Bocage. Bicentenário da morte do Poeta. (1805 – 2005)
Carlos Jaca
Diário do Minho 30 de Novembro e 7e 14 de Dezembro de 2005
Esse Bocage nunca existiu…
Antes de frequentar o antigo 7º ano dos Liceus e, de seguida, durante três anos,
a disciplina de Literatura Portuguesa, como matéria opcional, na Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, o Bocage que eu
conhecia era aquele que ficou no comum das
gentes, e que terá sobrevivido pelas gerações
fora. Esse conhecimento, dizia respeito apenas ao
anedotário caricatural de um Bocage de «pilhéria
e chalaça», a quem se atribuía tudo e mais
alguma coisa, excepto a obra poética que
escreveu. O prestígio boémio do seu nome
anulava toda a grandeza dessa obra – não havia
historieta sem graça, não havia laracha gratuita,
não havia piada soez, que não fosse imputada a
Bocage. De tal modo era assim, que no meu
tempo de adolescência as historietas atribuídas a
Bocage eram, normalmente, contadas à “chucha calada”.
Do grande poeta perdurava, e ainda perdurará, sobretudo, a lenda cómica do
Bocage estróina, prevaricador incorrigível, frequentador impenitente de botequins e
lugares mal afamados, «repentista consumado de metro fácil e rima facílima».
A isto se reduzia praticamente toda a reputação de Bocage junto da grande
maioria que pronunciava o seu nome. E, todavia… esse Bocage nunca existiu… a não
ser na imaginação de “escritores” que, servindo-se de facécias de almanaque barato, e
inventando outras, consideravam mais lucrativo atribuir ao glorioso poeta toda a
espécie de piadas grosseiras e obscenas que o povo retinha na memória e foi
transmitindo de geração em geração.
Bocage, o autêntico Bocage que marcou toda uma época, o «Elmano Sadino»
dos imortais sonetos, esse ninguém conhece, o Bocage de «A morte de Leandro e
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Hero», dos idílios, das canções e das odes de inspiração pura e harmoniosa, esse
poucos o conhecem.
Quem é que conhece esse Bocage que traduziu Castel e Delille, e elevou a sua
arte portentosa ao ponto de valorizar o seu próprio original? O Bocage que todos
conhecem é um poeta chocarreiro que andaria por essas ruas, soltando graçolas
impertinentes e curtindo uma embriaguês crónica pelas mesas dos botequins.
Em torno do seu nome chegou a formar-se uma atmosfera de depravação e de
escândalo. «Versos bocagianos» na boca do povo querem, ou queriam dizer,
«literatura de sal grosso e bafio nauseante, florilégio de lama».
Ora, esse Bocage nunca existiu!
«Só conhecendo Bocage através da sua poesia é possível acertar contas que
andavam erradas, pois é a obra que devolve o poeta à sua própria imagem, que
restitui Bocage à sua verdade, que exemplarmente o recupera, em toda a inteireza do
que ele foi».
Ascendência. Infância e Juventude.
Às três horas da tarde do dia 15 de Setembro de 1765 nascia, em Setúbal,
Manuel Maria Barbosa L´Hedois du Bocage, filho do bacharel José Luís Soares
Barbosa e de D. Mariana Joaquina Xavier du Bocage Lustoff. Foi baptizado no dia de S.
Miguel, a 29 de Setembro, na freguesia de S. Sebastião, tendo como padrinhos Heitor
Mendes Botelho de Morais Sarmento e Luísa Matilde de São Boaventura, tia paterna e
religiosa do mosteiro de S. João, como consta da certidão de nascimento.
O pai de Manuel Maria pertencia a uma família tradicional de Setúbal, sendo o
nono dos doze filhos de Luís Barbosa Soares e de Eugénia Maria Inácia Bulhões.
Luís Barbosa Soares sempre foi uma pessoa notável e considerada na vila,
embora estivesse longe de ser uma pessoa abastada.Desde 1720, exercia os cargos de
escrivão e tabelião do judicial. As rendas cobradas pelos tabeliães e escrivães
garantiam-lhes uma posição de destaque na sociedade local, pois eram, de todos os
oficiais, aqueles que mais rendimentos auferiam. A partir de 1726, passou a acumular
com os referidos cargos o lugar de escrivão da Câmara de Setúbal.
