3) número do exercício proposto na atividade (exercício 03), 4) numeração
do aluno analisado (aluno 2). Todas as justificativas serão assim numeradas daqui em diante.
155
aconteceu em 75 indicações, ou seja, cerca de 55% dos casos. Pode-se
observar
a
partir
de
algumas
das
ocorrências
da
competência
sociointercultural, expostas abaixo, a maneira como fatores sociais,
ideológicos ou culturais dialogam na produção de sentidos. No primeiro
exemplo, da turma A, nota-se a maneira como o aluno destaca o preconceito
causado por fatores sociais entre pobre e rico, construindo para o texto uma
interpretação ligada a uma posição superior do rico em relação ao pobre.
A.1.3.7 pobre, rico, diversão, exames, conhecimento. Eu escolhi
essas palavras pelo fato que existe um vasto preconceito entre o
pobre e o rico, em que o rico defende que tem mais estudo que
faz mais exames e que possuem muito conhecimento e julga que
o pobre não tem nada disso e “nunca” vai se dar bem na vida.
No segundo exemplo, da turma B, abaixo, o estudante 14 destaca, na sua
interpretação, fatores de crença, ao relacionar a palavra-chave ‘fertilidade’ à
palavra ‘vida’, dando a ela características de beleza - ‘acho ela muito bonita’.
Ainda nesse exemplo, ele escolhe a palavra-chave ‘rejeitados’, e a liga a
fatores culturais e sociais justificando-a por causar ‘dor’ em seres humanos:
B.2.3.14 possibilidades: eu escolhi essa palavra porque acho que
a vida é feita de possibilidades, tudo pode acontecer.
Fertilidade: escolhi essa palavra, primeiro porque acho ela
muito bonita e que na minha opinião significa vida. Embriões:
na minha opinião esperamos já são vidas são seres indefesos que
são destruídos. Tudo pela “ciência”. Humanidade: eu escolhi
essa palavra porque somos nós, eu, vc, todos, vida. Rejeitados:
essa palavra me dá arrepios, porque a pior dor para um ser
humano é a rejeição.
No terceiro exemplo, o leitor utiliza um conhecimento de mundo cultural – a
existência de casas de prostituição – a um fator exposto no texto – ‘casas que
espiam os homens’:
B.3.3.10 as casas que espiam os homens, significa casa noturna
onde mulheres vão se prostituir.
156
Assim, nas justificativas da competência sociointercultural, analisou-se a
influência de fatores tais como contexto, cultura(s), ideologia e crenças no
estabelecimento de sentido textual.
É importante destacar que o fato de que muitas das justificativas apresentam
uma relação entre as competências – discursiva e sociointercultural - revela que a
competência comunicativa é utilizada como um todo e que as estratégias são, de fato,
utilizadas como uma forma de canalizar todos os conhecimentos do leitor na interação
com o texto. No entanto, conforme discutido no cap. 03, referente à metodologia,
procura-se dividir as competências em partes como instrumento metodológico de
análise de dados e de construção do texto desta tese.
Ainda, de acordo com a tabela 01 exposta acima, observa-se que a competência
gramatical foi utilizada com menor evidência do que as outras, o que não significa que
fatos linguísticos, como os sintáticos e semânticos, não tenham sido utilizados. Com
efeito, tais aspectos estão sempre atrelados ao uso da língua e, se não fossem utilizados,
a língua não poderia se constituir enquanto tal. Na verdade, o que acontece na questão
da leitura é que a escolha de algumas palavras funciona como uma pista que auxilia o
leitor a concentrar sua atenção em algumas informações linguísticas e a interagir melhor
com o texto a partir da relação que estabelece com uma série de conhecimentos
(PEREIRA, 2003; KOCH; TRAVAGLIA, 2011). Pode-se dizer assim que o leitor se
baseia em fatos linguísticos, seja na semântica da palavra ou na sua função sintática,
como um ponto de início da interação, mas não se detém a isso. Ele estabelece relações
com outros conhecimentos, os quais ficam mais evidentes nas justificativas.
A análise dos extratos dos alunos, nos quais eles indicam as palavras-chave,
demonstrou que as competências discursiva e sociointercultural são as que apresentaram
incidência maior, como mostra o gráfico 4, na página seguinte. Nota-se, pelo gráfico,
que as competências discursiva e sociointercultural apresentam um equilíbrio em seu
uso, revelando que os leitores dispõem de vários de seus conhecimentos para a
construção
de
sentidos.
O
equilíbrio
entre
as
competências
discursiva
e
sociointercultural nos textos 01 e 02 demonstra que os leitores se ancoram tanto em
pontos discursivos para basear a construção da sua interpretação, quanto em aspectos
sociais ou culturais. Observa-se também que a competência sociointercultural é mais
utilizada no texto 3, o qual por ser um poema, demanda maiores inferências e
ancoragem em aspectos do conhecimento de mundo para produzir interpretação.
157
GRÁFICO 4 - As dimensões da competência comunicativa nos extratos da
escolha das palavras-chave
No entanto, reitera-se que, a título de organização da análise, opta-se aqui por
analisar aspectos característicos de cada uma das competências - gramatical, discursiva
e sociointercultural (cap. 4.1.1 a 4.1.3) – e, em um segundo momento, falar mais sobre
as competências em interação (cap. 4.1.4). No entanto, embora a discussão apresentada
seja subdividida pelas competências expostas, admite-se que a competência
comunicativa é uma construção desenvolvida pelo usuário que interage com o texto de
uma forma completa, o que de fato se observa no gráfico 4 acima. O que se pretende
destacar aqui é que, em alguns momentos, algumas dessas habilidades são usadas de
forma mais explícita pelos leitores conforme se pode ver na análise a seguir. Não se
supõe que, ao analisar características de uma das competências, as demais dimensões de
uso da língua sejam descartadas pelo leitor. Ao contrário, elas são utilizadas para
construir sentido, mas serão analisadas em dois momentos distintos: ao se focalizar
aspectos típicos de uma das competências, e ao se apresentar um diálogo mais nítido
entre todas elas.
4.1.1 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência gramatical.
Viu-se no capitulo 2.2.1 que a competência gramatical é a habilidade do usuário
de utilizar o código linguístico e suas características formais e informais tais como o
vocabulário, a formação das palavras e frases, além da semântica, para apreender o
158
sentido das expressões. Ou seja, a competência gramatical centra-se na compreensão de
como os elementos da língua combinam-se sistematicamente.
Nas indicações dos alunos, tal competência aparece como uma maneira dos
leitores demonstrarem de que modo partem da organização interna da língua para
estabelecer laços com outros conhecimentos que os auxiliam a determinar sentido para o
texto, tais como os conhecimentos textuais e de mundo110 (KLEIMAN, 2002; KOCH,
2010; KATO, 1999), que podem acabar por ficar mais aparentes nas justificativas dos
alunos conforme se apresenta na sequência do trabalho. Veja-se a tabela 2 para a
ocorrência da competência gramatical:
TABELA 2 – A incidência da competência gramatical nas justificativas dos alunos
Texto 01
Texto 02
Texto 03
Total
Total de indicações
Competência gramatical
Turma A
Turma B
2
1
0
0
0
1
2
2
04
Notou-se um total de 04 ocorrências da competência gramatical nos excertos dos
alunos, mas nessas indicações outras competências também aparecem como parte das
justificativas dos leitores. Em outros termos, nos 04 extratos analisados, há uma
indicação nítida para a ativação da competência gramatical e observou-se, nas
justificativas, que os alunos procuram focalizar alguma questão gramatical ligada a
fatores textuais ou sociointerculturais, conforme se pode verificar nos excertos
analisados na sequência. Isso deixa ainda mais claro o fato de que há uma
multiplicidade de funções que se refletem na organização interna da língua
(HALLIDAY, 1985), isto é, a classe gramatical ou a semântica podem refletir diferentes
funções da língua, entre elas fatores relacionados à cultura, à ideologia, ou à sequência
textual.
As expressões linguísticas são utilizadas como mediadoras da interpretação dos
usuários, caracterizando estruturas linguísticas que canalizam a comunicação. Essa
comunicação, reitera-se, fica mais aparente na utilização das outras competências o que
110
Cf. cap. 1.
159
não significa que a competência gramatical tenha sido utilizada em escala tão pequena
assim.
De fato, notou-se que um dos pontos linguísticos destacados em quase todas as
escolhas - classificadas em todas as competências - é a seleção de palavras de conteúdo
tais como substantivos, verbos ou adjetivos, para demonstrar que ali há, para o leitor,
um conteúdo semântico mais nítido na construção de sentidos. Em alguns momentos, os
estudantes deixam clara essa relação entre classe gramatical e conteúdo semântico,
como no exemplo abaixo:
A.1.3.21 trocado: substantivo que dá o ponta pé inicial da
narrativa; lição: as falas do personagem principal são todas
sobre o determinado ensinamento. Estudo: pois é o tema de
critica no texto. teorema de Pitágoras: ironia principal do texto.
conhecimento: é o debate principal da narrativa.
O estudante justifica a escolha da palavra ‘trocado’ justamente pela relação
existente entre o conteúdo semântico, a classe gramatical – substantivo - e sua posição
na narrativa como um todo. É necessário dizer aqui que tanto a produção do enunciado
pelo autor, quanto a interpretação do leitor possuem em comum a expressão linguística
(HALLIDAY, 1985), base do conhecimento gramatical dos falantes para que sentidos
sejam (re)construídos e a comunicação da informação aconteça. Nesse caso, o leitor
destaca uma relação existente entre fatores gramaticais e textuais, os quais são
esclarecidos por ele na justificativa que relaciona o substantivo como foco e a sua
posição principal na narrativa.
Em outro exemplo, observa-se também a relação existente entre a função
gramatical da palavra no interior do texto e sua função no texto como um todo. Veja-se
o exemplo:
A.1.3.5 teorema de Pitágoras uma das bases fundamentais do
texto. esfarrapado – é a palavra em que o texto caracteriza o
menino. Lição preciosa: um dos fatos principais em que ocorre
no texto. dinheiro: um dos bens que o homem tem como
exemplo de conquista com seu “estudo”. Pobre: palavra em que
no texto mostra o preconceito de um personagem ao outro.
O leitor, nesse caso, expõe uma das funções gerais da classe gramatical dos
adjetivos – caracterizar um substantivo (no caso do texto ‘o menino’), identificando o
160
personagem a partir do significado da palavra – e colocando-o em uma função de classe
social inferior. Note-se que a função do adjetivo, como classe gramatical, mistura-se
com a sua função textual de dividir os personagens em classes sociais. Essa mistura fica
evidente quando o aluno afirma que ‘esfarrapado é a palavra em que o texto caracteriza
o menino’. Isto é, para o leitor, o texto tem um papel importante porque tem o poder de
‘caracterizar o menino’. É a percepção do próprio texto e das relações que nele se
estabelecem que leva o leitor a construir características para o menino, e, por extensão,
para o texto, a partir da seleção do adjetivo ‘esfarrapado’. O estudante admite e indica
que essa caracterização é, além de gramatical, discursiva. Na ocorrência acima, a
maioria das palavras escolhidas são substantivos, além de alguns adjetivos (ambos de
classe aberta), o que, como se discutiu, auxilia o leitor na canalização de conteúdo
semântico principal do texto.
No entanto, deve-se observar que, mesmo na escolha de palavras de classe
fechada, tais como ‘não’, e o advérbio indefinido, ‘talvez’, o leitor procura estabelecer
uma ligação entre o seu conhecimento de mundo (sociointercultural) e a sua
competência gramatical. Ele parte daquilo que é próprio da língua e do sistema
linguístico – a negação ou a indefinição do ‘talvez’ - para estabelecer relações que
façam sentido para o texto que está lendo. O excerto abaixo demonstra o caso da
escolha do ‘não’:
B.1.3.22 esfarrapado pois se trata de um menino esfarrapado
pedindo dinheiro; jovem pois era um jovem normal que recebe
um pedido de dinheiro; estudo: pois o jovem tem estudo;
teorema de Pitágoras: pois o jovem faz essa pergunta para o
menino. Não: pois não sabe o que se trata o teorema de
Pitágoras.
A escolha do ‘não’, como palavra-chave para o texto 01, aqui está voltada para a
crítica principal do texto estabelecendo coerência. O leitor observa que o personagem
pergunta-se qual seria o teorema e, baseando-se nisso, infere que ele não o conhece.
Veja-se que a negação - valor semântico inerente e básico à palavra ‘não’ - está voltada
para uma questão textual exposta a partir da narrativa. Em outros termos, a semântica da
palavra ‘não’ mistura-se com a sua função de estabelecer a coerência como um
princípio da textualidade111 (BEAUGRANDE;DRESSLER, 1981): se o personagem
111
Cf. cap. 1.2.
161
pergunta o que é o teorema, então, ele não sabe o que é ou do que trata tal fórmula
matemática.
Note-se, também na justificativa acima, que a utilização do adjetivo
‘esfarrapado’ indica a observação feita pelo leitor com relação ao personagem do texto,
explicitando a ligação existente entre substantivo e adjetivo, para a qualificação do
personagem, colocando-o na classe social de pobreza, assim como no exemplo anterior.
Na utilização do ‘talvez’, a dúvida presente na semântica do advérbio também é
demonstrada na justificativa do leitor:
B.3.3.14 quando nasci: deve ser quando ele se descobriu.
Talvez: tudo pode acontecer. Coração: ele quis passar
sentimento. Deus: ele deve ser religioso. Mundo vasto deve ser
mundo vazio, mundo triste.
Pela escolha da palavra ‘talvez’, para o texto 03, o leitor indica as possibilidades
de vida apontadas para o personagem principal, ou seja, ‘tudo pode acontecer’ na vida
dele. A semântica do advérbio – expor uma incerteza, possibilidade ou dúvida – é ligada
ao conhecimento de mundo do leitor para dar ao texto um sentido de possibilidades,
caminhos a serem seguidos na vida do personagem.
É importante considerar, também nesse exemplo, que o leitor procura
estabelecer para a expressão ‘mundo vasto’ uma semântica própria no interior do texto.
Na justificativa para a sua escolha, o leitor a conceitua e impõe a ela um sentido textual
de sentimento de tristeza. Veja-se que essa é uma construção do leitor a partir do texto,
o que só é possível pelas relações locais e discursivas ali estabelecidas. Isso acontece
porque a utilização do léxico não ocorre independente de sentidos textuais e culturais
dados a ele (CASTILHO, 2010), e há uma ligação próxima entre o seu significado e os
sentidos que se constroem a partir dele (ANTUNES, 2012)112.
Destaca-se, ainda, que, mesmo que a competência gramatical não tenha sido
utilizada na justificativa dos alunos para as demais ocorrências, ela está sendo de
alguma forma explicitada quando o aluno, por exemplo:
- seleciona a relação verbo-objeto;
- seleciona a relação substantivo-adjetivo;
- reconceitua a palavra no interior do texto, ou seja, fornece a ela traços
semânticos de acordo com o contexto.
112
Cf. cap. 2.3.
162
Tais relações estão constantemente presentes nas justificativas para as demais
competências, conforme se poderá observar na sequência deste trabalho.
4.1.2 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência discursiva.
De acordo com o cap. 2 desta pesquisa, a competência discursiva compreende o
nível da competência comunicativa responsável pela maneira como o usuário da língua
estabelece relações intra e intertextos, e ainda como tais textos são organizados
socialmente em gêneros. Assim, é a partir da competência discursiva que o usuário
organiza a estrutura temática de um texto, indicando a forma como o entrelaçamento
constante de tópicos possibilita a construção textual de coesão e coerência. Para iniciar a
discussão sobre as justificativas que se encaixam na utilização dessa competência,
recorta-se a tabela 1, dada anteriormente, e mostram-se somente os dados considerados
para a competência discursiva na tabela 3 abaixo:
TABELA 3 – A incidência da competência discursiva nas justificativas dos alunos
Texto 01
Texto 02
Texto 03
Total
Total de indicações
Competência discursiva
Turma A
Turma B
17
13%
28
21%
25
19%
21
16%
17
13%
22
17%
59
45%
71
54%
130
Um fator interessante é que, comparando-se as turmas A e B, a competência
discursiva apresenta-se percentualmente mais usada na turma B (54% do total de
indicações), a qual se mostra como uma turma que possui uma interação menor com a
leitura de acordo com os questionários socioculturais113. Utilizar questões discursivas e
de gênero como âncora para o estabelecimento de sentido funciona como uma
possibilidade de fornecer um maior conforto aos leitores menos assíduos na interação
com o texto. Isso acontece porque o conhecimento das realidades textuais é armazenado
também em esquemas mentais (DIJK, 2002; KOCH, 2009) e auxilia a sequenciar uma
narrativa mais nítida para o texto. Talvez seja esse o motivo pelo qual a maior parte das
justificativas procura explicitar a sequência textual (nos três textos apresentados) por
113
Cf. cap. 3.
163
meio da escolha das palavras-chave, conforme se apresenta nos excertos mostrados na
discussão subsequente.
Outro número interessante é que do total de 130 indicações (somando-se os
resultados das turmas A e B) para a competência discursiva, 75 (média de 57% do total
de ocorrências) apresentam uma interação mais nítida com a competência
sociointercultural. Ou seja, em muitas das ocorrências há uma relação constante e
contínua entre fatores discursivos e sociointerculturais para a construção de sentido.
Tais justificativas serão analisadas mais adiante. Nesta seção, fala-se de aspectos
pertencentes à competência discursiva nas justificativas de alunos selecionadas para esta
discussão.
Sendo assim, o que se pretende analisar agora é a maneira como fatores
discursivos tais como sequência textual, focalização do tema(s) principal, construção de
coesão e coerência textual ou o apoio a características do gênero (p. ex. a crítica no caso
do texto 01 ou a argumentação no texto 02), são utilizados nas justificativas dos
estudantes para indicar a forma com que lidam textualmente com a produção de
sentidos. A tabela 4, na página seguinte, demonstra todas as palavras escolhidas como
chave para o texto 01, o número de alunos que as indicaram em cada turma e, em cores,
a classificação observada nas justificativas.
Deve-se ressaltar o fato de que ainda pode haver outras classificações para as
palavras. No entanto, as indicadas acima com cores foram as que se destacaram. Note-se
desde já que as questões de organização textual, tais como a divisão e caracterização
dos personagens (em azul) e a sequência textual da narrativa (em verde), se destacam na
escolha das palavras. Outro fator importante é que a caracterização do assunto principal
– ‘educação’ ou ‘estudo’ – e o estabelecimento da crítica do texto como reflexo do
gênero estão em equilíbrio na indicação dos alunos (um com 8 palavras indicadas em
vermelho e outro com 7 indicadas em amarelo respectivamente), o que reforça e apoia a
ativação da competência discursiva na construção do sentido global para o texto.
164
TABELA 4 – Levantamento das palavras-chave – Texto 01
Palavra-chave
Estudo/ estudar
Teorema de Pitágoras
Pobre
Ensinamento/ ensinar
Rico
Dinheiro/trocado
Lição/lição preciosa
Conhecimento
Esfarrapado
Aprender
Instrução
Cinco/ cinco anos
Garoto/ menino
Senhor
Saber
Indigente
Diferença (de classe)
Destino
Estatísticas
Jovem
Oportunidade
Ofendido
Assombrado
Transmitir
Hipotenusa
Livro(s)
Divertir/diversão
Moro bem
Sofrendo
Bem vestido
Pessoas
Sua gente
Não
Turma A
22
16
15
12
13
10
11
11
4
6
5
5
1
2
5
4
3
2
2
2
2
3
1
1
1
1
2
1
1
0
0
1
0
Turma B
21
18
16
12
9
5
4
3
7
3
3
2
6
4
0
1
2
3
3
2
2
1
2
2
2
2
0
1
1
2
2
0
1
Total
43
34
31
24
22
15
15
14
11
9
8
7
7
6
5
5
5
5
5
4
4
4
3
3
3
3
2
2
2
2
2
1
1
Legenda:
Palavras que caracterizam o assunto principal – 8 palavras
Palavras que caracterizam a divisão dos personagens/temas – 12 palavras
Palavras que marcam sequências textuais – 12 palavras
Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a crítica do texto – 7 palavras
Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao
estabelecimento de coerência – texto 1: diferença de classes, superioridade,
menosprezo114 - 12 palavras
114
Os fatores relacionados a essas indicações são analisados na seção 4.1.3 – competência
sociointercultural
165
No texto 01, tanto para a turma A quanto para a turma B, nota-se que a
sequência narrativa colocada na crônica evidencia-se na escolha das palavras-chave
como forma de demonstrar a oposição de classe social que se dá entre os personagens
no texto, bem como a estrutura temática. Num todo de 26 indicações (08 para a turma A
e 18 para a turma B) nas quais se observou mais fortemente a utilização da competência
discursiva, todas indicaram de alguma forma a focalização do tema principal do texto a educação (indicados com seta azul) - ou a sequência da narração (demonstrados com
seta verde). Deve-se lembrar que a classificação em cores acima demonstra cada palavra
em particular e não o extrato como um todo. Como cada leitor indica um total de 5
palavras, em alguns extratos a indicação para a competência discursiva foi maior e em
outros foi a sociointercultural, o que levou à classificação do extrato como um todo
conforme exposto nas tabelas 1 e 3 já indicadas acima sobre a incidência das
competências.
O exemplo do estudante abaixo ilustra a maneira como ele utiliza a competência
discursiva na produção de sentidos:
A.1.3.2 – lição, pobre, rico, estudo, teorema. Pobre e rico:
lembram os personagens. O senhor e o menino esfarrapado e
suas diferenças de classe social. Lição o ensinamento que o
senhor deu ao menino. Estudo conselho que o menino recebeu
pois o senhor disse que a diferença entre eles era o tempo de
estudo. Teorema de Pitágoras utilizado pelo senhor para
enfatizar o conselho dado ao menino pobre.
A partir da justificativa exposta, pode-se verificar que o aluno procura, em
primeiro lugar, mostrar a divisão dos personagens na narrativa - pobre e rico - e adequálos à classe social que fica marcante no texto. Ainda, o estudante procura demonstrar, na
escolha das palavras-chave, a maneira como os temas do texto vão se amarrando em
torno da lição, do ensinamento, do conselho dado para construir uma sequência
narrativa e estabelecer coerência para o texto: lição - momento inicial do texto em que o
senhor procura travar um diálogo com o menino e ‘dar’ um ensinamento; estudo momento do texto em que a questão principal centra-se no personagem mais pobre que
‘recebe’ o ensinamento, e os personagens são divididos em duas classes diferentes; e
teorema de Pitágoras - momento do texto em que há a crítica realizada a partir do
ensinamento dado. Observe-se na tabela 4, acima, que todas essas palavras foram
166
indicadas por um grande número de alunos e, na maioria das justificativas, verificou-se
a focalização da sequência da narração (indicadas com a seta verde).
Neste extrato também há uma ligação constante entre tema-rema115
(HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997): o elemento que identifica de que se fala
na sentença ou no texto é evidenciado: ‘conselho’, ‘ensinamento’, ‘lição’. Veja-se que
essas três palavras são caracterizadas pelo leitor como relacionadas ao mesmo elemento
dado no texto. Na sequência, o leitor evidencia o que é dito sobre o tema: ‘a diferença
entre eles era o tempo de estudo’. Ao dar destaque a essa relação tema-rema, o leitor
demonstra a maneira como os personagens se posicionam em classes sociais e a forma
como a narrativa se constrói.
Ainda um detalhe importante: a questão da identificação do gênero evidencia-se
quando os leitores procuram estabelecer uma crítica no texto expondo a diferença de
classes entre os personagens (indicados com setas amarelas na tabela 4). O leitor acima
destaca justamente ‘o senhor e o menino esfarrapado e suas diferenças de classe social’.
Note-se que é nesse ponto em que o autor constrói a crítica social, característica da
crônica, de que nem sempre altos níveis de escolarização se equiparam a um maior
conhecimento ou a uma alta posição na sociedade de classes. Os alunos estão
conscientes de que o gênero auxilia na identificação do texto e indicam, em algumas
palavras, a construção da crítica.
Outro aspecto frequente nas justificativas dos alunos foi focalizar o assunto
principal, o que é uma das funções das palavras-chave, conforme indicado na tabela 4
acima (palavras com seta vermelha). Na justificativa abaixo, embora o aluno não
fundamente todas as suas escolhas, a sua intenção é demarcar o ‘assunto principal’, ou
seja, a forma como a escolha das palavras-chave o auxilia na construção de um texto
dotado de sentido, ou como um texto coerente:
A.1.3.17 estudo, pobre, rico, lição, destino. Todas essas
palavras fazem parte do texto e todas elas tem um significado
diferente. Mas todas são englobadas no mesmo assunto.
O aluno demonstra claramente que há uma diferença semântica entre as
palavras, e que soltas, talvez não façam sentido. No entanto, ele explica que quando ‘são
englobadas’, constroem sentido textual e o auxiliam a estabelecer uma coerência, pois
115
Cf. cap. 2.2.3
167
estão relacionadas dentro do ‘mesmo assunto’. Isso demarca o princípio de textualidade
da cooperação (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981116), em que o leitor decide
estabelecer para o texto sentido a partir da recuperação da coerência. No exemplo
acima, ainda, pode-se verificar que a marcação dos dois personagens fica nítida na
escolha de ‘pobre’ e ‘rico’, e que a questão do tema principal também fica evidente na
escolha de ‘estudo’ e ‘lição’, assim como na justificativa anterior, do aluno 2 da turma
A.
Na proposta de Halliday (1985) o tema é altamente carregado de comunicação
textual, sendo reconhecido como elemento da mensagem em si. É ele que carrega o
sentido principal das sentenças, as quais vão se encadeando para construir unidade
textual. É o que acontece, por exemplo, na justificativa abaixo:
B.1.3.4 transmitir, ensinamento, estatísticas, estudo,
assombrado. Transmitir ensinamento: de passar uma mensagem.
Estatísticas, assombrado: comparando pobre com o rico;
estudo: pobre estuda menos que o rico.
O elemento do tema principal focalizado pelo leitor fica marcado na escolha de
‘transmitir ensinamento’, em que tal expressão é ligada à ‘mensagem’ do personagem
rico em direção ao personagem pobre. A ligação entre o elemento escolhido e a
mensagem do texto é, de fato, estabelecida pela narrativa, num contexto do discurso
construído. A escolha de verbo e objeto como palavras-chave revela que as questões
sintáticas (competência gramatical, conforme discutido na seção anterior) não são
descartadas no momento de interpretar um texto. Ao contrário, são elas que auxiliam a
organizar a mensagem (HALLIDAY, 1985).
Note-se também aqui que, embora o estudante tenha escolhido palavras que não
revelam nitidamente os personagens em si - ‘estatísticas’ e ‘assombrado’ -, a sua
intenção é justamente de demarcar a comparação existente entre pobre e rico. Ainda, ele
argumenta na escolha de ‘estudo’ o seu enfoque em uma das relações dado-novo117
(HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997, KOCH, 2009) presente no texto – pobre
estuda menos e rico estuda mais.
Veja-se mais um exemplo:
116
117
Cf. cap. 2.2.3
Cf. cap. 2.2.3
168
B.1.3.12 instrução, pobreza, trocado, estudo, Pitágoras.
Selecionei essas cinco pois com elas conseguiria remontar em
minha cabeça o desenrolar do texto citando estudo e como
exemplo o Pitágoras.
No exemplo acima o estudante expõe nitidamente a sua intenção com a escolha
das palavras-chave: ‘remontar [...] o desenrolar do texto’. Isso quer dizer que a escolha
das palavras ativa de forma contundente as questões discursivas do gênero narrativo, já
armazenadas pelo leitor, o que o auxilia na reconstrução da sequência do texto
(indicados com setas verdes na tabela 4).
Outro detalhe importante, nesse exemplo, é que o estudante destaca o tema
principal, ‘estudo’, e liga a ele o fator utilizado para construir a crítica principal do texto
‘teorema de Pitágoras’. Halliday (1985) afirma justamente que “a organização temática
das orações (e complexos de orações quando relevantes) expressam e também revelam o
método de desenvolvimento do texto” (HALLIDAY, 1985, p. 67). De certa forma, o
estudante procura escolher as palavras-chave, nessa justificativa, como forma
estratégica de apresentar o tema principal e as ramificações que se seguem a ele para
‘remontar’ o texto.
No texto 2, a exposição da sequência textual na escolha da palavra-chave fica
ainda mais nítida por se tratar de um texto argumentativo em que três tópicos principais
são discutidos como ramificações da engenharia genética: transgênicos, clonagem e
células-tronco. Há um total de 44 indicações em que surgem aspectos relacionados à
competência discursiva, sendo 25 para a turma A e 19 para a turma B. Dessas, 32
demonstram uma interação com a competência sociointercultural e serão analisadas na
seção 4.1.4 deste trabalho.
Dos 12 extratos em que a competência discursiva se destaca, a maioria inclui os
três tópicos como palavra-chave (9 indicações ao todo). A tabela a seguir demonstra
todas as palavras escolhidas pelos estudantes e as classificações, em cores para a sua
escolha:
169
TABELA 5 – Levantamento das palavras-chave – Texto 02
Palavra-chave
Células (tronco)
Clonagem
Transgênicos
(Engenharia) genética
Embrião
Fertilização
Ética
manipulação
Natureza
Humano
Consequencia
Vida
Dilema
Sociedade
Impacto
Cura
Descobertas
(Engenhar) vegetais
Experimento
Fome
Doenças
Estudo
Problema
Turbilhão
Genes
Cadeia alimentar
Adotar
Possibilidade
Ecologia
Reino (vegetal/animal)
Posição
Profissionais
Arrastados
Realidade
Frágil
Maravilhas
Perigos
Turma A
22
20
16
13
6
4
7
2
3
2
3
3
3
3
4
2
2
1
2
1
1
1
1
1
1
1
1
0
0
0
1
1
1
1
1
1
1
Turma B
24
23
15
16
12
12
4
8
2
3
1
1
1
1
0
1
1
2
0
1
1
1
1
1
1
1
1
2
2
2
0
0
0
0
0
0
0
Total
46
43
31
29
18
16
11
10
5
5
4
4
4
4
4
3
3
3
2
2
2
2
2
2
2
2
2
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1
...
170
...
Palavra-chave
Oportunismo
Clara
Benefícios
Sobreviver
Destruídos
Riscos
Escolha
Nova chance
Desequilíbrio ambiental
Rejeitados
Favoravelmente
Dúvida
Alimento
Crítico
Debate
Hipocrático
Necessidades
Complica
Turma A
1
1
1
1
1
1
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
Turma B
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
Total
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
Legenda:
Palavras que caracterizam o assunto principal – 22 palavras
Palavras que caracterizam a divisão dos temas/assuntos – 26 palavras
Palavras que marcam sequências textuais – 26 palavras
Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a argumentação do texto – 13 palavras
Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao
estabelecimento de coerência – Texto 2: ética, benefícios, riscos118 - 25 palavras
Note-se que, na tabela acima, a divisão dos temas e a marcação da sequência
textual (respectivamente em azul e verde na tabela) são os fatores de maior número de
indicações dos estudantes. Veja-se o exemplo do estudante abaixo que demonstra a
divisão dos temas:
B.2.3.13 genética – para lembrar que o texto fala sobre genética.
Transgênicos: para lembrar dos alimentos geneticamente
modificados. Clonagem: para lembrar da clonagem humana.
Embrião: para lembrar que os embriões são destruídos no
processo de retirada de célula tronco. Células: para lembrar que
o texto se refere à células tronco.
118
As indicações que apresentam esse tipo de classificação são analisadas na seção 4.1.3
171
Na justificativa acima, se destaca a ramificação dos temas discutidos no texto:
genética – transgênicos, clonagem, células. O estudante ainda declara que utiliza tais
palavras ‘para lembrar’ de tais temas que considera como principais no texto.
Observe-se, no texto, que o autor expõe claramente que há uma sequenciação de
temas afirmando: “Primeiro, os alimentos transgênicos”. Fica fácil para o leitor notar
que, se há um primeiro tema (os alimentos transgênicos), é provável que haja um
segundo, um terceiro e talvez outros na sequência. Ou seja, o leitor procura encontrar
essa sequência de elementos no interior do texto. De fato, de acordo com Koch (2009) e
Koch e Elias (2010), a sequenciação textual é um dos elementos da produção do texto
que auxilia o leitor na organização dos elementos e garante a construção da coesão e da
coerência. Ainda, de acordo com os princípios da textualidade de Beaugrande e Dressler
(1981), ao aceitar o texto como contendo coerência e um elemento que segue regras
sociais de produção (princípio da aceitabilidade119), o leitor interage com ele procurando
os elementos que o constroem como um texto. O que se quer dizer com isso é que
mesmo que o autor não tenha exposto os demais elementos (segundo e terceiro)
nitidamente no texto, o leitor é capaz de encontrá-los pela sequência da exposição de
um primeiro e a alternância de temas expostos nos parágrafos seguintes do texto. De
fato, é o que o leitor acima faz: ele expõe o tema principal do texto – ‘genética’ – e a
partir dele os subtemas percebidos na sequência argumentativa do texto –
‘transgênicos’, ‘clonagem’, ‘células-tronco’. Na tabela 5, colocada acima, essas são
justamente as palavras mais frequentes indicadas pelos alunos com a intenção de marcar
a divisão temática do texto (indicados com seta azul).
Observe-se, ainda, que a escolha de embriões também está ligada a um fator da
competência discursiva: destacar uma das argumentações principais dadas no texto a
respeito da utilização de células-tronco - a destruição dos embriões no momento da
retirada das células-tronco. A escolha dessa palavra pode, de fato, estar associada a
algum conhecimento do aluno a partir do qual ele concorda ou não com essa atitude,
fazendo com que haja uma força ilocucionária dada ao texto pela escolha da palavrachave. Ressalta-se que a canalização da força ilocucionária do enunciado é, de fato, uma
das características da palavra-chave120 (CAVALCANTI, 1989).
No exemplo seguinte, o informante destaca as palavras dos três tópicos
discutidos no texto, ligadas à sequência da exposição:
119
120
Cf. cap. 1.2.
Cf. c cap. 2.3.
172
A.2.3.21 engenharia genética: tema principal do texto. posição:
pois o texto fala da posição do autor diante de determinado
assunto. Transgênicos: tema principal do 1º assunto abordado.
Clonagem: tema principal do 2º assunto abordado. Célulastronco: tema principal do último assunto abordado.
Veja-se que a escolha se dá justamente pelo ‘tema principal’ e pelos subtemas
(1º. assunto, 2º. assunto, último assunto) a ele ligados como uma sequência que faz com
que o leitor acompanhe o raciocínio argumentativo do autor. O leitor indica, ainda, a sua
observação sobre a força da argumentação do texto indicando ‘posição’ como uma
forma de recuperar ou reconstruir o tipo textual exposto no texto (tipologia
argumentativa): ‘o texto fala da posição do autor diante de determinado assunto’. Na
tabela 5, há também outras palavras indicadas pelos leitores que os auxiliam a construir
a argumentação típica do gênero artigo de opinião (indicados com seta amarela).
Outro detalhe importante nas indicações para o texto 2, é que a escolha das
palavras-chave auxilia os leitores a delinear o caminho percorrido pelo autor na
exposição do assunto principal do texto, fazendo com que os fios semânticos
(CAVALCANTI, 1989), utilizados para a construção de sentidos, sejam tecidos. Na
tabela 5 acima, verifica-se que a maior quantidade de indicações de palavras-chave foi
por conta da focalização do assunto(s) principal (s), temas ou sequência textual
(indicados em vermelho, azul e verde, respectivamente), o que corrobora o fato de que
os leitores procuram basear suas interpretações em características discursivas. Na
indicação abaixo o estudante não justifica a sua escolha palavra por palavra, mas explica
que elas foram selecionadas representando o texto como um total, evidenciando as
relações de sentido indicadas por ele:
B.2.3.16 engenharia genética, transgênicos, clonagem, célulastronco e embriões. Eu escolhi essas palavras porque elas estão
representando todo o fogo do texto, deixando bem claro o
assunto tratado pelo autor.
No entanto, é importante notar que a sequência exposta no texto fica nítida pela
escolha das palavras: há um tema principal – ‘engenharia genética’ – e subtemas –
‘transgênicos’, ‘clonagem’, ‘células-tronco’, ‘embriões’.
O leitor ainda utiliza uma metáfora, ‘o fogo’ do texto, para destacar um tópico
textual, ou para demarcar a tipologia argumentativa, o que é importante para ele: ali
173
existem pontos em oposição, os quais podem gerar discussões e polêmica. A escolha
final da palavra ‘embriões’ busca demonstrar justamente a argumentação mais forte
feita no fechamento do texto, na qual o autor declara-se a favor do uso de célulastronco, o que é diferente das argumentações anteriores, em que o autor posiciona-se
contrário às práticas de transgenia e clonagem. Nota-se que a construção da opinião do
autor durante o texto se dá de forma diferenciada para os três tópicos: No primeiro
tópico, transgênicos, o autor declara-se contrário ao afirmar que esses podem causar um
“desequilíbrio na cadeia alimentar” e que a “natureza é frágil”. No segundo tópico, a
clonagem, o autor também se declara contrário à sua prática afirmando que há
experimentos sendo realizados para os quais ele espera que “o navio jogue tanto que as
pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas”. No entanto, no terceiro tópico,
o autor constrói uma posição argumentativa diferenciada: declara-se a favor à utilização
das células-tronco expondo a crítica e a sua argumentação favorável de que estas são
usadas para curar doenças e salvar vidas. O leitor acima destaca, justamente, que o
‘fogo’ do texto está na sequência dos temas expostos pelo autor na construção de suas
opiniões, e no fechamento do texto, quando o autor expõe uma posição diferente das
anteriores.
Antunes (2012) explica que além de fornecer uma estruturação propriamente
dita, as palavras escolhidas para a produção de um texto (ou o léxico – ANTUNES,
2012) também fornecem “pistas” claras em que o leitor se apoia como se fossem
“pedras” (ANTUNES, 2012, p. 100), para a reconstrução do texto. Isso leva à afirmação
de que nenhuma escolha de palavras como chave é aleatória. Tais escolhas são uma
forma de estabelecer o valor semântico das palavras encontradas no texto juntamente a
todo o seu valor de sentido textual estabelecido pelos fios que conduzem a interpretação
(CAVALCANTI, 1989) e auxiliam na construção da coerência (KOCH; TRAVAGLIA,
2011).
Esse apoio nas palavras para o estabelecimento de sentidos e da sequência
argumentativa do texto também se dá na escolha de palavras-chave que não revelam,
necessariamente, os três tópicos, mas que, nas justificativas dos leitores, estão
claramente ligados a eles. Por exemplo:
A.2.3.14 células-tronco: entendi que ajudam pessoas a
sobreviverem e até curar doenças que não tinham cura.
Engenhar vegetais: são um engenho que eles produziram que é
capaz de alimentar plantas e matando praga. Clonagem
174
humanos: no texto entendi que antes eles clonavam animais e
agora eles querem testar em humanos. Destruídos: no texto que
eu entendi que os cientistas dizem que podem matar “destruir”
os embriões para dar vida a outros. Embriões: que são parte da
célula tronco para que possa salvar vidas.
Observe-se que não há a escolha da palavra ‘transgênicos’, mas o argumento
usado para falar desse tópico fica claro na escolha do elemento verbo-objeto ‘engenhar
vegetais’. Ainda, não aparece nitidamente a escolha da palavra célula-tronco, mas o
leitor a ressalta a partir do argumento dado a ela – uso de ‘embriões’ - e justifica sua
escolha se fundamentando no ponto de vista textual de que as células-tronco retiradas de
embriões, que são descartados, ajudam a salvar vidas. Nota-se, também, que o leitor
salienta a argumentação – tipologia textual própria do gênero artigo de opinião -,
destacando as palavras ligadas à construção dos tópicos explicados pelo autor:
‘alimentar plantas’ e ‘matar pragas’ - transgênicos; ‘testar’ clonagem ‘em humanos’ clonagem; ‘destruir’ os embriões para ‘dar vida a outros’, ‘salvar vidas’ - células-tronco.
Nos exemplos expostos acima fica claro que a competência discursiva do leitor
demonstra, na escolha das palavras-chave, o assunto sobre o qual trata o discurso ou
parte dele, destacando no texto um falar sobre algo (DIJK, 1977a), ou seja, uma
coerência. A coerência é estabelecida pela recuperação do tópico da conversação e do
tópico
do
discurso
(DIJK,
1977a;
KOCH;
TRAVAGLIA,
2011;
BEAUGRANDE;DRESSLER, 1981). É o que o leitor faz quando escolhe as palavraschave como forma de estabelecer um resumo para a argumentação exposta pelo autor, o
que significa que as regras semânticas colocadas nas palavras e suas relações permitem
a utilização das habilidades discursivas dos usuários de resumir o texto em uma
macroestrutura global (DIJK, 1977a).
A tentativa de recuperação da coerência do texto também fica clara nas
justificativas das palavras-chave para o texto 3. Nesse texto, do total de 36 justificativas
para a competência discursiva, 5 delas relatam nitidamente questões mais discursivas,
tais como focalização da relação tema-rema ou sequência textual. As demais estão em
ligação com a competência sociointercultural. Essa observação pode ser explicada pelo
gênero do texto – poema – uma vez que, em textos poéticos, a organização superficial
do texto é motivada por correspondências especiais ao significado e propósito da
comunicação geral (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).