Dos sete filhos varões de Luís Barbosa Soares, dois faleceram relativamente
jovens, outros dois foram encaminhados para a carreira eclesiástica. Esta situação
significa que, na prática, o primogénito passou a ser José Luís Soares Barbosa, assim se
explicando ter sido escolhido para cursar a Faculdade de Cânones da Universidade de
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Coimbra, como era costume. Aquele que havia de ser o pai de Manuel Maria Bocage foi
para Coimbra em 1746, regressando a Setúbal em 1749 com o título de bacharel.
Luís Soares Barbosa aliava à sua qualidade de hábil jurista, a de poeta de
relativo merecimento. No seu tempo de Coimbra, «aspirava-se tanta poesia à beira do
Mondego por aqueles anos que seria impossível José Luís passar ao largo de tamanha
movimentação». No dizer de Vitorino Nemésio, seria «um pouco poeta e zombeteiro» e
um leitor apaixonado de «Noites» de Edward Young. Da sua autoria pouco se sabe, ou
pouco restou, daí não se poder concluir que tivesse grande talento poético.
Depois de exercer, durante alguns anos, o cargo de juiz de fora em Castanheira e
Povos, veio a casar, a 6 de Junho de 1758, com D. Mariana Joaquina Xavier du Bocage
Lustoff.
A mãe do poeta era filha do francês Gil L´Hedois du Bocage e de Clara
Francisca Joaquina Xavier Lustoff.
Concretamente, o que se sabe de Gil du Bocage é que teria muito cedo
ingressado na armada francesa, mas que em 1704 já se encontrava ao serviço de
Portugal e, criando raízes, por cá ficou.
O avô de Manuel Maria torna-se conhecido na nossa história por actos de
verdadeira bravura, honrando a marinha portuguesa que serviu com a maior dignidade
no decurso da sua vida. Assim, em 1719, reconhecendo a sua acção no combate travado
na defesa do Rio de Janeiro e também a valentia demonstrada, como a restante esquadra
portuguesa, contra a armada turca na batalha naval do Cabo Matapan, Gil du Bocage
passou a «coronel com exercício no mar», posto equivalente ao de vice – almirante,
patente em que encerrou a sua carreira militar, alcançando 10 mil réis de tença e o
hábito de Cristo. Mais tarde o rei fez-lhe mercê de tença anual de 400.000 réis por três
vidas, que nunca haveria de ser usufruída por ele nem por seus descendentes.
Já na casa dos sessenta anos, nomeado para se deslocar a Setúbal a fim de
verificar o estado do armamento e da estrutura de defesa do Castelo de São Filipe,
demorou-se algum tempo na vila, vindo, então, a conhecer Clara Francisca, uma
rapariga que rondaria, na altura, os vinte anos. Clara era filha de Leonardo Lustoff, rico
proprietário e que exercera também as funções de cônsul da Holanda em Setúbal.
Clara casou com Gil du Bocage a 12 de Junho de 1720, vindo o casal a ter duas
filhas: Antónia Inácia Josefa, que nasceu em 1721 e Mariana Joaquina, que, nascida em
1725, seria a mãe de Manuel Maria Barbosa du Bocage.
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Registe-se, ainda, na ascendência do poeta, o facto de sua mãe ser segunda
sobrinha da célebre poetisa francesa Marie Anne Le Page du Bocage, tradutora do
«Paraíso Perdido» de Milton e que viria a compor o poema «A Colombíada ou a fé
levada ao Novo Mundo», em homenagem a Cristóvão Colombo, largamente elogiado
por Voltaire. Anos mais tarde, Manuel Maria, ao traduzir o 1º canto do poema, referiu,
em nota de roda pé, que tinha «a glória de pertencer» à família ilustre de Bocage.
O apelido Bocage era muito comum em França, mas denotava uma certa
nobreza; não seriam fidalgos de alta linhagem mas, pela sua inteligência e educação,
pertenciam a uma aristocracia do espírito que não precisava de velhos pergaminhos para
se afirmar. Pode dizer-se que toda a família participava de certa distinção intelectual.
Deve desde já dizer-se que há lacunas difíceis ou mesmo impossíveis de
preencher, por falta de documentos, que impedem a reconstrução de alguns passos da
infância e adolescência de Bocage e, até mesmo, os motivos que o levaram, por vezes, a
tomar determinadas decisões. E mais: parece-me de todo estranho que, até há cerca de
dois ou três anos todos os biógrafos de Bocage desconhecessem a passagem do pai do
poeta pela prisão entre 1771 e 1777, situação essa que não terá deixado de criar graves
problemas de ordem moral e económica a D. Mariana Joaquina e a seis filhos, todos
eles, ainda, crianças. Nada se provou contra o bacharel Soares Barbosa, havendo mesmo
um documento que pode levar a pensar tratar-se de uma trama política.
Antes de regressar definitivamente a Setúbal, onde voltou a abrir banca de
advogado, abandonando a magistratura, Soares Barbosa foi Ouvidor em Beja, onde
nasceu Maria Eugénia, que veio a morrer na «flor da idade», e ficou num soneto do
irmão:
«É cativeiro para o justo a vida,
A morte para o justo é recompensa».
Foi, certamente, na sua casa de Setúbal, que o pequeno Manuel Maria recebeu
de seus pais as primeiras noções de leitura e escrita.
O seu primeiro biógrafo, António Maria do Couto, que foi reitor do Liceu
Nacional de Lisboa e seu contemporâneo, embora treze anos mais novo, afirma que o
futuro poeta, «mal tinha cinco anos, começou a estudar as primeiras letras com a mãe
e, aos oito anos, já lia e escrevia com tamanha desenvoltura que arrancava admiração
de todos».
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Couto, que morreu em 1843, baseou-se em informações da família e de amigos
para escrever a sua primeira biografia.
Era natural que, sendo a mãe filha de um francês, os filhos fossem adquirindo
algumas noções da língua de Voltaire, embora a aprendizagem sistemática dessa língua,
de tradição materna naquela família, viesse a ser ministrada, não pela mãe, mas pelo pai,
que sendo português, a conhecia a fundo.
Aos dez anos de idade, a morte da mãe perturbou-o profundamente. Muitos anos
depois lamentaria, ainda, aquela perda:
«Aos dois anos a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado.»
A instrução que Manuel Maria recebeu em Setúbal tinha o acentuado cunho
humanístico, bem próprio da época, e moldou-lhe para toda a vida a mentalidade.
Assim, após a morte da mãe, teria sido encaminhado ao padre espanhol João
Medina, professor régio, para aprender latim, o qual tinha um grande orgulho no seu
aluno afirmando à boca cheia que «nunca encontrara talento mais raro, porque expunha
e se adiantava nas matérias que se seguiam às que na aula se explicavam, com tamanho
desembaraço e penetração que parecia adivinhá-las».
Em 1780, supõe-se que o futuro poeta tivesse concluído os estudos secundários,
então denominados clássicos.
Também o ambiente familiar era propício à poesia, não admirando ter recebido
por hereditariedade o dom atávico da boa métrica, que praticou desde tenra idade. Ele
mesmo, mais tarde, reconhecendo a graça especial que a natureza lhe concedera
prodigamente, exclama orgulhoso, num desses acessos de vaidade que o sacudiam de
quando em quando:
«Versos balbuciei co’ a voz da infância,
Vate nasci, fui vate ainda na quadra
Em que o rosto viril, macio e tenro
Semelha o nimo da virgínia face!»
A sua vocação começou, pois, a manifestar-se muito precocemente, «vate
nasci», diz. Porém, nesse tempo, e tal como hoje, ninguém em Portugal vivia de fazer
versos. Era necessário procurar uma actividade mais prática que lhe viesse a garantir o
sustento. Eram seis filhos, dois rapazes e quatro raparigas. A mais nova, Maria
Francisca, tinha três anos quando a mãe faleceu e ficará para sempre ligada ao poeta,
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por ter sido a enfermeira que o acompanhou até aos últimos momentos, e guardou a
maior parte dos seus manuscritos.