175
Na tabela 6, abaixo, fica aparente o fato de que a maioria dos estudantes justifica
a escolha das palavras-chave como forma de caracterização do(s) personagem(s)
(indicadas com seta azul), ou como forma de estabelecer uma coerência por meio da
criação de uma sequência narrativa (indicadas com seta verde).
Observe-se também que há uma alta indicação para palavras que ativam
conhecimentos de mundo dos leitores (indicadas com seta rosa), o que será analisado na
seção 4.1.3 deste trabalho.
TABELA 6 – Levantamento das palavras-chave – Texto 03
Palavra-chave
Deus
Gauche
Anjo (torto)
Fraco
Abandonar
Nascer
Coração
Homem
Mundo
Desejos
Pernas
Bigode
Bonde
Mulher
Carlos
Diabo
Amigos
Comovido
Raimundo
Solução
Sombras
Conhaque
Dizer
Sabias
Azul
Vasto
Sério
Turma A
8
8
6
9
8
6
5
3
3
5
4
4
3
1
3
1
6
3
2
3
2
1
1
2
2
1
1
Turma B
11
10
10
4
5
7
8
10
9
6
7
5
6
8
5
7
1
4
4
2
3
3
2
0
0
1
1
Total
19
18
16
13
13
13
13
13
12
11
11
9
9
9
8
8
7
7
6
5
5
4
3
2
2
2
2
...
176
...
Palavra-chave
Espiar
Simples
Raros
Pergunta
Forte
Cheios de pernas
Vida
Talvez
Óculos
Conversa
Turma A
0
1
1
1
1
1
0
0
0
0
Turma B
2
0
0
0
0
0
1
1
1
1
Total
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
Legenda:
Palavras que caracterizam o assunto principal – 10 palavras
Palavras que caracterizam a caracterização dos personagens/temas – 22 palavras
Palavras que marcam sequências textuais - 23 palavras
Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a emotividade do texto – 9 palavras
Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao
estabelecimento de coerência – texto 3: emotividade, tristeza, comoção, desespero121 22 palavras
Veja-se no excerto de um dos estudantes selecionados, a maneira como o aluno
procura estabelecer coerência, sequenciando ações de uma narrativa:
B.3.3.8 anjo torto: o anjo fala com Carlos. Carlos: o rapaz fora
de rumo. Pernas e bonde: fala das mulheres. Meu Deus:
apelação a Deus/ porque me abandonastes.
Nesta justificativa do aluno 8 da turma B, a tentativa de estabelecer uma
coerência do texto pela sequência fica aparente pela escolha das palavras e nelas a
separação dos acontecimentos textuais. O leitor procura separar as estrofes em pequenas
sequências de acontecimentos e o faz a partir da seleção de palavras que possam auxiliálo nesta relação de uma história sendo narrada: primeiro o personagem do texto – Carlos
e uma narrativa primária – um anjo falando com ele. Na sequência, o leitor relata um
segundo momento da narrativa, no qual o personagem se depara com as mulheres. E
num terceiro momento narrativo, o leitor procura estabelecer a tristeza do personagem
por ser abandonado por Deus. Ou seja, o leitor realiza um cálculo de sentido apelando a
fatores contextuais de ordem sociocognitiva e interacional, o que o faz construir a
coerência ou organizar as informações do texto em sequência (KOCH; ELIAS, 2010).
121
As indicações que apresentam esse tipo de classificação são analisadas na seção 4.1.3
177
Na tabela acima, a indicação da organização de informações sequenciais de uma
narrativa, representadas pelas setas verdes, são justificativas frequentes para a escolha
das palavras-chave.
Nesta segunda justificativa, abaixo, acontece mais ou menos a mesma
sequenciação, mesmo sem haver uma explicação nítida para as escolhas feitas pelo
leitor:
B.3.3.3 carlos, bonde, deus abandonaste porque é as palavras
que mais marcaram o texto.
Veja-se que o leitor utiliza palavras presentes em estrofes sequenciais do poema
e diz que seleciona as palavras para ‘marcar’ o texto, o que pode ter acontecido para
identificar pontos na sequência textual ou destacar sentidos. Essa marcação também se
dá na seguinte justificativa:
B.3.3.25 Deus: porque é uma palavra que marca; pernas: porque
fala várias vezes; Raimundo: porque é bem massa; diabo:
porque me lembra algo.
No exemplo acima, além do leitor apresentar a marcação temática dada na
escolha das palavras-chave, ele procura indicar a remissão presente ao indicar ‘pernas’
por ‘falar várias vezes’. Na verdade, a palavra aparece três vezes no texto como
indicativo de que o autor as vê constantemente na construção do próprio poema (“pra
que tanta perna meu Deus?”). O leitor procura indicar essa palavra-chave como algo que
é constante no texto em uma das sequências textuais e divide a escolha das outras
palavras em momentos diferentes do poema. De acordo com Antunes (2012) as palavras
repetem-se em um texto não por mero acaso, mas porque isso é um recurso de
textualização que provoca efeitos discursivos. A repetição serve para marcar a
continuidade do tema, reiterar algo, provocar efeito de ênfase, reforço ou intensificação,
abrir uma explicação, marcar o final do texto como recurso de fechamento (ANTUNES,
2012). No caso dessa indicação, o leitor identifica um efeito discursivo da palavra-chave
escolhida, observando a ênfase e intensificação dadas à palavra ‘perna’ e indicando-a
como item remissivo que marca um determinado tema do texto.
A palavra ‘perna’ aparece em outra das justificativas também com a intenção de
marcar uma das sequências:
178
B.3.3.9 coração, Deus, abandonaste, perna, conhaque. O texto
coloca essas palavras meio interligadas pois ele fala sobre o
coração dele e coloca Deus do poema pedindo porque o
abandonaste se sabia que era fraco, com tantas pernas porque
meu deus tanta perna pergunta o meu coração se no final
termina com conhaque que deixa comovido como o diabo.
Note-se que, nessa indicação, o leitor seleciona as palavras e as justifica também
pela sua ‘interligação’, estabelecendo entre elas uma relação que liga os fios semânticos
do texto (CAVALCANTI, 1989) e construindo para ele coerência (KOCH;
TRAVAGLIA, 2011). O leitor procura reformular uma pequena história utilizando as
palavras por ele selecionadas e destacando os momentos da narrativa: falar do coração,
falar com Deus, ser abandonado, encontrar com as pernas, beber conhaque, comover-se.
Nessa indicação, o leitor demonstra a forma como as palavras-chave selecionadas o
auxiliam na reconstrução de uma sequência textual e também no estabelecimento da
coerência pela organização da narrativa. Reitera-se que essas foram justificativas
frequentes para a escolha das palavras conforme apresentado (com setas verdes) na
tabela 6 acima.
Destaca-se que a coerência não está no texto em si, mas se constrói na interação
entre leitor e autor por meio das pistas do texto em ligação com os conhecimentos
diversos que se possui da realidade (KOCH; ELIAS, 2010). Nesse caso, o texto faz
sentido para o leitor porque a sequência de ações que ele observa é possível em sua
realidade. Admite-se, no caso do texto 03, que outros conhecimentos, culturais e sociais,
podem estar sendo utilizados para sequenciar as ações narrativas e isso acontece
justamente pelo gênero do texto que deixa as possibilidades de interpretação mais
abertas122. Vale notar o fato de que, para o texto 3, há algumas indicações de palavras
que auxiliam o leitor a estabelecer a emotividade do poema (indicadas com setas
amarelas). Isso mostra que diversos fatores textuais, entre eles a caracterização do
gênero, interagem entre si pela ativação da competência discursiva na construção de
sentidos.
É importante repetir que a seleção de uma palavra-chave não é aleatória, mas em
seu entorno é possível construir a ideia principal (ou as ideias) do texto (SOLÉ, 1998).
122
Sobre a relação entre aspectos discursivos e conhecimentos de mundo do leitor (competência
sociointercultural), ver a seção 4.1.4 deste trabalho.
179
Grande parte dos alunos, de fato, utilizou fatores discursivos para apoiar a escolha das
palavras-chave e focalizar aspectos nucleares nos três textos como o assunto principal, a
sequência textual, os personagens, os temas e as características do gênero, conforme
apresentado no gráfico a seguir:
GRÁFICO 5 – A classificação da utilização das palavras-chave nas
justificativas dos estudantes
Verifica-se que, com relação ao texto 01, as ideias principais são marcadas pela
narrativa, a focalização dos personagens e suas condições sociais impostas no texto. No
texto 02 as ideias são marcadas principalmente pela sequenciação textual dada pela
argumentação, e no texto 03 as ideias ficam marcadas pela tentativa de estabelecer laços
semânticos que estabeleçam a coerência textual. Observa-se aqui um fator importante na
caracterização da competência discursiva: o gênero textual e a tipologia textual
(MARCUSCHI, 2003; KOCH, 2009). Nas indicações analisadas acima, assim como nas
demais indicações dos alunos, o gênero do texto está em constante diálogo na interação
do leitor com o texto:
a) Texto 01: o gênero crônica - de tipologia predominantemente narrativa – refletese na escolha das palavras-chave pelos estudantes. Notou-se, nas indicações, que
a sequência da narração e a divisão dos personagens, apontados em azul e verde
no gráfico acima, são fatores de constante indicação na justificativa para a
escolha das palavras e, consequentemente, na interpretação dada pelos leitores.
180
O leitor ativa seus conhecimentos com relação ao gênero e sua forma para
reestabelecer a narração do texto, sua sequência e seus personagens. Outro
detalhe importante é a construção da crítica apresentada no texto, característica
do gênero crônica, e indicada pelos alunos também como justificativa na escolha
das palavras-chave conforme apontado em amarelo no gráfico acima;
b) Texto 02: a tipologia argumentativa do gênero artigo de opinião é destacada
pelos informantes na seleção das palavras-chave: a maioria dos estudantes
seleciona as palavras relacionadas ao tópico principal (genética, transgênicos,
clonagem, células-tronco), as quais são demonstradas em azul e verde no gráfico
acima, e a elas ligam os argumentos dados pelo autor procurando indicar que ali
existe uma posição, uma crítica ou uma opinião, características do gênero,
apontadas na construção da argumentação, o que é demonstrado em amarelo no
gráfico;
c) Texto 03: o gênero poema, por possuir características comunicativas que ativam
emotividade da língua, também é evidenciado na escolha das palavras-chave
pelos leitores. Observaram-se nas indicações deste texto dois fatores principais
para relação gênero-interpretação: a) os alunos procuraram, na escolha das
palavras, evidenciar a emotividade própria do gênero (apontado em amarelo no
gráfico) e a relacionaram com as exposições feitas pelo autor a partir da ativação
da competência sociointercultural (é o caso da escolha de ‘triste’ ou ‘tristeza’,
‘coração’, ‘comovido’123), o que é apontado em rosa no gráfico acima; e b) o
leitor procura estabelecer para o texto uma coerência baseada em uma história
sendo contada pelo autor, sequenciando ações pela escolha de palavras que
identificam diferentes momentos do poema, o que é indicado em azul e verde no
gráfico.
Deve-se destacar que a competência discursiva que faz uso dos conhecimentos
textuais do leitor (de gêneros ou tipologias) tem uma função importante na atividade de
leitura (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009). Isso porque os tipos textuais têm traços
linguísticos predominantes que tecem uma base de compreensão do texto formando uma
sequência (MARCUSCHI, 2003). Por outro lado, os gêneros textuais organizam o
discurso ou as produções textuais (BAKHTIN, 2000) tanto quanto as formas
gramaticais organizam as sentenças que utilizamos. Ou seja, o usuário da língua aprende
123
Fala-se mais sobre indicações desta natureza na seção seguinte sobre a competência sociointercultural.
181
a moldar suas produções linguísticas a um determinado gênero e a adivinhar o que o seu
interlocutor vai lhe dizer pela adequação da situação comunicativa a um gênero. Há uma
sensibilidade do usuário a um todo discursivo que o capacita a evidenciar diferenças de
compreensão (BAKHTIN, 2000).
Em suma, de acordo com o que se discutiu até aqui, a competência discursiva
auxilia o leitor a:
a)
Sequenciar o texto em momentos diferentes de ações textuais;
b)
Identificar a relação existente entre tema-rema ou informações velhas e
novas (relação dado-novo), costurando sentidos para o texto;
c)
Reconhecer a intenção comunicativa do texto relacionada ao tipo e
gênero textual;
d)
Destacar tópicos discursivos discutidos pelo autor e que devem ser
identificados pelo leitor como marcas discursivas;
e)
Salientar pistas linguísticas que o levam a estabelecer coerência textual.
4.1.3 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência
sociointercultural.
Conforme se apresentou na seção 2.2.2 deste trabalho, a competência
sociointercultural considera fatores e regras sociais que influem no ato comunicativo
bem como o contexto e o diálogo constante entre discursos e culturas, dos quais o
usuário participa em seu cotidiano e que o leva a produzir sentidos. Em outros termos,
considera-se
que
a
competência
sociointercultural
constrói-se
a
partir
do
desenvolvimento da habilidade dos falantes de utilizar:
a) Fatores e regras sociais que influem no ato comunicativo (HYMES, 1995);
b) A gramática de contexto (SCOLLON; SCOLLON, 2001124) que inclui aspectos
como a cena, o tom da fala, o ambiente social entre outros;
c) As diferentes culturas (interculturalidade) vividas pelos usuários bem como os
diferentes discursos e ideologias a que são expostos e que interferem na
produção de sentidos (KRAMSCH, 1993; 1998).
124
Cf. cap. 2.2.2.
182
De acordo com os dados levantados e com a conceituação de competência
sociointercultural desenvolvida para este trabalho, as justificativas, por excertos,
classificadas nessa dimensão, são expostas na tabela 7 abaixo:
TABELA 7 – A incidência da competência sociointercultural nas justificativas dos
alunos
Texto 01
Texto 02
Texto 03
Total
Total de indicações
Competência sociointercultural
Turma A
Turma B
21
15%
17
12%
23
17%
21
15%
28
28%
24
18%
72
53%
62
46%
134
O que se nota é que a competência sociointercultural aparece com maior
recorrência do que as competências gramatical e discursiva na classificação das
justificativas para a escolha das palavras-chave dos alunos.
Como se pode observar nos excertos selecionados e expostos na sequência deste
estudo, essas ocorrências incluem, principalmente, fatores (inter)culturais e sociais na
construção de sentidos para o texto. Ainda, como na competência discursiva discutida
na seção anterior, grande parte das justificativas é classificada em interação com outras
competências (75 indicações) e serão analisadas na seção seguinte (4.1.4) deste
trabalho. Procura-se explicar e demonstrar agora a forma como os dados fornecidos
pelos informantes revelam fatores pertencentes à competência sociointercultural.
Para as 28 indicações dessa competência no texto 01, 13 foram da turma A e 15
da turma B. Dessas indicações, a maioria relaciona um aspecto social importante para a
interpretação do texto: a classe social dos personagens. Atrelado a esse fator, questões
socioculturais tais como preconceito, superioridade do rico em relação ao pobre,
oportunidades de sucesso são muito frequentes. No exemplo abaixo é possível verificar
a ocorrência questões socioculturais:
A.1.3.22 indigente: uma pessoa dispensável, sem importância.
Estudo. [na linha seguinte] - Rico: achando que porque tem
dinheiro pode humilhar uma pessoa. Aprender: talves [sic] o
menino não aprendeu não porque não quis mais sim porque não
teve a oportunidade. Ofendido: o senhor não gostou de saber que
o menino não estava nem aí pro teorema de Pitágoras.
183
A escolha da palavra-chave ‘indigente’ procura caracterizar o personagem pobre
dentro de uma compreensão discursiva e social (e, portanto, também cultural) de que o
mais pobre não tem importância. Ainda a escolha de ‘rico’ reforça essa construção do
leitor ao destacá-lo como aquele que ‘humilha’ o outro por sua condição social.
Outro detalhe importante nessa justificativa é a relação que o leitor estabelece
entre a escolha de ‘aprender’ e a não obtenção de uma ‘oportunidade’ de aprendizado.
Destaca-se aqui o perfil socioeconômico dos informantes: a maioria dos alunos possui
uma renda familiar relativamente baixa, de três a sete salários mínimos na turma A, e de
um a cinco salários na turma B125. Tal fator pode ser utilizado no destaque de questões
relacionadas à diferença de classe social, principalmente quando se indica que o pobre
não tem a mesma oportunidade que o rico. Agora, outro exemplo parecido indicado na
turma B:
B.1.3.9 destino, diferença, estudo, pessoas, trocado. Essas 5
palavras estão relacionadas de uma maneira pois no texto ele
fala que rico é coisa do destino e diferença estabelecida é sim o
estudo entre eles. Pois as pessoas da classe alta estudam mais do
que o pobre e se o garoto tivesse conhecimento ele não ganhou
algum trocado que ele havia pedido e sim ganharia muito
dinheiro.
Nessa justificativa, o estudante seleciona vários substantivos do texto e neles
mostra a diferença de classes entre rico e pobre. Nesse caso, os sentidos textuais são
construídos possuindo como foco a questão da diferença de classes. Ainda, ele liga a
essa diferença à questão do estudo afirmando que ‘ele fala que rico é coisa do destino e
diferença [...] é sim o estudo entre eles’. Veja-se que há uma voz social-discursiva
interagindo na produção de sentidos que diz que para ser rico é necessário ter estudo.
Essa ideia é reforçada quando o leitor afirma que tendo estudo, o que ele destaca na
escolha da palavra ‘conhecimento’, o menino pobre teria ‘muito dinheiro’ e não ‘algum
trocado’.
Por outro lado, o estudante indica ainda que riqueza é também resultado do
‘destino’. Ou seja, somente estudar não é suficiente para que o rico seja rico. Para tanto
é necessária outra força que facilita a vida - o destino. Nota-se que há uma diversidade
de discursos e comportamentos sociais (ou culturas) que entram em diálogo aqui: Para
125
Cf. cap. 3.
184
ser rico é preciso estudar; para ser rico é preciso ser premiado pelo destino; quem é
pobre e não for premiado pelo destino, precisa estudar mais; quem é rico tem mais
oportunidade de estudar do que o pobre.
Observe-se tanto no exemplo da turma A (A.1.3.22), acima, quanto no da B
(B.1.3.9) que a percepção do indivíduo sobre a classe social, ou sobre a diferença de
classes existente na sociedade é evocada a partir de seus conhecimentos de mundo e
dialoga aqui na maneira como e quais sentidos devem e podem ser construídos a partir
do texto. Esses sentidos só podem ser construídos porque na realidade vivida pelos
leitores, a diferença de classes é evidenciada em fatores sociais tais como ter dinheiro
significa mais tempo e mais oportunidades para se dedicar à educação, discriminação
social com relação aos pobres, oposição entre as classes sociais pela divisão de espaços
sociais entre elas.
Há também um processo de ativação de aspectos sociointerculturais nas
interpretações dos alunos quando eles se colocam no lugar do personagem ou assumem
para si um sentido extraído do texto. No exemplo,
A.1.3.26 no texto a palavra estudo me chama a atenção porque
mostra como devemos tê-lo. As palavras pobre e rico passa uma
imagem de desigualdade social. A palavra indigente mostra
como o personagem rico se acha melhor que o menino pobre.
Dinheiro porque como o personagem rico o coloca em primeiro
lugar, antes mesmo do próprio conhecimento.
O estudante se coloca como aquele que recebe o conselho de estudar quando
destaca a palavra ‘estudo’ e a justifica com o verbo em primeira pessoa: ‘me chama
atenção porque mostra como devemos tê-lo’. Ainda, liga a isso o fator de que há uma
‘desigualdade social’ e que o rico possui atitudes de menosprezar o pobre. É perceptível
que isso foi uma inferência do leitor a partir de uma realidade armazenada em seus
conhecimentos, pois o texto não traz essa informação de forma explícita.
No entanto, o leitor reconhece a importância do estudo, mas não concorda com a
ideia de que estudo e dinheiro são equivalentes, pois afirma que o personagem coloca o
dinheiro ‘antes do próprio conhecimento’. Para o leitor, estudo e conhecimento são os
fatores importantes para sua vivência (fatores culturais, portanto), mas o dinheiro é
destacado
como
fator
estudo/conhecimento.
de
desigualdade
social
e
não
como
resultado
do
185
Também nesse exemplo, o informante pode estar sendo influenciado por fatores
contextuais sociais, a partir dos quais se diz que é preciso estudar como uma forma de
prática social. Essa ideia dialoga com o leitor anterior, o aluno 9 da turma B, que
destaca que, além de estudo, a pessoa precisa de um auxílio do destino. Ou seja, há um
processo de culturas em diálogo constante criando sentidos possíveis uma vez que o
contexto gera uma matriz na língua enquanto discurso e dialoga na produção de sentidos
(KRAMSCH, 1993). Nesse caso há um diálogo cultural sendo estabelecido mediante o
uso da língua quando os leitores destacam que somente o estudo não faz com que o rico
fique rico. Na relação entre as diferentes culturas vividas pelos informantes, a riqueza
pode ser resultado não só do estudo, mas do ‘destino’, como destaca o leitor, das
‘oportunidades’ que são mais fáceis para quem possui uma classe social mais alta, ou
pela própria diferença de classes que se mantém historicamente na sociedade: o rico tem
mais oportunidades, estuda mais e consequentemente continua sendo rico.
Note-se, no exemplo abaixo, a maneira como o contexto de vivência é utilizado
para a construção de sentidos no texto:
A.1.3.11 dinheiro: ele “puxa” o assunto principal do texto, é
uma coisa frequente que acontece, ver jovens na rua pedindo
dinheiro mas as pessoas incentivam isso dando esmolas;
oportunidade: se tiver espaço, aproveitar as oportunidades saber
ouvir e executar. Pobre: a falta de oportunidades a diferença das
classes como: educação, alimentação habitação, etc. Estudo:
essencial mas não atinge a todos, infelizmente tem essa
diferença , o país teria que desenvolver mais políticas publicas
que abranja a todos. Conhecimento: a cultura que cada um tem
as diferenças, no vocabulário. Na verdade, as palavras estão
todas interligadas.
O leitor destaca na escolha da palavra ‘dinheiro’ o enfoque discursivo dado ao
assunto principal do texto, mas a ele relaciona questões reais de ‘ver jovens na rua
pedindo dinheiro’. Destaca-se aqui a forma como os frames126 (KOCH, 2009; DIJK,
2002; KLEIMAN, 2002) atuam na produção de sentidos. A realidade textual de haver
um menino pobre pedindo esmolas é ligada à vivência real do aprendiz - ‘uma coisa
frequente que acontece’. Talvez, o leitor não conseguisse estabelecer o mesmo sentido
se fosse um menino rico pedindo esmolas ou, certamente, estranharia tal afirmação
126
Cf. cap. 1.3.4
186
tentando recuperar sentido no texto, já que essa informação não estaria de acordo com
os esquemas mentais que caracterizam as pessoas que pedem dinheiro nas ruas.
Veja-se que os esquemas mentais construídos a partir da realidade do aprendiz
são também utilizados quando o leitor liga à palavra-chave ‘pobre’ fatores como falta de
oportunidade, educação, alimentação, habitação. Ainda ligado a essa escolha, o leitor
destaca a necessidade de se resolver o problema com políticas públicas. Vale observar
que esse não é um sentido explícito colocado no texto, mas é evocado a partir de
estruturas de conhecimento que possibilitam essa construção e de outros discursos
sociais aos quais o estudante é exposto e que interferem nos sentidos produzidos.
Outro detalhe importante nessa justificativa é que o leitor está consciente da
cultura na produção de sentidos. Para o leitor, cultura é o ‘conhecimento’ que se tem
sobre a realidade e que interfere inclusive na linguagem - ‘cultura que cada um tem, no
vocabulário’. É interessante notar que o informante destaca que relações culturais
interferem na forma como ele recebe o texto, assim como no vocabulário. O leitor
demonstra que a escolha do vocabulário e do léxico para a construção da narração está
fortemente ligada à cultura dos personagens, as quais são imaginadas pelo leitor a partir
das relações reais vividas por ele na sociedade, o que o faz produzir sentidos. A
justificativa do leitor corrobora o fato afirmado no cap. 1 de que cultura e língua estão
em contínua associação no diálogo com o texto. Isso porque a cultura é entendida como
parte de uma comunidade que compartilha um espaço social e imaginário comum e
auxilia o usuário a reter um sistema comum de percepção, crença, avaliação e ação
(KRAMSCH, 1993; MENDES, 2011).
Com relação ao texto 02, foram 03 indicações para a turma A e 09 para a turma
B totalizando 12 justificativas (as demais foram classificadas a partir da existência de
um diálogo com a competência discursiva e serão discutidas na seção seguinte deste
trabalho). Dentre elas, a maioria relata aspectos sociointerculturais tais como ética,
responsabilidade e ciência como possibilitadores de uma vida melhor ou de perigos.
Em um dos excertos, abaixo, o leitor destaca tanto os benefícios da ciência - ao
selecionar a palavra ‘maravilhas’ - quanto seus perigos, selecionando a própria palavra
‘perigos’ e relacionando-a ao processo de experimento científico que utiliza ‘cobaias’
bem como ‘oportunismo’, destacando a forma como algumas pessoas lidam com a
ciência pensando em seu ‘bem estar’:
187
A.2.3.7 turbilhão: que muitas coisas estão sendo descobertas;
maravilhas – trazem muitos benefícios para nós as descobertas
de como curar doenças incuráveis ou até mesmo conseguir
controlar a doença (AIDS). Perigos: são os riscos que as pessoas
“cobaias” correm ao fazer o tal experimento, pois você não sabe
a reação do seu organismo. Transgênicos: são usados em
alimentos para ficar com a aparência bonita e diminuir o numero
de insetos mas que faz muito mal a nossa saúde. Oportunismo:
muitas pessoas pensam somente no seu bem estar isso acaba
ocasionando muitos perigos.
Um detalhe importante é o conhecimento de mundo do aprendiz que interage
com o texto quando ele identifica a possibilidade de cura proporcionada pela ciência e a
possibilidade de criação de alimentos ‘mais bonitos’ e na ‘diminuição de insetos’.
Chama-se a atenção para o fato de que tais fatores não estão no texto, mas foram
inferidos pelo leitor a partir de seu conhecimento prévio do assunto. O leitor, de forma
clara, destaca também os perigos dizendo que os transgênicos fazem ‘muito mal a nossa
saúde’. Os sentidos são construídos aqui num compartilhamento de conhecimentos
produzidos por intermédio da língua numa relação entre sociedade e relações
semântico-pragmáticas (KRAMSCH, 1993). Ou seja, o que acontece aqui é que não
aparecem simplesmente vozes individuais do leitor ou do autor, mas também
conhecimentos históricos construídos pela sociedade e estocados a partir da vivência
dos usuários da língua (KRAMSCH, 1993). Os falantes utilizam essas categorias para
representar suas experiências e construir sentidos.
Outro fator importante no excerto acima é que o leitor expõe a possibilidade de
controlar doenças incuráveis, tais como a AIDS, como inferência pessoal com relação
ao texto. Observe-se que o autor do texto não expõe sua preocupação com essa doença
em particular, mas cita outras doenças (Alzheimer, Parkinson, diabetes, defeitos
congênitos), ainda incuráveis na sociedade o que justificaria o fato do leitor inferir que a
ciência genética pode colaborar também no combate ao vírus HIV. Ele demonstra sua
inferência de forma bastante clara ao expor: ‘curar doenças incuráveis’, o que foi
exposto pelo autor, ‘ou até mesmo conseguir controlar a doença (AIDS)’, o que foi
inferido pelo leitor na interação com o texto. O diálogo estabelecido pelo informante é
visível: se o autor afirma que a ciência pode curar doenças incuráveis até agora, então
pode também controlar doenças sérias ocorrentes na sociedade, como a AIDS.
Deve-se considerar também, no extrato acima, o fato do leitor indicar os
‘perigos’ relacionados à palavra ‘cobaias’. O leitor aponta a existência de ‘riscos’, o que
188
é explicitamente colocado no texto pelo autor, mas para o estudante esses perigos estão
na participação das pessoas no experimento. Note-se que, no texto em si, não há
informações explícitas sobre o uso de ‘cobaias’, mas há uma declaração de que há
mulheres voluntárias para participação no experimento de clonagem humana. O
processo de inferência acontece de forma nítida: se há mulheres voluntárias para
participar do experimento de clonagem, elas seriam as ‘cobaias’ que correm ‘perigos’,
porque elas não sabem ‘a reação do organismo’. Há um conhecimento de mundo
implícito nesta afirmação: o de que cobaias humanas correm riscos ao participarem de
experimentos científicos. Essa última observação reitera o ponto de vista de que
qualquer conhecimento sobre a realidade interfere na forma como os sentidos são
produzidos a partir do texto (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010).
Veja-se como o leitor ainda representa suas categorias de vivência no excerto a
seguir:
A.2.3.29 escolha: porque ao ver esta palavra se mostra um
futuro de risco e de decisão múltiplas pelo fato de que não
afetará um mais muitos bem e ruim. Ética: porque pelo tema do
texto, a ética não mais é só um principio mas sim se torna um
problema pela dúvida que nela surge para eles do que fazer.
Clonagem: porque mostra como hoje em dia tudo pode ser
refeito artificialmente e pode ou não ajudar a sociedade hoje.
Embriões: porque são neles que se tem assim por dizer o
“poder” para a manipulação de uma melhora em coisas julgadas
irreversíveis. Nova chance: se enquadra com anterior porque
com embrião possivelmente dará vida ou continuidade para
aquele que o recebe.
A primeira palavra selecionada pelo leitor, ‘escolha’, é destacada como um fator
social de decisão - ‘decisão múltiplas’ - que apresenta riscos - ‘futuro de riscos’- para o
bem ou para o mal -‘bem e ruim’. Observe-se que a palavra demonstra o diálogo que o
leitor estabelece com o texto quando ele pensa no futuro e nas decisões advindas da
ciência, fatores esses não discutidos abertamente no texto. Ainda, o informante afirma, a
partir da escolha de ‘ética’, que essa é um problema porque ‘pelo tema do texto’, ela
representa questões de saber o que fazer em determinadas situações, o que envolve a
compreensão de regras de comportamento social. Destaca ainda a importância de tal
palavra dizendo que ‘não é mais só um princípio’, ou seja, ela deve ser praticada quando
se fala em ciência.
É importante notar também como o leitor estabelece ligações de sentidos
sociointerculturais a partir da palavra ‘clonagem’ – ‘pode ou não ajudar a sociedade’ – e
189
‘embriões’ – por possuírem ‘o poder da melhora’ de fatores ‘irreversíveis’. Tais
sentidos são construídos pela inferência do leitor ligado a discursos já ouvidos
anteriormente ou a crenças que a ciência genética constrói pela divulgação de seus
estudos (p. ex. textos em que se apresentam avanços na cura de algumas doenças pelo
uso da ciência genética). Ainda no mesmo excerto, o estudante liga a embriões o fato de
que eles são capazes de dar ‘vida ou continuidade’ para outras vidas, destacando a
maneira como a palavra-chave é usada para a concentração de um sentido: o poder de
criação da ciência.
Pode-se dizer, assim, que o leitor estabelece para as formas linguísticas por ele
escolhidas possibilidades de contexto numa relação social e interacional (BAKHTIN,
2009). Aqui essa relação entre as formas e o contexto de situação é esclarecida na
ligação entre as escolhas das palavras-chave: i) por regras de comportamento social e
cultural canalizadas pela palavra ética; ii) por discursos outros (intertextos) divulgados
pela ciência genética; e iii) pela adequação de contextos possíveis para o texto dado – a
inferência do que é possível ou não ser feito pela ciência e por sua produção social e
intelectual.
O leitor abaixo também justifica a escolha da palavra ‘ética’ voltada para um
comportamento científico necessário no extrato a seguir:
B.2.3.17 engenharia genética: explica que as pessoas deveriam
se importar mais com as sortes e revés do que um gene pode
causar. Ética: explica que tem que concientizar [sic] sobre o
mundo genético. Alimentos transgênicos: são capazes de
prolongar sua vida, por ter substancias que evitam o
intoxicamento [sic] ao alimento. Clonagem: hoje em dia, a
clonagem de animais está cada vez mais comum na sociedade, e
pode ser um beneficio para nos. Humanos: podem conseguir
clonar as pessoas, não é de se duvidar. Células tronco: beneficia
e muito o ser humano mais é uma questão de ética, manipulados,
pois é uma quase pessoa.
O estudante afirma que ‘ética’ é importante, em seus critérios, pois as pessoas
devem ser conscientizadas com relação ao mundo dos estudos genéticos. Ao que tudo
indica, o leitor está, de fato, dialogando com o autor na produção de sentidos quando
segue uma argumentação principal do texto de que ‘clonagem humana é uma questão de
ética’ e estabelece para isso a necessidade da conscientização. Em outros termos, o
leitor procura direcionar seus conhecimentos para o sentido de que, se a clonagem
190
humana é uma questão de ética, então é preciso conscientizar as pessoas do que está
acontecendo. Veja-se que o leitor retorna à questão de ética quando fala das ‘célulastronco’, pois os embriões manipulados são uma ‘quase pessoa’. O conhecimento do
leitor está amarrado aqui com o fator primário: se não se pode clonar pessoas porque é
uma questão de ética, então tem que se pensar na manipulação dos embriões porque
estes são uma ‘quase-pessoa’, ou seja, tem-se também uma ‘questão ética’.
O leitor ainda estabelece um diálogo com o texto a partir de seus conhecimentos
de mundo ao escolher a palavra ‘clonagem’, afirmando que esta é uma prática ‘cada vez
mais comum’ e afirmando que isso pode ser um benefício. No entanto, na sequência o
leitor seleciona ‘humanos’ como palavra-chave para destacar que pode acontecer que
seres humanos sejam clonados (‘não é de se duvidar’). Esse sentido está em
consonância com os sentidos de crítica e desaprovação produzidos pelo autor quando
afirma textualmente “Não é surpresa alguma que se fale agora na clonagem de
humanos”. No texto, a crítica e reprovação do autor são construídas relacionadas a
outros fatores atacados explicitamente tais como: “oportunismo”, “desdém com esse
tipo de aplicação” e a declaração do autor de que “espero que o navio jogue tanto que as
pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas”. A ação de “quebrar as pipetas”
leva à interpretação de uma posição contrária do autor, pois, se é um experimento e
considerando que pipetas são importantes para tal, a sua quebra provoca o fim do
experimento. Essa relação de coerência não está no texto, mas se constrói a partir dele
na interação com os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; TRAVAGLIA, 2011;
BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981127). O leitor expõe a reprovação do autor do texto
com relação ao assunto quando afirma ‘não é de se duvidar’ que se possa ‘clonar
humanos’.
É necessário explicar que, nesse exemplo, dois fatores principais são observados: a)
o leitor, ao utilizar a expressão ‘não é de se duvidar’, destaca um sentido construído
socialmente pela realidade de uso da expressão idiomática: a dúvida e a expectativa com
relação a uma ação (ex. não é de se duvidar que ele faça isso; não é de se duvidar que
ela arrisque; não é de se duvidar que o garoto roube; não é de se duvidar que ele passe
no vestibular); e b) no texto, a ação realizada aqui – a clonagem – é, de fato, colocada
em dúvida e em expectativa, mas como ponto de crítica e reprovação pelo autor do
texto. A realidade contextual da ocorrência da expressão, o que para Hymes (1995) é
127
Cf. cap. 1.3.4
191
uma realidade sociolinguística que auxilia o leitor a ligar seus enunciados a um contexto
específico de ocorrência, impõe, na realidade do texto, um sentido de crítica, dúvida e
desaprovação e reforça a justificativa para a escolha da palavra-chave que canaliza tal
sentido.
Destacam-se fatores sociais e culturais envolvidos aqui: a ética com relação à
clonagem humana e à genética, o preconceito com relação à clonagem, a incerteza dos
benefícios da ciência genética e da produção científica, entre outros. Isto quer dizer que
há uma variedade de discursos em diálogo que são trazidos à tona durante a produção de
sentidos pelos leitores. O fato é que o leitor deve estar ciente das relações estabelecidas
pelo uso das palavras em um determinado contexto (HYMES, 1995), para, assim
desenvolver sua competência comunicativa. Ou seja, a forma como a língua é utilizada
em determinados contextos de ocorrência influi na maneira como é compreendida pelos
falantes (HALLIDAY, 1985; HORNBERGER, 1995).
No exemplo a seguir, o leitor também destaca, na escolha das palavras, fatores
de ordem sociointercultural:
B.2.3.20 descoberta: mostra a grande descoberta de se poder
mudar o que antes era um problema irreversível.
Favoravelmente: mostra a posição do narrador em relação as
vantagens de se mudar a genética. Consequências: fala sobre os
males que podem causar a mudança na genética. Complica: é
uma critica quando a genética entra no mundo animal. Vida: a
coisa mais bela que existe mas com alguns males que podem
danificar a vida se tratando de mudança genética.
Veja-se a maneira como o leitor utiliza a palavra-chave ‘descoberta’ para
canalizar um sentido textual e cultural de encontrar soluções para problemas
irreversíveis. O leitor impõe ao texto aqui uma necessidade social depositada na ciência
de que ela é a responsável pela ‘descoberta’ da cura para problemas que assombram a
sociedade. A ciência seria a responsável, cultural e historicamente, por dar soluções a
problemas vividos na sociedade, tais como as doenças indicadas no texto.
Outro ponto importante é a escolha do advérbio ‘favoravelmente’ para
evidenciar a intenção do autor com o texto, ou seja, para demonstrar sua posição
favorável à genética por meio da argumentação. Adianta-se que há uma interação entre
192
as competências128: a) a competência gramatical utilizada pela escolha de um advérbio
com significado que indica “propício, conveniente, benéfico, proveitoso, vantajoso129”;
b) a competência discursiva que indica a tipologia argumentativa do texto – argumento
favorável do autor; e c) a competência sociointercultural que indica que a ciência pode
trazer benefícios à sociedade (assim como no exemplo anterior).
Observe-se ainda que as escolhas das palavras-chave neste extrato indicam que o
leitor está muito mais preocupado com o sentido evocado por elas na relação
interacional com o texto do que com o seu significado primário. É o caso da escolha de
‘consequências’: o leitor concentra na palavra um fator ligado aos males causados pela
ciência genética. Ou seja, o leitor não está falando de consequências quaisquer, mas
somente daquelas causadas pelo mau uso da ciência. Isto quer dizer que ele utiliza a
palavra ‘consequências’ dentro dos limites dos esquemas mentais acionados para
compreender o texto, os quais estão voltados ao desenvolvimento da ciência genética.
O leitor reforça ainda um mau uso da ciência destacando outra palavra-chave
que é completamente atrelada aos sentidos construídos no texto: ‘complica’. A escolha
dessa palavra está justamente ligada à crítica estabelecida pelo autor do texto para o uso
da genética em alguns experimentos envolvendo seres humanos ou animais. No texto,
essa crítica fica aparente pela argumentação do autor, mas o leitor, por sua vez, utiliza
uma carga de conhecimentos sociais e (inter)culturais que ativam sentidos: a ciência
está fazendo clonagem de animais, a ciência pode curar doenças (ou outros males) que
atormentam a sociedade, a clonagem humana pode ser eticamente desaprovada, a
clonagem precisa ser mais investigada pela ciência, a ciência genética pode trazer
benefícios, bem como malefícios. Tais afirmações são construídas numa relação entre a
vivência social, a cultura, a crença e os comportamentos dos usuários da língua.
Uma questão cultural importante é destacada também pelo uso da palavra ‘vida’
como chave para a interpretação do texto: o leitor utiliza argumentos construídos social
e culturalmente para concluir que ‘a vida é a coisa mais bela que existe’ - influenciado
por questões de crença, de religião ou por ideias otimistas comuns na sua faixa etária - e
a esse conhecimento ele liga a necessidade de se pensar nos males causados pela
genética. O leitor faz ligações claras entre os sentidos relatando que ele acredita que já
que a vida é ‘a coisa mais bela que existe’, ela não pode ser ‘danificada’ por uma
128
O diálogo entre as competências será discutido de forma mais profunda na seção seguinte deste
trabalho (seção 4.2.4).
129
UAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
janeiro: Objetiva, 2009
193
ciência sem ética, ou que se propõe a mudar a vida. Note-se a importância do diálogo
que se estabelece entre os sentidos extraídos do texto - a ciência precisa de ética - e os
sentidos construídos pelo leitor - a vida é bela para ser ‘danificada’ pela ciência’. É esse
diálogo que provoca uma negociação de sentidos e que auxilia o leitor na interpretação
do texto130 (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008).
O diálogo com conhecimentos sociointerculturais é ativado de forma ainda mais
contundente no texto 03, influenciado pelo gênero textual, poema, que traz
possibilidades maiores de diferentes interpretações. Ao todo foram classificadas 20
ocorrências para esse texto, sendo 11 para a turma A e 09 para a turma B. Entre os
extratos, a maioria destaca valores religiosos ou de questionamentos emocionais do
personagem. Tome-se como exemplo o excerto a seguir:
A.3.3.7 anjo torto: que Deus estava nem um pouco interessado
em guiá-lo pois mandara um anjo que não lhe ajudava em nada.