Como Soares Barbosa não dispusesse de meios suficientes para manter dois
filhos na Universidade, à luz da tradição seria o primogénito, Gil Francisco, três anos
mais velho que o irmão, a ter o privilégio de seguir a carreira do pai. Manuel Maria só
poderia aspirar a estudar em Coimbra se o irmão mais velho desistisse, ou seguisse a
carreira eclesiástica como, aliás, havia acontecido com seus tios.
Assim, Bocage tinha de seguir outro rumo. Pouco mais lhe restaria do que a vida
eclesiástica e a carreira das armas. Optou por esta como seria de calcular.
No dia 22 de Setembro de 1781, o jovem poeta, sem dar conhecimento a seu pai
acerca da resolução que tomara, apresentou-se no Regimento de Infantaria de Setúbal,
cujo quartel ficava a poucos passos de sua casa, à beira do Sado.
Tinha dezasseis anos (feitos uma semana antes) e, nesse tempo, não era
necessária a autorização de pais ou de tutor para servir o rei.
Manuel Maria, conforme refere o «Livro do Regimento», existente no Arquivo
Histórico Militar, de Lisboa, era o «soldado nº 84 da 6ª Companhia» … «cabelos
castanhos, olhos pardos e altura de cinco pés e quatro polegadas» (1,67), dados que só
em parte coincidem com o primeiro quarteto de um retrato que fez de si mesmo:
«Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de fachada, o mesmo na figura,
Nariz alto no meio e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo de moças mil) num só momento,
E só no altar amando os frades
Eis Bocage, em que luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.»
Nos anos de 1782 e 1783, Bocage recebeu quatro licenças do Regimento. A
última de 21 de Agosto até 15 de Setembro de 1783, teve a ver com uma situação que
iria deixar marcas profundas em toda a sua vida.
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Quando pediu a referida licença no Regimento e que terminava a 15 de
Setembro, precisamente no dia em que completava dezoito anos, Bocage já traçara
novos planos quanto ao futuro. Havia concluído que aquela vida de soldado, metido
num aquartelamento, não lhe abria horizonte algum.
Também no regresso ao lar durante as licenças, aquela já não era a sua casa em
que a mãe ainda viva a enchia de ternura e calor humano. Provavelmente, a esse tempo,
os irmãos mais velhos já haviam saído de casa. Neste ambiente o poeta devia sentir
muita desolação e tristeza, em contraste com o bulício e a alegria de sete ou oito anos
antes, quando os irmãos brincavam juntos e a mãe a todos acarinhava.
Perante tal situação, não é de estranhar que há muito, na imaginação de Manuel
Maria permanecesse o sonho das grandes viagens, como as de Vasco da Gama e Pedro
Álvares Cabral e das famosas batalhas, como as de Albuquerque no Oriente, daí a
resolução de frequentar o curso na Companhia de Guarda-Marinhas criada,
recentemente, em 1782. Era muito forte na família a tradição do avô vice-almirante,
cujos feitos na batalha naval de Matapan, não teria deixado de impressionar a sua
imaginação em criança. Assim, como marinheiro, satisfaria a um tempo desejos
inspirados nas tradições da família e tendências de temperamento inquieto, «incapaz de
assistir num só terreno».
Aproveitando a licença que lhe havia sido concedida, seguiu para Lisboa e
meteu o requerimento, não tardando a receber autorização de passagem para a Armada
Real pelo despacho de 5 de Setembro de 1783.
Bocage em Lisboa. Guarda – Marinha
Ao fixar-se em Lisboa, para frequentar a Companhia de Guardas – Marinhas, a
poucos dias de completar dezoito anos, Manuel Maria passa a viver num modesto
quarto, umas águas-furtadas, na Rua do Loreto, frente a uma estanqueira possuidora de
enorme nariz, que o poeta logo aproveita para dar largas à sua veia satírica.
Constava o Curso de três anos, pormenorizadamente exposto, com o quadro das
matérias, as disposições disciplinares, de severo rigor, no «Códice do Arquivo da
Marinha nº 372», intitulado «V Livro de Registo das Ordens». Constituem-nos as
cadeiras técnicas do Aparelho (estudo de navio), Manejo (de armas, completado com o
manejo de armas de artilharia), Manobra, Desenho e Arquitectura Naval. Só algum
tempo depois foram incluídas aulas de Aritmética, Geometria e Francês. As aulas eram
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dadas no Arsenal da Marinha, na Casa das Formas ou do Risco, designação que lhe
provinha de ser ali que se encontravam os modelos e se lançavam os planos de
construção naval.
Se foi bom estudante não se pode afirmar peremptoriamente, porquanto são
muito escassas, ou duvidosas, as informações que nos chegaram acerca do
aproveitamento escolar de Manuel Maria du Bocage. Apesar de até aos dezoito anos a
sua mentalidade ter sido moldada nas formas clássicas da Literatura, «quer por
influência paterna, quer por a sua vocação poética se haver desenvolvido na atmosfera
novo – árcade da época», pelo menos em Náutica os conhecimentos do poeta não
seriam poucos, a levar-se em conta o que diz no idílio marítimo «A Nereida»:
(…) Na manobra quem é mais diligente
Que eu? Quem sabe deitar melhor o prumo?
Quem no leme e na agulha é mais ciente?
A carga no porão com regra arrumo,
Sei pôr a capa, sei mandar a via,
Como qualquer piloto, e dar o rumo.
Sei como hei de correr com travessia,
E pela balestilha ou pelo octante.
Achar a latitude ao meio-dia.
Sei qual estrela é fixa e qual errante
A Lebre, o Cisne, a Lira, a Nau conheço,
E Orion, tão fatal ao navegante. (…)
O certo é que, dos três anos vividos na capital, os amigos o tivessem prendido
mais que os professores. Rapaz de dezoito anos, estudante, militar e poeta, na vida de
Lisboa, o curso científico era sacrificado às aventuras amorosas a que se entregava,
como confessa no Soneto «Achando-se avassalado pela formosura de Jónia». Alude à
Física, à Álgebra e Geometria, à Astronomia e Náutica, mas a imaginação fugia-lhe para
a poesia. Os seus primeiros versos, neste primeiro período de Lisboa, estão cheios dos
nomes das damas que galanteava.
Assim, ao seu interesse inicial pelo estudo, uma vez que pretendia seguir uma
carreira de futuro garantido, se foi sobrepondo, pouco a pouco, a sua antiga paixão pela
Literatura em geral e pela Poesia em particular, agora fortalecida pelos novos
conhecimentos e amizades adquiridas em Lisboa.
Naturalmente, os primeiros amigos foram os camaradas da Marinha aos quais o
seu talento não tardaria a revelar-se, manifestando-lhe o aplauso e admiração a que
Bocage era extremamente sensível. A sua incrível facilidade de improvisação causava
verdadeiro espanto entre os seus condiscípulos e à tendência para a sátira não
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escapariam aspectos caricaturais, típicos em instituições daquele género, permitindo-lhe
críticas irónicas e mordazes nos ditos que fluentemente proferia e que, não raras vezes,
provocava reacções dos visados. Sabe-se que a sua vivência quotidiana na Companhia
dos Guardas – Marinhas não foi isenta de conflitos.
A sua fama como poeta depressa se fez sentir para além do âmbito restrito dos
guardas-marinhas, passando a frequentar, e com assiduidade, os locais que lhe
estimulavam o corpo e o espírito, os cafés, os botequins – o seu “habitat”. Os cafés
eram à época os locais de recolha rápida do que se ia passando no Mundo e, ao mesmo
tempo, os centros de divulgação de notícias, boatos, calúnias, segredos de Estado e
particulares. Daqui, dos botequins, partiu a popularidade de Bocage, primeiro em
Lisboa, e depois espalhando-se por todo o país.