Raros amigos: que ninguém está do seu lado apoiando-o em
suas decisões e os raros amigos que ele tem nem “ligam” pra
ele. Abandonastes: fala que ele não está confiante em Deus e
que Deus não está lhe ajudando a encarar a vida. Coração: seu
coração está vazio pois ele não crê em mais ninguém. Diabo:
que em vez dele correr atrás de Deus ele vai ficar com o que ele
acha que lhe convém.
O informante destaca duas questões principais na sua interpretação: a primeira é
a intertextualidade com o texto bíblico exposto no texto “Meu Deus, porque me
abandonaste”. O momento evocado é de sofrimento visto que o texto retoma a frase de
Jesus Cristo, que, ao ser crucificado, implora o auxílio de Deus para aliviar seu
sofrimento e sua dor. Ou seja, a intertextualidade exposta aqui leva o leitor a construir
para o texto momentos de tristeza experimentados pelo autor durante essa fase de sua
vida. Isso só é possível pela associação dos conhecimentos do intertexto (crucificação
de Jesus Cristo) e os conhecimentos de mundo (dor, sofrimento, pedido de auxílio).
Toda a carga cultural deste intertexto é trazida ao diálogo durante a leitura quando ele
destaca que Deus não ‘estava nem um pouco interessado em guiá-lo’ ou ‘ele não está
confiante em Deus’ ou ainda, em vez de ‘correr atrás de Deus’, ele ‘vai ficar’ com o
diabo que ‘lhe convém’.
130
No cap. 5.2 deste trabalho fala-se mais sobre a negociação de sentidos.
194
Verifica-se, aqui, que há uma cadeia de enunciados (BAKHTIN, 2009) que são
utilizados para a construção do sentido do poema. Observe-se também que enunciados,
que podem aqui ser considerados intertextos já que ativam conhecimentos produzidos
por outros textos, são trazidos para o diálogo como meio de construção de novos
sentidos textuais: nesse caso, o de que o personagem procura por Deus numa situação
de angústia. Koch e Elias (2010) destacam que justamente que “a inserção de velhos
enunciados em novos textos promoverá a constituição de novos sentidos” (KOCH;
ELIAS, 2010, p. 78).
A segunda é a construção de um sentido ligado a problemas emocionais vividos
pelo personagem. O leitor destaca ‘raros amigos’ como palavra-chave e a justifica
dizendo que tais amigos ‘nem ligam pra ele’. Ainda, o leitor destaca que: o coração do
personagem está vazio, ele não crê em mais ninguém, vai correr atrás do diabo, já que o
anjo não lhe ajudava em nada. Note-se que esses sentidos são construídos pelo leitor a
partir de uma tentativa de estabelecer coerência para o texto. Essa coerência é
construída a partir dos sentidos de tristeza evocados pelo texto bíblico, pela súplica do
personagem a Deus, pela sua reclamação no decorrer do texto, pela sua caracterização
de ‘ser fraco’. São sentidos que se ligam a uma possível realidade conhecida pelo leitor:
se ele está suplicando algo a Deus é porque está com problemas. O leitor procura
encontrar no texto quais seriam esses problemas. Ou seja, ele levanta hipóteses para a
sua leitura (KLEIMAN, 2002; CASTELLO-PEREIRA, 2003) – ele está angustiado, tem
poucos amigos, não crê em ninguém etc. - e aos poucos vai criando um mundo textual
(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; KOCH, 2009) em que procura confirmações
para essas possibilidades e produzindo sentido numa atitude de interação com o autor
via texto. Reitera-se que o leitor, estrategicamente, identifica itens lexicais que
confirmam essa interpretação e constrói sentidos ligados à tristeza: o anjo torto que não
ajuda, o abandono por Deus, os raros amigos que não ligam pra ele, o coração vazio.
Neste outro extrato, vale observar a maneira como o leitor procura, na escolha
das palavras-chave, estabelecer um sentido global que relate os fatores emocionais do
personagem do texto:
A.3.3.10 gauche: deslocado, perdido. Tendo que achar um
rumo. Azul: céu azul cheio de desejos, esperanças. Mundo:
versões maneira de ver as coisas.
195
A escolha da palavra ‘gauche131’ de início já revela, para o leitor, a situação
emocional do personagem: ‘perdido, deslocado’. Ou seja, o leitor não apenas destaca o
personagem, mas o limita dentro de um esquema mental específico: ele é um
personagem ‘perdido’, sem ‘rumo’. Ao estabelecer o significado da palavra ‘gauche’, o
leitor destaca o personagem e procura encaixá-lo dentro de uma realidade textual a
partir de possibilidades ativadas por ele sociocognitivamente (isto é, por seus
conhecimentos de mundo132 - KOCH, 2009). Em outros termos, o leitor utiliza seus
conhecimentos para estabelecer uma relação entre o que está no texto e inferências
construídas durante a interação: se o personagem está sem rumo – significado da
palavra construído durante a atividade de pré-leitura pela compreensão da palavra
‘gauche’ – ele precisa de esperanças – inferência do leitor.
As próximas escolhas são realizadas tendo esse fio semântico condutor
(CAVALCANTI, 1989) – um personagem sem rumo -, liderando os demais sentidos do
texto e dando a ele força ilocucionária. Note-se a forma como o leitor escolhe ‘azul’ ou
ainda mais especificamente o azul do céu, para evocar sentimentos bons, desejos,
esperanças, os quais seriam necessários para uma pessoa que se encontra ‘sem rumo’. A
ligação entre a cor azul e bons sentimentos também é uma criação possibilitada pela
metáfora construída culturalmente de que tal cor significa alegria, felicidade,
tranquilidade (p. ex.: Hoje está tudo azul na minha vida). A utilização da frase
metafórica133 ‘céu azul cheio de desejos, esperanças’ é utilizada aqui como uma solução
para os problemas do personagem ‘sem rumo’. De acordo com Kramsch (1993), os
usuários da língua são altamente sensíveis às maneiras pelas quais as palavras
representam um estado de mundo por meio de formas, sons, metáforas e pelo modo
como essas palavras interagem com o contexto em que são usadas e constroem um
significado simbólico.
No exemplo abaixo, os fatores sociointerculturais, principalmente aqueles
relacionados à crença, ficam também esclarecidos no estabelecimento de sentido pelo
leitor da turma A:
131
Durante a atividade de leitura prévia do texto, os alunos questionaram sobre o significado da palavra
de origem francesa ‘gauche’, e a pesquisadora interveio dizendo que o significado principal, no poema, é
de uma pessoa que está perdida, insegura, que se sente deslocada.
132
Vide cap. 1.4.4
133
Cf. discussão realizada no cap. 1, há uma realidade uma realidade histórica armazenada pelos falantes
que faz com que as metáforas sejam compreendidas. KRAMSCH (1993) afirma que ao estabelecer-se
interação comunicativa em uma língua aparecem conhecimentos históricos armazenados em uma
sociedade, ou um estoque de metáforas vividas pelos sujeitos – vide cap. 1.4.4 p. 62
196
A.3.3.15 anjo torto: é representado por uma força má o diabo,
citado ao final do poema. Sombras – explica a palavra anjo
torto, que é uma coisa ruim, moradia do anjo torto. Homens:
representa que pessoas estão envolvidas (Carlos). Amigos: diz
que Carlos não tem amigos ou se tem são poucos. Deus: força
do bem que o deixou e a má pegou.
Note-se aqui que o informante destaca duas forças em oposição no poema: o
bem, liderado pela palavra Deus, e o mal, liderado pelas palavras ‘anjo torto’ e
‘sombras’. Ao mal, ainda, o leitor conecta a palavra que representa aquele que é
culturalmente oposto a Deus, ou seja, o ‘diabo’. É interessante ainda observar como o
leitor coloca os homens em meio a essa relação entre bem e mal e destaca que, no
poema, a palavra ‘homens’ representa ‘que pessoas estão envolvidas’ e que nesse caso é
a pessoa do personagem principal, ‘Carlos’.
Outro detalhe importante é que o leitor procura também estabelecer o sentido de
sofrimento emocional construído pela ideia de que o personagem não tem amigos, o que
pode ser resultado de construções sociais e culturais que dizem que: amigos ajudam uns
aos outros em momentos difíceis, pessoas que não têm amigos são mais tristes, amigos
são importantes na vida das pessoas, os homens não podem viver sem amigos etc. Em
outros termos, conhecimentos de mundo, tais como a falta de amizades e ser pego por
forças más, justificam, para o leitor, o sentido de tristeza construído para o poema.
No exemplo abaixo, o leitor, além de suscitar questões emocionais, procura
encontrar um motivo para tais problemas:
A.3.3.22 meu deus: em um tom de pânico, de lamentação.
Abandonaste: creio eu que seja uma mulher que o largou. Se
sabias: mesmo que ele era fraco que não ia aguentar. Fraco:
fraco pro amor que não aguenta saber que foi abandonado.
Ele seleciona a primeira palavra-chave para estabelecer o tom do poema, ou
entonação (como uma possível tradução da palavra ‘key’ utilizada por Hymes (1995) e
Scollon e Scollon (2001)); para os autores esse é um dos fatores da gramática de
contexto134 que, nesse caso, seria o ‘tom de pânico, de lamentação’. Depois dessa
escolha o leitor procura um motivo para o sentimento de lamentação: ser abandonado
por uma mulher. E ainda reforça essa ideia ao afirmar que o personagem era ‘fraco pro
134
Cf. cap. 2.2.2 – os fatores de contextos são compreendidos mediante o acrônimo S P E A K I N G
(lugar, participantes, fins, sequencia dos atos, tonalidade, instrumentos, normas e gênero) e fazem parte
da competência sociolinguística (HYMES, 1995; SCOLLON; SCOLLON, 2001).
197
amor’ e que ‘não aguenta saber que foi abandonado’. Veja-se que esta é uma construção
do leitor a partir de seus conhecimentos sociointerculturais: amores não correspondidos
trazem sentimentos de pânico, abandono e lamentação. Este não é um sentido exposto
no texto de forma explícita, mas é uma construção do leitor possibilitada pelos seus
conhecimentos, os quais foram ativados por marcas linguísticas que, para ele, suscitam
questões emocionais que explicam o tom ‘de lamentação’ do poema.
Outros fatores de contexto também são explicados em outros extratos de alunos:
B.3.3.19 torto: achou que um anjo do mal o amaldiçoou.
Sombra: que vive de mau humor, é do mau. Fraco: Deus o
abandonou e ele sendo fraco não podia resolver seus problemas
sozinho. Solução ele precisa de uma solução para algum
problema. Comovido: deixa ele mau.
Aqui, o informante procura encaixar o texto como ato comunicativo, em um
contexto adequado de ocorrência: um anjo o amaldiçoou, ele vive de mau humor, tem
problemas, é fraco e precisa de socorro. O contexto de ocorrência possibilita a
comunicação apresentada no texto. Scollon e Scollon (2001) denominam esse aspecto
de “gramática de contexto” e o define como o elemento utilizado pelos usuários da
língua para compreender os sentidos dos enunciados dentro das circunstâncias em que
ocorrem. Ou seja, nessa ocorrência, assim como nas anteriores, o leitor utiliza sua
competência sociointercultural para a contextualização de uma cena de ocorrência para
o personagem do texto e procura estabelecer o cenário, lugar, espaço, tópicos135.
Conforme se pode verificar nos excertos expostos até aqui, a competência
sociointercultural age como uma construtora das possibilidades de mundo textual, em
que o leitor utiliza sua cultura, sua vivência, sua realidade sociolinguística para
estabelecer sentido para o texto.
A tabela, a seguir, demonstra todas as palavras indicadas pelos estudantes,
apontando-as por frequência maior de ocorrência de cima para baixo. As palavras
destacadas com seta rosa revelam algum sentido construído a partir da competência
sociointercultural:
135
Cf. cap. 2.2.2.
198
TABELA 8 – Palavras-chave que indicam a ativação de fatores
sociointerculturais
Texto 01
Estudo/ estudar
Teorema de Pitágoras
Pobre
Ensinamento/ ensinar
Rico
Dinheiro/trocado
Lição/lição preciosa
Conhecimento
Esfarrapado
Aprender
Instrução
Cinco/ cinco anos
Garoto/ menino
Senhor
Saber
Indigente
Diferença (de classe)
Destino
Estatísticas
Jovem
Oportunidade
Ofendido
Assombrado
Transmitir
Hipotenusa
Livro(s)
Divertir/diversão
Moro bem
Sofrendo
Bem vestido
Pessoas
Sua gente
Não
Texto 02
Células (tronco)
Clonagem
Transgênicos
(Engenharia) genética
Embrião
Fertilização
Ética
manipulação
Natureza
Humano
Consequencia
Vida
Dilema
Sociedade
Impacto
Cura
Descobertas
(Engenhar) vegetais
Experimento
Fome
Doenças
Estudo
Problema
Turbilhão
Genes
Cadeia alimentar
Adotar
Possibilidade
Ecologia
Reino (vegetal/animal)
Posição
Profissionais
Arrastados
Realidade
Frágil
Maravilhas
Perigos
Oportunismo
Clara
Benefícios
Sobreviver
Destruídos
Riscos
Escolha
Nova chance
Texto 03
Deus
Gauche
Anjo (torto)
Fraco
Abandonar
Nascer
Coração
Homem
Mundo
Desejos
Pernas
Bigode
Bonde
Mulher
Carlos
Diabo
Amigos
Comovido
Raimundo
Solução
Sombras
Conhaque
Dizer
Sabias
Azul
Vasto
Sério
Espiar
Simples
Raros
Pergunta
Forte
Cheios de pernas
Vida
Talvez
Óculos
Conversa
...
199
...
Texto 01
Total de palavras: 33
Texto 02
Desequilíbrio ambiental
Rejeitados
Favoravelmente
Dúvida
Alimento
Crítico
Debate
Hipocrático
Necessidades
Complica
Total de palavras: 55
Texto 03
Total de palavras: 37
Pela observação da tabela acima e pelos extratos analisados nesta seção, notouse que:
1) no texto 01, os leitores ativam conhecimentos relacionados principalmente a
diferença de classes, realidade social, política e econômica da sociedade,
além do preconceito com a pobreza;
2) no texto 02, fatores como ética, possibilidades da ciência, crenças baseadas
em religião e/ou produções científicas são constantemente utilizados na
construção de sentidos;
3) no texto 03, a contextualização do poema a uma realidade cultural de ter
problemas emocionais e encontrar solução para eles, possuir vínculos
religiosos é utilizada pelos informantes para construir suas interpretações.
Tais interpretações podem estar ligadas também ao gênero do texto que
inclui a emotividade como ação comunicativa relativa ao acontecimento
deste gênero.
O gráfico 6, abaixo, mostra os percentuais de palavras-chave que foram
utilizadas para canalizar algum tipo de sentido sociointercultural. A partir do gráfico,
observa-se que a incidência da competência sociointercultural apresenta um percentual
maior para o texto 03 (67%), se comparada com o texto 01 e 02 (respectivamente 45% e
49%), o que revela a maior utilização de conhecimentos de mundo diversos na
ancoragem da compreensão dos leitores para o poema:
200
GRÁFICO 6 - Palavras-chave indicadas que revelam fatores sociointerculturais
Ressalta-se, ainda, que fatores sociointerculturais, gramaticais e discursivos não
se dissociam durante o processo interpretativo. Reitera-se que se procurou destacar, até
o momento, alguns deles em isolamento, por texto, como metodologia de análise e para
demonstrar a maneira como são construídos nas justificativas dos leitores. Na seção
seguinte, discutem-se exemplos em que a comunicação entre as diferentes competências
aparece dialogando de forma mais nítida.
4.1.4 O diálogo entre as competências – a utilização da competência comunicativa
como forma de interagir com o texto.
Conforme se discutiu no cap. 2 deste trabalho, a competência comunicativa é o
conhecimento que o usuário desenvolve sobre a língua e que o capacita a interagir com
seus pares. É a partir das características que o usuário vai percebendo na língua em uso,
tais como as organizações do sistema, o contexto, as atitudes envolvidas (HYMES,
1995) que o sistema de comunicação se constrói. É também no uso da língua que os
falantes, paulatinamente, formam juízos de valor, constroem aspectos socioculturais da
sua comunidade e negociam sentidos.
Nas seções anteriores, procurou-se demonstrar a maneira como os informantes
relataram traços das competências discursiva, gramatical e sociointercultural. No
entanto, verifica-se que, na maioria dos extratos, as competências aparecem, agora, em
interação mais nítida, demonstrando que a competência comunicativa é utilizada como
uma habilidade geral dos usuários no estabelecimento de interação comunicativa
durante a leitura. As características observadas sobre a competência discursiva
201
(sequenciação textual, remissão, coerência, coesão, gênero textual) e as observadas
sobre a sociointercultural (conhecimentos de mundo diversos tais como crenças,
ideologias, culturas) aparecem agora dialogando umas com as outras e auxiliando o
leitor a utilizar a palavra-chave como uma estratégia para ativar todos os seus
conhecimentos e a construir interpretação textual.
Conforme se discutiu também na seção 4.2.1, a competência gramatical apareceu
de uma forma mais tímida na justificativa dos alunos o que não significa que não tenha
sido utilizada. Por exemplo, o fato dos alunos utilizarem, na maioria das escolhas,
palavras de classe aberta, tais como os substantivos, revela que aspectos gramaticais
estão em interação com o conhecimento discursivo ou sociointercultural.
Neste extrato do texto 2, por exemplo, a competência gramatical aparece
nitidamente indicada pelo aluno 12 da turma A em interação com as demais
competências:
A.2.3.12 engenharia genética: descobertas feitas pela ciência.
Alimentos transgênicos: ponto de vista positivo e negativo para
o bem do homem e da natureza. Ética: interferência do homem
na criação natural da vida. Clonagem humana: existem outras
formas de se ter um filho. Células-tronco: salvar vidas, curar
doenças, preservar vidas através de outras.
Nessa indicação, fica clara a questão do assunto principal abordado em primeiro
lugar – engenharia genética – e, ligados a ele, os três pontos discutidos pelo autor136. A
questão argumentativa é destacada quando o aluno justifica ‘ponto de vista positivo e
negativo’ e quando indica de forma resumida os argumentos do autor na exposição de
cada um dos temas – ‘outras formas de se ter um filho’ e ‘salvar vidas, curar doenças,
preservar vidas’. A relação existente entre a exposição do tema e seus argumentos está
relacionada ao tipo textual – argumentativo -, e é demonstrada pelo leitor na indicação
dos substantivos escolhidos como palavras-chave. Isso porque, de acordo com Moura
Neves (1997), o substantivo tem uma função de proeminência na organização da
informação, tendo também uma função especial como tema e como organizador entre
informação nova e informação velha, mapeando recuperações, remissões, projeções de
sentido. Isto quer dizer que há uma interação entre a classe gramatical da palavra –
substantivo – com a organização textual – proeminência de informações. Essa interação
136
Cf. cap. 4.1.2 – a divisão do texto de formato argumentativo em tópicos principais do texto foi um
fator analisado nos excertos da maioria dos alunos para a competência discursiva.
202
também é destacada pelos alunos principalmente na seleção dos substantivos em vários
dos extratos a seguir. Entretanto, a interação dada a partir do uso da competência
gramatical não é indicada explicitamente pelos alunos na maioria dos extratos, embora
ela seja, de fato, utilizada, conforme já foi explicado aqui. O que fica em destaque nos
excertos de forma mais nítida são os conhecimentos discursivos ou da realidade social e
cultural em que os estudantes vivem.
Veja-se como exemplo, ainda no excerto acima, a maneira como o estudante
destaca a necessidade de um comportamento ético ao se fazer experimentos científicos.
O leitor destaca que há uma questão ética presente na ciência porque ela interfere ‘na
criação natural da vida’. Ainda é por meio de experimentos científicos que o homem
realiza ações para o seu próprio bem e para a natureza – ‘ para o bem do homem e da
natureza’. Conclui-se, portanto, que há uma interação clara entre as competências no
extrato acima: i) a competência gramatical: ao selecionar substantivos para o diálogo
com o texto, o leitor procura destacar, na classe gramatical, a proeminência de
informações textuais, o que acontece também nos demais extratos analisados; ii) a
competência discursiva: ao destacar a tipologia argumentativa e a sequência de tópicos
do texto; e iii) a competência sociointercultural: ao apontar para a necessidade de se
estabelecer uma ética na ciência pois ela deve visar o ‘bem do homem e da natureza’.
Analisam-se, agora, outros extratos em que os alunos justificam suas escolhas
tanto por conhecimentos discursivos, quanto por conhecimentos sociointerculturais. A
tabela 9, na página seguinte, demonstra as ocorrências em que se considerou que havia
interação entre as competências discursiva e sociointercultural. O número total de 75
ocorrências foi contabilizado nas tabelas anteriores (tabelas 3 e 7 – p. 164 e 184
respectivamente) tanto como competência discursiva (fazendo parte do total de 130)
quanto como competência sociointercultural (fazendo parte do total de 134).
É importante apontar, que, de todas as ocorrências contabilizadas como
discursivas e sociointerculturais, mais da metade delas estão em interação entre si, o que
indica exatamente o fato de que competência comunicativa é um conjunto de
habilidades construído de forma completa e interativa pelos usuários para estabelecer
ações de comunicação em sua realidade (HYMES, 1995). No caso dos textos analisados
aqui, essa comunicação acontece durante um processo de leitura em que os leitores
interagem claramente com o texto para construir sentido(s).
203
TABELA 9 – A incidência da competência sociointercultural e discursiva nas
justificativas dos alunos
Texto 01
Texto 02
Texto 03
Total
Total de indicações
Competência sociointercultural
e discursiva
Turma A
Turma B
09
12%
03
4%
20
26%
12
16%
17
22%
14
18%
46
61%
29
38%
75
No texto 01, foram 12 ocorrências no total e a maioria delas transita entre os
pontos já apontados na seção 4.2.2 para a competência discursiva, tais como a sequência
da narrativa, a marcação dos personagens, a remissão, e para a competência
sociointercultural, tais como a diferença de classes ou a relação hierárquica entre pobre
e rico na sociedade. No excerto abaixo, o estudante procura demarcar dois fatores
principais: a) a maneira como as sequências de ações acontecem no texto, o que estaria
dentro da competência discursiva; e b) a maneira como a diferença de classes se destaca
e as razões para isso, o que seria competência sociointercultural:
A.1.3.9 dinheiro: o dinheiro porque o que o menino almeja
naquela situação. Cinco anos: os cinco anos que são o tempo
que ele diz que os ricos se dedicam mais para aprender.
Aprender: porque se ele estivesse [sic] interesse de aprender ele
não estaria pedindo um trocado. Conhecimento: se ele o tivesse
não estaria nessa situação. Teorema: porque foi com essa
palavra que ele constatou que ele não tinha conhecimento.
O estudante marca na escolha das palavras a sequência que acontece na
narrativa: ‘dinheiro’ que é um marcador textual que delimita o início do diálogo entre os
personagens; ‘cinco anos’ utilizado para marcar a diferença de estudo apontada no texto
entre os personagens; ‘aprender’ e ‘conhecimento’, utilizados pelo leitor para sinalizar o
tema principal sobre o qual o diálogo entre os personagens dão continuidade ao texto, o
que é justamente um critério para estabelecer a coesão; e ‘teorema’ para demarcar o
momento do texto em que surgem a dúvida e a crítica ali presentes.
De forma interativa, conhecimentos de mundo entram em ação na construção da
interpretação do leitor. Por exemplo, o informante indica que o pobre deve ter ‘interesse
204
de aprender’, pois se o tivesse, não estaria nessa situação. Ou seja, há discursos
construídos socialmente mostrando que para ser rico é necessário um esforço particular
em aprender e não ficar na rua ‘pedindo um trocado’.
Veja-se, também, no excerto, que o ‘dinheiro’ é indicado pelo leitor como algo
que o pobre ‘almeja’ na situação. O leitor delimita linguisticamente a maneira como o
dinheiro, o estudo, o esforço demandado são características sociais necessárias para
ascensão na sociedade. Kleiman (2002) indica justamente que os itens lexicais ou
palavras de um texto ativam tanto dados linguísticos ou textuais quanto conhecimentos
de mundo do leitor de forma interativa. Pode-se dizer, então, que os conhecimentos que
se tem na memória sobre realidades típicas da nossa sociedade, tais como a diferença de
classes e a oposição entre elas, determinam nossas expectativas para a ordem em que as
coisas acontecem e, em consequência, delimitam as possibilidades de leitura para um
texto. Há uma interação clara entre a marcação linguística feita pelo leitor na indicação
das palavras-chave, e os conhecimentos de mundo usados por ele para ativar aspectos
culturais e sociais que possibilitam a compreensão do texto.
Nesse outro excerto, como em exemplos anteriores, o leitor indica ‘teorema de
Pitágoras’ como assunto principal que ‘foca o texto’ para delimitar uma ação textual
importante na qual a crítica surge:
A.1.3.14 teorema de Pitágoras: porque foi o assunto principal
que foca o texto, por o menino não saber o que é. Ensinamentos:
o homem queria que em vez de dar dinheiro queria lhe oferecer
algo bem melhor como ensinamento. Estatísticas: de se
enriquecer com estudos se você gosta de estudar você vai longe.
Hipotenusa: que o autor foi um pouco irônico de usar como
exemplo a hipotenusa. Instrução: algo que o homem rico queria
desenvolver com o pobre.
O fator interessante neste excerto é que o leitor utiliza como ponto de partida
para suas justificativas uma questão discursiva: o assunto principal do texto. Ele
procura, em primeiro lugar, indicar onde está o sentido global na construção da
coerência para o texto e aponta que ali há uma crítica: ‘o menino não sabe o que é’. A
esse fator discursivo, o leitor vai conectando conhecimentos sociais e culturais de que
ensinamento é melhor que dinheiro, com estudos pode-se enriquecer e alcançar sucesso.
Outro detalhe importante é a maneira como o leitor destaca, na palavra
‘hipotenusa’, a ironia contida no texto. O informante identifica o assunto principal – a
205
crítica levantada pelo não conhecimento do teorema de Pitágoras – e ali ele também
concentra um fator de ironia construído a partir de seus conhecimentos de mundo: o
menino pobre não sabe o teorema, mas o rico também não sabe, pois esse último se
pergunta várias vezes qual é a fórmula do tal teorema. É necessário destacar que
hipotenusa está dentro dos esquemas mentais ativados pelo teorema de Pitágoras (a
hipotenusa está compreendida na fórmula do teorema) e é a partir disso que o leitor
consegue construir um sentido de que há um viés irônico presente no texto. Isso porque
a ativação de esquemas é fundamental no processo de leitura (ECO, 1979; KLEIMAN,
2002; DIJK, 2002137) e faz com que o leitor logre êxito no reconhecimento das partes
semânticas de um texto ativando todos os conhecimentos ligados a determinados itens
lexicais (ECO, 1979). À medida que a leitura evolui, o leitor vai reorganizando esses
esquemas e construindo o seu pensamento de maneira a fornecer coerência ao texto. Isto
é, fatores semânticos, socioculturais, discursivos são ativados ao mesmo tempo na
escolha da palavra-chave e auxiliam o leitor na interpretação textual. Vale observar que
a ironia é construída a partir de uma ligação entre a) o fator discursivo de que o
personagem rico critica o pobre por não saber o teorema; e b) o conhecimento de mundo
do leitor que infere que o rico também não sabe o teorema e mesmo assim está
criticando o pobre. Veja-se que é justamente neste ponto do texto em que a ironia
auxilia o leitor a construir a ideia da crítica do texto.
É importante relembrar aqui que, como se viu no cap. 1, a leitura é uma
atividade de construção de sentidos que pressupõe a interação autor-texto-leitor. Assim,
é preciso considerar que, nessa atividade, além das pistas e sinalizações que o texto
oferece, entram em jogo os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; ELIAS, 2010).
É o que se destaca no exemplo abaixo, ou seja, a maneira como as sinalizações e marcas
linguísticas do texto dialogam com o que o leitor sabe sobre a realidade:
B.1.3.7 esfarrapado: um menino pedindo dinheiro na rua. Bem
vestido: que quer dar lição de moral no (esfarrapado) e nem
mesmo ele sabe o que ele ta dizendo. Ensinamento e estudo:
duas palavras que começam fazer parte da nossa vida, e só
vamos tirá-las se nós quisermos, e temos que saber aproveitar
nossas oportunidades.
137
Cf. cap. 01
206
O leitor utiliza as palavras-chave para identificar os personagens e, ao mesmo
tempo, separá-los em classes sociais: de um lado o menino ‘esfarrapado’ pedindo
dinheiro e, de outro, o homem ‘bem vestido’. O estudante também procura marcar
claramente a crítica do texto quando afirma ‘nem mesmo ele (o bem vestido) sabe o que
ele ta dizendo’. Atrelado a essa marcação textual, o leitor se coloca no interior da
narrativa do texto utilizando primeira pessoa: ‘começam a fazer parte da nossa vida’,
‘Só vamos tirá-las se nós quisermos’, ‘temos que saber aproveitar nossas
oportunidades’. O leitor se coloca na posição daquele que recebe o conselho de estudar
para alcançar sucesso na vida. Para o leitor, as palavras, de fato, fazem parte da sua
vida, pois ele assume para si mesmo a tarefa de se esforçar, estudar e aproveitar as
oportunidades para chegar à classe social mais alta.
Pode-se, então, dizer que as palavras-chave escolhidas pelos estudantes
representam estruturas de pensamento que extrapolam o conhecimento linguísticogramatical e funcionam como matrizes cognitivas construídas pelo leitor para expor sua
representação da realidade. Uma interação constante entre as manifestações sociais e
culturais e a língua é representada no uso e não acontece aleatoriamente, mas é ativada
pela escolha do léxico da língua (ANTUNES, 2012). Destaca-se para isso o seguinte
exemplo:
B.1.3.20 esfarrapado: garoto pobre sem estudo. Dinheiro: o que
faz tudo acontecer. Ensinamento: homem querendo ensinar sem
razão. Livros: mostra a oportunidade de pessoas mais ricas.
Ofendido: a raiva que a classe mais pobre sente.
Nesse excerto, o leitor marca de forma muito clara as ações textuais-discursivas
indicando os personagens e os atos realizados por eles no texto: o esfarrapado sem
estudo, o homem rico querendo ensinar, o tempo de estudo das pessoas ricas e a ofensa
sentida pelo pobre. É interessante a maneira como o estudante utiliza essa sinalização
também para demonstrar o diálogo que ele estabelece na comunicação com o texto
expondo os conhecimentos por ele ativados. Note-se que ele indica uma compreensão
da diferença de classes dada pelo dinheiro (‘o que faz tudo acontecer’) e também na
indicação de ‘livros’ porque representam a ‘oportunidade’ que só os mais ricos têm.
Outro detalhe é que o leitor está completamente ciente de que os anos a mais de
estudo e a oportunidade do mais rico não fornece a esse personagem o direito de ensinar
algo ao mais pobre porque quem ‘faz tudo acontecer’ é o dinheiro e não o ensinamento.
207
O leitor aponta também para o adjetivo ‘ofendido’, relatando o sentimento do mais
pobre quando ele não consegue alcançar o mesmo sucesso que o rico ou não tem a
mesma oportunidade que ele. Há uma variedade de manifestações socioculturais sendo
representadas no texto por meio da escolha das palavras-chave: a diferença entre classes
representada no poder do dinheiro, a oportunidade de estudos, a ofensa do pobre por não
ter a mesma oportunidade. Se essas representações não fossem perceptíveis na realidade
do leitor, certamente ele não usaria tais conhecimentos para produzir sentido ou
produziria sentidos completamente diferentes.
Antunes (2012) também destaca que pensar nos efeitos decorrentes da escolha
das palavras é reconhecer que, em um texto, uma palavra expressa mais do que um
sentido. Isso porque ela pode também expressar intenção, propósito, cultura. Sendo
assim, a escolha de umas palavras em detrimento de outras na produção e na
interpretação do texto possibilita a revelação de tais funções da língua. No texto da
crônica, por exemplo, sabe-se que uma das funções comunicativas do gênero é
justamente suscitar uma crítica social. O leitor está consciente disso quando aponta, na
escolha das palavras-chave, o fato de haver diferença de classes e que nem sempre essa
diferença se dá por causa dos anos a mais de estudo, como no exemplo:
A.1.3.3 lição: foi o que o rapaz tentou fazer com o garoto ele
acreditou que daria uma lição para o menino não pedir esmola e
sim estudar. Dinheiro: era do que o menino precisava e o rapaz
tinha sobra, a diferença de classes, como se o dinheiro estivesse
acima de tudo. Destino: no texto essa palavra é relatada como se
nada fosse obra do destino mas sim consequência de suas
escolhas. Conhecimento – é algo que buscamos através do
estudo, o conhecimento que o rapaz tentou passar ao menino foi
de que ele deveria estudar, indiferente se isso não fosse o que ele
fez. Instrução foi a ajuda que o rapaz em tese deu ao garoto.
O leitor, assim como nos exemplos anteriores, indica dois aspectos principais: i)
discursivo: quando indica os personagens, a sequência de ações desenvolvidas por eles e
a continuidade textual que dá ao texto; e ii) sociointercultural: quando aponta que o
mais importante no texto (e na sociedade de classes) é o dinheiro. O leitor expõe
claramente a sua posição quando afirma que dinheiro era o que ‘o menino precisava e o
rapaz tinha de sobra’ e ainda reforça a ideia dizendo que é ‘como se o dinheiro estivesse
acima de tudo’. Para o leitor, o dinheiro é a forma de se dividir a sociedade em classes e
que isso é obra do ‘destino’ e não necessariamente das ‘escolhas’ dos personagens. Ele
208
reforça essa sua indicação ainda quando admite que o rapaz tentou ensinar o menino a
estudar, mas o rico estava ‘indiferente’ - ‘indiferente se isso não fosse o que ele fez’- e
que o fato do menino estar na rua pedindo dinheiro não necessariamente significa que
ele não estava indo pra escola, ou buscando ascensão social por meio do estudo.
O informante relata ainda, que o rapaz ‘em tese’ deu uma instrução, um
conhecimento ao garoto e está ciente que o fato de estudar mais não garante que o pobre
alcance a riqueza que ‘o menino precisava’. Neste excerto, o leitor procura amarrar suas
escolhas das palavras-chave para demonstrar a crítica construída pelo gênero crônica, e
a esse aspecto textual ele sobrepõe seus conhecimentos de mundo que dizem que na
sociedade de classes quem manda é o ‘dinheiro’, ‘o destino’ e as ‘oportunidades’ dos
mais ricos.
A relação entre aspectos discursivos de identificação do gênero e conhecimentos
de mundo utilizados para construir interpretação não se fazem presentes somente no
texto 01. Na verdade, conforme se discutiu na seção 4.2.2, sobre a competência
discursiva, verificou-se que o leitor utiliza seus conhecimentos textuais sobre a função
comunicativa do gênero para auxiliar na construção de suas interpretações. No texto 02,
a posição argumentativa do gênero artigo de opinião é utilizada pelos leitores para
produzir sentidos para o texto.
Foram analisados 32 extratos (20 para a turma A e 12 para a turma B), nos quais
se observou a interação entre as competências discursiva e sociointercultural para
construção de sentidos no momento da leitura. Esse número maior de indicações em que
uma série de conhecimentos é utilizada pelos leitores para construir interpretação pode
ser explicado pelo perfil dos alunos138: grande parte dos alunos da turma A afirma ter
interesse em seguir uma carreira em ciências médicas e da saúde. Note-se que as
indicações da turma A são mais extensas que as da turma B e é natural que estudantes
que pretendem prestar vestibular para a área de saúde se interessem mais pelo texto que
trata de ciência genética. Abaixo, tem-se um primeiro extrato das justificativas do aluno
11 da turma A:
A.2.3.11 descobertas, sociedade, genes, engenhar, sobreviver.
Descobertas: o texto fala do que está acontecendo hoje, a
ciência está indo cada vez mais longe descobrindo muitas
coisas, mas nem sempre benéficas a todos. Sociedade: qual o
papel da sociedade diante disso, se aprovamos o que não
138
Cf. cap. 3
209
aceitamos o que apoiaremos e o nosso papel de desenvolver
essas tecnologias. Genes: é um dos pontos centrais do texto a
mudança deles, isso é a tecnologia. Engenhar: os estudos
realizados sobre eles, o avanço. Sobreviver: como essa nova
tecnologia é distribuída se vai ser bom para todos, se usam agora
de forma correta, como vamos levar isso.
Nesse extrato, o leitor destaca a separação de alguns dos temas 139 (HALLIDAY,
1985; MOURA NEVES, 1997) em evidência no texto: as ‘descobertas’ da ciência, a
manipulação dos genes, o desenvolvimento de tecnologias científicas. O informante
indica ainda que sua tarefa é se concentrar nos aspectos principais do texto e escolhe
‘genes’ como um dos ‘pontos centrais’, ou seja, como um dos temas que lideram o
encadeamento de sentidos. No entanto, o estudante utiliza muitos de seus
conhecimentos vinculados às suas experiências e aos discursos aos quais é exposto,
deixando-os claros na sua justificativa. Note-se o caso da escolha de ‘sociedade’: o
usuário procura indicar a necessidade da sociedade se posicionar com relação à ciência,
pois essa pode ‘nem sempre’ ser ‘benéfica a todos’. Ele ainda procura acionar
conhecimentos culturalmente aprendidos de que é necessário agir em conjunto com a
sociedade para o bem de todos quando destaca que é necessário pensar ‘como a
tecnologia é distribuída’, ‘se vai ser bom pra todos’. O leitor destaca ainda o fato de que
a ciência genética ‘está indo cada vez mais longe’ e é necessário pensar nos benefícios
para a sociedade. Ou seja, o leitor constrói um sentido principal (DIJK; KINTSCH,
1983) – o de que a ciência genética é responsável pela descoberta de fatores importantes
na sociedade – e a isso ele liga sentidos baseados numa necessidade social
(KRAMSCH, 1998) - pensar nas consequências e no ‘bem de todos’.
As experiências socioculturais dos estudantes também são relatadas no excerto
seguinte:
A.2.3.4 células-tronco: é o assunto de destaque que causa um
impacto muito grande por ser polêmico e sério. Curar: palavra
forte por ser algo que muda o curso de uma vida. Problema:
palavra que evidencia que algo está errado que a genética tem
seus problemas. Embriões: da onde pode sair a cura de doenças
que se julgam incuráveis.ética: uma palavra muito discutida e
extremamente importante.
139
Cf. 4.2.2 sobre a competência discursiva.
210
No extrato, o informante destaca o seu conhecimento a respeito da engenharia
genética dizendo que é um assunto ‘polêmico e sério’, atrelando a ele a importância de
comportamentos éticos dentro do ambiente de estudos genéticos. Veja-se que
experiências de vida do leitor são evocadas na interpretação quando ele afirma que a
palavra ‘cura’ é muito ‘forte’ porque pode mudar ‘o curso de uma vida’. O leitor
salienta uma necessidade imposta pela sociedade de se encontrar a cura para doenças
‘que se julgam incuráveis’, e quem pode fazer isso é a ciência genética. O teor
altamente argumentativo do texto pode ter influenciado nessa interpretação do leitor,
pois é justamente no assunto células-tronco que o autor destaca que embriões são
usados na descoberta de doenças graves, aprovando o uso da engenharia genética nesse
aspecto. O leitor indica essa aprovação no texto e a coloca como benéfica, mas ao
mesmo tempo indica que ela interfere na vida em sociedade porque, reitera-se, a palavra
‘cura’ é muito ‘forte’ e o assunto é ‘polêmico’.
Na justificativa abaixo, o informante demonstra a focalização do tema central – a
célula-tronco - pela argumentação textual feita pelo autor:
A.2.3.20 transgênicos: experiência com produtos modificados;
humanidade: quem sofrerá com os efeitos. Clonagem: copias
reais. Experimento: tentativa de melhora. Células-tronco: tema
central.
Note-se que, embora o assunto central do texto seja a ciência genética, o autor dá
um destaque primordial à questão da aprovação da célula-tronco, em oposição aos
temas anteriores, os quais possuem argumentação contrária à sua prática. Mais um fator
importante neste exemplo é a maneira como o leitor destaca ‘humanidade’ e relata que é
quem ‘sofrerá com os efeitos’. O leitor procura indicar no diálogo com o texto que há,
de fato, efeitos ruins produzidos pela ciência genética e que pode haver sofrimento com
relação a isso. É importante lembrar que:
no mundo da nossa percepção e memória, os dados apreendidos
organizam-se em esquemas cognitivos que respeitam as relações, as
proximidades comuns, os cruzamentos de pertencimento natural e
cultural das coisas. Tudo está arrumado, tudo está estruturado para ter
sentido sob o prisma da relação, da pertença coletiva, do destino
comum, do que resulta uma espécie de herança social com que
interpretamos nossas experiências. Consequentemente, é comum que,
em nossos discursos, falemos de coisas afins, de coisas que se
aproximam sob qualquer foco, no interior de determinado grupo ou
cultura (ANTUNES, 2012, p. 88).
211
Aquilo que Antunes (2012) aponta como uma arrumação ou uma estruturação
para fazer sentido na perspectiva do pertencimento corrobora o fato de que os leitores
relacionam aspectos discursivos, como a argumentação, a aspectos culturais, como a
necessidade da cura, ou o sofrimento de efeitos possivelmente ruins. Há uma limitação
do discurso do falante, nas justificativas, a uma área que é possível ser estudada pela
ciência genética. Os informantes não apontam geralmente para quaisquer outros fatores
científicos como a descoberta de novas fórmulas matemáticas, ou a preservação de
animais em extinção. Eles procuram limitar sua interpretação a um campo específico: o
que a ciência genética é capaz de fazer para ajudar a sociedade. Ou seja, os leitores
fazem exatamente o que Antunes (2012) aponta: concentram seus discursos a coisas
afins, a coisas que se aproximam sob um certo prisma, ou à sua cultura.
Veja-se, neste outro extrato, a maneira como os leitores utilizam questões
discursivas – a marcação temática dos pontos principais do texto – atreladas a questões
socioculturais:
A.2.3.1 transgênicos – é uma das causas que estão acabando
com nossa saúde; clonagem: estão fazendo de tudo para que a
natureza não se manifeste, até clonagem, com isso as pessoas já
estão podendo escolher como será seu filho; genética: é um dos
assuntos mais abordados hoje; embriões: hoje as pessoas
guardam para utilizar anos depois e também já está sendo
usados para tratar de doenças; vida – é o assunto mais
importante
O leitor destaca os temas principais expostos na argumentação do texto: genética
- transgênicos, clonagem, células-tronco (‘embriões’) - e ainda afirma que na sua
interpretação ‘vida’ é ‘o assunto mais importante’. Para o leitor, todas as questões
abordadas no texto e indicadas por ele - aspectos discursivos - devem ser pensadas no
que diz respeito à ‘vida’, à sua preservação ou destruição, à natureza, à saúde o que são
considerados aspectos sociointerculturais por fazerem parte dos discursos e defesa de
comportamentos vividos pelos leitores em sua realidade.
O informante aponta ainda para conhecimentos utilizados extratexto para
construir interpretação quando indica que com a clonagem ‘as pessoas estão podendo
escolher até como será seu filho’. O leitor ressalta que os estudos divulgados pela
genética, aos quais ele tem acesso, revelam a possibilidade de escolher a aparência dos
212
filhos. Para o leitor, essa ação é feita por meio da clonagem e da ciência genética, que ‘é
um dos assuntos mais abordados hoje’. Deve ser lembrado que mesmo que isso seja
feito, não pela clonagem, mas pela manipulação genética, o leitor limita seus
conhecimentos a áreas afins: fala-se de manipulação genética e clonagem é uma dessas
práticas.
Outro detalhe é que o leitor indica claramente que utiliza outros discursos para
interagir com o texto a partir dos quais ele é capaz de construir conhecimento. Ele
aponta para uma prática social de congelar embriões: ‘hoje as pessoas guardam para
utilizar anos depois’. Essa indicação só pode ser feita mediante o conhecimento de que
embriões são utilizados pela medicina para dois tipos de práticas: a) a pesquisa em
ciência genética, o que é exposto no texto; e b) a utilização dos embriões em algum
aspecto ou momento da história, como por exemplo, para dar vida a uma criança no
momento em que uma pessoa achar mais oportuno, o que é construído pela inferência
do leitor.
Nesse outro exemplo, a relação entre a sequência textual, a tipologia
argumentativa e os conhecimentos de mundo do leitor também fica exposta:
A.2.3.3 arrastados: essa palavra remete ao objetivo geral do
texto pois de acordo com nosso consentimento ou não a genética
está cada vez mais avançada. Dilema: o assunto tratado pelo
texto é verdadeiramente uma discussão de várias partes que
concordam ou não com todas essas modificações ocorridas.
Natureza: essa palavra é de suma importância, pois as mudanças
genéticas estão ocorrendo e podem afetar tanto a natureza
quanto a humana. Clonagem: de acordo com o texto a clonagem
é algo desnecessário e impróprio pois pode trazer mais
malefícios do que benefícios. Células-tronco: algo necessário
que ajudaria várias pessoas com certas doenças a viverem
melhor, porém algumas pessoas dizem que é como “matar
vidas” mas para o autor do texto seria algo maravilhoso para
restituir a vida de tantos sofredores.
O leitor, assim como nos extratos anteriores, procura demarcar assunto principal,
a genética, indicando a palavra ‘arrastados’. É interessante observar que o estudante
indica que ‘o objetivo geral do texto’ é a genética, mas as pessoas são abordadas por
essa ciência de uma forma intensa, e são, de fato, ‘arrastadas’ por ela porque ela avança
rapidamente ‘com nosso consentimento ou não’. Ou seja, o leitor, utiliza dois tipos de
competência para construir interpretação: i) a discursiva: para encontrar o assunto
213
principal – estabelecimento da coerência global; e ii) a sociointercultural para fornecer a
esse assunto uma característica social de ‘arrastar’ as pessoas para um consentimento.
Note-se também, que o leitor, ao destacar conectivos tais como ‘pois’, ‘porém’ e
‘mas’, utiliza tanto sua competência gramatical por estar ciente da função de tais
elementos na construção das frases, quanto sua competência discursiva ao destacá-los
como fatores de demarcação da posição do autor na argumentação e utilizá-los como
elementos responsáveis pela coesão do texto. Para indicar a posição negativa do autor
com relação à clonagem - ‘algo desnecessário e impróprio’ - o leitor utiliza um
conectivo de consequência, ou explicativo – ‘pois’ – e afirma que a razão para isso é
que a clonagem traz ‘mais malefícios do que benefícios’. Cabe destacar que o leitor faz
isso mediante inferências e generalizações a partir do texto e dos argumentos do autor.
Por outro lado, para demonstrar a posição favorável do autor com relação às célulastronco, ele utiliza os conectivos adversativos ‘porém’ e ‘mas’, colocando os argumentos
do texto em oposição: por um lado, células-tronco ajudam pessoas doentes a terem uma
vida melhor, e ‘restitui vidas’ e, por outro lado, para alguns, é como posição ‘matar
vidas’. Nessa relação de oposição estabelecida a partir dos conectivos, o leitor marca
claramente a posição do autor: ‘para o autor é algo maravilhoso’. Em outros termos, o
leitor identifica a oposição e, ao mesmo tempo, define a atitude favorável do autor com
relação ao tema. É interessante dizer aqui que o leitor está ciente da relação estabelecida
entre seus conhecimentos gramaticais, discursivos e sociointerculturais. Ele utiliza os
conectivos e suas relações semânticas (oposição, consequência) para dar ao texto
coesão, marcando proposições, bem como sequências expostas no texto, e ainda utiliza
a maneira como seu conhecimento é representado – ‘arrastar as pessoas ao
consentimento’ - para estabelecer relações lógicas de ação e percepção, construindo
coerência.
No exemplo anterior ainda, o leitor indica a tipologia altamente argumentativa
do texto, utilizando seus conhecimentos textuais de que em textos dissertativos
argumentativos há a necessidade da exposição das diferentes posições a respeito do
tema: ‘verdadeiramente uma discussão de várias partes que concordam ou não’, ‘de
acordo com o texto a clonagem é algo desnecessário e impróprio’, ‘algumas pessoas
dizem que é como ‘matar vidas’ mas para o autor do texto seria algo maravilhoso’.
Veja-se como o leitor aponta para questões discursivas na polêmica entre as diferentes
opiniões levantadas e argumentadas pelo autor, e afirma que, ‘de acordo com o texto’,
‘para o autor’, ‘discussão de várias partes’, há ideias em oposição. O informante
214
focaliza, na sua interpretação, questões relativas à competência discursiva (gênero e
tipologia), procurando demarcar a maneira como a argumentação é construída, e
delimita, nas justificativas, as diferentes opiniões em oposição.
Conforme se observou na seção 4.1.3, as questões de gênero também
influenciaram os informantes na interpretação do texto 03. Para esse texto, foram
analisadas um total de 31 justificativas, classificadas para o diálogo entre as
competências discursiva e sociointercultural140, sendo 17 da turma A e 14 da turma B.
Esse alto número de extratos para o texto pode ser explicado pelo gênero literário
poema, o qual, de fato, comporta mais possibilidades de criação e por consequência da
utilização de diversos conhecimentos. Isso porque de acordo com Antunes (2012),
o léxico é a matéria onde será assentado o jogo da criação literária. As
possibilidades que ele comporta são inúmeras; são hipoteticamente
infinitas, em se tratando de literatura. Mas, no momento mesmo da
criação – da criação mais agudamente criação – o ‘dizível’ entra nos
contornos disponíveis no léxico e, assim, torna-se menos extenso e
mais suscetível de sofrer as restrições das seleções das palavras
(ANTUNES, 2012, p. 127).
Isto significa que, no poema, o leitor procura restringir seus conhecimentos às
seleções das palavras, mas o gênero literário por si só lhe dá mais liberdade de criar e
fazer relações hipotéticas, confirmando ou não suas possibilidades de leitura. O leitor
estabelece para o texto o que pode ou não estar sendo dito a partir do léxico utilizado na
escolha das palavras-chave.
No exemplo abaixo, o gênero poema possibilita uma criação de um mundo
textual diferente do mundo real quando o leitor fornece à palavra ‘mundo’ uma
possibilidade de ser um lugar onde ‘nunca se foi’:
A.3.3.13 gauche: homem que vê a vida de um modo diferente;
bonde: seria lugares cheio de pessoas, na maioria mulher.
Fraco: mandou ver o mundo mais que não resistiu a algo;
mundo: ver como é estar em lugar aonde nunca se foi. Coração:
tem sentimentos, pode estar com sentimentos bons e também
ruins.
O jogo da criação literária de um mundo textual próprio do texto é marcado pelo
leitor em vários momentos, ao indicar: ‘gauche’ como um homem que ‘vê o mundo
140
Cf. tabela 9 na p. 203 que mostra o número de justificativas classificadas em diálogo entre as
competências discursiva e sociointercultural.
215
diferente’; ‘bonde’ - visto pelo leitor como um lugar onde se vê várias pessoas,
principalmente mulheres (esse fator talvez explique a questão apontada pelo leitor da
fraqueza do personagem de ‘não resistir a algo’, o que pode ser mulheres); e ainda
‘mundo’ visto como ‘um lugar onde nunca se foi’. Ou seja, o leitor cria um mundo
textual no qual seja possível estabelecer coerência para o texto (ECO, 1979).
Outro detalhe importante neste extrato é o fato do informante indicar ‘coração’
como palavra-chave, para indicar os sentimentos do personagem, os quais podem ser
tanto ‘bons’ quanto ‘ruins’. Veja-se que uma palavra presente no texto é destacada
como chave para realizar conexões culturais: embora coração seja um órgão do corpo
humano (uma questão fisiológica, portanto), ao falar nessa palavra, questões culturais
relacionadas a aspectos de sentimento, amor, emoções são trazidas à tona. Isto quer
dizer que sentidos também são construídos a partir do uso social de uma palavra na
comunidade da qual o leitor faz parte.
No exemplo anterior da turma A e no extrato a seguir do aluno 12 da turma B, os
leitores utilizam elementos da superfície do texto para ativar sequência textual das ações
e estruturas de conhecimento:
B.3.3.12 carlos me faz lembrar o nome dele. Espiam: que
alguém em casa monitora ele. Pernas: quer dizer que ele gosta
de pernas é mulherengo. Fraco: que ele é fraco a mulheres.
Coração: que ele é mais emotivo que racional.
O leitor procura demarcar o personagem no texto na escolha de ‘Carlos’, um
substantivo próprio, como palavra-chave. Observe-se que as demais escolhas das
palavras estão todas ligadas a esse personagem: o informante utiliza o pronome ‘ele’
sempre como remissivo a Carlos e nas justificativas explica as ações desenvolvidas pelo
personagem no texto. Em outros termos, o fato interessante aqui é a maneira como o
estudante explica tais ações a partir de inferências que faz a partir do texto: ele é
monitorado - ‘alguém em casa monitora ele’; ele é ‘mulherengo’ - inferência do leitor
possibilitada pela afirmação do texto de que no bonde haviam muitas pernas associada à
informação da estrofe anterior de que os homens correm atrás de mulheres; ele ‘é fraco
a mulheres [sic]’; ele se deixa levar por suas emoções - ‘é mais emotivo que racional’.
Note-se a maneira como as informações do texto possibilitam a criação do leitor
dinamizando a língua na escolha das palavras-chave. As inferências são construídas a
partir de informações do texto, ligando-as a possibilidades reais armazenadas em seu
216
conhecimento de mundo, ou seja, o texto afirma em uma estrofe que os homens correm
atrás de mulheres e em outra estrofe que no bonde haviam muitas pernas. A partir disso
o informante infere que ele é ‘monitorado’ porque é ‘mulherengo’, é ‘fraco a mulheres
[sic]’ e se deixa levar por suas emoções. Há uma associação de sentidos possíveis dadas
às frases e a sequência textual em que as palavras ocorrem no poema.
Agora, outro excerto:
B.3.3.20 nasce: mostra o começo da vida, a partir desse ponto
acontesse[sic] o entendimento da vida; mundo: o tema que o
narrador quer falar e fazer críticas. Coração: o que ele quer
mostrar é os seus sentimentos do seu coração. Dizer: mostra o
seu desabafo sobre o mundo e a vida. Comovido: uma certa
ironia sobre o tema abordado.
Neste extrato, o estudante demonstra ações possíveis na vivência de qualquer
pessoa como forma de estabelecer sequência de ações e coerência textual: nascer,
demonstrar sentimentos, desabafar. Juntamente a isso o leitor mostra como a escolha
das palavras indica para ele a possibilidade de criar com a língua: a) o entendimento da
vida acontece a partir do nascimento; b) o autor quer fazer críticas sobre o mundo; c) ele
quer mostrar sentimentos; d) desabafar sobre o mundo e a vida. Veja-se que são as
possibilidades de leitura indicadas pelo leitor na escolha das palavras-chave. Essas
possibilidades são limitadas a duas coisas principais: a sequência exposta no texto e a
estrutura de conhecimentos do leitor que permite essa criação. O leitor, de fato não
poderia tirar a conclusão de que o personagem está muito feliz com sua vida, se no
texto, ele se depara com enunciados que demonstram reclamação, súplica, tristeza,
comoção. Ou seja, a escolha das palavras possibilita a criação imaginária do leitor numa
dinâmica interna, mas ao mesmo tempo essa criação é limitada aos sentidos construídos
no texto.
Antunes (2012) destaca que o léxico é aberto e pode sofrer alterações diversas
mantendo uma dinâmica interna. Isso não quer dizer que as palavras podem ser
destituídas de qualquer significado e se possa dar a ela um estado cognitivo zero, o que,
de fato, não acontece nas justificativas dos alunos. As palavras se associam a outras
criando novos sentidos conforme o contexto em que se inserem. Há uma instabilidade
no léxico que nos permite inventar e (re)criar com a língua, o que é limitado aos
sentidos possíveis construídos pelo encadeamento de palavras, frases e o texto como um
217
todo. No excerto abaixo, o leitor procura relacionar diferentes personagens do texto a
ações ali realizadas:
B.3.3.6 (anjo) que quando o homem nasceu disse vai Carlos vai
ser alguém na vida. Mulheres: que os homens correm atrás delas
na noite. Homem: que se alucina ao um anjo e uni atrás das
mulheres e se desanima e reclama. Deus: que o homem desafia
sobre ele coisas que não conseguiu. Mundo: que o homem
reclama do mundo pelo que não conseguiu.
Veja-se como o leitor separa as ações e os diálogos intratexto a partir da escolha
de palavras que indicam os personagens: em um primeiro momento, o anjo que
conversa com o personagem principal, mulheres que o ‘desanimam’, o homem – Carlos
- que é identificado como aquele que se ‘alucina’ pela imagem do anjo e das mulheres,
‘Deus’ que ‘desafia’ o homem, e o mundo como foco da reclamação. É importante
observar a maneira como o leitor, também neste extrato, cria um mundo textual
(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; ECO, 1979) a partir da escolha das palavraschave: um mundo em que o personagem reclama, sofre por correr atrás das mulheres,
desanima, é desafiado pelas coisas que não conseguiu realizar. Ao separar a palavra do
texto, o informante, na verdade, a relaciona a um sistema subjacente que possibilita as
ações textuais (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010; KOCH; TRAVAGLIA, 2011).
É importante lembrar que a relação estabelecida pela palavra e suas
possibilidades na vida real é também possibilitada pela realização de um enunciado em
um determinado gênero, que, nesse caso, tem uma função poética de criação. Ou seja,
há uma interligação constante entre a palavra, o enunciado e o gênero em que é
concretizada. O extrato seguinte exemplifica tal interligação:
A.3.3.19 anjo torto: veio para ele anunciando a desgraça da vida
dele. Pernas: não vê o rosto das pessoas por elas não lhe
chamarem a atenção tanto quanto o maquinista. Atrás: que o
homem fica atrás dos óculos e do bigode que ele disfarça o que
ele é ou que ele triste por ficar sempre atrás. Sabias: Deus e o
mundo sabiam que ele era fraco e mesmo assim o deixaram
viver. Conhaque: é a solução prévia para a tortura dele.
Note-se aqui que o estudante destaca as palavras-chave de alguma forma
relacionadas aos personagens – ‘anjo’, ‘homem’, ‘Deus’ - e às ações realizadas no texto
– ‘anunciar desgraça’, se ‘disfarçar’, ficar ‘triste’, ser ‘fraco’, arrumar ‘solução’ - como
218
uma forma de fornecer coerência ao texto. Junto a isso, o leitor procura dar aos
enunciados um tom de tristeza e de sofrimento - ‘triste por ficar sempre atrás’, ‘sabiam
que ele era fraco’, ‘solução para a tortura’ - como forma de estabelecer a função
comunicativa do gênero e ativando a criatividade, a emoção e o imaginário. Bakhtin
(2000) afirma justamente que a palavra é escolhida para qualquer interação verbal
(portanto, na leitura também) como forma de relacionar enunciados às suas
manifestações típicas, ou seja, aos gêneros:
quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de
um enunciado, nem sempre a tiramos, pelo contrário, do sistema da
língua, da neutralidade lexicográfica. Costumamos tirá-la de outros
enunciados e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao
nosso pelo gênero, isto é, pelo tema composição e estilo: selecionamos
as palavras segundo as especificidades de um gênero. (...) no gênero a
palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a
circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por
conseguinte, a certos pontos de contato típicos entra as significações
da palavra e a realidade concreta. Daí se segue que as possibilidades
de expressões típicas forma como que uma supra-estrutura da palavra.
Essa expressividade típica do gênero, claro, não pertence à palavra
como unidade da língua e não entra na composição da sua
significação, mas apenas reflete a relação que a palavra e sua
significação mantêm com o gênero, isto é, com os enunciados típicos.
(BAKHTIN, 2000, p. 312).
Bakhtin (2000) argumenta que as palavras também ganham sentidos a partir da
sua ocorrência em um “enunciado típico”, ou seja, em um gênero. Pode-se dizer, assim,
que a ocorrência das palavras no gênero poema faz com que o leitor forneça um sentido
ligado à emotividade do gênero em si. Há uma conexão entre as escolhas das palavras, a
expressão típica em que se inserem – ou o gênero – e as funções comunicativas que elas
têm no interior do texto.
Veja-se também, no exemplo anterior, a maneira como o leitor oferece uma
solução ao personagem: o ‘conhaque’. Essa afirmação pode estar sendo influenciada por
um conhecimento sociocultural de que a bebida é utilizada como forma de fugir dos
problemas. É o que acontece também na justificativa seguinte:
A.3.3.24 nasci: a pessoa nasceu desorientada sem ideia do
mundo. Coração: que o coração não conhece as coisas que os
olhos estão acostumados a ver. Fraco: ele era fraco perto de
Deus e Deus abandonou ele. Solução: que o mundo está cheio
de problema e o nome dele não daria solução. Comovido: que
com uma bela lua e um conhaque ele fica bom.
219
O informante utiliza as palavras ‘solução’ e ‘comovido’ como uma forma de
associar os significados a realidades criadas no texto. Ou seja, há uma conexão entre as
palavras e a maneira como o leitor constrói a interpretação de que há um personagem
triste, abandonado por Deus, que procura uma solução e que com ‘uma bela lua’ e um
‘conhaque’, o personagem pode ‘ficar bom’. Antunes (2012) afirma que a associação
semântica entre as palavras que criam o mundo da ficção constitui a esteira por onde
transita tudo aquilo que é inusitado. Ou seja, o leitor utiliza as palavras para associar
possibilidades de interpretação baseado na estabilidade dos sentidos criados por elas
intratexto. Uma das interpretações indicadas pelo leitor neste excerto é justamente o fato
de que ‘Deus abandonou’ o personagem e ‘o mundo está cheio de problema’. Há uma
associação de fatores discursivos e sociointerculturais quando o leitor: a) indica o
sofrimento do personagem, afirmando que é ‘desorientado’, tem ‘problemas’, ‘é fraco’;
e b) salienta o fato de que observar uma ‘bela lua’ e beber ‘conhaque’ podem levar o
personagem a sentir-se ‘bem’, o que é construído pelas inferências do leitor.
No entanto, os dados também revelaram exemplos em que os estudantes
justificaram suas escolhas a partir apenas da hierarquização do assunto principal do
texto. Lembra-se, aqui, que a atividade foi explicada para os alunos no sentido de que
eles deveriam selecionar palavras que os fizessem lembrar do texto ou que os ajudassem
a compreender o sentido global.
Alguns estudantes não expuseram seus motivos e, de uma forma genérica e
intuitiva, explicaram que as palavras foram escolhidas porque ‘são mais importantes’,
‘lembram o tema central’, ‘são mais faladas’, ‘são fundamentais’, entre outras
justificativas. Observou-se que isso aconteceu de forma mais frequente na turma B:
foram 13 indicações classificadas para a turma B, o que significa 50% dos alunos
analisados na turma, tendo sido indicadas da seguinte maneira: sete no texto 1, quatro
no texto 2, e duas no texto 3. Já no caso da turma A, foi observada apenas 1 (uma)
indicação dessa natureza para o texto 1, ou seja, apenas 3% da turma. O fato de uma
maior indicação na turma B pode ser explicado pelos dados dos questionários que
indicam que essa turma é menos assídua às atividades de leitura do que a turma A. Visto
que a competência comunicativa está sempre em desenvolvimento e que quanto mais se
interage com a língua maior a proficiência comunicativa do usuário, tem-se a explicação
do fato: os alunos da turma A, por serem mais assíduos à leitura, conseguem destacar
com mais facilidade fatores diversos dos níveis da competência comunicativa e
220
justificá-los na escolha das palavras-chave. Já os alunos da turma B, por possuírem
menos hábito de leitura, procuram encontrar o sentido principal do texto, mas não
conseguem explicar claramente o motivo pelo qual estão hierarquizando essas
informações. Na sequência, mais um extrato; agora do aluno 2 da turma B:
B.1.3.2 pobre, Pitágoras, lição, estudo, hipotenusa. Porque? São
mais faladas no texto e com elas conseguimos interpretar melhor
o que o texto todo quer dizer.
Note-se, nesse extrato, que o informante destaca palavras que marcam ações
textuais importantes: um dos personagens textuais – o pobre -, os elementos textuais
sobre o qual o autor constrói a crítica – Pitágoras, lição, estudo e hipotenusa. A
justificativa do leitor reside no fato de que, por serem ‘mais faladas no texto’, tais
palavras o auxiliam na interpretação e a compreender o que ‘o texto todo quer dizer’. A
tentativa do informante aqui é justamente destacar o tema principal do texto. Ou seja, a
competência discursiva está sendo usada de alguma maneira para hierarquizar
informações e encontrar sentido global (KOCH; ELIAS, 2010; DIJK, 1977a; 2002).
Para os demais textos, outros leitores também demonstram utilizar a
competência discursiva para concentrar o sentido principal do texto. Veja-se o exemplo:
B.2.3.18 transgênicos, clonagem, infertilidade, célula-tronco,
curar. Eu escolho estas palavras como palavras-chave porque, a
meu ver, elas resumem a mensagem do texto.
Observe-se que o intuito principal do leitor é encontrar a mensagem do texto, e,
estrategicamente, ele seleciona palavras que demonstram a sua construção
argumentativa, expondo assuntos principais – transgênicos, clonagem, células-tronco –
e alguns argumentos utilizados pelo autor – infertilidade e cura. O estudante diz que
essas palavras ‘resumem’ o texto, e embora não explique as suas justificativas de forma
explícita, ele relata que o ponto principal é encontrar o sentido global (DIJK, 1977a;
1977b). O que se quer dizer com isso é que as palavras-chave funcionam, nos casos
acima, como uma estratégia de concentrar a atenção dos leitores na ‘mensagem’
principal embora eles não queiram ou não saibam explicar os motivos e a maneira pela
qual as dimensões da competência comunicativa estão sendo ativadas. O que acontece,
nesses casos, é visto como uma forma dos informantes ativarem a competência
comunicativa para hierarquizar informações textuais salientes, mas que ela ainda precisa
221
desenvolvida para que o leitor tenha maior domínio sobre suas estratégias de diálogo
com o texto.
Em suma, pode-se dizer, a partir dos dados analisados, que há uma interação
constante entre as palavras escolhidas pelos estudantes e seus diversos conhecimentos:
1) para o texto 01, os estudantes procuram ligar a sequência da narrativa à
possibilidades reais e à crítica do texto, utilizando conhecimentos relacionados a
discursos ideológicos e também à realidade da diferença de classes impostos na
sociedade;
2) para o texto 02, a argumentação típica do gênero artigo de opinião é destacada
pelos estudantes numa relação constante com conhecimentos que fornecem à
ciência poder de cura, possibilidades de melhoria da vida em sociedade,
descobertas. Os leitores procuram topicalizar, na escolha das palavras-chave, os
argumentos do autor, e demonstram como seus conhecimentos ligam-se a esses
argumentos por questões sociais e interculturais vividas por eles;
3) para o texto 03, a necessidade dos leitores estabelecerem a criatividade e a
emotividade do texto direciona as interpretações dadas nas escolhas das
palavras-chave. Os estudantes indicam palavras que possam explicar a tristeza
do personagem, guiados pelas ações encontradas no texto e ativadas por seus
conhecimentos de mundo.
Deve-se esclarecer que há outras justificativas que poderiam corroborar os
fatores discursivos e sociointerculturais apontados até aqui141. No entanto, para evitar
circularidades e repetições, selecionaram-se aquelas consideradas mais relevantes como
amostra da maneira como tais fatores são evidenciados por vários dos informantes.
É importante reiterar que não se tem a pretensão de fazer uma análise exaustiva
de todos os conhecimentos discursivos e sociointerculturais apresentados por todos os
alunos pesquisados. O que se quis demonstrar é que os alunos utilizam sua competência
comunicativa de forma contundente e interativa para produzir sentidos. Vale ainda
lembrar que a competência comunicativa deve ser desenvolvida na interação durante a
leitura para levar os alunos a explorarem diferentes estratégias que os façam criar novas
possibilidades de interpretação e de leitura, dando a eles uma característica de leitores
cada vez mais proficientes.
141
No anexo E, pode-se encontrar os extratos das justificativas apontadas pelos estudantes.
222
A criação de novas possibilidades de interpretação pela utilização da
competência comunicativa a partir da estratégia de escolha de palavras-chave pode
revelar a maneira como os alunos, de fato, interagem com o texto e como eles sentem a
necessidade de dialogar com o referido texto para construir sentidos textuais e pessoais.
A utilização do léxico como ativador dos vários tipos de conhecimento do leitor e como
canalizador da competência comunicativa no ato de leitura revela que a interpretação
textual é rica e abre uma gama de possibilidades que perpassam questões linguísticas,
discursivas e sociointerculturais. Em outras palavras, a partir da estratégia de escolha do
léxico mais relevante para o leitor na interação com o texto, ou seja, as palavras-chave,
é possível demonstrar a necessidade de se fornecer ao estudante ferramentas de diálogo
com o texto a partir da linguagem.
Reitera-se ainda que o objetivo deste capítulo é responder ao primeiro
questionamento de pesquisa142. Observou-se pelos dados que, de fato, a seleção da
palavra-chave funciona como uma estratégia de estabelecer diálogo com o texto e de
canalizar conhecimentos dos diferentes níveis da competência comunicativa numa
relação constante para a construção de sentidos. Os dados demonstraram que a
competência comunicativa, em suas diferentes dimensões, é, de fato, ativada e
desenvolvida a partir da escolha da palavra-chave, a qual auxiliou os leitores na
consideração de diferentes características textuais que funcionaram como base principal
de estabelecimento sentido. Em outros termos, o que se verificou nos dados, é que além
da palavra-chave funcionar como estratégia de canalização dos níveis da competência
comunicativa, ela também foi utilizada pelos leitores para ancorar conhecimentos
diversos que possibilitaram a hierarquização de sentidos textuais e o diálogo com as
realidades vividas pelos estudantes.
Além de ser uma estratégia para estabelecer interação com o texto na produção
de sentidos, a palavra-chave pode servir como um guia para a confirmação das
possibilidades que o leitor estabelece ao iniciar a leitura do texto e ainda para auxiliar o
mesmo leitor a negociar sentidos importantes. Esse é o foco da discussão do último
capítulo que compõe essa tese.
142
Cf. cap. 3
223
5 A PALAVRA-CHAVE COMO GUIA NA LEITURA, NA CONSTRUÇÃO E NA
NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS
Viu-se no cap. 04 que as palavras-chave são utilizadas como uma estratégia
importante no desenvolvimento da competência comunicativa para produção de
sentidos textuais. Por meio da seleção da palavra-chave, o leitor constrói a compreensão
a partir de características gramaticais, discursivas e sociointerculturais que se revelam
durante o processo de leitura. Essa percepção da palavra-chave não é casual, ao
contrário, é influenciada por relações semânticas estabelecidas no texto e pelos
conhecimentos prévios do leitor no momento da interação (KLEIMAN, 2002; KOCH,
2009; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Nesse processo, o leitor pode estar sendo
influenciado por marcas linguísticas percebidas durante a pré-leitura, ou seja, ele
observa as possibilidades interpretativas num momento inicial de leitura e procura
indícios para confirmá-las no texto. Ainda, quando encontra pistas que refutam ou
confirmam tais indícios – mesmo que apenas parcialmente - ele procura realizar um
trabalho de reconstrução ou de adequação das possibilidades estabelecidas para a leitura
(SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 2002; KATO, 1999).
Neste capítulo discute-se a segunda e terceira questões de pesquisa143, as quais
são aqui retomadas:
a) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou
reconstrução das interpretações iniciais (hipóteses de leitura – KLEIMAN, 2002;
SOLÉ, 1998; CASTELLO PEREIRA, 2003) feitas pelo leitor durante o processo
de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de
sentidos?
b) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos
intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si
mesmo?
Em outros termos, vai-se investigar, neste capítulo, dois aspectos principais os quais
são divididos por atividades analisadas da seguinte maneira144:
1) A utilização da palavra-chave como um guia para a confirmação ou
reconstrução das possibilidades de leitura estabelecidas pelo leitor:
143
144
Cf. cap. 3
Vide cap. 3.4 para maiores detalhes sobre as atividades propostas.
224
Na primeira seção do capítulo (seção 5.1), discutem-se as três primeiras
atividades propostas, as quais incluem: uma atividade de pré-leitura a partir da análise
do título para o levantamento das possibilidades iniciais de leitura (hipóteses de leitura),
e duas atividades de leitura - uma em que os estudantes expõem suas primeiras
interpretações com a leitura do texto e outra em que eles selecionam a palavra-chave
para demonstrar os sentidos principais construídos por eles. A intenção, nesta seção, é
observar a maneira pela qual os alunos tecem os fios semânticos condutores
(CAVALCANTI, 1989) da sua interpretação desde o início da interação com o texto, a
partir da exposição das hipóteses de leitura, até a (re)construção de sentidos a partir de
uma leitura mais efetiva. Discute-se, ainda, como as palavras-chave são selecionadas
para confirmar ou reconstruir tais hipóteses.
Pelo fato de se utilizar na análise proposta neste capítulo a atividade de seleção
das palavras-chave, alguns aspectos já discutidos no cap. 4 podem parecer redundantes.
No entanto, deve-se ter em mente que o intuito desta seção é demonstrar a maneira
como os leitores utilizam a palavra-chave com outra função: a ancoragem das
possibilidades iniciais de leitura, o que não descarta o fato das diferentes dimensões
estarem sendo utilizadas de forma concomitante nessa tarefa. Observa-se na análise dos
dados elaborada neste capítulo que vários leitores demonstram, nas suas leituras, que as
dimensões da competência comunicativa também estão, de fato, sendo desenvolvidas.
Aponta-se para o fato de que os leitores selecionados neste capítulo são diferentes, o
que vem a confirmar os resultados já obtidos para o cap. 4, pois os dados apresentam
características semelhantes às já discutidas, e ainda auxiliam na discussão dessa segunda
função da palavra-chave, aqui apresentada.
2) A negociação de sentidos e a produção de opiniões do leitor a partir da
interação ocorrida durante a leitura:
Na segunda parte do capítulo (seção 5.2), analisa-se a atividade de discussão do
texto na qual três perguntas foram feitas aos informantes com o intuito de identificar a
maneira como os sentidos são negociados no diálogo com o texto e na identificação dos
sentidos expostos pelo autor. A intenção aqui é discutir a maneira como os sentidos
foram construídos pelos leitores durante a atividade de leitura e como são reconstruídos,
reposicionados ou negociados quando os leitores são questionados sobre as ideias
presentes no texto.
Deve ser lembrado que, neste capítulo, a análise ocorrerá por texto e por leitor.
Sendo assim, a discussão de ambas as seções serão pautadas na seleção de informantes
225
que expõem aspectos observados em quase todos os alunos. Ou seja, as atividades dos
mesmos informantes são analisadas primeiramente na seção 5.1 com a investigação das
atividades de pré-leitura e leitura, e na seção 5.2 com a análise da atividade de discussão
do texto.
Ainda, tabelas com a quantificação dos dados foram construídas com o objetivo
de demonstrar que os informantes selecionados são exemplos do que se notou nas duas
turmas pesquisadas como um todo. Isto quer dizer que é a partir de uma observação
geral, percebida na quantidade dos dados, que os alunos são selecionados como amostra
do que acontece com o grupo de leitores. Os informantes selecionados são classificados
de acordo com a numeração145 já exposta no capítulo anterior.
Parte-se, então, para a discussão dos dados.
5.1 A (RE)CONSTRUÇÃO DAS POSSIBILIDADES INICIAIS DE LEITURA E A
FOCALIZAÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS
A análise conduzida na sequência desta seção será exposta em duas frentes
principais: a) por texto de pesquisa; e b) pelos informantes selecionados.
No primeiro texto intitulado “Nada como a instrução146”, a partir de uma
quantificação dos dados, verificou-se que a maioria dos alunos indica, na atividade de
levantamento das possibilidades iniciais de leitura, fatores relacionados à palavra
‘instrução’ que está presente no título. Na turma A, tal palavra aparece em 22 respostas
do total de 29 alunos e na turma B foram 11 alunos que a utilizaram num total de 26
informantes. A tabela, na página seguinte, auxilia na visualização da maneira como a
palavra ‘instrução’ será reconstruída para os limites dos sentidos textuais como veremos
na sequência.
É importante lembrar que as palavras expostas nesta tabela foram classificadas
por serem utilizadas por vários dos alunos na maioria das atividades analisadas e não
por terem sido consideradas palavras-chave pelos alunos. Também vale lembrar que nas
atividades observadas, as palavras expostas na tabela, foram contabilizadas, na atividade
3, tanto quando foram indicadas como palavra-chave, quanto como argumento na
145
Reitera-se a classificação: uma letra indicando a turma (A ou B), na sequência o número do texto (1, 2
ou 3), o número da atividade (1, 2, 3 ou 4) e o número do aluno. Por exemplo, o extrato B.1.1.5 refere-se
à turma B, texto 1, atividade 1, aluno 5.
146
Repete-se: os três textos selecionados para a pesquisa encontram-se no apêndice B deste trabalho.
226
justificativa da escolha das mesmas. Para analisar somente a palavra escolhida como
chave, expõe-se, mais adiante, outra tabela com tais dados.
TABELA 10 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 1:
Palavra indicada
Instrução147
Conhecimento
Aprendizagem
Educação
Estudo
Crítica
Turma A
24
83%
3
10%
1
3,5%
3
10%
2
7%
1
3,5%
Palavra indicada
Instrução
Conhecimento
Aprendizagem
Educação
Estudo
Crítica
Turma A
4
14%
10
34%
9
31%
19
65%
20
69%
Palavra indicada
Instrução
Conhecimento
Aprendizagem
Educação
Estudo
Crítica
Turma A
7
24%
17
58%
5
17%
3
10%
25
86%
2
7%
Atividade 1
Turma B
11 42%
1
4%
2
7,6%
0
1
4%
Atividade 2
Turma B
1
4%
2 7,6%
1
4%
10 38%
0
Atividade 3
Turma B
2
7,6%
3
11%
3
11%
0
19 73%
-
Total
35
63,6%
4
7,2%
3
5,4%
3
5,4%
3
5,4%
1
1,8%
Total
5
12
0
10
29
20
9%
21,8%
18%
52,7%
36%
9
20
8
3
44
2
Total
16%
36%
14,5%
5,4%
80%
3,6%
O que se verifica na tabela acima é que os alunos, na primeira atividade, indicam
uma palavra do título, ‘instrução’, para iniciar a sua interação com o texto e construir
sentidos. No entanto, ao realizarem as atividades 2 e 3, de leitura, essa palavra dá
espaço a outras, mais específicas, tais como ‘educação’, ‘estudo’, ‘aprendizagem’, que
resumem melhor, para os leitores, os sentidos do texto. Nota-se que a palavra ‘estudo’,
por exemplo, que tinha uma ocorrência baixa na primeira atividade (pouco mais de 5%
das indicações), passa a ser a mais utilizada na segunda e terceira atividades
(respectivamente, quase 53% e 80%), como reflexo do sentido extraído do texto sobre o
tema principal: a diferença entre os personagens está no tempo de estudo (cf. cap. 4).
Na maioria dos casos, tanto os alunos da turma A quanto da turma B, indicam,
na primeira atividade que a ‘instrução’ é algo necessário, ‘fundamental’, que tem grande
147
Incluiu-se na quantificação também palavras derivadas da mesma raiz, tais como o verbo ‘instruir’
para a primeira palavra, ou ‘conhecer’ para a segunda, e assim para as demais palavras.
227
‘importância’ para o futuro, é usada para saber o que ‘ira fazer’, ou que ‘não vivemos’
sem ela, tais como nos excertos a seguir:
A.1.1.4 a instrução é algo fundamental. Pelo titulo concluo que
se trata de um momento onde alguém necessitou de uma
instrução.
A.1.1.13 que quando se ta perdido essa instrução acaba
ajudando a pessoa em algo que ira fazer.
B.1.1.8 diz qual a importância da instrução
B.1.1.16 não vivemos sem uma instrução
Observa-se, a partir destes excertos que, em grande parte das indicações, os
leitores utilizam a palavra ‘instrução’ como uma hipótese de interpretação genérica
sobre a palavra, sem um limite bem definido de sentido ainda. Eles constroem
possibilidades interpretativas que podem ser mais facilmente reordenadas ou
reconstruídas durante a interação com o texto. Em alguns casos, os alunos destacam,
com mais nitidez, que há uma possibilidade desta ‘instrução’ estar sendo usada no que
diz respeito à ‘educação’ ou de ‘preparação para a vida’ como nos excertos abaixo,
embora essa não seja uma indicação frequente. Destaca-se que as palavras ‘educação’,
‘conhecimento’ ou ‘estudo’ têm maiores indicações (respectivamente 18%, 21,8% e
52,7%) a partir da segunda atividade:
A.1.1.11 ele precisava de “ajuda” de instrução no sentido de
educação que é essencial.
B.1.1.10 a instrução prepara a pessoa para a vida.
O que se quer dizer com isso é que, na primeira leitura, os leitores estão, de fato,
estabelecendo um diálogo com o texto, baseados na informação e nas possibilidades que
identificam no título. Ao se deparar com a leitura, na segunda e terceira atividades, eles
procuram limitar sua compreensão com base em informações textuais encontradas e
recontextualizam a palavra ‘instrução’ para assuntos de ‘educação’, ‘conhecimento’ ou
de ‘estudo’, palavras mais usadas.
Na atividade de escolha das palavras-chave os leitores descartam a palavra
‘instrução’ e indicam, mais frequentemente, como palavras-chave que: a) caracterizam a
educação, tema principal, tais como ‘estudo’, ‘ensinar’, ‘conhecimento’; e b)
228
caracterizam momentos da sequência narrativa que indicam para eles a crítica, o
preconceito, ou a discriminação observados na leitura, tais como ‘teorema de Pitágoras’,
‘pobre’, ‘rico’, ‘lição preciosa’ (cf. cap. 4). Isso indica a maneira como os leitores
limitam, reconstroem, reorganizam seus conhecimentos aos poucos para construir
interpretação textual: eles iniciam a interação com o texto observando aspectos da
‘instrução’, passam a limitá-la a assuntos de ‘estudo’ e ‘educação’, e, ao selecionar as
palavras-chave, ancoram os sentidos em palavras que confirmam as possibilidades já
criadas para o texto.
A tabela 11, abaixo, mostra somente as palavras elencadas como chave pelos
alunos na atividade 3 de leitura do texto. Pode-se observar, pela tabela, que a palavra
‘instrução’ é indicada como chave por apenas 8 alunos (14%) do total de 55 estudantes
pesquisados. Antes dela, palavras que limitam seu sentido textual, como
‘conhecimento’, ‘estudo’, ‘ensino’ e ‘aprender’, aparecem com indicações bem mais
frequentes:
TABELA 11148 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos na
atividade 3 – texto 1
Palavra-chave
Estudo/ estudar
Teorema de Pitágoras
Pobre
Ensinamento/ ensinar
Rico
Dinheiro/trocado
Lição/lição preciosa
Conhecimento
Esfarrapado
Aprender
Instrução
Turma A
22
16
15
12
13
10
11
11
4
6
5
Turma B
21
18
16
12
9
5
4
3
7
3
3
Total
43
34
31
24
22
15
15
14
11
9
8
É importante lembrar também que, conforme discussão apresentada no cap. 4, os
leitores indicam palavras que confirmem para eles os momentos da narrativa
considerados importantes como reflexo do desenvolvimento da sua competência
discursiva, tais como: i) a divisão dos personagens em classes sociais; ii) a marcação do
tema principal do texto; iii) o momento da narrativa em que a crítica se constrói –
quando o personagem indica o teorema de Pitágoras e não o conhece. No entanto, vale
148
Por uma questão de espaço, a tabela demonstra apenas parte das palavras indicadas como chave. Para
visualizar a tabela completa, vide anexo C deste trabalho.
229
lembrar que a seleção de palavras-chave também é limitada pelas possibilidades de
leitura construídas desde a pré-leitura.
Em outros termos: na terceira atividade em que os alunos realizam uma
interpretação mais efetiva com a indicação das palavras-chave, eles são guiados por dois
aspectos principais: a) a confirmação e limitação das possibilidades que, para eles,
indicam que a instrução se relaciona à educação e aos aspectos sociais envolvidos nela;
e b) a construção dos aspectos discursivos dos textos que marcam para ele os
personagens, o tema, a crítica, os momentos narrativos. Ambos os aspectos são ativados
pelo leitor em interação, corroborando o fato de que a leitura é uma atividade complexa
que movimenta todos os conhecimentos do leitor na construção de sentidos (KOCH;
ELIAS, 2010; KLEIMAN, 2001; 2002; 2004; COLOMER; CAMPS, 2002;
LENCASTRE, 2003). Ainda, essa observação demonstra a maneira como a
competência comunicativa (HYMES, 1995; CANALE, 1995; SAVIGNON, 1997) do
leitor é desenvolvida a partir de aspectos diversos, que os auxiliam na canalização de
sentidos para o texto e a estabelecer com ele diálogo.
Destaca-se agora a maneira como os leitores, separadamente, conduzem sua
interpretação desde o primeiro momento, da pré-leitura, até a leitura do texto. O leitor
16 da turma A relata, na primeira atividade que:
A.1.1.16 a instrução é essencial para uma boa vida em
sociedade.
A primeira possibilidade de leitura construída pelo leitor é a de que ‘a instrução
é essencial’ pois ela pode possibilitar uma melhor ‘vida em sociedade’. Ou seja, ele já
percebe que a ‘instrução’ de que fala o texto é, de fato, um tema importante. Na segunda
atividade, o leitor procura limitar sua interpretação da ‘instrução’ à ‘educação’ e já
realiza uma ligação com problemas sociais:
A.1.2.16 o texto traz à tona os assuntos de educação,
discriminação, pobreza, riqueza, etc. é um texto crítico. Aponta
a realidade atual, quem tem mais estudo, mais informações pode
se sobressair entre os demais. Mostra também que quem tem
pouca escolaridade não busca novos conhecimentos.
230
Esse informante procura canalizar seus conhecimentos, agora, para o fato de que
embora a palavra ‘instrução’ esteja no título, ela não se relaciona a qualquer tipo de
instrução, como aquelas presentes em manuais. Ele limita o sentido da palavra a
assuntos relacionados à educação, e procura utilizar suas possibilidades interpretativas
como um guia para o estabelecimento da sua leitura: a educação é essencial para a vida
em sociedade - hipótese estabelecida pela palavra ‘instrução’ na atividade 1 - porque se
relaciona a problemas sociais como ‘discriminação’, ‘pobreza’ e ‘riqueza’ – sentido
construído na leitura na atividade 2.
Outro fator importante nesse extrato é que o aluno indica que ‘é um texto
crítico’. Essa é uma indicação frequente de vários alunos da turma A na segunda
atividade (20 dos 29 alunos da turma A - cerca de 69% - indicaram que há uma crítica
ou que é um texto crítico na atividade 2). Veja-se que a palavra ‘crítica’ aparece
altamente indicada na tabela, 10 mostrada anteriormente, o que não acontece na
primeira atividade e pouco na terceira. Observa-se também que essa é uma indicação
específica dos alunos da turma A, o que pode ser explicado pelos dados dos
questionários socioculturais: os alunos da turma A afirmam que tem mais frequência em
atividades de leitura o que significa que sua competência comunicativa é diferente em
comparação com a turma B. Sendo assim, eles teriam maior facilidade de compreender
temas, exposições ou aspectos do gênero do texto, tal como a identificação da crítica.
Com base nisso, pode-se dizer que, além dos informantes indicarem que a
‘instrução’ volta-se para fatores de estudo e educação, os alunos reconhecem uma
característica importante do texto – a crítica. Os informantes parecem ter reconhecido o
gênero do texto – crônica – já na segunda atividade, o que pode levá-los a indicar
palavras que confirmem tal expectativa e explicá-las dentro desse contexto. Discutiu-se
no cap. 4.1.2 (p. 167; 169; 173; 179-180) que, de fato, a crítica, uma das características
do gênero textual crônica, é uma indicação frequente nas justificativas para as escolhas
das palavras-chave, a terceira atividade. Pode-se dizer, assim, que as interpretações dos
alunos passam a ser guiadas por dois limites: a educação e a crítica, esta última
característica do gênero.
Na atividade de seleção das palavras-chave, o aluno 16 indica palavras como
‘ensinar’ e ‘estudo’, e procura o fio semântico do texto que mostra, para ele, onde a
crítica está presente: o ‘rico’ que ‘consegue cargos melhores’ e o ‘pobre’ por não ter
‘oportunidades’:
231
A.1.3.16 ensinar: é o que muitos deviam fazer a quem é menos
instruído. Pobre: muitas vezes a pessoa fica pobre por desistir
dos estudos e não ter oportunidades. Estudo: todos devem
completar todo o estudo e sempre buscar mais informações.
Rico: com mais estudo pode conseguir cargos melhores e ficar
rico. Pitágoras: é um conhecimento que se adquire atravéz[sic]
do estudo.
Note-se que, embora o estudante tenha selecionado, a princípio, a ‘instrução’
como algo essencial, agora ele procura destacar ‘ensinar’ e o ‘estudo’ como mais
importantes na sua interpretação. Isso porque a palavra ‘instrução’ foi limitada pelo
aluno a questões voltadas à educação, e parece fazer mais sentido para ele agora elencar
elementos que confirmem essa limitação. Outro detalhe é que ao afirmar que a
‘instrução’ é ‘essencial para a vida em sociedade’ ele procura elementos ou marcas
linguísticas (KLEIMAN, 2002) no texto – as palavras-chave - que confirmem a sua
posição. Para tanto, já na primeira leitura ele afirma que, com mais estudo, as pessoas
podem se ‘sobressair’ na sociedade e na atividade de indicação da palavra-chave ele
aponta que ‘todos devem completar todo o estudo e sempre buscar mais informações’
porque isso pode levá-los à riqueza. Veja-se como a palavra-chave está sendo utilizada
aqui como forma de guia para as possibilidades interpretativas criadas pelo leitor: a
instrução (limitada para os sentidos das palavras ‘estudo’ e ‘ensinar’) - é importante
para a sociedade, portanto, a sua falta pode indicar problemas sociais tais como a
discriminação, a pobreza ou a riqueza, e para que se possa ficar rico, é preciso então
obter a instrução, ou seja, estudar.
Outro caso a se observar é o do aluno 5, abaixo, no qual ele tece fios condutores
para sua interpretação. Ao realizar a atividade de leitura inicial a partir do título, ele
destaca que a ‘instrução é fundamental para ter um futuro estruturado’:
A.1.1.5 a instrução é fundamental para ter um futuro estruturado
e para saber que caminho escolher
Na segunda atividade, ele procura definir que esse futuro está atrelado à
educação, e que ‘sempre há mais o que estudar’. Ainda, assim como nas indicações de
seu colega analisadas acima, ele menciona que há uma crítica presente no texto e que
‘existem pessoas que se acham melhores do que os outros’:
232
A.1.2.5 o texto se refere à educação e faz uma crítica quanto a
isso. A grande critica é que ninguém sabe tudo, sempre há mais
o que estudar, mais a ver, existem pessoas que se acham
melhores do que outros.
A exemplo do informante anterior, esse leitor impõe para sua interpretação dois
fatores principais: a referência à educação e a crítica. No caso do aluno 5, ele já expõe,
na atividade 2, o motivo pelo qual ele acha que é, de fato, um texto crítico. Guiado por
esses dois fatores, ao selecionar as palavras-chave, ele procura encontrar a confirmação
de onde está a crítica e por qual motivo o estudo é importante:
A.1.3.5 teorema de Pitágoras uma das bases fundamentais do
texto. esfarrapado – é a palavra em que o texto caracteriza o
menino. Lição preciosa: um dos fatos principais em que ocorre
no texto. dinheiro: um dos bens que o homem tem como
exemplo de conquista com seu “estudo”. Pobre: palavra em que
no texto mostra o preconceito de um personagem ao outro.
Apesar do fator de crítica ter sido uma observação constante na ativação da
competência discursiva (cf. cap. 4.1.2), pode-se dizer que esse também foi um guia
selecionado pelo leitor desde a segunda atividade, funcionando como uma estratégia
concomitante. O aluno procura confirmar suas hipóteses apresentando as expressões
‘teorema de Pitágoras’ e ‘lição preciosa’ como ‘fatos’ (ou ‘bases’) principais do texto.
Tais palavras parecem completar a lacuna aberta por ele no início - se ‘faz uma crítica’ a qual é preenchida sob dois aspectos: 1) o fato do senhor não saber o teorema e ainda
assim ser rico; e 2) o fato do senhor rico querer dar uma ‘lição preciosa’ ao menino
pobre porque ‘se acha melhor que os outros’. O leitor coloca a palavra ‘estudo’ entre
aspas o que pode indicar a ironia do texto - mesmo tendo dinheiro e cinco anos a mais
de estudo ele não sabe o teorema. Assim, o estudo não lhe garante um lugar mais alto na
hierarquia social. O que concede isso a ele é o ‘dinheiro’, palavra selecionada como
chave.
É importante ressaltar aqui que o fator de crítica já analisado no cap. 4 (p. 179181), reaparece nessa discussão por ser um guia interpretativo dos leitores. Ou seja, os
leitores percebem já nas primeiras leituras do texto a característica do gênero e a
colocam como uma das âncoras para o estabelecimento da sua interpretação na escolha
das palavras-chave. A palavra-chave funciona aqui com dupla função: canalizar a
competência discursiva do leitor e confirmar suas possibilidades iniciais de leitura.
233
Veja-se também que o aluno afirma que ‘existem pessoas que se acham
melhores do que os outros’ e procura escolher palavras-chave como marcas
linguísticas149 (CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2002; ANTUNES, 2012) que
confirmem isso. Ele aponta para a palavra ‘pobre’ porque ela caracteriza o ‘preconceito’
no texto, e a palavra ‘esfarrapado’ porque caracteriza o menino. Ou seja, ele indica que
há alguém ‘que se acha melhor’, o que leva a crer que seria o rico porque ele tem
‘dinheiro’ e ‘estudo’, não sabe o teorema, mesmo assim se acha melhor que o pobre que
é o ‘esfarrapado’ e quem sofre o ‘preconceito’.
Para a turma B, em grande parte das indicações iniciais a palavra ‘instrução’
aparece ainda mais genérica do que para os alunos da turma A e os informantes parecem
realmente estar criando possibilidades diversas de leitura da palavra, sem conectá-la ao
assunto principal do texto ainda.
O aluno 19, abaixo, procura deixar a palavra ainda sem limites específicos de
sentido ao apontar que essa ‘instrução’ deve estar relacionada à ‘algum assunto’:
B.1.1.19 instrução sobre algum assunto.
O informante cria uma lacuna interpretativa: o autor fala de instrução dentro do
assunto “x”. Na segunda atividade ele procura completar essa lacuna e indica que a
instrução é a ‘lição preciosa’ dada ao menino:
B.1.2.19 o começo do texto se refere nele falando de uma “lição
preciosa” que daria ao menino mas nem ele sabia sobre o que
era, além de ter deixado o menino se sentir menosprezado, o
chamando de pobre e ignorante, por não saber.
O leitor procura justamente indicar que, desde o início da leitura, ele quer
encontrar o assunto “x” afirmando ‘o começo do texto se refere [...] a lição preciosa’.
Ou seja, tal instrução é uma ‘lição preciosa’ dentro do contexto do texto. No entanto,
‘nem ele sabia’ a tal lição e ela só serviu para fazer o menino ‘se sentir menosprezado’.
O leitor procura fazer um breve resumo do texto indicando a cadeia de informações
destacadas por ele: instrução – lição preciosa – menosprezar o menino. Observe-se que,
na tarefa seguinte de escolha das palavras-chave, o estudante procura confirmar isso
indicando justamente a expressão ‘lição preciosa’, afirmando que ele não viu ‘nenhuma
lição preciosa’:
149
Vide cap. 2.3 sobre a palavra-chave e suas características.
234
B.1.3.19 lição preciosa: porque não vi nenhuma lição preciosa.
Obra do destino: existi [sic] o destino? Pessoas como eu:
menosprezou o menino. Cinco anos sem nos divertir: pode ser
conciliado o estudo e diversão. Homenagem: não seria uma
homenagem ele dar “muito” dinheiro a um menino de rua, por
ele saber sobre algo.
O leitor 19 da turma B não utiliza as palavras ‘estudo’ ou ‘educação’ como
palavra-chave - como o fazem leitores anteriores -, mas, ao indicar a expressão ‘cinco
anos sem nos divertir’, ele de certa forma limita a palavra ‘instrução’ indicada na
primeira atividade, ao campo do ‘estudo’, indicada na justificativa para a sua escolha
afirmando que é possível conciliar ‘estudo e diversão’. Ainda, nessa terceira atividade, o
leitor explica o sentido que ele constrói para a expressão ‘lição preciosa’. Além de
indicar que ele não vê tal lição, ele também aponta para o fato de que constrói um
sentido de crítica presente no texto ao perceber que o rico menospreza o menino pobre
afirmando dar uma ‘lição preciosa’ que na realidade não existe, para o leitor.
Nesse exemplo, ainda, o leitor estabelece um diálogo intenso com o texto
(CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2004; 2001, 2002), posicionando-se com relação a
ele. Ele seleciona a expressão ‘obras do destino’ e se questiona sobre sua existência –
‘existi[sic] o destino?’. A pergunta parece estar relacionada ao fato de que se as pessoas
precisam realmente se esforçar, então não é o destino que lhes dá o sucesso e sim o
esforço. Ainda a atitude de menosprezar o menino, indicada por ele anteriormente, é
justificada pela escolha da expressão presente no texto ‘pessoas como eu’. O leitor ativa
sua competência discursiva ao se concentrar no momento textual em que há um diálogo
em que o personagem rico conversa com o pobre e diz que “pessoas como eu estudaram
mais”, e a partir disso ele completa lacunas interpretativas construídas de que a
diferença de classes está no tempo de estudo e que isso leva a uma posição superior do
rico com relação ao pobre, o que pode não ser obra do ‘destino’. Em outros termos, o
leitor compreende que há uma atitude de superioridade do rico para com o pobre no
diálogo e o destaca como o sentido principal. A competência sociointercultural é ativada
aqui nesse diálogo e leva o leitor a construir a inferência de que pobres são
menosprezados pelos ricos quando se fala em aspectos econômicos e sociais. É
importante ressaltar que há uma cadeia de fios condutores estabelecidos pelo leitor:
instrução – lição preciosa – cinco anos a mais de estudo – menosprezar o menino.
235
Outro detalhe importante na posição do leitor aqui é que ele escolhe uma
expressão do texto e a reposiciona a partir dos sentidos reconstruídos na interação
textual: ‘cinco anos sem nos divertir’ – há um destaque do leitor para o fato de que ele
não concorda com essa ideia. Ele indica que isso não precisa ser assim e que pode haver
conciliação entre ‘estudo’ e ‘diversão’. Os sentidos criados a partir do texto ganham
uma ressignificação pessoal e dialógica (BAKHTIN, 2009): o leitor ressalta um sentido
principal no texto – os ricos estudam cinco anos a mais abrindo mão da diversão – e o
reposiciona para si mesmo dizendo que é possível estudar e se divertir ao mesmo tempo.
Há, nesse excerto do aluno 19 da turma B, três aspectos principais a serem
observados: i) a maneira como ele constrói os fios semânticos que constroem a
interpretação textual indicando ‘instrução’, ‘lição preciosa’ e justificando com a palavra
‘estudo’; ii) a maneira como ele destaca, já na segunda atividade, o sentido de crítica
presente no texto, de que o rico menospreza o pobre, e confirma essa interpretação na
escolha das palavras-chave afirmando que não vê ‘lição preciosa’; e iii) a maneira como
ele utiliza as palavras-chave para iniciar uma negociação de sentidos (cf. cap. 5.2).
Destaca-se aqui, que este leitor fixa sentidos construídos intratexto e já inicia um
processo de negociação de sentidos pessoais afirmando que é possível conciliar ‘estudo’
e ‘diversão’ e que, sendo assim, ele discorda com as palavras do senhor rico com
relação ao pobre. Volta-se a falar sobre a maneira como esse leitor negocia melhor esses
sentidos na próxima seção deste trabalho.
Em outro excerto da turma B, o aluno 14 não indica claramente a palavra
‘instrução’, mas procura estabelecer duas possibilidades claras para a sua interpretação:
a ‘aprendizagem’ ou uma ‘lição de vida’:
B.1.1.14 ele deve falar de aprendizagem ou talvez lição de vida.
Note-se que, ao limitar o assunto do título a essas duas possibilidades, o leitor
utiliza estratégias de restrição das suas interpretações. Na segunda atividade o leitor
reconfigura seus limites interpretativos indicando que, no texto, a abordagem é a
‘educação’ e ainda indica a relação de hierarquia social presente no texto:
B.1.2.14 o texto veio abordar um tema genérico que é a
educação, o senhor se gavando[sic] para o menino sendo que ele
mal sabia o que estava falando.
236
Observe-se que, neste, excerto o estudante já indica uma interpretação para o
texto: ‘o senhor se gavando[sic] para o menino sendo que ele mal sabia o que estava
falando’. O leitor reconhece que há um tema genérico, a ‘educação’, e a partir desse
tema há um debate entre o senhor e o menino. Ressalta-se que ele utiliza sua
competência discursiva indicando a presença de dois personagens e destacando um
diálogo textual (cf. cap. 4.1.2), e nesse diálogo textual, um personagem se reconhece
como superior ao outro. O aluno confirma essas possibilidades de interpretação ao
escolher as palavras-chave:
B.1.3.14 esfarrapado, menino, olhar, súplice, filho. Essas
palavras me tocaram muito afinal ninguém tem culpa de não ter
oportunidade essa é uma realidade que a gente vive. Pode ser
que o garoto não teve tantas oportunidades ou teve e não soube
aproveitar. Na minha concepção cada um escolhe seu próprio
destino.
Nessa atividade, o estudante procura realizar duas tarefas estratégicas: a)
confirmar a sua possibilidade interpretativa de que há um personagem inferior ao outro:
ele escolhe palavras como ‘esfarrapado’, ‘olhar’, ‘súplice’, ‘menino’ que indicam a
inferioridade do garoto; e b) posicionar-se com relação à hierarquia de classes exposta
no texto: o estudante, já com sua hipótese confirmada de inferioridade do pobre com
relação ao rico, se compadece da posição inferior do personagem pobre e diz que ‘essas
palavras me tocaram muito’. Ele argumenta ainda que ‘ninguém tem culpa de não ter a
oportunidade’, pois ‘esta é uma realidade que a gente vive’.
Neste exemplo, o diálogo já está, de fato, ocorrendo. A seleção das palavraschave aponta para uma confirmação do que ele indicou anteriormente, na atividade 2 - o
senhor inferiorizando o menino - e a esse sentido textual ele sobrepõe outros sentidos
criados por ele de que ‘ninguém tem culpa’ da realidade social, pois muitas pessoas não
têm ‘tantas oportunidades’ ou não sabem ‘aproveitar’. Por meio da palavra-chave o
leitor, de fato, tece fios semânticos condutores (CAVALCANTI, 1989) que o levam à
construção de interpretações baseadas no texto. Mas, além disso, a palavra-chave
também auxilia o leitor a criar novos sentidos atrelados à sua vivência pessoal (cf. cap.
5.2).
Castello Pereira (2003) aponta para o fato de que qualquer tipo de marcação –
neste trabalho de tese, a seleção de palavras-chave - auxilia o leitor tanto na
237
concentração do objetivo da leitura – p. ex., destacar o assunto principal - quanto em
fundamentar uma posição ou relembrar o lido:
a marcação, além de ajudar na compreensão, auxilia na concentração
na hora da leitura, pois, com um objetivo, uma tarefa a realizar, uma
ação concreta, se tem mais facilidade de fixar a atenção na leitura e na
compreensão de ideias. Além disso, possibilita voltar ao texto lido,
num outro momento, quando, por exemplo, for necessário buscar uma
ideia pra fundamentar uma posição ou relembrar o lido ou, por
qualquer outro motivo, fazer uma retomada do texto. É claro que
existem muitas formas de lido, marcar o texto: anotação na margem,
uso de símbolos, uso de pequenos pedaços de papel com anotações;
como existem várias formas de se fazer esquemas e sínteses, mas a
forma em si não importa, o que importa é que o sujeito seja capaz de
intervir no texto apropriando-se de suas ideias (CASTELLOPEREIRA, 2003, p. 74).
A autora indica que a forma de marcar o texto não importa porque o resultado
deve ser sempre o mesmo: desenvolver uma atitude estratégica do estudante na
intervenção ao texto, construindo sentidos de forma interativa. Conforme se pode
perceber nos excertos, os alunos, desde o momento construção das possibilidades
iniciais de leitura, já estabelecem um diálogo com o autor por meio do texto, e
procuram, nessa relação, confirmar seus pensamentos, procurando marcas textuais
explícitas e criando novos sentidos.
Os excertos analisados apontam que, no texto 01, os informantes procuram focar
sua atenção nas palavras-chave como marcadores de atenção que os levam a um sentido
global do texto, o que é guiado pelas possibilidades construídas já no início da interação
com o texto. Solé (1998) afirma que ao fazer a leitura de um texto o leitor procura
“prestar atenção nos indicadores, marcas e palavras-chaves que lhes são próprios”,
tarefa essa que o ajuda “a encontrar as ideias principais, pois proporcionam indicadores
para formular perguntas relevantes que levam ao núcleo do texto” (SOLÉ, 1998, p.
136). Nos extratos analisados, os informantes afirmam que há no texto a importância da
instrução, que essa importância está atrelada à hierarquia de classes e ao poder
aquisitivo que uns têm e outros não têm e para confirmar essa interpretação indicam
elementos dos quais fazem uso da sua competência discursiva para marcar personagens
e da sua competência sociointercultural para apontar a hierarquia de classes sociais.
Além disso, há um processo intenso de construção e fixação de sentidos a partir
da primeira atividade, pré-leitura, e da segunda e terceira atividades de leitura. Os
leitores estão conscientes de que os sentidos podem ser reconstruídos, e fazem isso
238
claramente quando alternam a escolha das palavras para suas explicações: começam
utilizando a palavra ‘instrução’, presente no título, a limitam à ‘educação’ e ‘estudo’ e,
ao selecionarem a palavra-chave, fixam sentidos baseados tanto em aspectos expostos
textualmente, que os auxiliam a encontrar os momentos textuais mais marcantes, quanto
em aspectos construídos pelas possibilidades iniciais de leitura e confirmados durante a
interação.
Ao que tudo indica, a palavra-chave é usada como uma superestratégia (KATO,
1999), ou seja, como uma estratégia que tem diferentes funções: a) a indicação da
marcação textual feita pelo leitor para interagir com o texto a partir de aspectos
gramaticais, discursivos e sociointerculturais (cf. discussão realizada no cap. 4); b) o
direcionamento das possibilidades de construção de interpretação textual estabelecendo
um diálogo do leitor com o texto e confirmando ou reformulando tais possibilidades; c)
a promoção do diálogo existente entre o que está no texto e o que o leitor compreende,
sabe ou opina sobre a sua realidade. É também o que se observa na análise das
interpretações para o segundo e terceiro textos.
No segundo texto, intitulado “Dilema genético”, tanto para a turma A, quanto
para a B, os alunos iniciam sua interação abrindo lacunas de interpretação genéricas
dentro do campo da genética do tipo: a discussão sobre a genética, a preocupação das
ciências com as células, o desenvolvimento da genética, o avanço nas pesquisas, entre
outros. A partir dos dados obtidos, 14 alunos da turma A (quase 50% da turma) e 11
alunos da turma B (média de 42%) indicaram já no início da leitura possibilidades de
interpretação relacionadas à dúvida, estudos genéticos ou discussão na área de genética,
tal como demonstrado nos excertos:
A.2.1.12 a discussão sobre questões científicas.
A.2.1.25 discução[sic] sobre o ser humano, debate, clonagem.
B.2.1.8 descobertas da genética, novas tecnologias.
B.2.1.13 vai falar sobre como é complexo o mundo da genética.
Na segunda atividade, os informantes passam a concentrar sua atenção nos três
tópicos discutidos no texto: transgênicos, clonagem e células-tronco. Na atividade
seguinte, de escolha das palavras-chave, os estudantes parecem destacar ainda mais a
239
divisão de tópicos feita pelo autor do texto dentro do ramo da genética, como se pode
observar na tabela a seguir:
TABELA 12 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 2:
Palavra indicada
Genética
Discussão
Ciência
Dúvida
Transgênicos
Clonagem
Células-tronco
Turma A
16
55%
6
20%
5
17%
4
14%
1
3,4%
3
10%
5
17%
Palavra indicada
Genética
Discussão
Ciência
Dúvida
Transgênicos
Clonagem
Células-tronco
Turma A
16
55%
2
7%
4
14%
0
10
34%
16
55%
18
62%
Palavra indicada
Genética
Discussão
Ciência
Dúvida
Transgênicos
Clonagem
Células-tronco
Turma A
17
58%
5
17%
2
7%
1
3,4%
19
65%
23
79%
24
82%
Atividade 1
Turma B
15
58%
2
7,7%
0
0
4
15%
2
7,7%
1
3,8%
Atividade 2
Turma B
8
31%
2
7,7%
1
3,8%
0
17
65%
13
50%
6
23%
Atividade 3
Turma B
19
73%
2
7,7%
1
3,8%
0
19
73%
20
77%
20
77%
31
8
5
4
5
5
6
Total
56%
14,5%
9%
7,2%
9%
9%
11%
24
4
5
0
27
29
24
Total
43%
7,2%
9%
49%
53%
43,6%
36
7
3
1
38
43
44
Total
65%
12,7%
5,4%
1,8%
69%
78%
80%
Note-se que, a exemplo do texto 1, os leitores procuram se basear no assunto
principal exposto no título para estabelecer suas primeiras possibilidades de leitura. Na
primeira atividade, a palavra ‘genética’ é utilizada em 56% do total de alunos de ambas
as turmas e, acompanhada de palavras ‘discussão’ e ‘dúvidas’, reflete que os
informantes buscam criar hipóteses que limitam seus conhecimentos a dois aspectos
principais: a) a ‘genética’ e b) se há um dilema há também ‘discussão’ e ‘dúvida’.
No entanto, ao realizar a leitura proposta para a atividade 2, os leitores
continuam usando a palavra ‘genética’ com bastante frequência (43%), mas agora ela
aparece em equilíbrio com indicações constantes dos três tópicos indicados pelo autor
240
na sequência argumentativa do texto: ‘transgênicos’ (49%), ‘clonagem’ (43%) e
‘células-tronco’ (43,6%).
Outro aspecto importante da tabela acima é que, na atividade 3, da escolha das
palavras-chave, as palavras que relatam os três tópicos aparecem com uma frequência
ainda maior e a palavra ‘célula-tronco’, núcleo de uma das argumentações principais do
texto em que o autor se posiciona favoravelmente ao seu uso (cf. cap. 4.1.2, p. 171173), aparece com uma indicação de 80%. Os informantes claramente delimitam o
assunto ‘genética’ aos três pontos de discussão do texto, e indicam tais tópicos como
principais. É importante observar que a palavra ‘genética' não foi descartada, o que pode
ser explicado pelo fato de ser um hiperônimo150 dos três temas.
A tabela 13, abaixo, corrobora esse fato, mostrando que os leitores selecionam
mais frequentemente a palavra ‘célula-tronco’. Tal palavra, discursivamente, aponta
para o tema textual destacado pelo autor a partir dos argumentos textuais mais
polêmicos do texto (cf. cap. 4.1.2, p. 173). Na indicação dos informantes, essa palavra é
seguida dos outros dois tópicos – ‘clonagem’ e ‘transgênicos’ - na indicação dos alunos:
TABELA 13151 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 2
Palavra-chave
Células (tronco)
Clonagem
Transgênicos
(Engenharia) genética
Embrião
Fertilização
Ética
Manipulação
Turma A
22
20
16
13
6
4
7
2
Turma B
24
23
15
16
12
12
4
8
Total
46
43
31
29
18
16
11
10
Destaca-se que os tópicos escolhidos pelos leitores aparecem invertidos na
frequência da tabela se comparados com a sequência de exposição textual. Isto é, no
texto, o autor discute os três temas, começando pelos transgênicos, passando pela
polêmica ética da clonagem, e finalizando com as células-tronco, outra discussão
polêmica do texto por sinalizar que, mesmo com a morte dos embriões, esta célula ajuda
150
Hiperonímia: “relação semântica entre palavras tal que a palavra hiperônima tem um leque referencial
mais amplo, compreendendo várias outras palavras (seus hipônimos), de poder referencial menor. Na
terminologia científica, determinado gênero é um hiperônimo, a que se ligam espécies” (CASTILHO,
2012, p. 679).
151
A tabela completa pode ser visualizada no anexo C deste trabalho
241
a salvar vidas. No entanto, os leitores desenvolvem sua competência discursiva e
destacam em maior número a palavra ‘células-tronco’, com 83% das indicações dos
estudantes como palavra-chave, que aponta para o assunto mais polêmico exposto no
texto, seguido da palavra ‘clonagem’, segundo assunto polêmico com 78% das
indicações e por último os ‘transgênicos’, com 56%, conforme demonstrado na tabela
12.
Note-se também que as palavras ‘embrião’, ‘fertilização’ e ‘ética’ reforçam
ainda mais esse dado, pois são usadas no texto como fontes de argumentos dos três
tópicos, conforme discussão exposta no cap. 4 (p. 173).
O que acontece com o texto 2 é que a partir da leitura efetiva do texto, os
leitores limitam suas possibilidades de leitura a três assuntos específicos expostos no
texto e não à pesquisa, por exemplo, da influência da genética em doenças cardíacas, ou
câncer. Isso significa que a competência comunicativa dos leitores é desenvolvida para
o diálogo com o texto e os auxilia a estabelecer um contexto específico de leitura
(HYMES, 1995). Esse contexto é encaixado e adaptado às possibilidades que o leitor
vai formulando desde a primeira interação com o texto. Destaca-se, nesse momento,
como o leitor 2 da turma A abaixo realiza essa tarefa. Na primeira atividade ele relata
suas primeiras possibilidades de leitura:
A.2.1.2 dúvidas no ramo da genética,
comportamento, evolução de alguma espécie.
mudanças
no
A partir do título, o estudante já sinaliza que deve encontrar no texto
informações que possam completar três possibilidades diferentes: há dúvidas no ramo
da genética (quais são?), há mudanças no comportamento (que mudanças?) e há alguma
espécie em evolução (qual ou o quê?). Veja-se que, na atividade seguinte, de imediato, o
leitor aponta para o fato de que há ‘dois lados’ da genética e indica as vantagens –
combate à fome por meio da produção de transgênicos, cura de doenças – e também as
desvantagens – o impacto ecológico e a morte dos embriões pelo uso da célula-tronco.
O informante busca completar a lacuna de quais são as dúvidas causadas pela ciência
genética:
A.2.2.2 o texto mostra “dois lados” da engenharia genética. O
quanto seu trabalho pode ser benéfico, alimentos transgênicos
maior produção auxilia no combate à fome e o uso de célulastronco para curar diversas doenças, porém o texto também
aponta os possíveis pontos negativos como o impacto ecológico
242
causado pelos transgênicos e a polêmica do uso das célulastronco, que ocasiona a morte de embriões.
Note-se, também, que ao confirmar a primeira possibilidade – o texto expõe
dúvidas no ramo da genética – ele já procura responder quais elas seriam: há benefícios
e, ao mesmo tempo, malefícios. Além disso, ele vê que as demais possibilidades de
interpretação – mudanças de comportamento e espécies em evolução - não estão claras
no texto, o que o leva a descartar tais fios interpretativos na construção de sentidos.
Observe-se ainda que o leitor explica, já na segunda atividade, que no contexto do texto,
a genética limita-se a ‘alimentos transgênicos’ e ‘uso de células-tronco’.
O leitor aponta que ‘pode ser benéfico’ e que há ‘possíveis pontos negativos’, ou
seja, ele utiliza sua competência discursiva para destacar que em um texto
argumentativo se deve encontrar ideias em oposição. Na segunda atividade, ele ainda
não aponta para a questão da ‘clonagem’, mas a indica como palavra-chave na atividade
subsequente. Ao escolher as palavras-chave, ele se concentra na existência de vantagens
e desvantagens da ciência genética e aponta para as palavras que sinalizam esse sentido
no texto:
A.2.3.2 engenharia genética: área de trabalho que pode ser
benéfico a humanidade, porem pode trazer consequências ruins.
Transgênicos: alimentos transgênicos, maior produção, assim
auxilia no combate à fome, porém podem ocasionar um impacto
ecológico. Impacto ecológico: consequência negativa da
produção de alimentos transgênicos como a morte das
borboletas monarcas. Clonagem: o autor se opõe principalmente
quando se trata da clonagem humana ele é a favor da adoção.
Células-tronco: o autor é a favor, pois estas podem curar muitas
doenças tais como câncer diabetes dentre outras, porém traz
consigo as polêmicas, as oposições a seu uso por causa da morte
de embriões.
De início, o leitor seleciona ‘engenharia genética’ e explica que há uma dúvida
quanto ao seu uso porque ela pode ser benéfica ou trazer ‘consequências ruins’,
destacando a confirmação da possibilidade de interpretação construída desde o início.
Na sequência, ele escolhe palavras que indicam quais seriam esses aspectos positivos e
negativos transitando entre os argumentos expostos no texto que, de fato, geram a
dúvida quanto ao uso da ciência genética. Do lado favorável, o informante salienta os
transgênicos, pois podem ‘combater a fome’ e as células-tronco porque podem ‘curar
doenças’. Por outro lado, há a determinação do impacto ecológico do uso de
243
transgênicos, a desaprovação da clonagem humana por existir a opção da adoção, e a
morte dos embriões usados para a produção das células-tronco.
Note-se, também, a maneira como ele desenvolve sua competência gramatical
(cf. cap. 4.1.1, p. 157-161) utilizando em todas as justificativas a palavra ‘porém’. Ele
expõe para cada um dos elementos um fator positivo e um negativo, separados pela
conjunção adversativa. A competência discursiva também entra em cena quando o leitor
destaca a oposição argumentativa do autor em que é ‘a favor’ ou ‘se opõe’ aos assuntos
expostos. Chama-se a atenção para essa observação porque o fato do leitor construir os
fios semânticos do texto desde a primeira atividade até a última, revela que as
dimensões da competência comunicativa são ativadas tanto como uma forma de
movimentar conhecimentos na identificação e focalização dos sentidos principais,
quanto como uma atitude estratégica de confirmação das possibilidades interpretativas
do leitor.
Em suma, nesse excerto o leitor, realiza, minimamente, três tarefas: i) confirmar
suas possibilidades iniciais de leitura de que há dúvidas, ou ‘dois lados’, na ciência
genética; ii) desenvolver sua competência gramatical e discursiva para explicar os
pontos em oposição no texto, como forma de utilização estratégica da sua competência
comunicativa; e iii) indicar os sentidos principais construídos e fixados por ele durante a
leitura.
O aluno 28, também da turma A, indica na primeira atividade uma gama de
possibilidades maior que o colega acima:
A.2.1.28 sobre o DNA, mudança genética, ou manipulação
genética.
No exemplo, o leitor utiliza muito do seu conhecimento de mundo para
estabelecer possibilidades reais de discussão no campo da genética, como o DNA, a
mudança genética ou a sua manipulação. Esses seriam temas possíveis de serem
discutidos em um texto que apresenta como tema principal a genética, exposta no título.
Ou seja, nos limites de conhecimento de mundo do leitor, se o texto fala de genética ele
pode falar de qualquer um desses tópicos. Na segunda atividade, o leitor limita as suas
possibilidades ao contexto do texto e afirma que:
A.2.2.28 deveria estar sendo discutida a manipulação genética,
mas parece que está sendo discutida a ética, e o que é certo ou
errado.
244
O informante ainda procura confirmar sua hipótese de que o texto trata de
‘manipulação genética’, mas logo altera essa possibilidade de leitura afirmando que o
que se destaca no texto é ‘a ética’, pois o texto, de fato, relata aspectos polêmicos com
relação à atitude dos cientistas no campo da genética. De forma objetiva, o leitor
descarta a possibilidade de mudança genética ou de DNA, expostos na primeira
atividade, e reconstrói suas possibilidades de leitura para o que diz respeito à ética nos
estudos da engenharia genética. Na terceira atividade, o leitor seleciona as palavras que
ancoram sua interpretação:
A.2.3.28 ética: muito discutido pela aplicação da engenharia
genética do reino vegetal ao animal. Clonagem: já foi praticada,
apesar das incertezas como por exemplo, se isso daria certo.
Células: células-tronco são retiradas dos embriões que são
destruídos. Podendo se transformar em qualquer célula do
corpo. Adotar: mais correto que clonar. Riscos: são muitos com
a clonagem.
A primeira palavra escolhida como chave é justamente ‘ética’, pois ela se
constitui enquanto marca linguística (KLEIMAN, 2002; ANTUNES, 2012) para apoiar
suas possibilidades de leitura. As demais palavras elencadas pelo leitor destacam os três
pontos de discussão do texto, acompanhados das justificativas que relatam os aspectos
em oposição. Ressalta-se que, no caso do aluno 28, ele reconstrói todas as
possibilidades de leitura expostas na primeira atividade. Ele não encontra elementos
suficientes para confirmar suas hipóteses relativas à manipulação, mudança genética ou
DNA, estranha tal afirmação relatando que o texto ‘deveria falar de manipulação
genética’, e, na sequência, limita seus conhecimentos ao campo da ‘ética’ na ciência. Na
escolha das palavras-chave, elenca os tópicos expostos, argumentando quais seriam os
pontos éticos presentes no texto.
O estudante utiliza também os argumentos expostos no texto para demonstrar os
sentidos fixados por ele sobre os tópicos. Ele indica justamente os argumentos
construídos pelo autor para justificar a seleção das três palavras que caracterizam os
subtemas do texto. Isso significa que sua competência discursiva é ativada para marcar
os tópicos e ainda reconfigurar suas possibilidades de leitura de forma a acomodar os
sentidos encontrados no texto.
Na turma B, vários estudantes também indicaram a existência de uma discussão
entre vantagens e desvantagens o que os leva a apontar quais seriam os extratos ou
245
palavras que completam, para eles, essas informações. Os leitores parecem ser guiados
pelo significado da palavra dilema: se há um dilema, há também pelo menos duas
alternativas para resolvê-lo. Ao perceber essa possibilidade já no título o leitor 12 da
turma B interage com o texto indicando, na primeira atividade, que o texto apresenta
uma discussão sobre ‘pró’ e ‘contras’:
B.2.1.12 transgênico, discussão de pró e contras.
O leitor já percebe que, se o título do texto fala de genética, transgênicos é uma
possibilidade de discussão nesse campo de pesquisa. Na segunda atividade, o estudante
procura encontrar possibilidades que confirmem sua hipótese sobre as alternativas
geradas pelo dilema:
B.2.2.12 notamos no texto que existem várias opiniões
diferentes ao quesito “genética” se é viável ou não a utilização
de células tronco, clonagem e transgênicos o texto aborda quais
seriam os benefícios e quais seriam os riscos da aplicação da
genética para esses usos.
O estudante confirma a possibilidade de que, de fato, no texto existem opiniões
diferentes para o uso da ciência genética e expõe os tópicos que seriam o foco das
discussões: ‘células tronco’, ‘clonagem’, ‘transgênicos’. Ainda, o leitor observa que no
texto há ‘várias opiniões diferentes’ e que é preciso refletir se ‘é viável’ o
desenvolvimento dos aspectos genéticos discutidos no texto. É importante considerar
que o leitor procura direcionar sua interpretação em uma cadeia de informações: prós e
contras – várias opiniões - viabilidade das células-tronco, clonagem, transgênicos.
Na atividade de palavra-chave, as palavras indicadas por ele são utilizadas como
ferramenta para demonstrar o núcleo das discussões apontadas reforçando e fixando os
fios interpretativos construídos para o texto:
B.2.3.12 genética: aborda o assunto geral mesmo, mostra que o
assunto é relacionado a genética. Transgênicos: um dos assuntos
mostrados, quais são as qualidade e possíveis problemas dos
transgênicos. Clonagem: porque é um assunto bastante
comentado e o autor aborda e diz quais seriam os efeitos da
clonagem. Células-tronco: de sua utilização e de seus atributos.
Críticos: porque assim ficamos sabendo que nem tudo é
qualidade e que críticos nos mostram os riscos que todo esse uso
pode causar.
246
O estudante expõe claramente que genética é ‘o assunto geral’, e que dentro dele
os limites são mantidos em três pontos - os ‘transgênicos’, a ‘clonagem’, e as ‘célulastronco’. O leitor indica também a confirmação de outra possibilidade de leitura: a de
que ‘há efeitos’ e que ‘nem tudo é qualidade’, isso porque há prós e contras na prática
da genética.
Vale observar que o leitor demonstra o seu diálogo com o texto quando
seleciona a palavra ‘críticos’ e notifica a necessidade de se informar sobre os riscos
antes da aprovação da ciência genética, uma vez quem ‘nem tudo é qualidade’. Veja-se
que essa é uma construção do leitor gerada numa rede de relações tecidas pelo texto: há
uma discussão entre prós e contras, os assuntos abordados são os transgênicos, a
clonagem e a célula-tronco e, por consequência, é necessário avaliar os riscos da ciência
genética.
Nesse excerto também se percebe que o diálogo do leitor com o texto se dá em
uma via de mão dupla: i) por meio da confirmação ou reconstrução dos fios condutores
da interpretação e da fixação dos sentidos pelas marcas encontradas no texto: o leitor
declara que há ‘várias opiniões’, ‘prós e contras’ no uso da ciência genética e seleciona
palavras que confirmam essas possibilidades; e ii) por meio do desenvolvimento da
competência comunicativa na ancoragem dos sentidos destacados pelo leitor em fatores
textuais, gramaticais e sociointerculturais presentes no texto: o leitor identifica os
tópicos textuais principais e adiciona ao texto a sua ideia de que ‘nem tudo é qualidade’
porque os críticos mostram ‘os riscos’ que o uso da genética pode trazer. Em outros
termos, há um processo de constante construção, fixação e destaque dos sentidos: a) em
primeiro lugar o leitor estabelece uma possibilidade de leitura – discussão de prós e
contras da ciência genética; b) na sequência, confirma a possibilidade e expõe limites –
observar a viabilidade das pesquisas porque pode causar riscos; e c) destaca os temas
elencados no texto e os argumentos que explicam os riscos e o motivo pelo qual é
necessário refletir sobre a viabilidade da ciência genética.
O excerto do aluno 7 da turma B, abaixo, demonstra como o tema principal do
texto dialoga com os conhecimentos do leitor:
B.2.1.7 um debate sobre questões genéticas
Nessa primeira possibilidade de leitura, o estudante procura substituir a palavra
‘dilema’ do título pela presença de um ‘debate’ sobre questões genéticas. Para o leitor,
esse é o tema central do texto que vai guiando a sua leitura e auxiliando-o a estabelecer
247
fios semânticos (CAVALCANTI, 1989) para a construção de sentidos. Na segunda
atividade, o leitor procura relatar em quais pontos o debate é construído e indica dois
dos temas colocados em destaque: ‘alimentos transgênicos’ e ‘clonagem’:
B.2.2.7 o autor fala sobre alimentos transgênicos uma coisa boa
para nossos alimentos para não causar mau a nossa saúde. Outra
coisa que ele comenta é sobre clonagem de animais tudo bem,
mas clonagem de humanos acho uma coisa sem precisão.
Guiado pela possibilidade interpretativa de haver um debate, o estudante aponta
para os sentidos que ele encontra – transgênicos como uma coisa boa para não causar
mal à saúde e a clonagem de animais sendo aceitável enquanto a humana não. Além
disso, ele já indica a sua própria posição dentro da discussão afirmando que acha ‘uma
coisa sem precisão’. Ou seja, o diálogo vai sendo marcado tanto pelo tema indicado a
princípio – o debate – e confirmado nas marcas linguísticas – benefícios e malefícios de
transgênicos e clonagem – quanto pela posição já estabelecida pelo leitor para a não
concordância com o ato da clonagem humana. Na atividade das palavras-chave, o leitor
procura manter esse guia interpretativo:
B.2.3.7 transgênicos: engenhar vegetais capazes de sobreviver
aos ataques de várias pragas e ainda de produzir bem mais por
planta é de grande importância para humanidade. Clonagem de
humanos: para que clonar pessoas se tem bastante no mundo.
Células-tronco: têm a capacidade de se transformar em qualquer
célula especializada do corpo. Embrião: um ser humano.
Necessidades: de uma pessoa que tem que fazer tratamento para
poder criar um “embrião” dentro dela.
As primeiras palavras indicadas por ele são exatamente ‘transgênicos’ e
‘clonagem’ confirmando a sua interpretação de que o primeiro pode ser benéfico para a
humanidade enquanto a segunda não é necessária por já haver muitas pessoas ‘no
mundo’. O leitor mantém a sua interpretação primária, mas ao mesmo tempo indica
novos sentidos percebidos por ele, agora em um novo assunto: ‘células-tronco’. Veja-se
que, percebendo o novo sentido, o leitor também o coloca como núcleo do ‘debate’
selecionado por ele como guia para sua leitura. O estudante indica a vantagem – ‘se
transformar em qualquer célula especializada do corpo’ e também a desvantagem – o
embrião ‘é um ser humano’ que acaba sendo descartado. O estudante nota que esse foi o
ponto de contraste destacado no texto como uma desvantagem e procura selecionar esse
sentido de forma pontual. Em outros termos, o leitor vai indicando os sentidos atrelados
248
à sua possibilidade primária: há um debate; tal debate gira em torno de transgênicos e
clonagem os quais possuem aspectos positivos e negativos; além disso, o debate
também gira em torno do uso da célula tronco que pode ser tanto benéfica por auxiliar a
salvar vidas quanto maléfica por matar embriões.
Deve-se ressaltar que o texto escrito propicia converter as interpretações em
realidade de conhecimento articulado, o que ocorre numa interação intensa entre
pensamento e linguagem (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002).
Durante a interação, o leitor registra os pontos que julga necessários na percepção dos
itens na leitura e das representações que formula para o texto.
Para o texto 02, é interessante observar a maneira como os informantes destacam
um aspecto principal do gênero artigo de opinião: a declaração de uma posição colocada
em argumentos textuais (cf. cap. 4.1.2, p. 173; 180). Eles procuram destacar esses
posicionamentos e indicam também suas próprias posições, colocando-se ‘a favor’ ou
‘contra’ os argumentos do texto. A maioria dos informantes destaca como guia
interpretativo a discussão sobre a genética, os prós e contras, o dilema. No diálogo com
o texto, eles demonstram a construção dos argumentos que fazem com que o autor se
posicione e destacam as ideias em oposição expostas no texto. O que acontece é que na
construção dos sentidos do texto, o leitor vai, ao mesmo tempo, se posicionando com
relação ao assunto e utilizando uma carga de conhecimentos culturais para fornecer ao
texto novas possibilidades de discussão. Essa construção de novas possibilidades fica
ainda mais forte quando os leitores são expostos às atividades de discussão do texto
conforme análise a ser apresentada na seção 5.2 deste trabalho.
De forma clara, o gênero do texto influi na maneira como os argumentos são
construídos. O leitor identifica a tipologia argumentativa do gênero e procura completar
lacunas nas quais os argumentos do autor sejam identificados. Isso foi discutido no cap.
4, mas merece atenção também na questão de identificação e consolidação de sentidos,
pois o leitor faz duas tarefas concomitantes: identifica argumentos textuais
(competência discursiva) e também fixa sentidos dentro dos limites permitidos pelo seu
conhecimento de mundo e pelas possibilidades pré-formuladas e confirmadas na
realidade textual pela construção dos fios semânticos condutores. Ou seja, a tarefa de
encontrar sentidos e construir novas possibilidades acontece de forma contínua desde o
início da leitura movimentando conhecimentos, posições, cultura, realidade, ou seja, a
vivência do leitor.
249
Para o terceiro texto, os leitores iniciam a interação também a partir do título,
“Poema de sete faces”. 23 alunos da turma A (79%) e 14 alunos da turma B (54%)
indicam a palavra ‘sete’ como guia na sua interpretação e expõem as várias
possibilidades para o número: ‘sete interpretações’, ‘sete estrofes bem diferentes’, ‘sete
faces de um personagem’, ‘sete maneiras de vida’, ‘sete pessoas’, ‘sete almas’, entre
outras152. Veja-se, na tabela a seguir, as palavras mais frequentes utilizadas pelos alunos
nas atividades 1, 2 e 3 do texto 3:
TABELA 14 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 3:
Palavra indicada
Sete
Fases
Faces
Vida
Deus
Turma A
23
79%
1
3,4%
8
27%
7
24%
0
-
Palavra indicada
Sete
Fases
Faces
Vida
Deus
Turma A
1
3,4%
0
2
7%
18
69%
4
15%
Palavra indicada
Sete
Fases
Faces
Vida
Deus
Turma A
0
1
3,4%
0
14
54%
15
57%
Atividade 1
Turma B
14
54%
2
7%
4
15%
3
11%
0
Atividade 2
Turma B
0
2
7%
2
7%
8
31%
8
31%
Atividade 3
Turma B
0
0
0
8
31%
13
50%
Total
37
3
12
10
0
67%
5,4%
22%
18%
-
1
2
4
26
12
Total
1,8%
3,6%
7,2%
47%
22%
Total
0
1
0
22
28
1,8%
40%
51%
Com base na observação da tabulação dos dados para a atividade 1, expostos
acima, constatou-se que os estudantes sofrem alta influência do título para o
estabelecimento das primeiras possibilidades de leitura. Os leitores reconhecem que
poema é um gênero que dá maiores opções de criatividade na construção de sentidos e
procuram encontrar no título um elemento que lhes dê maior segurança no
direcionamento da leitura. Mesmo os alunos que não utilizaram a palavra ‘sete’,
152
Cf. anexo E deste trabalho que mostra na íntegra as respostas dos alunos, inclusive as da atividade 1 do
texto 3.
250
indicaram que há diferentes faces ou várias personalidades, como se pode ver nos
excertos a seguir:
A.3.1.2 tipos de comportamento de pessoas
A.3.1.11 que pode ser interpretações diferentes todas[sic] vez
que lê o poema tem uma interpretação.
B.3.1.8 seria as diferentes faces
B.3.1.13 parece se tratar de várias personalidades
Os leitores acima, mesmo sem indicar que a possibilidade interpretativa está no
encontro de quais seriam as ‘sete’ faces, lançam uma ideia interpretativa que pode guiálos para o sentido de ‘interpretações diferentes’ ou ‘várias personalidades’. Observe-se
também, na tabela 14, que a palavra ‘face’ é a segunda palavra mais usada pelos leitores
na atividade 1, com 22% das indicações, seguida da palavra ‘fase’ com 5,4%. Ou seja,
as possibilidades de leitura construídas pela maioria dos leitores giram em torno de
compreender quais seriam as faces ou fases de que fala o título.
Na segunda atividade, a palavra ‘sete’ aparece com uma indicação pequena e é
substituída por uma alta indicação da palavra ‘vida’. Os leitores parecem limitar nessa
atividade um sentido importante: sete (fases/faces) – vida. Ou seja, se o autor expõe sete
faces, elas devem estar ligadas a momentos diferentes da vida de uma pessoa. Em
alguns excertos os estudantes limitam sentidos na segunda atividade:
A.3.2.4 eu acho que ele quer descobrir-se. A vida do autor.
A.3.2.6 eu acho que está contando da vida dele, desde a infância
à velhice. Conta sobre sua vida o que ele passou e o que ele não
viveu.
B.3.2.3 ele viaja dizendo o que era para fazer na vida e reclama
que Deus o abandonou.
B.3.2.13 acho que ele diz sobre um homem solitário que se
questiona porque veio ao mundo ou de um momento ruim
Pelos excertos, os leitores, de fato, limitam as faces expostas no título e
destacadas na primeira atividade, a fatores relacionados à vida do personagem. As ideias
expostas pelos informantes sofrem também influência das palavras que, no texto,
indicam sofrimento, tais como “emoções”, “comovido”, “sem solução”, entre outras.
Nos extratos expostos acima, os leitores utilizam sua carga de conhecimentos de mundo
251
e sua competência sociointercultural para construir sentidos relacionados a momentos
da vida do personagem, tais como ‘descobertas’, o que ‘passou e não viveu’,
‘reclamações’, ‘solidão’ ou ‘momento ruim’.
Ressalte-se, também, que o leitor 3 da turma B já constrói, nessa leitura, sentidos
ligados ao intertexto bíblico “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” afirmando
que ele ‘reclama que Deus o abandonou’. Conforme exposto no cap. 4 (p. 194) a
utilização da intertextualidade na construção de sentidos é de suma importância porque
auxilia na construção da coerência textual (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Essa é
uma observação constante na segunda atividade: 22% dos leitores indicam a presença
forte da palavra ‘Deus’, influenciados pelo momento de pedido de socorro do
personagem, no texto.
Na terceira atividade, os leitores parecem utilizar ainda mais fortemente sua
carga de conhecimentos sociointerculturais atreladas à palavra ‘Deus’ para construir
sentidos (cf. cap. 4.1.3, p. 194-195). Essa palavra é indicada em 51% dos extratos dos
estudantes ao escolher as palavras do texto que os auxiliam na construção de sentidos. É
a partir da palavra ‘Deus’ e da palavra ‘vida’ que os leitores fixam sentidos relacionados
a: faces – vida – sofrimento - Deus. A palavra ‘Deus’ também é indicada como um
socorro para o personagem que sofre durante momentos da sua vida, o que se encaixa na
lacuna aberta na segunda atividade na qual ele ‘reclama da vida’, ‘quer descobrir-se’ e
‘é solitário’.
Na tabela 15, a seguir, percebe-se que a palavra ‘Deus’ foi a mais indicada como
palavra-chave para o texto 3, seguida por palavras que caracterizam o personagem (p.
ex. ‘gauche’) e palavras que confirmam o sofrimento, tais como ‘fraco’, ‘anjo torto’ e
‘abandonar’.
A cadeia de sentidos construídos pelo leitor, a exemplo dos textos anteriores,
também é tecida numa rede de relações estabelecidas na interação com o texto, fazendo
com que haja uma sequência de eventos que confirmam as possibilidades: nas primeiras
interpretações os leitores indicam que há sete faces. Na segunda leitura eles apontam
que as faces estão relacionadas à vida de um personagem que sofre e pede socorro – o
que é produzido na segunda leitura e fixado na escolha das palavras-chave. Destaca-se
que, também no caso do poema, as interpretações dos estudantes na escolha das
palavras-chave são guiadas tanto pela focalização de sentidos intertextuais, quanto pela
confirmação ou reconstrução das possibilidades imaginadas para a leitura. Observe-se a
tabela:
252
TABELA 15 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 3
Palavra-chave
Deus
Gauche
Anjo (torto)
Fraco
Abandonar
Nascer
Coração
Homem
Mundo
Desejos
Pernas
Bigode
Bonde
Mulher
Turma A
8
8
6
9
8
6
5
3
3
5
4
4
3
1
Turma B
11
10
10
4
5
7
8
10
9
6
7
5
6
8
Total
19
18
16
13
13
13
13
13
12
11
11
9
9
9
Não se tem a intenção de afirmar aqui que todas as relações de construção de
sentido são lógicas e seguem uma cadeia sempre sequencial, até porque seria impossível
visualizar tudo o que acontece na mente dos leitores para saber exatamente todos os
pontos em que a competência comunicativa é ativada na construção de sentidos e no
estabelecimento dessas conexões. Na verdade, o que se constata pelos dados é que os
informantes fornecem indícios de que utilizam sua carga de conhecimentos prévios e
sua competência comunicativa para acomodar sentidos possíveis e não possíveis de
acordo com o que conhecem da realidade ou dos textos a que são expostos. No caso do
texto 3, os leitores recorrem mais fortemente a conhecimentos sociointerculturais,
comparando-se aos textos 1 e 2 (vide gráfico 6 cap. 4.1.3, p. 200), para construir o
sentido de que se o personagem reclama a Deus, é porque está sofrendo.
É importante considerar também que a alta escolha da palavra ‘vida’, nas
segunda e terceira atividades, é interpretada como um reflexo da construção do autor do
texto que escreve o poema relatando momentos diferentes. Textualmente, Drummond
relata questões observadas pelos leitores, já no início do texto, quando utiliza a frase
“quando nasci”. Note-se, na tabela 15, que a palavra ‘nascer’ se encontra na quarta
posição entre as mais indicadas, juntamente com outras quatro na mesma posição. Isso
porque conhecimentos de mundo levam o leitor a estabelecer a possibilidade sequencial:
nascer, viver, morrer. Ou seja, há uma inferência do leitor: se o poeta fala de nascer
253
então está expondo momentos de vida. Tal sequência é mantida por Drummond ao usar
metáforas nas próximas estrofes que possibilitam também a inferência do leitor que
ativa sua competência sociointercultural, como:
1. Quando nasci – fase de infância;
2. Homens que correm atrás de mulheres – juventude ou idade adulta;
3. Bonde cheio de pernas – atividades profissionais; ida e vinda do trabalho;
4. Homem de bigode – vida adulta;
5. Homem fraco – tristezas vividas;
6. Não seria uma solução – sofrimento;
7. Comovido como o diabo – continuação e intensidade de um sofrimento.
(destaques como a observação da lua, a bebida – conhaque - culturalmente
afirmam esse sofrimento).
Nesse sentido, a movimentação constante de conhecimentos de mundo ligados
às informações do texto faz com que se estabeleça coerência (KOCH, 2009; KOCH;
TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A indicação de palavras
que confirmam e acomodam as possibilidades de interpretação desde a primeira
atividade, de pré-leitura, até as atividades de leitura confirmam que os conhecimentos
diversos do leitor atuam como uma base de segurança para os leitores na construção de
sentidos textuais.
Veja-se agora como os informantes selecionados como amostra declaram suas
possibilidades, as confirmam e (re)constroem sentidos. No exemplo abaixo, já nas
atividades de pré-leitura, o leitor 21 da turma A declara sua expectativa quanto ao título:
A.3.1.21 sete faces da vida do autor.
Na sequência, ao fazer uma primeira leitura do texto, o aluno declara que entre
os fatores discutidos no texto estariam a ‘personalidade’, o que ele ‘pensa’, as suas
‘perguntas’ e os seus ‘sentimentos’:
A.3.2.21 ele está falando da personalidade dele, das coisas que
ele pensa, das perguntas que ele se faz, dos sentimentos dele.
Observe-se que as expectativas expostas na segunda atividade estão de acordo
com as possibilidades primárias lançadas pelo leitor: se há sete faces da vida, há
também momentos em que se fala sobre personalidade, sentimento, perguntas pessoais,
pensamentos. Ou seja, o leitor está procurando elementos para confirmar suas
254
possibilidades interpretativas: quais são as sete faces do autor? O seu conhecimento de
mundo permite que fatores de personalidade, pensamento, perguntas reflexivas e
sentimentos se encaixem na expectativa de haver ‘sete faces’ da vida.
Ao realizar a atividade da palavra-chave, ele é ainda mais fortemente guiado por
dois aspectos: as sete faces e a vida do autor. Escolhe palavras que preencham
justamente as possibilidades construídas por seu conhecimento de mundo e declara ao
final que ‘queria escrever mais’:
A.3.3.21 gauche: porque ele era deslocado. Desejos: porque ele
era intenso. Vasto: porque o coração dele era vasto. Comovido:
porque o poema é comovente. Pergunta: porque tem indagações
no poema, porque ele é introspectivo. [duas linhas depois]: eu
queria escrever mais!
O diálogo com o texto acontece por meio das possibilidades iniciais de leitura
(SOLÉ, 1998; COLOMER; CAMPS, 2002): as sete faces da vida do autor. O leitor
seleciona exatamente 5 palavras, o limite exposto pela pesquisadora para a atividade,
mas para que ele consiga confirmar suas hipóteses (de que há ‘sete faces’), ele declara
que seria necessário ‘escrever mais’. Veja-se que o leitor deixa duas linhas em branco,
demonstrando que haveria espaço suficiente para que ele escrevesse outras
possibilidades de interpretação suscitadas por outras palavras-chave ou por
interpretações construídas na interação com o texto.
Outro fato interessante é que o leitor escolhe palavras presentes em 5 estrofes
diferentes do poema e quando ele declara que ‘queria escrever mais’, afirma que
necessita de mais espaço para confirmar as demais possibilidades expostas, talvez, nas
estrofes seguintes ou talvez outras interpretações já construídas. O leitor não deixa claro
o motivo pelo qual queria ‘escrever mais’ e não se pode afirmar que ele gostaria de
indicar duas palavras das outras duas estrofes para completar as ‘sete faces’. O fato é
que ele indica de forma nítida que somente as 5 palavras escolhidas não são suficientes
e não resumem os sentidos todos construídos na interação com o texto.
Destaca-se, também, que das 5 palavras que o leitor seleciona, todas
contemplam, de alguma forma, as 4 categorias apontadas na primeira leitura:
personalidade – deslocado, introspectivo; sentimentos – comovido, coração vasto;
questionamentos – pergunta; pensamentos – desejos.
O extrato do leitor acima indica que há vários outros sentidos que podem ser
criados na interação com o texto e que ele se sente limitado pelo exercício. A interação
255
do leitor com o autor via texto (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009) acontece, nesse
exemplo específico, pela maneira como ele cria para si possibilidades de leitura (‘sete
faces da vida do autor’) e procura encontrar elementos textuais que confirmem essas
possibilidades. O leitor demonstra a maneira como seus conhecimentos estão em
movimentação constante para criar, pensar, refletir suas possibilidades de compreensão.
Pode-se dizer que o texto escrito propicia converter as interpretações em
realidade de conhecimento articulado na interação entre conhecimentos prévios e língua
(ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002). Durante esse processo, o
leitor não registra uniformemente tudo aquilo que está lendo (cf. cap. 1). Ao contrário,
no processo de leitura, ele só registra aquilo que julga necessário para perceber as
relações entre os itens e formular uma representação para o texto (ECO, 1979), o que é
válido não somente para o texto 3, mas também para os textos 1 e 2, ou qualquer outro
texto a que os leitores sejam expostos.
O leitor 3 da turma A, abaixo, também cria uma multiplicidade de sentidos
possíveis a partir da primeira atividade e depois os limita, já na sequência da leitura:
A.3.1.3 podem ser as sete faces do autor, as sete faces de uma
mulher, as sete faces de uma situação, enfim.
O informante estabelece no mínimo três possibilidades para a palavra ‘sete’ na
construção das suas interpretações primárias: sete faces ‘do autor’, de ‘uma mulher’ ou
‘de uma situação’ e ainda, ao indicar a palavra ‘enfim’, deixa em aberto outras
possibilidades que possam surgir durante a leitura. O guia principal que direciona sua
leitura dali em diante é observar em qual desses elementos essas ‘sete faces’ poderiam
se encaixar. Na segunda atividade ele limita seus conhecimentos a uma dessas
possibilidades:
A.3.2.3 eu acho que ele está falando das faces da sua vida, desde
antes de nascer até sua velhice.
Ressalta-se que o leitor explica que se fala, no texto, das ‘faces da sua vida’
descartando a ideia das sete faces de ‘uma mulher’ ou de ‘uma situação’. O leitor ainda
aponta para o fato de que dentro dessas sete faces devem estar alguns momentos ‘desde
antes de nascer até a velhice’. Ele utiliza toda sua carga de conhecimentos prévios
(KLEIMAN, 2000; 2002; KATO, 1999; CASTELLO-PEREIRA, 2003; ECO, 1979)
para ativar sua competência comunicativa e dialogar com o texto construindo sentidos.
256
Tais sentidos, no caso desses excertos, estão limitados a dois aspectos principais: a) a
confirmação ou reconstrução das possibilidades construídas antes da leitura - a de que o
texto expõe ‘sete faces’; e b) os seus conhecimentos discursivos, gramaticais e
sociointerculturais para encontrar quais seriam as ‘faces’ e a que momentos elas se
referem.
Na atividade de escolha das palavras-chave, o leitor declara de forma nítida que
está encaixando as palavras-chave em fases da vida do personagem:
A.3.3.3 sério: essa palavra está no 4º verso do poema, como se
fosse a 4ª fase de sua vida onde ele já havia se tronado[sic] um
homem com maiores responsabilidades. Óculos: também da
uma ideia de idade mais velha. Abandonaste: essa palavra está
no 5º. verso do poema e da a ideia de que seria a 5ª fase de sua
vida onde ele estaria passando por alguma dificuldade em que
Deus o abandonou.
O leitor destaca as palavras ‘sério’ e ‘abandonaste’ como chave e as justifica por
estarem presentes no 4º e 5º versos do poema e por fazerem parte, respectivamente, da
4ª e 5ª fase da vida do personagem. Pode-se dizer que o informante está de fato
dialogando com o texto numa tentativa de encontrar quais são as fases da vida. Ele
divide as estrofes em algumas dessas fases e as explicita em suas justificativas.
Outro detalhe importante é que ele focalizou sentidos que respondem melhor à
ideia construída no texto de que há uma tendência do personagem para o sofrimento e
isso acontece na fase adulta. O informante começa a sua explicação justamente
indicando a palavra ‘sério’ porque ele era um homem ‘com maiores responsabilidades’
e na sequência indica ‘abandonaste’ porque é justamente a fase na qual o personagem se
sente triste e passa ‘por alguma dificuldade’. Ou seja, mais uma vez, assim como
aconteceu com alunos nos textos anteriores, o informante confirma suas possibilidades
iniciais de leitura e quando é solicitado a fixar sentidos, utiliza sua competência
comunicativa para confirmar tais possibilidades se concentrando em elementos textuais
que, para ele, são marcas linguísticas nessa confirmação ou reconstrução.
Pode-se dizer que a língua é utilizada aqui como um local de interação entre
autor e leitor. É por meio de ações linguísticas e sociocognitivas que
eles constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao
operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de
organização textual e as diversas possibilidades de seleção
257
lexical que a língua lhes põe à disposição (KOCH; ELIAS,
2010, p. 07).
Na turma B, os informantes também demonstram que a palavra-chave pode ser
utilizada tanto na confirmação ou reconstrução das possibilidades de leitura, quanto na
focalização de sentidos particulares. No caso do aluno 13, abaixo, ele não demonstra a
palavra ‘sete’ – como o fizeram os informantes anteriores -, no entanto ele já indica que
o texto vai tratar de ‘várias personalidades’:
B.3.1.13 parece se tratar de várias personalidades
Ou seja, as interpretações do leitor devem estar limitadas aos esquemas mentais
(DIJK, 2002; ECO, 1979) ‘personalidade’. As interpretações do leitor, na segunda
atividade, demonstram que ele encontra características do personagem que se encaixam
nesse esquema:
B.3.2.13 acho que ele diz sobre um homem solitário que se
questiona porque veio ao mundo ou de um momento ruim
O fato de ser um ‘homem solitário que se questiona porque veio ao mundo’
mostra ao leitor quais seriam algumas das possibilidades dessa personalidade. O fato de
ele indicar ‘um momento ruim’ mostra a percepção do leitor de que o texto relata sobre
fases ruins da vida. É importante destacar aqui que a representação daquilo que o leitor
encontra na leitura vai se organizando com base naquilo que ele tem armazenado em
seus esquemas mentais. À medida que a leitura evolui, os esquemas se reorganizam e
ocorre um processo de formulação do pensamento produzindo interpretação, o que é
uma característica fundamental para o processo de produção de sentidos textuais (ECO,
1979).
Na atividade de escolha das palavras-chave, o leitor utiliza a sua seleção para
fixar sentidos textuais que giram em torno das personalidades do autor – ‘vive sem
rumo’, ‘homem sério’, sofre por ter ‘poucos amigos’, ser um ‘Zé ninguém’ ou ‘estar
bêbado’:
B.3.3.13 gauche: para lembrar que ele vive sem rumo. Bonde:
para lembrar da estrofe das pernas. Bigode: para lembrar do
homem sério de poucos amigos. Raimundo: pois Raimundo quer
dizer Zé ninguém. Comovido: pois acho que ele está bêbado.
258
O leitor procura encaixar possíveis sentidos dentro dos limites colocados por ele
na primeira interpretação: ter ‘várias personalidades’. Na segunda atividade, o leitor
indica que essa personalidade é ‘solitária’ e que o personagem ‘se questiona’. Na
terceira, o leitor indica outras características percebidas no texto: ‘vive sem rumo’,
‘homem sério de poucos amigos’ e ‘está bêbado’. Colomer e Camps (2002) relatam que
no processo interativo de leitura, o texto funciona como um ativador de esquemas
mentais. Ou seja, o leitor faz construções interpretativas possíveis mediante algumas
informações observadas e contrasta essas percepções àquilo que ele conhece da
realidade. De forma concomitante, reconstrói ou confirma suas possibilidades a partir de
marcas linguísticas encontradas no texto e é nesse momento que ele fornece ao texto um
sentido global.
No caso dos informantes analisados até aqui, é possível dizer que, ativando sua
competência comunicativa, eles buscaram estratégias linguísticas e extralinguísticas que
possibilitassem a eles um encaixe entre as suas possibilidades de leitura e os sentidos
expostos no texto. A palavra-chave pode estar funcionando como um ativador
importante dessa estratégia de ancorar possibilidades, confirmá-las ou reconstruí-las,
por
serem
justamente
marcas
linguísticas
textuais
(KLEIMAN,
2002;
COLOMER;CAMPS, 2002).
O caso do leitor 10 da turma B também indica que o leitor utiliza estratégias de
confirmação, reconstrução ou limitação das possibilidades estabelecidas pela sua leitura.
Na primeira atividade ele declara que o texto fala que:
B.3.1.10 existem pessoas com diversos tipos de caráter
O leitor aponta que sua interpretação será direcionada para o encontro de
informações suficientes que lhe sirvam para basear a ideia de que há ‘pessoas com
diversos tipos de caráter’. Na segunda atividade o leitor expõe duas possibilidades para
esse ‘caráter’: o alcoolismo e o pensamento constante em mulheres:
B.3.2.10 eu acho que se trata de uma pessoa alcoólatra
transtornado com Deus porque o abandonou e só pensa em
mulheres.
Nesse extrato, o leitor indica que o personagem se encaixa em um determinado
tipo de ‘caráter’. Ainda, ele constrói sentidos textuais, e possibilitados pelo
259
conhecimento de mundo, de que há motivos para o personagem ser alcoólatra e pensar
em mulheres: o fato de ter sido abandonado por Deus. Veja-se a maneira como
informações textuais - o abandono por Deus – se relacionam aos conhecimentos de
mundo do leitor para construir sentido – está transtornado, é alcoólatra, só pensa em
mulheres.
A influência do conhecimento de mundo na interpretação está no fato de que
para que o leitor possa dizer que compreendeu o texto, ele precisa deduzir relações entre
frases, palavras, parágrafos e complementar com conhecimentos não necessariamente
explícitos no texto (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Assim, o leitor utiliza todo o
conhecimento que não está exposto no texto para perceber indícios reveladores para sua
leitura, ou seja, ele utiliza um mecanismo contínuo de antecipação e confirmação para
compreender o texto. Tal antecipação e confirmação funcionam como fios que
conduzem a interpretação do leitor e relacionam aspectos diversos dos conhecimentos
culturais ativados no momento da leitura. A atividade seguinte mostra como o leitor
reforça essa carga de conhecimentos culturais:
B.3.3.10 as casas que espiam os homens, significa casa noturna onde
mulheres vão se prostituir.
É interessante observar a maneira como o leitor cria sentidos relacionando
possibilidades limitadas pela sua vivência de mundo. Ele indica que a expressão
presente no texto ‘casas que espiam os homens’ poderia confirmar sua possibilidade de
leitura de que o personagem ‘só pensa em mulheres’, pois no texto há uma ‘casa noturna
onde mulheres vão se prostituir’.
O leitor também faz ligações importantes da sua cultura na produção de sentidos,
pois ele indica que o personagem deve se encaixar em um determinado ‘caráter’. Há
uma construção cultural de que as pessoas que apresentam características socialmente
aceitas possuiriam um ‘caráter’ bom, e as que transgridem esses comportamentos, ou
cultura, teriam um ‘caráter’ ruim. A questão principal é que produzimos significados em
meio à interação e à vivência no mundo que nos cerca, e essa produção se reflete na
maneira como compreendemos os significados de um texto, seja ele oral ou escrito
(MENDES, 2011). Assim, há uma relação entre a cultura vivida pelo leitor e as marcas
linguísticas expostas no texto: o fato do personagem ser ‘alcoólatra’, ‘só pensar em
mulheres’ e ir a ‘casas de prostituição’ culturalmente se encaixam no perfil de um
personagem que está ‘sem rumo’, ‘abandonado’, ‘triste’, o que constrói o seu ‘caráter’.
260
O que se percebeu durante a análise dos dados expostos, para os três textos, é
que os informantes utilizam duas frentes principais na construção de sentidos: uma
liderada pelas possibilidades de leitura e outra liderada pela competência comunicativa
que organiza seus conhecimentos. Para a atividade de construção e confirmação das
possibilidades iniciais de leitura, os leitores procuram pontos onde ancorar suas
escolhas de interpretação e as palavras-chave parecem funcionar como esse elemento
em que eles conseguem encaixar os sentidos e formalizar representações para o texto.
É importante lembrar que os leitores declararam, nos questionários
sociointerculturais, que consideram o título um elemento importante na escolha dos
textos que vão ler. Conforme exposto no cap. 3.2 (p. 131), a maior parte dos alunos
pesquisados, de ambos os grupos, afirmou selecionar suas leituras pelos temas
específicos, pelo título ou por resumos. Isso confirma a ideia de que de que dados
iniciais do texto guiam o leitor no estabelecimento de possibilidades interpretativas e,
consequentemente, na escolha das palavras-chave. O que se percebeu ao analisar os
extratos dos informantes é justamente que esses dados iniciais atuaram como um
elemento concomitante à competência comunicativa, fazendo com que os leitores
utilizem estratégias de descarte de algumas informações e saliência de outras para a
construção da interpretação.
Os dados revelaram, também, que os leitores procuram concentrar na palavrachave um elemento principal em que podem costurar os sentidos que foram aos poucos
construindo durante a interação com o texto. O diálogo com o texto se estabelece e ao
ligar um elemento a outro, as interpretações são construídas num processo que envolve
aspectos culturais, discursivos, gramaticais. Cavalcanti (1989) afirma que as palavraschave são como “fios condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 122) para o
estabelecimento de sentido textual e a construção de interpretação. O que se observou
aqui é que elas não apenas conduzem os leitores, mas também servem como bases,
como se fossem uma zona de segurança, para ativação de conhecimentos subjacentes
que extrapolam o conhecimento linguístico do código e levam os leitores a ativarem
tudo aquilo que conhecem sobre suas realidades e inferirem sentidos para o texto.
Mas e quando o leitor é solicitado a expor suas opiniões para o texto? Como ele
utiliza o diálogo já estabelecido para negociar sentidos para si mesmo? É o que vai se
falar na seção seguinte deste trabalho.
261
5.2 A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS
Nesta seção, vai-se analisar a maneira pela qual os leitores destacam sentidos
construídos durante a leitura e reconstroem novos sentidos para si mesmos ou para o
texto num processo de negociação. Para tanto, observou-se as atividades de discussão
do texto em que foram propostas três perguntas a partir das quais se objetivou que os
alunos demonstrassem algum tipo de diálogo interativo com o texto para negociação de
sentidos153 (cf. cap. 3).
É necessário lembrar que quando se negocia sentidos com o texto, há um
processo individual em que sentidos previamente construídos para cada leitor podem ser
trazidos à tona. De acordo com Mendes (2011), a língua é um modo de identificação
dos sujeitos numa rede de relações individuais, sociais e culturais. É por intermédio da
língua que as pessoas enxergam a realidade à sua volta, estruturam pensamentos,
interagem socialmente, organizam o mundo em que vivem. Sendo assim, a cultura e a
língua se encontram na produção de sentidos ocupando um mesmo espaço fazendo com
que a interpretação e a reorganização de compreensões sejam processos tanto
individuais quanto sociais.
Embora se tenha observado que há pontos em comum entre todos os leitores nas
discussões já realizadas dos cap. 4 e do 5.1, quando se fala em negociar sentidos, julgase que há um diálogo ainda mais intenso com os processos vividos interculturalmente
por cada leitor em particular. Sendo assim, um processo de diálogo entre essas culturas,
de vários sujeitos, com perspectivas diversas, que se juntam em um mesmo momento de
construir sentidos, pode enriquecer o trabalho pedagógico nas salas de aulas de línguas
(MENDES, 2011).
No entanto, para a análise aqui proposta, seria no mínimo exaustivo discutir cada
um dos processos de negociação expostos por todos os 55 informantes participantes da
pesquisa. Para que fosse possível realizar uma discussão sobre a maneira como os
leitores fixam, organizam, reconstroem e negociam sentidos, optou-se aqui por
selecionar os mesmos informantes utilizados na primeira parte do capítulo com o intuito
de analisar como guiaram suas interpretações desde o início, a partir da construção das
possibilidades iniciais de leitura até a discussão. Ou seja, parte-se de uma observação
genérica feita a partir da maioria dos alunos das turmas pesquisadas, conforme exposto
153
Vide questões na íntegra no anexo B deste trabalho.
262
na seção 5.1 acima, faz-se a seleção de alguns informantes para demonstrar como se
analisam tais observações para segunda questão de pesquisa e agora, utilizam-se os
mesmos informantes para discutir a terceira questão de pesquisa e verificar a maneira
que estes reconstroem ou negociam sentidos.
Por uma questão de organização da análise apresentada na sequência, para cada
leitor apresentado a seguir, faz-se uma retomada breve das discussões realizadas na
seção anterior para demonstrar o diálogo entre os sentidos fixados para o texto e os que
estão sendo colocados em negociação pelo leitor na atividade de discussão do texto.
É importante ressaltar o fato de que sentidos são construídos a partir de um
diálogo entre diferentes culturas (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008; 2010;
2011), o que significa que cada sujeito participante do processo de negociação entra
com sua visão de mundo e perspectivas (cf. cap. 2.2.2, p. 93-97). Isso significa que, em
contexto pedagógico, o professor também entra com suas próprias construções e as
expõe para o diálogo com os sentidos construídos pelos alunos. O mesmo acontece
quando se está na posição de pesquisador. Em outros termos, cada um dos envolvidos
na produção de sentidos entra com uma parcela de participação expondo suas análises e
considerações. Assim, neste trabalho de tese, não se nega a possibilidade de que a
negociação se dê também pelos sentidos percebidos pela própria pesquisadora, além das
observações realizadas pelos estudantes numa relação de conhecimentos sociais e
interculturais.
Para todos os textos, foram realizadas três perguntas na atividade 4 - discussão
do texto -, conforme exposto no cap.3. A ideia principal das perguntas foi a de analisar
em primeiro lugar a posição que o aluno se coloca diante do texto ou dos sentidos
construídos para ele. Outro detalhe importante nas perguntas é que se procurou em, pelo
menos uma delas, oportunizar aos leitores a tomada de posição a partir de suas opiniões
e também de demonstrarem como a palavra-chave os auxiliava a hierarquizar intenções
textuais ou pessoais.
Notou-se, na discussão da seção 5.1 acima que, para o texto 01 a maioria dos
estudantes começou a interação com o texto a partir da palavra ‘instrução’
estabelecendo possibilidades mais genéricas de interpretação e na segunda atividade
eles limitaram tais hipóteses a assuntos relacionados à ‘educação’, ‘estudo’ e diferença
de classes. Na terceira atividade, o que se percebeu em grande parte dos estudantes é
que eles procuraram destacar aspectos textuais que relataram a construção da crítica do
gênero textual, bem como palavras que confirmassem a possibilidade de leitura de que o
263
tema principal – a educação - relacionava-se a problemas sociais tais como
discriminação, pobreza, riqueza, entre outros.
No caso do aluno 16 da turma A, observou-se que o informante lançou a
possibilidade inicial de que a ‘instrução é essencial para a sociedade’, limitou esse
sentido a fatores de ‘estudo’, ‘discriminação’, ‘pobreza’ e ‘riqueza’ e construiu sentidos
que indicam que ali há uma crítica (cf. cap. 5.1, p. 229-230). Nas atividades de
discussão do texto, notou-se que o leitor também utiliza a palavra ‘instrução’ para
estabelecer sentidos pessoais. Ao ser questionado sobre o personagem com quem se
identifica, o informante afirma que é ‘com o senhor’ porque ele ‘pensa em instruir’ e
não ‘dar dinheiro’. O menino, por sua vez, não quis buscar estudo, ele ‘virou as costas e
foi embora’:
A.1.4a.16 três. Dois principais. Com o senhor. Porque ele pensa
em instruir em vez de dar dinheiro ao menino. Ele questionou o
menino sobre Teorema de Pitágoras, mas o menino não quis
buscar o conhecimento virou as costas e foi embora.
O leitor aponta para a importância de obter e dar ‘instrução’ ao invés de ‘dar
dinheiro’. O estudante volta a utilizar a palavra ‘instruir’, mas agora com um sentido de
que o senhor dá algo importante ao menino, o conhecimento, e este ‘virou as costas e
foi embora’. O estudante se coloca na posição daquele que quer dar algo, o
conhecimento a alguém, e para isso ele precisa estar no lugar daquele que detém o
conhecimento. Ele ainda afirma que o menino ‘não quis’ buscar o conhecimento e por
esse motivo ele não se identifica com o personagem.
Na atividade seguinte, ele reforça a sua opinião de que se deve, de fato, estudar
mais e buscar o conhecimento, pois é ele que pode lhe dar o poder de ‘instruir’ alguém.
O leitor indica que a posição do personagem é a de que ‘só quem estuda 5 anos a mais é
que é bem instruído’:
A.1.4b.16 ele pensa que só quem estuda 5 anos a mais que é
bem instruído. Sim. Porque se a pessoa estuda todo esse tempo a
menos ela não tem tempo de aprender tudo que o mais instruído
sabe.
Ele ainda afirma que concorda com essa ideia de que é necessário estudar mais,
pois, se a pessoa não buscar estudo, ela vai continuar sem saber o que realmente precisa
saber para também ser ‘bem instruído’. O leitor assume aqui um sentido criado no texto
264
para si mesmo: ele se identifica com o personagem rico porque este tem mais tempo de
estudo e consequentemente pode ser considerado o ‘mais instruído’.
Na sequência da atividade, o estudante ainda declara que, para ele, é pela busca
do conhecimento, ou seja, do ‘estudo’, que se pode ter sucesso, ou se ‘sair melhor na
vida’. O aluno elege a palavra ‘estudo’ como a chave dos sentidos que constrói para si
mesmo: o estudo é importante para que se tenha sucesso.
A.1.4c.16 ele enfatiza sempre o estudo, a busca do
conhecimento, quem tem mais estudo se sai melhor da vida.
Estudo [sic]154.
Sendo assim, o leitor parece estar utilizando a palavra-chave (de início ele utiliza
‘instrução’ e depois reformula sua interpretação para ‘estudo’) para dois aspectos
principais relacionados ao sentido do texto: a) confirmar sua possibilidade inicial de
leitura de que instrução é ‘essencial para a vida em sociedade’ (cf. 5.1, p. 230); e b)
construir sentidos pessoais de que com estudo ele também pode alcançar sucesso. Ao
negociar sentidos com o texto, o leitor assume para si a posição de buscar o estudo para
poder ‘se sair melhor na vida’ e tornar-se ‘bem instruído’.
Com relação ao aluno 5 da turma A, abaixo, o leitor constrói nas primeiras
atividades um sentido de que a instrução é importante para um futuro de sucesso e que
há uma crítica no texto e uma superioridade do rico com relação ao pobre (cf. cap. 5.1,
p. 230-232). Ele também destaca, nas atividades anteriores, que ‘sempre há mais o que
estudar’ e que ‘existem pessoas que se acham melhores que os outros’. Na atividade de
discussão do texto, o leitor marca justamente sua desaprovação à atitude de preconceito
com o menino e se coloca na posição dele dizendo que ‘não seria o homem’ porque ‘não
tem costume de dar lição de moral’:
A.1.4a.5 dois. O menino e o homem. O menino pois não tenho
costume de dar lição de moral em outras pessoas se não tenho
certeza de que estou certa, portanto, eu não seria o homem.
O estudante estabelece a oposição entre os dois personagens e se identifica com
aquele que sofre o preconceito, desaprovando a atitude do senhor rico. Ele ainda marca
a sua desaprovação ao preconceito reconstruindo a crítica presente no texto:
154
A palavra ‘estudo’ aparece sublinhada na indicação do leitor.
265
A.1.4b.5 que com ela iria ajudar ao menino. Em alguns fatos.
Pois o personagem narrador mostra um certo ar de superioridade
e preconceito durante sua instrução e isso é um ponto negativo.
Note-se que o leitor destaca que a ‘instrução155’ seria importante no auxílio ao
menino, mas isso não justifica o ‘ar de superioridade’ e de ‘preconceito’ mostrados pelo
personagem mais rico. Ao negociar sentidos com o texto, o estudante expõe a sua
opinião de que não se pode ter um ‘ar de superioridade e preconceito’ porque ‘isso é um
ponto negativo’. Ele também indica que concorda com ‘alguns fatos’ do texto e na
última atividade afirma que a educação é importante para ‘termos uma vida melhor’:
A.1.4c.5 mostrar que todos nós sem a educação não somos nada
e que sempre devemos buscar por ela para termos uma vida
melhor.
O leitor indica a maneira como constrói sentidos e expõe que concorda em parte
com o personagem narrador estabelecendo para si dois sentidos principais: a) o de que a
educação é importante para o futuro – é importante lembrar que este foi um guia
interpretativo exposto pelo leitor desde o início da interação com o texto e que ele o
confirma na última atividade de exposição da sua opinião; e b) o de que há uma crítica
no texto na qual um personagem considera-se superior ao outro – é nesse ponto que o
leitor se posiciona e expõe sua ideia de que o ‘ar de superioridade’ é desnecessário e que
ele não concorda com o preconceito demonstrado no texto.
Ele seleciona palavras que funcionam como marcas linguísticas dos sentidos
construídos durante a leitura e, ao ser indagado sobre sua opinião, ele parece justamente
entrar em um processo de negociação com o texto afirmando que ‘sem educação não
somos nada’ mas o fato de alcançá-la não justifica atitudes de preconceito. Para o leitor,
há dois processos não concomitantes: o fato de ter altos níveis de educação e o fato de
se sentir superior. Ele entra em negociação com o texto a partir de uma realidade vivida:
no texto, o rico se sente superior ao pobre, mas para o leitor, tal atitude é injustificável
seja pelo dinheiro, seja pelo nível educacional.
Observe-se ainda que o leitor declara-se na posição do menino porque não
costuma ‘dar lição de moral’ em ninguém o que indica que ele procura ações realizadas
no seu cotidiano para construir sentido para o texto. Deve ser lembrado que tanto na
vida cotidiana quanto na leitura de textos, compreende-se e incorpora-se o que faz
155
O leitor utiliza o pronome ‘ela’ como remissivo à palavra ‘instrução’ colocada na pergunta da
atividade “o que o personagem narrador pensa da instrução?”
266
sentido a partir dessa vivência (FREIRE, 1983; KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES,
2011). Fica claro neste excerto que o informante, de fato, expõe ações realizadas na sua
vida cotidiana que o fazem se identificar com um personagem e não com outro pela
desaprovação a algumas atitudes, embora concorde que também precisa estudar, assim
como o personagem rico.
Também no caso do leitor 16 acima, fica clara a relação estabelecida entre as
ações sociais dos leitores com os sentidos criados no texto. O leitor declara que sua
posição é igual a do ‘senhor’ porque precisa buscar estudo e ter ‘uma vida melhor’. Em
ambos os leitores acima, a vida cotidiana mistura-se com os sentidos construídos para o
texto e auxiliam o leitor a identificar-se com atitudes demonstradas pelos personagens.
Na turma B, a palavra ‘instrução’ também aparece nas primeiras possibilidades
de leitura dos informantes e com um sentido ainda mais genérico se comparada com a
turma A (cf. cap. 5.1, p. 233-234). O caso do aluno 19, abaixo, discutiu-se na seção
anterior que ele expõe suas primeiras possibilidades de leitura a partir da ‘instrução
sobre algum assunto’. Tal tema é limitado já na segunda atividade na qual o estudante
indica que há uma ‘lição preciosa’ e que o menino se sentiu ‘menosprezado’. Na
sequência, o leitor procura reafirmar tais sentidos na escolha da palavra-chave e já inicia
um processo de diálogo e negociação do texto tentando questionar-se sobre a existência
do destino – ‘existi [sic] o destino?’ - e afirmando que ‘não há lição preciosa’ e que
discorda do argumento do personagem narrador de que são necessários cinco anos sem
se divertir para se dedicar mais tempo ao estudo. O diálogo se intensifica ainda mais
quando o leitor procura demonstrar sentidos pessoais. Ao ser indagado sobre sua
identificação com algum dos personagens, ele declara que não está de acordo com
nenhum dos dois porque o ‘rico se acha esperto e o ‘pobre age como ignorante’:
B.1.4a.19 dois. Narrador personagem, o senhor e o menino; com
nenhum dos dois. O “rico” se acha esperto e o “pobre” age como
ignorante.
Verifica-se como o leitor procura estabelecer sentidos pessoais para o texto
quando afirma, na segunda atividade, que, para ele, ‘não há lição preciosa’, e, na quarta
atividade, que não age como o rico que ‘se acha esperto’ e nem como o pobre que ‘age
como ignorante’. Ou seja, assim como os leitores da turma A, ele se baseia em suas
ações no mundo, o que faz parte da sua cultura (cf. cap. 2.2.2), para afirmar que não se
identifica com os personagens. Isso acontece porque ações, atitudes, crenças, valores,
267
comportamentos se refletem na língua usada na comunidade (KRAMSCH, 1998) e
fazem com que os usuários construam sentidos baseados na realidade que os cerca
(FREIRE, 1983; MENDES, 2011). Na atividade seguinte, o informante declara que
considera a importância de ‘ter conhecimento’:
B.1.4b.19 ele pensa que o estudo deve estar acima de tudo, que
todos devem ter conhecimento.
Veja-se que o leitor constrói relações de sentido entre as interpretações
construídas para o texto (KOCH, 2009; KOCH, ELIAS, 2010) quando indica fatores
textuais – o rico menospreza o pobre, tenta dar uma lição preciosa mesmo sem conhecer
a lição – e fatores de sentido pessoal – não há lição preciosa alguma no texto e todos
devem ter conhecimento. Tais sentidos estão em relação constante nas interpretações do
leitor que procura indicar, desde o início, que se há ‘lição preciosa’, ela deve ser a busca
do conhecimento e não o preconceito.
Na atividade seguinte, ao mesmo tempo em que o estudante utiliza a ‘lição
preciosa’ encontrada como marca linguística no texto para confirmar sua possibilidade
de interpretação de que educação é, de fato importante, ele também indica essa
expressão como a criadora da opinião de que não se pode ensinar o que não se sabe:
B.1.4c.19 mostrar que nem tudo o que achamos que sabemos
realmente podemos transmitir aos outros. Lição preciosa porque
ele não sabia sobre essa lição.
Observe-se que o estudante iniciou a sua leitura com possibilidades bem amplas:
instrução sobre algum assunto. Na sequência, o leitor estabelece que o assunto é uma
‘lição preciosa’ e já inicia um diálogo de negociação com os sentidos do texto tentando
demonstrar que ele não concorda com tal lição e que ter educação não está em equilíbrio
com o fato de ‘menosprezar’ o pobre, de ‘se achar esperto’, de ‘agir como ignorante’, ou
de ‘estar acima de tudo’.
Pode-se dizer que o leitor encontra um sentido principal - o rico que menospreza
o pobre – e, ao interagir com o texto, indica sua desaprovação a tal atitude, procurando
marcas linguísticas que demonstrem a maneira como seus sentidos são reconstruídos e
remodelados a partir das relações culturais construídas social e individualmente
(KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008, 2011). Ele indica que se deve buscar o
conhecimento sem menosprezar ninguém, pois ‘nem tudo o que achamos que sabemos
realmente podemos transmitir aos outros’. A palavra-chave que marca, para o leitor,
268
essa relação foi indicada como sendo ‘lição preciosa’. O leitor ancora nessa expressão
dois aspectos principais: a) a marcação linguística e textual de que o personagem rico
tenta passar uma lição que na verdade, não existe; e b) a relação pessoal com o texto,
isto é, não se deve menosprezar os outros ‘sem saber o que está falando’.
O aluno 14 da turma B começa a sua interação com o texto focalizando o tema
principal – ‘educação’ – e reconhecendo que um personagem se coloca como superior
ao outro. O leitor ainda vai ancorar os sentidos do texto em palavras que confirmam a
oposição entre os personagens – ‘esfarrapado’, ‘menino’, ‘olhar súplice’ – e reconhece
que ‘essa é uma realidade que a gente vive’ (cf. cap. 5.1, p. 236). Nas atividades de
discussão do texto, ele se coloca no lugar do personagem mais rico e indica que há, de
fato, uma tentativa de auxílio:
B.1.4a.14 sem duvidas com o senhor porque eu adoro dar lição
nos outros conselhos e tal, mas no fim eu as vezes nem sei sobre
o assunto eu gosto de ajudar os outros.
O leitor admite que o senhor deu um conselho cujo conteúdo nem o próprio
personagem dominava, e também admite que age exatamente dessa maneira com outras
pessoas com a ideia de ‘ajudar os outros’. Destaca-se a maneira como ele encontra, no
texto, um comportamento cultural que observa na sua própria atitude: dar lição ou
conselho aos outros. A cultura, como forma de comportamento (KRAMSCH, 1998;
ALMEIDA FILHO, 2011; MENDES, 2008; 2010; 2011 – cf. cap. 2.2.2), é revelada
pelo leitor quando ele destaca, na interpretação do texto, ações que realiza na sua vida
em sociedade. O leitor estabelece ligações entre os sentidos do texto – dar um conselho
ao menino pobre – e as ações que ele realiza na sua vida cotidiana – dar lição de moral
porque gosta ‘de ajudar os outros’. Mesmo que o leitor tenha reconhecido que o
personagem rico se acha superior ao pobre, ele também reconhece que há uma intenção
de auxílio e não de menosprezo e é com essa intenção que ele se identifica.
Na atividade seguinte, o leitor destaca a palavra ‘esfarrapado’ para confirmar sua
hipótese de que há um personagem, ‘o narrador’, que quer dar um conselho ao outro e
indica ainda a existência de uma relação entre ‘educação’ e ‘diferenças de
oportunidade’:
B.1.4b.14 esfarrapado, porque o narrador quis chamar nossa
atenção ele puxa muito pelo lado da educação do diploma das
diferenças e oportunidades
269
Durante toda a interação com o texto, o leitor mantém seu fio condutor da
interpretação no assunto ‘educação’, indicada ainda na segunda atividade, e destaca que
esse é o objetivo principal do texto. Aponta também que dentro deste assunto há
‘diferenças de oportunidade’ e ‘uma realidade que a gente vive’. Ainda, ao ser
questionado sobre qual palavra o auxilia a desvendar o objetivo do autor com o texto ele
aponta para a expressão ‘teorema de Pitágoras’ e afirma que ela é o elemento textual
que focaliza a diferença de classes e de oportunidades, pois mesmo com estudo, muitos
não sabem ‘o que isso quer dizer’:
B.1.4c.14 chamar a atenção para a educação. Teorema de
Pitágoras muita gente se confunde ou não sabe o que isso quer
dizer.
Veja-se como o leitor faz uma marcação nítida para os sentidos que vai
produzindo na interação com o texto: ele inicia sua interação afirmando que a
‘aprendizagem’ e a ‘lição de vida’ referem-se a um tema principal: a educação. Nestes
limites, ele reconhece que ‘há uma realidade que a gente vive’ onde alguns têm mais
oportunidades que outros, ou seja, há uma diferença de classes que se reflete no nível de
educação que se obtém. Admite também que há um comportamento cultural de que
aqueles que têm nível educacional acabam dando ‘lição de moral’ ou conselhos para os
que não o têm. O leitor ainda negocia sentidos quando afirma que o narrador chama a
atenção para a educação, para as ‘diferenças’ e para as ‘oportunidades’ e que isso não
está somente no texto, mas também se reflete na sociedade que ‘a gente vive’.
Pode-se dizer com isso que a competência sociointercultural (cf. cap. 2.2.2) do
leitor é ativada de forma preponderante, não só para construir sentidos textuais, mas
também para negociar sentidos pessoais: o leitor reconhece uma atitude particular de
‘dar lição de moral nos outros’, indica que esse é, de fato, um comportamento cultural e
expõe que ‘educação’ e ‘oportunidades’ são dois aspectos em relação constante, pois
alguns têm mais oportunidade à educação que outros e isso se reflete na sociedade ‘que
a gente vive’.
Mais uma vez, os sentidos construídos pelo leitor passam por um processo de
acomodação às ações conhecidas e vividas por eles na sociedade. É nesse processo em
que língua e cultura se encontram em um lugar comum e possibilitam a negociação e o
diálogo entre os aprendizes para a reconstrução, a recriação e a compreensão do mundo
270
à sua volta (MENDES, 2011; KRAMSCH, 1998). Por exemplo, no caso do leitor acima,
mesmo reconhecendo que ‘dar lição de moral’ sem saber muito sobre o assunto não
seria uma atitude aprovada, ele indica que faz exatamente isso, mas com a intenção de
‘ajudar os outros’. Note-se que esse não foi um sentido construído no texto. O
informante se reconhece na atitude do personagem e procura justificar as suas atitudes e
não as do personagem. Afirma, ainda, que há, de fato, uma relação constante na
sociedade entre ‘educação’ e ‘oportunidades’, o que constrói a crítica do texto de que o
rico não teve só maior nível educacional, mas teve também a oportunidade de se dedicar
ao estudo, embora ele saiba a mesma coisa que o personagem pobre. O leitor reconhece
que a diferença principal estaria na oportunidade diferenciada entre as classes sociais e
diz que ‘essa é uma realidade que a gente vive’.
Para o texto 2, discutiu-se na seção anterior que os estudantes, de forma geral,
começam sua interação com o texto ancorando-se em dois aspectos principais: a
genética e a existência de um debate. Nas atividades seguintes, os leitores limitam suas
interpretações a três assuntos expostos no texto para construir sentido: ‘transgênicos’,
‘clonagem’ e ‘células-tronco’. Observou-se também que o último desses temas aparece
hierarquizado na indicação dos alunos para ancorar sentidos textuais, justamente por ser
foco da argumentação mais forte do autor e da exposição de polêmicas maiores com
relação ao assunto. Isso é resultado da competência discursiva dos leitores que
reconhecem no gênero o teor altamente argumentativo e procuram destacar a maneira
como essa argumentação é construída (cf. cap. 4.1.2, p. 171-175; 180). Tais indicações
para as palavras-chave são também resultado de uma cadeia de relações estabelecidas
desde o início do texto que visam limitar os sentidos que vão aos poucos sendo
construídos em direção à focalização da sequência textual.
Conforme discutido na seção anterior, o leitor 2 da turma A indicou, a princípio,
que o texto fala sobre dúvidas com relação aos estudos genéticos (atividade 1),
reconheceu os polos de oposição de argumentação no texto e os destacou na sua leitura
(atividade 2) e, além disso, apontou como bases de construção de sentido os três tópicos
argumentados no texto (atividade 3). Ao realizar a atividade de discussão do texto, o
leitor destacou com clareza os argumentos do autor:
A.2.4a.2 o autor é em grande parte a favor porém discorda em
alguns pontos. Ele é totalmente a favor do uso de células-tronco
para a cura de doenças e até tenta justificar a morte dos
embriões no processo com o intuito de amenizar a polêmica e as
271
oposições. Concorda com os transgênicos até certo ponto e
torna-se contra o mesmo se este causar impacto ambiental. O
autor é totalmente contra a clonagem principalmente a clonagem
humana.
O informante mantém a sua possibilidade de interpretação de que há um trânsito
entre fatores benéficos e maléficos do uso da ciência genética. Ele expõe, com
especificidade, quais os destaques de acordo e desacordo expostos no texto guiado pelo
fio interpretativo que leva a encontrar e expor vantagens e desvantagens da ciência
genética. Destaca-se a maneira como o leitor ativa sua competência comunicativa (cf.
cap. 4.1, p. 151) para estabelecer diálogo com o texto e destacar sentidos ali
construídos: a) a competência discursiva é utilizada para destacar os temas de acordo e
desacordo expostos pelo autor, bem como os argumentos apontados por ele no texto; b)
a competência estratégica para reconhecer a oposição e resumi-las em poucas palavras a
partir da focalização das palavras-chave; c) a competência gramatical para construir o
sentido de oposição a partir da concatenação das ideias em oposição pelo uso de
conectivos como ‘porém’ e a expressão ‘até certo ponto’; e d) a competência
sociointercultural para expressar sua opinião baseado nas conclusões retiradas do texto.
Ao emitir sobre a sua opinião sobre a genética, o leitor conscientemente se mostra
favorável aos argumentos textuais afirmando que sua ‘visão é semelhante a do autor’:
A.2.4b.2 sou a favor da engenharia genética – minha visão é
semelhante a do autor pois apoio totalmente o uso das célulastronco na minha visão a solução da maior parte dos problemas
humanos, sou a favor do uso dos transgênicos e contra a sua
continuidade se este causa impactos ambientais, porém apoio o
aprofundamento das pesquisas neste ramos. Assim como o autor
sou contra a clonagem humana não só por questões religiosas,
mas por acreditar ser algo desnecessário e desumano.
O guia de interpretação - encontrar benefícios e malefícios da ciência genética direciona também a forma como o leitor conduz suas opiniões para o texto. Durante
toda a atividade, o leitor expõe claramente, em primeira pessoa, quais são seus pontos
de acordo e desacordo: ‘apoio’ as células-tronco porque elas são ‘a solução’ para
‘problemas humanos, ‘sou a favor’ do uso de transgênicos e dos estudos para evitar
‘impactos ecológicos’, ‘sou contra’ a ‘clonagem humana’. Nesse último assunto, o leitor
impõe um argumento diferente do autor: é contra a clonagem ‘não só por questões
religiosas’. Ou seja, o leitor está de fato em diálogo com o texto expondo que concorda
272
que clonagem é algo ‘desnecessário’ conforme exposto no texto, mas ao mesmo tempo
ele relata um sentido pessoal de que também não concorda porque isso está em
desacordo com suas próprias crenças ‘religiosas’. A negociação e a acomodação de
sentidos aqui aparecem quando: i) o leitor destaca a posição favorável do autor do texto
de ser contra a clonagem; e ii) a reforça incluindo um argumento pessoal de que
questões religiosas seriam, para ele, um reforço nessa atitude contrária a tal prática.
Note-se também a forma como o leitor expõe seus argumentos pontualmente
indicando que, para ele, o assunto mais importante é ‘células-tronco’:
A.2.4c.2 células tronco – assim como o autor sou 100% a favor
de seu uso. Afinal os embriões que seriam descartados por
clinicas, passam a ter função importante na cura da humanidade.
Acredito que pode ser comparado à doação de órgãos, ao invés
de descartar como se fosse algo inútil, utilizar para o bem de
outras pessoas.
O leitor, mais uma vez, se aproxima da opinião exposta pelo autor do texto,
afirmando que assim como ele, é ‘100% a favor de seu uso’ pois embriões que seriam
de qualquer maneira descartados passam a ser utilizados como fontes de cura, para ‘o
bem de outras pessoas’. É importante considerar também, no extrato, a maneira como o
leitor busca novos argumentos para reforçar a sua posição afirmando que usar as
células-tronco para a cura pode ser ‘comparado à doação de órgãos’, pois em ambos os
casos se pode salvar vidas. Esse não é um sentido exposto no texto, mas é indicado pelo
leitor como fonte de reforço à sua aprovação para a utilização de células-tronco em
ciência genética.
É deveras interessante observar como o leitor é específico ao estabelecer diálogo
com o texto (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2010): ele inicia a interação da
leitura expondo que há vantagens e desvantagens no uso da ciência genética, destaca de
forma clara e contundente quais são esses aspectos, indica as marcas linguísticas que
confirmam tais possibilidades, e ainda reforça a sua opinião transitando entre os lados
da discussão argumentativa e adicionando novos argumentos ligados à sua realidade e
ponto de vista.
No caso do leitor 28 da turma A abaixo, ele reformula suas primeiras
interpretações de leitura que tratavam da ‘manipulação genética’ para o campo da
‘ética’ na ciência dos genes. As interpretações construídas por ele demonstraram que o
informante procurou focalizar os tópicos discutidos com relação às ações dos cientistas
273
ou da sociedade aprovadas ou não, o que se encaixava no fio interpretativo da palavra
‘ética’. Ao realizar as atividades de discussão e responder sobre a atitude do autor do
texto ele declara:
A.2.4a.28 depende, ele é parte contra e parte a favor é contra a
clonagem e a favor dos transgênicos, com tanto que não
comprometam a produção e totalmente a favor das célulastronco.
Verifica-se que o leitor procura deixar claro para si mesmo as posições do autor
encontradas no texto. Embora a pergunta esteja relacionada à posição do autor com
relação à engenharia genética, o leitor estabelece que, no texto, há argumentos
favoráveis e desfavoráveis a diferentes práticas dentro da engenharia genética. As
primeiras possibilidades de leitura do informante relataram que o texto falaria sobre
‘manipulação genética’, ‘DNA’ ou ‘mudança genética’. De acordo com os dados das
atividades 2 e 3, o leitor precisou reformular seu pensamento para construir uma
interpretação voltada ao comportamento ético na genética e destacar os temas discutidos
no texto. O fato do leitor explicar os pontos em que o autor é a favor e contra
demonstram que para ele não faria mais sentido falar da ciência genética como um todo,
pois há pontos em que se pode concordar ou discordar, como acontece no texto. Ou
seja, ele observa que assuntos genéricos da ciência genética não respondem aos temas
expostos e para que se destaque a opinião do autor é preciso demonstrar as construções
argumentativas e seus resultados no texto.
Ao ser indagado sobre a sua própria opinião com relação à ciência genética, o
leitor retorna a um ponto mais genérico deste campo de estudo:
A.2.4b.28 interessante é a evolução da tecnologia humana
atravéz[sic] dos tempos.
O estudante não expõe sua opinião particular sobre nenhum dos pontos
discutidos no texto, mas sim à ‘tecnologia’ da ciência e à sua evolução. O leitor
reconhece que a ciência genética é importante para a sociedade, e que ela evolui com o
tempo, podendo trazer benefícios tais como os apontados pelo autor do texto. Na
atividade seguinte, ao ser indagado sobre o ponto que lhe chama mais atenção, o leitor
responde:
274
A.2.4c.28 células tronco, sou a favor pois se elas se transformam
em qualquer célula especializada do corpo, as técnicas de uso
devem ser continuadas.
O leitor destaca justamente o tema mais polêmico e utiliza o primeiro argumento
exposto no texto que justifica a sua utilização na genética. Ele ainda dialoga com o
texto, informando que as ‘técnicas devem ser continuadas’, pois tais células são
importantes para a ‘evolução da tecnologia humana’. Vejam-se como as interpretações
do leitor se encaixam entre questões textuais e sentidos construídos para o texto:
a) A reformulação das primeiras possibilidades: o texto não fala de
manipulação genética conforme hipótese estabelecida na pré-leitura, e sim
de ética na ciência genética dentro dos assuntos transgênicos, clonagem e
células-tronco;
b) O destaque das informações emitidas: o leitor não destaca uma opinião geral
do autor sobre a ‘engenharia genética’, mas focaliza os resultados expostos
pelo autor de ser favorável ou contra algumas práticas por questões éticas;
c) A negociação do leitor adicionando outros conhecimentos e opiniões: o
leitor declara que a engenharia genética é interessante, pois ‘evolui
atravéz[sic] dos tempos’ e é necessário que, a célula-tronco, por sua
importância de se transformar em qualquer célula do corpo, demanda que
outras técnicas sejam ‘continuadas’.
Esses encaixes acontecem porque os itens lexicais selecionados pelo autor para
construir um texto motivam tanto o conhecimento linguístico presente neles quanto
ativações sociais e culturais presentes na mente do falante num processo dialógico
(KLEIMAN, 2002; BAKHTIN, 2009). Ao negociar sentidos para o texto, o leitor expõe
alguns desses seus conhecimentos como se estivessem adicionados aos conhecimentos
expostos pelo autor numa rede de relações que constrói sentido(s).
No caso do primeiro informante selecionado para a turma B, o leitor 12, abaixo,
indicou nas atividades iniciais a presença de ‘prós e contra’ e de ‘várias opiniões’ a
respeito da ciência genética. Nas atividades seguintes, assim como os leitores anteriores,
limita o assunto ‘genética’ aos três temas expostos no texto e declara que estes transitam
entre ‘benefícios’ e ‘riscos’ em suas aplicações (cf. cap. 5.1, p. 245-246). Ao ser
indagado a destacar a posição do autor, o informante generaliza a opinião do autor para
uma aprovação, mas aponta para os limites de tal posição favorável:
275
B.2.4a.12 o autor concorda com o uso da genética para evolução
e melhoria de produtos e condições de vida, desde que estas não
apresentem riscos a sociedade ele acredita que o uso de célulastronco por exemplo podem sim e devem ser utilizadas pois
podemos com elas criar um fim para inúmeras doenças.
O leitor indica que há, de forma geral, uma aprovação por parte do autor, mas
isto está limitado à apresentação de benefícios para a sociedade e não de riscos, e cita
como exemplo a questão da grande vantagem do uso da célula-tronco por ‘criar um fim
para inúmeras doenças’. Ao dialogar com o autor via texto (KLEIMAN, 2002; SOLÉ,
1998; KOCH, 2009), o leitor destaca a opinião do autor – ‘o autor concorda com o uso
da genética’ - e indica em primeira pessoa do plural que também é favorável à utilização
de células-tronco – ‘podemos com elas criar um fim para doenças’. O leitor utiliza sua
competência discursiva para destacar a argumentação do texto e sua competência
sociointercultural para se colocar juntamente ao autor na defesa da utilização do
desenvolvimento da célula-tronco. Ainda, ele traz à tona uma série de conhecimentos de
mundo e negocia sentidos particulares afirmando que tem ‘a mesma opinião do autor’ e
acredita que se for usada para ‘melhorias’ e ‘curas de doença’ a evolução é benéfica:
B.2.4b.12 tenho a mesma opinião que o autor acredito que se a
engenharia genética for usada para fins de pesquisar e criações
de melhorias, curas de doença e et. estes deve sim se aprofundar
e promover uma evolução genética.
Note-se que o primeiro fio condutor se mantém nessa atividade, pois o leitor
declara abertamente seu acordo com a posição do autor e confirma também sua própria
posição favorável uma vez que geram ‘melhorias’ e ‘curas’ mas que isso tudo deve ser
feito mediante a pesquisa para ‘promover a evolução genética’ a fim de evitar os
‘riscos’. Na atividade seguinte, ele expõe também a sua opinião particular e declara o
quanto a ciência genética pode ser benéfica:
B.2.4c.12 indubitavelmente foi as células tronco pois com elas
podemos produzir, recriar, modificar todos os tecidos do corpo
humano, imagine poder curar doenças atualmente sem cura,
corrigir deficiências poderia evitar uma população livre de
doenças e males, seria incrível
Quando o leitor é indagado sobre o assunto que lhe chama mais atenção, ele
indica que ‘indubitavelmente’ é ‘células-tronco’ e aponta para a maneira como se
276
impressiona com as possibilidades que podem ser geradas a partir da pesquisa: curar
doenças atualmente incuráveis, corrigir deficiências, ter uma população livre de doenças
e males. O leitor demonstra que está, de fato, em diálogo com o texto, porque para ele
‘seria incrível’ se tudo isso realmente fosse possibilitado pela pesquisa em ciência
genética.
Destaca-se a maneira como o leitor realiza aqui duas tarefas estratégicas: a)
confirma suas possibilidades de leitura de encontrar prós e contras para a pesquisa em
ciência genética e evitar seus riscos; e b) expõe sentidos criados e percebidos por si
mesmo na relação com o texto – ‘seria incrível’ curar doenças, corrigir deficiências e ter
uma população livre de males.
O leitor 07 também da turma B aponta para a construção de uma cadeia de
sentidos liderada pela ideia de haver um debate em questões genéticas (atividade 1)
especificamente em transgênicos, clonagem (atividade 2) e células-tronco (atividade 3),
os quais apresentam aspectos positivos e negativos. O fato interessante a respeito desse
leitor é que ele declarou já na segunda atividade que acha que a clonagem é ‘uma coisa
sem precisão’ (cf. cap. 5.1 p. 247). Ou seja, desde a primeira leitura efetiva do texto, o
leitor já demonstra que está, de fato, dialogando com o texto e construindo sua opinião.
Na primeira pergunta de discussão do texto, o informante destaca que, no debate, o
autor é a favor da ciência genética, mas possui restrições quanto à influência na vida dos
seres humanos:
B.2.4a.7 ele é a favor desde que isso não influencia os seres
humano.
Quando se posiciona com relação ao texto, ele mantém o guia interpretativo de
haver pontos favoráveis e contrários evidenciando quais são os aspectos de acordo por
parte do autor – ‘ele é a favor’. Embora o autor tenha exposto posições diferentes em
cada um dos tópicos, o leitor generaliza a posição do autor para favorável à prática da
engenharia genética, mas influenciado pelas informações textuais ele limita essa posição
a não arriscar a vida de ‘seres humanos’.
Na atividade seguinte, embora declare que, na sua opinião, a ciência genética é
algo bom – ‘eu gosto’ – ele indica que há limites no uso da genética pela interferência
na cadeia alimentar, mas há também a grande vantagem de ‘usufruir da tecnologia’:
277
B.2.4b.7 eu gosto, porém tem seus prós e contras, se pudermos
não usar tanto a genética melhor. Prós é poder usufruir da
tecnologia e contra é interferir a cadeia alimentar.
Há uma adição de aspectos ao que o leitor observa no texto: ele se diz favorável,
desde que tais aspectos sejam considerados em seus lados positivos e negativos. Ou
seja, ele segue a mesma linha argumentativa do autor do texto: ser favorável à ciência
genética e avaliar riscos e benefícios de seu desenvolvimento.
Ao relacionar sentidos textuais e pessoais, na sequência, o informante ainda
busca expor sua própria realidade na negociação de sentidos quando declara que não
encontra mais ‘frutas saborosas’ no supermercado e que ‘nada é como antigamente’.
Para o leitor, isso é uma consequência dos estudos genéticos aplicados em alimentos
transgênicos:
B.2.4c.7 transgênicos, hoje em dia é difícil entrar em
supermercado e encontrar frutas saborosas, a maioria tem
transgênicos. Nada é como antigamente. Por um lado é bom
porque assim estamos evoluindo grandes estudos, novas
tecnologia. Porem a cada ano que passa as coisas mudam mais.
O informante está consciente dos sentidos criados pelo texto de que há
vantagens e desvantagens no uso da ciência genética e reflete sobre quais serão as
consequências do avanço dos estudos, da nova tecnologia porque a ‘cada ano que passa
as coisas mudam mais’. Em outros termos, o leitor identifica, de fato, os sentidos
criados pelo texto sobre benefícios e malefícios da ciência genética e procura dialogar
refletindo sobre as novas possibilidades que tal ciência poderá agora trazer na vida dele.
Ele reconhece os aspectos benéficos que pode viver em sua realidade, afirmando que
‘estamos evoluindo’ mas também reconhece os aspectos negativos refletidos na sua vida
cotidiana, pois não encontra ‘mais frutas saborosas’ no supermercado.
Note-se a forma como comportamentos cotidianos se fazem presentes no diálogo
com o texto: o leitor reclama do fato da produção de transgênicos influenciar em sua
vida, pois as frutas que ele costuma consumir não são mais tão ‘saborosas’. Ele
reconhece, na manifestação linguística do texto, comportamentos culturais que são
ativados por meio de um armazenamento de conhecimentos em que língua e cultura
sempre se encontram. É uma rede de sentidos socioculturais que extrapolam os limites
do linguístico e interagem de forma constante em contextos específicos e que
278
possibilitam o leitor a questionar, refletir, imaginar as possibilidades para um
determinado texto (KRAMSCH, 1993; 1998 - cf. cap. 2.2.2).
Para o texto 3, discutiu-se na seção anterior que os leitores formaram uma cadeia
de sentidos nas quais procuraram encaixar sentidos limitados a: sete – fase/face – vida –
abandono – sofrimento. Outro aspecto importante da análise foi o fato de que os leitores
utilizaram sua carga de conhecimentos de mundo ainda de forma mais contundente do
que nos textos anteriores, pois, de fato, o gênero poema fornece ao leitor uma
possibilidade de criação maior (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1989). Ao focalizarem a
palavra ‘Deus’ para interagir com o texto na produção de sentidos, eles recorreram a
cargas culturais ativadas pela palavra (cf. cap. 4.1.3, p. 193-194; 196) e focalizaram os
fios semânticos de abandono e tristeza na vida (cf. cap. 5.1, p. 251-252).
O leitor 21 da turma A declara, nas primeiras expectativas, a possibilidade de
falar sobre sete faces diferentes. Na segunda atividade, ele limita tais faces a fatores de
personalidade, questionamento e sentimentos, sendo que na terceira atividade, indica
palavras-chave que justifiquem esse encaixe (cf. cap. 5.1, p. 255-256).
Nas duas primeiras atividades de discussão do texto, o leitor expõe que o tema
principal está, de fato, relacionado às sete faces da vida do autor e que elas se diluem
em sete estrofes com características da personalidade do autor:
A.3.4a.21 as sete faces da personalidade do autor.
A.3.4b.21 são sete estrofes e em cada uma há uma característica
da personalidade do autor
O leitor destaca como tema principal sete faces da personalidade do autor, e
ainda indica que em cada estrofe há uma característica diferente dessa personalidade. O
leitor procurou selecionar essas características ao escolher as palavras-chave (cf. cap.
5.1, p. 254): ‘deslocado’, ‘introspectivo’, ‘coração vasto’, ‘cheio de desejos’. Nas
atividades de discussão do texto, o leitor mantém o mesmo guia interpretativo de que o
tema principal é ‘as sete faces’ e que o título aponta, para ele, que é possível encontrar
em cada uma dessas estrofes uma face diferente.
Ao ser indagado sobre o objetivo do autor, o leitor afirma que o texto foi escrito
para externar sentimentos, sem a preocupação de descrever ‘uma história linear’:
A.3.4c.21 na minha opinião, este texto não foi escrito com a
finalidade de que outras pessoas leiam, poetas são
279
introspectivos, nem sempre escrevem para os outros, na minha
opinião ele escreveu para tentar explicar ou expor sua
personalidade, para passar ao papel sua angústia, sua essência, e
não para construir uma história linear.
Verifica-se, também, que o leitor procura demonstrar os sentidos que constrói
para o texto afirmando que o poeta se faz perguntas, ‘é introspectivo’ e isso justifica o
fato de não escrever uma ‘história linear’ já que ele só quer ‘expor sua personalidade’.
Outro detalhe importante é a maneira como o leitor interage com o texto a partir das
características do gênero, tal como a emotividade. O informante indica que poetas ‘nem
sempre escrevem para os outros’ e que, nesse caso, procura passar ‘sua angústia’, ‘sua
essência’. Ou seja, o leitor constrói fios interpretativos bastante nítidos neste extrato: há
sete faces da vida do autor, expostas em características diferentes da sua personalidade,
que não refletem uma ‘história linear’, mas demonstram introspecção, perguntas,
sentimentos.
É interessante também observar nesse excerto, que o leitor declara em primeira
pessoa – ‘na minha opinião’ – que o autor fala sobre sua ‘personalidade’, sua ‘angústia’,
sua ‘essência’. Fica claro aqui o estabelecimento do diálogo: o autor expõe sete faces da
sua vida e, para o leitor, tais faces relacionam-se a uma angústia e a uma essência
própria do personagem.
Outro fator importante nesse exemplo é que o leitor demonstra que está
consciente da influência do gênero para a construção de sentidos: ‘poetas são
introspectivos’ e não escrevem necessariamente com a ‘intenção de que outras pessoas
leiam’, pois querem apenas demonstrar sentimentos. O leitor utiliza sua carga de
conhecimentos textuais (ECO, 1979; KLEIMAN, 2002; DIJK, 2002) e impõe para o
texto uma possibilidade de interpretação que pode diferenciar da ‘sua opinião’, pois
reconhece que o gênero permite essa esse jogo de criação literária (ANTUNES, 2012) a
partir dos conhecimentos de mundo de leitores diferentes.
O informante 3 da turma A, a seguir, também construiu possibilidades iniciais de
interpretação voltadas para as sete fases de vida do personagem e na terceira atividade,
afirmou que utiliza as palavras-chave para marcar algumas fases, talvez as mais
aparentes no texto (a 4ª e 5ª fases que marcam a fase adulta de ser um ‘homem sério’ e o
‘abandono’ conforme apresentado na seção 5.1, p. 256). Ele ainda marca os aspectos de
sofrimento passados pelo personagem e os liga a uma das fases da vida. Na discussão
do texto, nas duas primeiras perguntas o leitor afirma que o tema principal do texto é a
280
vida do autor, caracterizada em ‘faces’, e que há um acontecimento ‘principal’ para
cada uma delas:
A.3.4a.3 a sua vida dele [sic]
A.3.4b.3 as 7 faces são da vida do autor, caracterizando cada
uma pelo seu principal acontecimento.
O leitor reafirma que o texto trata das faces de vida e procurou, na sua
interpretação, compreender que há um ‘principal acontecimento’ na vida do personagem
o qual seria a ideia de ‘abandono’ ou de ‘passar por uma dificuldade’ conforme exposto
na atividade de seleção das palavras-chave (cf. cap. 5.1, p. 256). Ao ser solicitado a
reconhecer o objetivo do autor e a incluir comentários pessoais a respeito do texto, o
leitor declara:
A.3.4c.3 o objetivo foi de dividir a vida dele em 7 faces e contar
cada uma delas, porem acredito que ele poderia ter sido mais
esclarecedor porque alguns versos não tem como entender do
que ele fala.
Guiado por suas possibilidades de leitura, o leitor declara a sua interpretação de
que o autor relata cada uma das sete faces da vida dele. Ele critica a maneira como isso
foi realizado e afirma que ‘não tem como entender o que ele fala’. Note-se que embora
o leitor declare que o poema poderia estar mais claro, ele constrói um sentido baseado
nas palavras e relações feitas durante a leitura. A declaração do estudante corrobora as
declarações da maioria dos alunos durante as atividades de que o poema foi o texto mais
difícil de compreender.
No entanto, o que se observou, nos dados, é que o leitor movimentou uma gama
maior de conhecimentos de mundo para apoiar suas interpretações o que não acontece
de forma tão frequente e nítida nos textos anteriores. De fato, o gênero do texto e a
construção em sequência fornecem ao leitor um conforto maior na hierarquização de
sentidos. No caso do poema, a recorrência a conhecimentos de mundo leva o leitor a
fazer suposições a partir da sua realidade o que o deixa mais desconfortável porque
segundo ele, é mais difícil de compreender ‘do que ele fala’.
É fundamental o fato da movimentação de conhecimentos de mundo para a
compreensão dos leitores porque a palavra está em um território comum entre o locutor
e o interlocutor (BAKHTIN, 2009), fazendo com que os sujeitos da interação dela
281
tomem posse dentro de um contexto social. Ou seja, a palavra é influenciada pelas
relações interacionais entre indivíduos. Pode-se dizer, assim, que a interpretação de
textos seria uma forma de construção onde a palavra (o texto) torna-se meio de
expressão e de criação dos interlocutores. O sujeito leitor torna-se o corresponsável pela
concretização da palavra enquanto ato enunciativo, pois é na interação dela com os
infinitos conhecimentos que significados são construídos (BAKHTIN, 2009). No caso
do poema, os leitores constroem possibilidades justamente na interação não só com o
texto, mas com realidades e conexões culturais possibilitadas pela relação entre palavras
e realidade concreta. Isso pode acontecer também com outros gêneros textuais, mas, de
acordo com os dados, no poema esse aspecto fica mais nítido na interpretação dos
leitores.
O leitor seguinte também declara a mesma dificuldade na leitura por estabelecer
possibilidades baseadas em conhecimento de mundo, e não exatamente em aspectos
textuais expostos. Na primeira e segunda atividades, o leitor afirma que o tema principal
é a vida de Carlos e que ele acha que o autor ‘quer contar 7 passagens da sua vida’:
B.3.4a.13 sua vida
B.3.4b.13 acho que ele quer contar 7 passagens da sua vida
Deve-se lembrar que o leitor 13 não estabeleceu nas suas primeiras hipóteses de
leitura, possibilidades relacionadas a sete fases de vida, mas procurou encontrar
elementos no texto que confirmassem as ‘várias personalidades’. (cf. cap. 5.1, p. 257).
Ao chegar à atividade de discussão do texto, o leitor considera que o texto trata
de sete passagens da vida de Carlos, nas quais se poderiam encaixar os aspectos de
personalidade já construídos na atividade anterior. O leitor utiliza a expressão ‘acho’,
que expõe a sua incerteza quanto ao assunto, o que também aconteceu na primeira
leitura do texto. Isso indica que o leitor está consciente que usa conhecimentos que não
estão no texto para estabelecer sentido. Na última atividade para expressar a sua opinião
o leitor afirma:
B.3.4c.13 ele quer contar sobre sua vida, mas ele deixou o texto
devasado[sic] difícil de entender logo na primeira leitura.
Veja-se que o leitor mais uma vez confirma suas possibilidades iniciais de que o
texto fala sobre a vida do autor e, novamente, expõe sua incerteza na interpretação
282
afirmando que é ‘difícil entender logo na primeira leitura’. Note-se que no caso dos
textos anteriores, os leitores estabeleceram sentidos baseados em marcas específicas do
texto, tais como a sequência da narrativa e a marcação dos personagens e de suas
diferenças no texto 1 e a divisão dos temas e pontos argumentados no texto 2 (cf. cap.
5.1, p. 236-237; 239-240). Eles utilizam as palavras como uma base de confiança para
afirmar o que está no texto e quais as intenções e adicionam posições próprias ou novos
argumentos às ideias expostas no texto. Isso não acontece com o texto 3 o que não quer
dizer que os informantes não utilizem o processo de negociação e acomodação de
sentidos.
Na verdade, no texto 3, esse processo é ainda mais intenso, pois o leitor recorre
com mais facilidade a conhecimentos de mundo e ativa sua competência
sociointercultural para construir sua interpretação (cf. cap. 4.2.3, p. 199-201). Verificouse que o processo de diálogo acontece desde o momento do início da leitura fazendo
com que o leitor realize inferências a partir daquilo que é possível de acontecer na sua
comunidade e na sua cultura (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). É na relação
estabelecida entre a língua, o texto e o contexto do leitor que ele procura as bases de
construção das suas interpretações para este texto ou para qualquer texto a que seja
exposto.
O leitor 10 da turma B construiu um primeiro fio interpretativo a partir do qual o
personagem tem um determinado caráter, que inclui o alcoolismo e o pensamento
constante em mulheres. Aos poucos, a partir de características percebidas no texto, o
leitor confirma essas expectativas e justifica as atitudes de ‘caráter’ do personagem por
ter sido ‘abandonado’ por Deus (cf. cap. 5.1, p. 258-259). Na atividade de focalização
do tema principal do texto, o leitor declara:
B.3.4a.10 uma pessoa sem expectativa de vida, vive em função
de festas e mulheres e modismos e vive sem rumo
O estudante mantém o guia de suas interpretações voltado para o personagem
que ‘vive sem rumo’, ‘sem expectativa de vida’ e que ‘vive em função de festas e
mulheres’. Ao realizar a atividade de discussão do texto, o leitor confirma suas
expectativas primárias e as destaca tentando colocá-las como uma base de confiança de
suas interpretações. Na atividade seguinte, sobre a relação estabelecida entre o texto e o
poema, o leitor volta à ideia das fases da vida do personagem divididas em estrofes:
283
B.3.4b.10 ele relata sete fazes[sic] da sua vida em 7 estrofes do
texto
O que acontece no caso do poema é que o leitor já reconhece que utilizou
diversos tipos de conhecimento para construir sentido o que pode ser considerado uma
negociação de sentidos. Isso porque os conhecimentos sociais, culturais e individuais
dos estudantes apareceram fortemente na construção de sentidos durante a atividade de
indicação das palavras-chave (cf. cap. 4.2.3, p. 193-198), o que significa que o leitor
reconhece a movimentação maior de possibilidades. Na última pergunta ele utiliza
novamente suas inferências para explicar o objetivo do autor:
B.3.4c.10 passa o ar de melancolia de uma pessoa sem
espectativa[sic] de vida
O leitor claramente costura os fios das atividades anteriores e infere que o autor
quer passar um ‘ar de melancolia’ porque é uma pessoa ‘sem espectativa[sic] de vida’.
Note-se a maneira como os fios da interpretação são tecidos: o texto fala de uma pessoa
com um caráter de alcoólatra e que só pensa em mulheres, é abandonado por Deus, está
sem rumo e por isso resolve escrever para expressar toda a sua melancolia.
No poema, os leitores não demonstraram tão nitidamente sentidos particulares.
Isso porque o diálogo com o texto já se mostrou intenso na construção de sentidos a
partir das inferências realizadas. Os leitores demonstram que esse diálogo, de fato,
existe, mas não expõem suas percepções particulares a respeito do texto porque o texto
é ‘difícil de entender’.
O fato dos alunos não indicarem tais dificuldades nos textos anteriores pode
residir no fato de que eles indicam que há uma base maior de confirmação das
possibilidades de leitura. Nos textos anteriores ficou mais claro que questões relativas à
competência discursiva, tais como a sequência textual, a divisão dos personagens, a
construção de aspectos característicos do gênero são frequentemente utilizadas pelos
leitores para colocar suas interpretações em bases mais fixas. No caso do texto 3, os
informantes estão conscientes que essas bases textuais são mais fluidas e necessitam de
suas inferências pessoais, as quais são possibilitadas pelo compartilhamento de
conhecimentos prévios e da negociação de sentidos o que os leva a (re)construir a
interpretação textual (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2011; KLEIMAN, 2002;
2004)
284
Os leitores indicam suas dificuldades baseados no fato de que, para os textos
anteriores, conseguiram utilizar uma relação mais forte entre fatores discursivos e
sociointerculturais o que os deixou mais confortáveis no estabelecimento de relações
interpretativas, o que não aconteceu com o texto 3. Por terem que basear suas
interpretações em conhecimentos de mundo (cf. cap. 1.4.4), os quais não são
nitidamente identificáveis linguisticamente no texto, os leitores relatam oralmente
durante a realização das atividades que sentem dificuldade na criação dos laços
interpretativos.
Em suma, o que se observou com relação à negociação de sentidos foi que os
leitores utilizaram características importantes da sua competência comunicativa para
realizar tal tarefa:
a) Para o texto 01, os leitores procuraram realizar um diálogo de
posicionamento pessoal quanto ao assunto educação ou diferença de classes,
afirmando a necessidade que sentem de buscar alcançar níveis mais altos de
escolarização. Eles ainda destacam fatores sociais informando que não há a
necessidade de menosprezar os outros ou de apresentar atitudes de
preconceito na busca por um conhecimento maior. Ou seja, eles realizam
duas atividades concomitantemente: i) destacam os sentidos textuais de
construção da crítica; e ii) expõem que também sentem a necessidade de
buscar conhecimento, no entanto, sem as mesmas atitudes culturais do
personagem do texto;
b) Para o texto 02, os leitores ancoram sentidos que destacam a oposição dos
argumentos do texto em relação aos temas propostos. Ao negociarem
sentidos, os leitores demonstram seu diálogo intenso com o texto
adicionando a esses argumentos outros fatores, agora pessoais, que reforçam
tanto a construção argumentativa do autor do texto, quanto a sua posição a
favor dele. Eles aprovam ou reprovam os argumentos baseados em outros
fatores que corroboram ou contrariam o que está exposto pelo autor;
c) Para o texto 03, os estudantes destacam as conexões sociointerculturais
realizadas para a produção de inferências e estabelecimento de coerência
para o texto. Eles reconhecem que sua ancoragem de sentidos está em
inferências estabelecidas e criadas por eles mesmos para o texto e
demonstram a maneira pela qual alguns pontos verificados no texto, podem,
suportar essa relação a conhecimentos não expostos.
285
O que se observou, portanto, nesta seção, foi o fato de que os sentidos são
negociados pelos leitores a partir de um diálogo entre os sentidos fixados e
estabelecidos na atividade de leitura e de seleção das palavras-chave e os sentidos
possíveis de serem adicionados, reconsiderados ou remodelados a partir de suas
próprias experiências de vida. O que acontece é que as palavras-chave podem funcionar
como essa estratégia dupla: confirmar sentidos encontrados no texto e remodelar ou
adicionar novas possibilidades de criação a partir deles.
Assim, pode-se dizer que a palavra-chave é, de fato, uma ferramenta estratégica
importante para o trabalho com interpretação textual, pois, a partir dela, vários
movimentos podem ser estabelecidos. A figura 3, abaixo auxilia a compreender as
múltiplas funções da palavra-chave:
FIGURA 3 – A função da palavra-chave
PALAVRACHAVE
COMPETÊNCIA
COMUNICATIVA
GRAMATICAL
SOCIOINTER
CULTURAL
DISCURSIVA
- identificação das
classes de palavras
- relação das
classes de palavras
inter texto
- reconsideração da
semântica da
palavra inter texto
- identificar
elementos coesivos
relacionando-os à
coerência textual
- sequenciação
textual
- identificação da
relação tema-rema
- reconhecimento
de tipo e genero
textual
- salientar pistas
linguísticas na
construção da
coerência
- destacar tópicos
discursivos
- ativar
conhecimentos de
mundo do leitor
- fazer conexões
com a realidade
cultural e social
- contextualização
do texto a partir
da realidade
vivida pelo leitor
- estabelecer laços
de criatividade ou
emotividade
GUIA
INTERPRETATIVO
- Confirmar ou
reconstruir
possibilidades
iniciais de leitura
- identificar e
ancorar sentidos
- reconhecer ideias
em oposição
(próprias ou do
autor)
- NEGOCIAR
SENTIDOS:
- adicionar novas
informações ao
texto;
- expor ideias
particulares
relacionadas à sua
cultura
- discordar do
autor
- construir novas
possibilidades
286
O primeiro movimento diz respeito à competência comunicativa, pois, como se
viu no cap. 4, a palavra-chave pode auxiliar na canalização de sentidos de diferentes
dimensões. O fato é que na interpretação dos alunos a palavra-chave não carrega
simplesmente o seu significado literal, mas auxilia o leitor a canalizar vários tipos de
conhecimento a partir das conexões que realiza para entender o texto. O segundo diz
respeito ao processo de construção e negociação de sentidos, pois conforme se discutiu
neste capítulo, a palavra-chave auxiliou os alunos a fixarem sentidos pré-construídos
nas primeiras leituras confirmando ou reformulando suas possibilidades interpretativas e
já impondo ao texto novas interpretações.
Pela figura 3, a palavra-chave funciona como uma ativadora de dois lados no
processo de interpretação: 1) o desenvolvimento a competência comunicativa; e 2) o
estabelecimento de guias que direcionam a interpretação dos leitores. Ambos os
aspectos não aparecem em isolamento e nem se anulam. Ao contrário, eles aparecem em
círculos que indicam a sua movimentação constante e que se encontram em alguns
pontos em comum. Isso explica o fato de que algumas repetições foram necessárias na
análise de dados tanto do cap. 4, quanto do cap. 5: as estratégias de leitura dos
estudantes se encontram durante o momento de construção de uma representação para o
texto.
Outro detalhe importante na figura acima é que cada um dos lados da figura
ativa novas subestratégias que também atuam de forma concomitante. De um lado, ao
desenvolver a competência comunicativa, os leitores estimulam as dimensões a ela
relacionadas e movimentam uma série de conhecimentos prévios que os auxiliam a
organizar as informações do texto para construir sentido global. No caso da
competência gramatical, o que foi observado é que ela auxilia o leitor, principalmente a
identificar classes de palavras, relacionar as palavras sintaticamente e semanticamente
no texto, reconsiderar sentidos da palavra a partir das relações textuais, identificar
elementos coesivos que auxiliam no estabelecimento da coerência. Para a competência
discursiva, os fatores principais ativados pelos estudantes foram o estabelecimento de
uma sequência de eventos para o texto, a identificação da relação tema-rema, o
reconhecimento de tipo e gênero textual, a consideração de pistas linguísticas que levam
à construção de coerência, e o destaque de tópicos discursivos. Quando a competência
sociointercultural é desenvolvida, os leitores são levados a ativar conhecimentos de
mundo, fazer conexões com a sua realidade cultural e social, contextualizar o texto a
partir da sua própria realidade, estabelecer laços de criatividade e emotividade.
287
Deve ser lembrado, no entanto, que esses foram apenas alguns dos aspectos
observados nos dados para esta pesquisa, e que é possível que outros elementos estejam
sendo ativados e utilizados na construção da interpretação a partir da competência
comunicativa. A questão principal aqui é que a palavra-chave, de fato, aparece como um
ponto principal de apoio em meio ao processo de construção e criação de sentidos.
Do outro lado da figura, de forma simultânea, outro fio aparece direcionando as
interpretações dos leitores: as possibilidades construídas em um momento de pré-leitura
e reconstruídas durante a interação com o texto. No cap. 5, os dados levaram à
confirmação do fato de que é importante que os leitores realizem ações estratégicas para
a construção de hipóteses para suas leituras, bem como para o reconhecimento de
marcas linguísticas que possam confirmar ou levá-los à reconstrução de tais hipóteses.
A palavra-chave aparece como uma importante ativadora dessa estratégia auxiliando o
leitor a confirmar ou reconstruir as possibilidades de interpretação para o texto,
identificar e ancorar sentidos, reconhecer ideias em oposição, tanto dele mesmo, quanto
as do autor.
Nesse sentido, o processo de diálogo para a construção da interpretação textual é
intenso e o leitor também inicia um processo de negociação de sentidos que é guiado
pela própria palavra-chave e pelos conhecimentos ativados pela sua identificação. Nesse
processo os leitores adicionam novas informações ao texto, expõem ideias particulares
relacionadas à sua cultura, discordam ou concordam com o autor, constroem novas
possibilidades de leituras.
Pode-se dizer com isso que a palavra-chave provoca um intenso processo
dialógico do leitor com vários elementos: as ideias expostas pelo autor, o texto, os
conhecimentos que ele evoca, os sentidos construídos por vários leitores participantes
de uma aula de compreensão, por exemplo. É esse processo dialógico provocado pela
palavra-chave que pode levar os leitores a utilizarem suas estratégias de leitura de forma
mais eficaz, não somente para encontrar os sentidos intertextuais, mas também para
relacioná-los a outras possibilidades de discussão a partir da sua própria cultura.
Reitera-se o fato de que a discussão realizada neste capítulo está distante de ser
uma discussão única para os fatos. O que se observou é que os leitores, de fato, fizeram
relações de construção de sentidos que possibilitaram a eles o diálogo com o texto e a
(re)formulação de seus pensamentos e compreensão. Pelos dados, os informantes
expuseram sentidos particulares de diversas maneiras, o que significa que cada um dos
excertos incluídos traz um ponto de vista diferente, e provavelmente, ao analisar novos
288
excertos, outras possibilidades, certamente surgiriam. Também se admite que há um
processo de construção de compreensão da própria pesquisadora que perpassa os
sentidos construídos pelos alunos, já que cada participante entra com sua própria visão
de mundo no processo de construção de sentidos.
É importante dizer aqui que, de acordo com a figura 3, acima, os processos não
se anulam ou acontecem de forma isolada. Eles possuem linhas de conexão entre eles
que, de forma global, levam o leitor a construir interpretações. Isso corrobora o fato de
que leitura é um processo complexo que movimenta vários tipos de conhecimentos do
leitor e que demanda uma atitude estratégica de estabelecimento de interação com o
autor, o texto, a realidade (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998; CASTELLO-PEREIRA,
2003).
289
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegar ao final de um trabalho intenso de pesquisa como este é deveras
cansativo, mas, ao mesmo tempo, gratificante. A inquietação de refletir sobre o processo
pedagógico da leitura, o seu funcionamento e conhecimentos movimentados que
possam resultar na reflexão das práticas vigentes da sala de aula foi e ainda é um
processo constante desta pesquisa.
O objetivo principal deste trabalho foi o de observar a maneira como os leitores
interagem com a língua para a produção de sentidos textuais, com o intuito de
desvendar como eles desenvolvem suas capacidades tanto para compreender quanto
para negociar sentidos para um texto.
Sendo assim, analisou-se a maneira como os leitores selecionados para essa
pesquisa movimentam estrategicamente seus conhecimentos por meio da língua e como
o diálogo é realizado durante a leitura levando-os a construírem interpretação textual
num processo complexo e interacional.
Nesse sentido, considerou-se não somente os conhecimentos que perpassam o
código linguístico em si, mas todos os conhecimentos subjacentes a esse código que
possam fazer com que os leitores construam interpretação fazendo ligações importantes
para (re)construir e negociar sentidos textuais, sociais e individuais.
Como uma
consequência das análises realizadas, considera-se que essas podem se constituir como
um ponto de partida para gerar novas discussões que auxiliem no planejamento de aulas
de compreensão textual, visando interações mais ricas e mais efetivas no
desenvolvimento das habilidades dos estudantes.
Falou-se aqui (cf. cap. 1) que o processo de leitura e interpretação textual é
interativo e que o leitor utiliza toda a sua carga de conhecimentos para compreender os
sentidos e objetivos expostos pelo autor em uma manifestação linguística. Para tanto, há
uma (re)construção de sentidos do texto a partir da percepção da relação entre palavras e
os ditos conhecimentos prévios, que envolvem os conhecimentos linguísticos, textuais e
de mundo (KOCH; ELIAS, 2010, KOCH, 2009; KLEIMAN, 2001; 2002; 2004;
CASTELLO-PEREIRA, 2003).
Isso porque a língua é concebida tanto como produto, quanto como produtora
das relações entre sujeitos inseridos em uma sociedade e organizados de uma
determinada maneira (BAKHTIN, 2009). Sendo assim, a língua ganha vida na interação
entre os usuários, e é importante considerar que ela canaliza também aspectos sociais e
290
culturais (HYMES, 1995; KRAMSCH, 1993; MENDES, 2008), os quais interferem na
produção de sentidos em todo e qualquer processo que envolva comunicação, inclusive
no processo de leitura. Uma vez que a leitura envolve a compreensão da língua, não se
poderia conceber o processo de leitura, neste trabalho, como algo estanque, clivado, em
que o leitor deve simplesmente decodificar sinais expostos em uma página branca.
No processo de leitura, o leitor tem uma tarefa essencial no ato interpretativo:
movimentar todos os conhecimentos perpassados pela língua, considerar marcas
linguísticas, ancorar conhecimentos, ativar culturas e vivências, hipotetizar e construir
sentidos. Sendo assim, a leitura envolve a ativação e o desenvolvimento da competência
comunicativa (HYMES, 1995; SAVIGNON, 1999; CANALE, 1995) do leitor. É a
partir da habilidade dos usuários de dispor das formas da língua, fazer conexões
linguísticas, textuais, sociais e culturais que o processo de comunicação de uma
mensagem durante a leitura é construído.
Supõe-se que a língua forneça elementos que ativam todos esses conhecimentos
e auxiliam o leitor a canalizá-los na construção de sentidos. Antunes (2012) destaca que
as palavras, de alguma maneira, se aproximam e se interligam, têm funções que
permitem a composição do texto, tais como realizar nexos de coesão, criar e sinalizar a
expressão de sentidos, ativar as matrizes cognitivas construídas social e culturalmente.
Para a autora, as palavras funcionam como um guia com instruções e indicações de por
onde o leitor pode seguir para a construção dos sentidos de um texto.
Cavalcanti (1989) argumenta, justamente, a favor dos itens lexicais chave que
funcionam como ilhas de confiança do leitor para tecer a rede de sentidos construída
num texto. Essas marcas linguísticas, denominadas nesse trabalho de palavra-chave (cf.
cap. 2.3), podem funcionar como uma superestratégia na ativação, direcionamento e
canalização dos conhecimentos do leitor em direção à construção da interpretação.
Desse modo, observou-se a seleção das palavras-chave por alunos de 3º. ano de
ensino médio em três textos de diferentes gêneros e temas escolhidos para a pesquisa
(cf. cap. 3). A questão principal foi verificar como a palavra-chave é utilizada pelo leitor
para estabelecer comunicação com o texto e, a partir dessa seleção, como se revelam os
conhecimentos ativados e movimentados pelo leitor no ato de compreender o texto.
Mais especificamente, discutiram-se três questionamentos norteadores (cf. cap. 3, p.
128-130), os quais mostraram, pela análise de dados, resultados que indicam a
necessidade de se pensar em formas estratégicas de usar a palavra-chave como ativadora
291
de diversos conhecimentos dos leitores em sala de aula e motivadora de negociações de
sentidos interessantes para a compreensão da realidade dos estudantes.
No cap. 4, que visou responder a primeira questão de pesquisa, os dados
revelaram que as palavras-chave escolhidas pelos estudantes representam estruturas que
extrapolam o conhecimento linguístico-gramatical e funcionam como matrizes
construídas pelo leitor para expor sua representação da realidade. Uma interação
constante entre as manifestações socioculturais e a língua é representada no uso e é
ativada pela escolha do léxico da língua (ANTUNES, 2012), que é capaz de ativar
conexões diversas para a construção de interpretação dos leitores.
O desenvolvimento da competência comunicativa é um elemento contínuo,
constante e de suma importância na construção de sentidos textuais. Isso porque, pelo
que se observou nos extratos dos estudantes, eles utilizaram a palavra-chave como uma
estratégia de canalização de diferentes conhecimentos: os gramaticais, discursivos e
sociointerculturais. A palavra-chave foi utilizada como um elemento único dotado de
subfunções que perpassam as diferentes dimensões da competência comunicativa e
podem levar o leitor a realizar diferentes tarefas ao construir interpretações, tais como a
hierarquização de sentidos textuais, a organização dos conhecimentos linguísticos dos
informantes bem como das informações construídas a partir deles, a ativação de
conhecimentos que envolvem a cultura e as relações sociais dos leitores.
Os resultados demonstraram que aspectos particulares da língua são utilizados
pelos leitores no diálogo com o texto. No que diz respeito à competência gramatical,
verificou-se que os informantes destacaram palavras-chave de determinadas classes
gramaticais que relatam conteúdos específicos internos ao texto. Por exemplo, eles
utilizaram na maioria das indicações palavras de conteúdo, tais como substantivos ou
adjetivos para identificar conteúdos da mensagem ou personagens do texto (cap. 4.1.1,
p. 157-161). Ainda, no que diz respeito à mesma competência, observou-se que os
leitores utilizaram palavras de classe fechada, tais como conjunções ou alguns
advérbios, para demonstrar a maneira como constataram oposição ou consequência nas
relações textuais (cap. 4.2.4, p. 213).
Outro aspecto importante revelado pelos dados foi a maneira como os
informantes utilizaram aspectos textuais e discursivos para relatar suas interpretações.
Em vários momentos os leitores indicaram, por exemplo, palavras que destacaram para
eles os personagens (textos 1 e 3), os temas (textos 1, 2 e 3), os tópicos discutidos no
texto e a oposição entre eles (textos 1 e 2). Um detalhe importante no que diz respeito à
292
competência discursiva, foi o fato de que se observou, tanto nos dados analisados no
cap. 4 quanto no cap. 5, que a percepção do gênero textual influenciou a interpretação
gerada pelos alunos. Os leitores ao identificarem a característica do gênero textual de
que há uma crítica no texto 01, uma oposição argumentativa no texto 2, ou uma
emotividade no texto 3, por exemplo, selecionaram esse aspecto tanto como indicador
do tema e do sentido textual como um todo (cap. 4.1.2, p. 180-181), quanto como guia
no estabelecimento das possibilidades interpretativas e no direcionamento
das
negociações estabelecidas para o texto (cap. 5 p. 230; 248; 263; 270; 278; 283-284).
Destaca-se também a maneira como os leitores utilizaram fatores sociais e
culturais no diálogo com o texto durante a leitura e na negociação de sentidos. Neste
trabalho, denominou-se essa competência de sociointercultural por se considerar que, na
produção de sentidos, é relevante a consideração de aspectos sociais e culturais e a
interação entre eles na sala de aula e na realidade vivida pelos alunos (KRAMSCH,
1993; 1998; MENDES, 2008, 2010; 2011). Os dados demonstraram a pertinência de se
considerar tais aspectos na forma como os estudantes compreendem os textos porque os
leitores indicaram características de suma importância na construção de sentidos:
realidades vividas pelos estudantes, tais como a diferença de classes e a necessidade de
se pensar na evolução da ciência para o bem da sociedade; a necessidade de valores
éticos no trato com seres humanos; a relação estabelecida entre crenças religiosas,
opiniões pessoais, personalidade e emoções (cap. 4.2.3, p. 198-199). Além disso,
observou-se que a cultura e as relações sociais são destacadas pelos informantes ao
interpretar e negociar sentidos para o texto, pois os estudantes indicaram suas opiniões,
crenças e ações realizadas por eles na comunidade em que vivem (cap. 5.2, p. 265-268;
277-278). Esses aspectos socioculturais foram utilizados pelos leitores na indicação de
um diálogo com o autor na leitura do texto e demonstraram a necessidade de se pensar
que tais fatores, de fato, entram em uma interação constante nas aulas de compreensão
textual.
Este trabalho, portanto, aponta para um resultado interessante no que diz respeito
à competência sociointercultural: considerar que aspectos sociais e culturais de todos os
sujeitos envolvidos nos processos pedagógicos, tal como a leitura, são tão importantes
na construção de sentidos quanto aspectos discursivos ou gramaticais, pois eles
auxiliam os leitores a dialogarem com o texto, com o professor e com outros estudantes
de forma mais efetiva e a repensarem seus posicionamentos.
293
Embora se tenha classificado as ocorrências das justificativas e das palavraschave para diferentes dimensões da competência comunicativa, não se julga que esses
são caminhos fixos para todos os leitores na construção de sentidos. Ao contrário, os
leitores utilizam vários conhecimentos e ao se admitir que cada estudante tenha uma
relação com uma determinada cultura, construída social e individualmente, considera-se
também que há produções de sentidos que podem ser sempre diferentes. Pode-se dizer
ainda, que há a importância, nesse ponto, de se considerar o diálogo entre essas culturas,
línguas e variedades de posição dos usuários, pois é a partir dele que os estudantes
poderão desenvolver mais e melhor sua competência comunicativa e criar sempre novos
sentidos para a realidade que vivem, interagindo com ela, moldando-a, questionando-a,
acomodando-a de acordo com seus conhecimentos.
Ressalta-se, assim, que o processo de interpretação textual é rico e abre uma
gama de possibilidades de formalização dos conhecimentos dos leitores. É nesse
aspecto que se considera a importância da utilização do léxico – ou das palavras-chave em aulas de interpretação textual: elas, de fato, funcionam como ativadoras dos vários
tipos de conhecimento do leitor e como canalizadoras da competência comunicativa no
ato de leitura. Não se fala aqui de aulas em que as palavras sejam selecionadas como
mera construção de vocabulário desconhecido, ou como motivadoras para explicações
gramaticais (leia-se gramática normativa). Ao contrário, argumenta-se a favor da
seleção de palavras dotadas de conteúdos textuais e que possibilitam novos diálogos
entre as culturas que estão em choque na sala de aula e que movimentam a discussão, a
reflexão, a reconstrução de sentidos e que fornecem aos estudantes uma habilidade de
possuir uma consciência estratégica de lidar com a língua de forma mais eficaz.
No cap. 5, discutiu-se a segunda e terceira questões de pesquisa e chegou-se à
confirmação da ideia de que o processo de leitura não é linear, o que significa que o
leitor não segue sempre o mesmo caminho na construção de interpretação para aquilo
que ele lê. O fato principal é que o leitor lança possibilidades de leitura a partir de
indícios encontrados no texto e, de forma interativa, ele reorganiza as informações que
aos poucos vai encontrando na manifestação textual e que o levam a construir um
sentido global e mais seguro para o texto.
Nos dados observados nesta pesquisa, os informantes utilizaram a palavra-chave
como um espaço de segurança para a ancoragem de seus conhecimentos e confirmação
ou reconstrução das possibilidades de interpretação lançadas por eles. Em outros
termos, a palavra-chave aparece aqui como o elemento base em que o leitor se apoia
294
para ali escolher e confirmar o seu caminho de construção da interpretação. Os
estudantes procuraram marcas linguísticas no texto que validassem suas possibilidades
de leitura, e quando não a encontraram, refizeram tais possibilidades, direcionados por
dois aspectos principais: os conhecimentos ativados durante a leitura do texto, ou o
desenvolvimento da sua competência comunicativa, e os guias estabelecidos para a sua
interpretação.
Pode-se dizer, assim, que os leitores costuram sentidos utilizando dois pontos
principais nesse processo: as possibilidades construídas no início da leitura e os indícios
encontrados no texto que confirmam ou reconstroem as possibilidades interpretativas. A
palavra-chave foi utilizada pelos leitores como o ponto em comum entre esses dois
lados, como se eles estivessem costurando dois pedaços de tecido e a palavra-chave
funcionasse como o local onde eles passam a agulha para fixar o fio que eles utilizam
para demonstrar o sentido global.
Se compararmos o processo de compreender um texto com o processo de
costurar uma peça de roupa, poderíamos dizer que a costureira utiliza toda a sua
habilidade para cortar o tecido, fazer as medições, colocar os fios na agulha para
costurar as partes do tecido, e aos poucos, ela produz a peça de roupa imaginada. O
leitor também utiliza toda a sua habilidade – a competência comunicativa – para
observar e utilizar o tecido – o texto – e a partir dele realizar estratégias de medição e
costura de relações semânticas que fornecem a ele sentido. Tanto a costureira quanto o
leitor partem de um objeto que lhes permite a criação: a costureira parte do tecido que
ela escolhe, e o leitor parte da manifestação textual. Ambos manuseiam seus objetos a
partir de sua habilidade e constroem novas perspectivas a partir dessa realidade: a
costureira constrói sua peça de roupa e o leitor constrói sentidos textuais e pessoais.
Ainda, nesse processo de comparação, a costureira precisa aprender onde ela
pode fixar os pontos da costura que mantenham sua roupa inteira, sem buracos
inesperados. Para isso, habilidosamente, ela utiliza a agulha, que pode auxiliá-la no
processo de fixação dos pontos da costura. O leitor também procura fixar os pontos que
podem lhe revelar sentido e a palavra-chave funciona para ele como o guia de fixação
desses pontos, como se fosse a agulha condutora do fio que liga as unidades do texto.
Ele procura, no texto, os pontos por onde essa agulha passa e, aos poucos, estabelece
relações de sentido que revelam para ele onde os fios podem ser fixados fornecendo
uma segurança na (re)construção de seus conhecimentos.
295
Não se quer dizer com isso que o leitor parte de um ponto sempre fixo e
estanque para a construção de sentidos. Ao contrário, ele percebe, no texto, as criações
possibilitadas pela interação e é a partir delas que ele tece relações com o seu
conhecimento e coloca as bases de ancoragem de sua construção: os sentidos.
Outro aspecto importante observado é que a palavra-chave funciona com
subfunções no que diz respeito à negociação de sentidos, tais como: fixar sentidos inter
e intratexto(s), adicionar a esses sentidos construções e percepções criadas na sua
realidade por intermédio da língua, construir ideias em oposição ou de acordo com o
autor.
Os dados revelaram que, já ao selecionar as palavras-chave, os leitores destacam
sentidos importantes para eles mesmos, fazendo com que tais sentidos sejam também
destacados para um diálogo pessoal. Isto quer dizer que a seleção das palavras-chave
não funcionou somente como ancoragem de conhecimentos movimentados no ato de
leitura, mas também como instigadora de conhecimentos pré-formulados pelo leitor que
corroboram ou refutam o que está no texto.
No caso da negociação de sentidos, é como se o leitor fizesse uma análise que
indica, para ele, se seus sentidos estão bem formatados, construídos, organizados e
adicionasse detalhes dos quais ele sente falta. Por exemplo, no texto 01, os leitores
demonstraram a concordância com algumas posições dos personagens ou a reprovação a
atitudes demonstradas ali. Para o texto 02, os leitores destacaram argumentos
importantes expostos pelo autor, mas a eles adicionaram outras possibilidades que
reforçaram a necessidade de pesquisas no campo genético. Para o texto 03, os alunos
indicaram uma série de conhecimentos utilizados durante a interpretação do texto que
reforçaram para eles as possibilidades de criação e inferência.
Voltando à comparação com a costureira, nesse momento é como se a peça de
roupa construída estivesse passando por um exame de produção, no qual ela procura
perceber pontos falhos, ou repensar formas de construir novos detalhes para a mesma
peça ou para peças futuras.
O que se notou também é a necessidade de incentivar os estudantes nesse
processo de negociação. Como as atividades tinham somente o intuito de perceber como
o processo estava se dando para os leitores, não se incentivou novas possibilidades de
diálogo e não se promoveu discussões mais acirradas sobre tais sentidos. Principalmente
no texto 03, que é um texto que suscita maior criatividade dos leitores, verificou-se uma
certa insegurança para a produção de novas possibilidades para o texto como se os
296
conhecimentos que eles já possuíam da realidade e que foram utilizados para a
interpretação não fossem suficientes na indicação de opiniões ou percepções a respeito
do texto.
Isso pode significar que o incentivo aos estudantes a um processo de diálogo
mais constante em que eles tenham consciência da discussão realizada via texto e dos
conhecimentos utilizados para construir sentidos pode levá-los a representações mais
efetivas de seus próprios conhecimentos e a valorizarem aquilo que produzem a partir
da sua realidade. É na discussão do texto com eles mesmos e com os demais alunos que
o processo de diálogo entre culturas, representações, matrizes cognitivas e
comportamentos pode levar os leitores a um processo de reflexão sobre o que o texto
produz e o que ainda se pode produzir a partir disso. Prosseguindo com a metáfora da
costura de uma roupa, a costureira vai aos poucos criando novas peças a partir da sua
experiência e da conversa com seus clientes ou com outras colegas de profissão. O
leitor, por sua vez, também cria novas possibilidades de construção de sentidos a partir
das interações e diálogos que realiza com outros leitores, o professor, textos variados e
com a sua própria realidade sociocultural.
Deve ser lembrado que, se no processo de interpretação, os leitores utilizam seus
conhecimentos prévios, incluindo aí fatores sociais e interculturais particulares. É
necessário considerar também o fato de que os conhecimentos de vários participantes do
processo de leitura podem, de fato, enriquecer ainda mais o processo de construção de
sentidos. Reitera-se que quanto mais reflexões e possibilidades forem evocadas pelos
leitores durante a compreensão, mais sua competência comunicativa se desenvolve,
mais ligações com outros conhecimentos eles constroem e mais eles se sentem
capacitados a realizar intervenções e reinterpretações da sua própria realidade e dos
textos aos quais forem expostos no decorrer de suas vidas.
Neste momento, destaca-se a importância do olhar do outro – do pesquisador e
do professor - no processo de construção de sentidos ao considerar os conhecimentos
dos diversos leitores para a compreensão não só de textos, mas também da realidade.
Conforme se notou nos dados, a leitura de textos está longe de ser um processo fechado
em sentidos expostos no código linguístico. Isso significa que é primordial que sejam
possibilitadas em aulas de leitura, as conexões e ligações a conhecimentos diversos para
que os leitores possam, de fato, iniciar um processo constante de negociação de
sentidos.
297
Reitera-se também o fato de que a palavra-chave pode ser utilizada como uma
ferramenta interessante para promover diferentes atividades nessa construção do
processo interpretativo: a canalização de diferentes dimensões da competência
comunicativa e o auxílio aos leitores na organização das informações a que são
expostos; a ancoragem de sentidos durante a leitura; a incitação ao diálogo com o texto;
a negociação de diferentes sentidos. O incentivo a essas atividades leva o leitor a refletir
sobre suas realidades e aguçar seu senso crítico perante o texto, dialogando com ele,
aceitando perspectivas ali expostas, reconstruindo outras, adicionando novas
possibilidades de reflexão, revisitando sua própria realidade e cultura.
É importante ressaltar que essas foram apenas algumas das possibilidades
observadas para esse trabalho e se admite que outras reflexões ainda possam ser
realizadas, pois a palavra é que carrega os signos sociais, culturais e ideológicos
construídos em uma determinada sociedade e sem ela a comunicação e a consciência
individual não se concretizam (BAKHTIN, 2009). Ou seja, a palavra, ao mesmo tempo,
carrega uma construção social e outra individual permeada pelas relações prévias,
construindo uma espécie de conhecimento coletivo, o qual é dinâmico, reformula-se no
passo a passo e no diálogo com o texto e com o outro, e expressa manifestações
culturais importantes.
Não se teve a preocupação imediata, nesse trabalho, de realizar discussões mais
práticas sobre como aulas de leitura devem ser conduzidas para a movimentação mais
efetiva dos conhecimentos dos leitores e para construção de diálogos. O objetivo aqui
foi compreender de que maneira os informantes desenvolveram seus conhecimentos
para interpretar um texto e negociaram sentidos. Certamente, se forem evocadas novas
reflexões sobre como o processo de leitura se realiza e outros aspectos influentes no ato
de interpretar e compreender não somente o texto, mas aquilo que é trazido à tona por
meio dele, pode-se considerar esta uma pesquisa digna de frutos profícuos para futuros
professores e pesquisadores.
Ressalta-se que é a interação entre diferentes conhecimentos de leitores diversos
que torna o processo de interpretação mais rico e possibilita discussões que possam
levar os leitores a construírem uma habilidade estratégica e consciente de leitura (por
exemplo, ao identificarem a palavra-chave), na qual eles sejam incitados a dialogar com
o texto e a construir novos sentidos para si mesmos, sua comunidade bem como para
todo e qualquer texto a que sejam expostos.
298
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Lucielen Porfirio - RI UFBA - Universidade Federal da Bahia