Provavelmente, Bocage terá conhecido um grande número de botequins da
capital, acabando por se tornar assíduo daquele, ou daqueles, que eram frequentados por
amigos, ou pessoas que se identificavam com os seus gostos.
O botequim, no século XVIII, estabelecia a transição entre a arcádia poética e o
clube revolucionário. Aplaude ainda as Musas, com o velho ritual das ficções
mitológicas, mas começa a discutir as notícias das gazetas…No cultivo das Musas, a
excitação própria do ambiente espiritual e material, impõe o improviso declamado, aliás
em moda nas assembleias ou partidas, aristocráticas como burguesas. No comentário às
gazetas, a situação política aconselhava, pelo contrário, o cochichar misterioso.
À época da vinda de Bocage para Lisboa, em 1783, dominava não só a
intolerância religiosa como política, e os que se interessavam pelas ciências
experimentais ou liam autores modernos, eram suspeitos de filosofismo ou
cosmopolitismo – era cosmopolita aquele que, mesmo involuntariamente, pensava á
maneira francesa.
O Intendente Geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, tornando-se o
sustentáculo das instituições, criou um sistema de espionagem, a que chamou
“Moscas”, e até à época da Revolução Francesa a sua preocupação era fechar por todos
os meios a entrada aos livros dos Enciclopedistas e aos libelos jesuíticos, apreendendoos nas alfândegas.
Nos botequins e casas de pasto, enxameavam os delatores da Intendência Geral
da Polícia. Com isso, Pina Manique pretendia «separar da sociedade os indivíduos que a
infestavam». Esses espiões examinavam frequentemente, em todas as ocasiões de
ajuntamento, no entanto, a maior parte das vezes, os “Moscas” – como o próprio
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Intendente os chamava, sem sentido pejorativo – iam mesmo para as casas de bebidas
ouvir as conversas alheias. Bocage devia estar debaixo de olho, embora só depois do
seu regresso do Oriente caísse nas malhas da Intendência.
Não há dúvida de que foi nos botequins do Rossio, o Nicola e o Parra, que
Bocage encontrou nas tertúlias literárias da época, o clima mais favorável à expressão
da sua sensibilidade poética e ao seu espírito de boémio.
Outros terá frequentado, como o Café da Neve, onde está hoje o Martinho da
Arcada, o Casaca, junto à sacristia da igreja de S. Julião, e o Neutral, na Rua do
Príncipe, actual Rua 1º de Dezembro, havendo em quase todos jogos de bilhar dados e
cartas. Porém, foi no botequim do Parra, de José Pedro da Silva, que o poeta se reunia,
no Agulheiro dos Sábios, uma divisão privada, com outros amigos versejadores e mais
ou menos boémios como ele.
Por esta época estavam em voga as modinhas brasileiras, pequenas composições
em versos de redondilha menor, que se cantavam à viola em reuniões de família ou de
boémios. Tratava-se de um género, muitas vezes licencioso, entremeado por redondilhas
fáceis e alegóricas. Raros eram os poetas que não contribuíam para verbalizarem essas
modinhas.
Entusiasmado com a moda, lisonjeado com os aplausos que desde muito cedo o
desnortearam, Bocage malbarataria o seu talento poético com composições fáceis que só
tinham como objectivo torná-lo popular no acanhado meio lisboeta do seu tempo, e que
de melhor grado lhe festejaria os improvisos da maledicência ou da obscenidade do que
as nobres criações dos momentos mais graves.
Segundo refere Teófilo Braga, Bocage, mais tarde, tomou ódio a esta forma
poética, renovada pelo entusiasmo da «Marília de Dirceu», (1792) e «preferiu o mote
dado sobre que improvisava as glosas faíscantes».
Outro género muito admirado nas tertúlias dos botequins era a poesia empregada
na bajulação dos poderosos, não havendo poeta digno do ofício que não exercitasse esse
tipo de arte encomiástica, independentemente das suas convicções políticas ou
religiosas. Quase ninguém a tomava como indigna, embora muitos fizessem dessa arte
um processo para viver à sombra das casas fidalgas ou conseguir despachos oficiais.
Não se sentia a indignidade desta posição, que Bocage tomava como uma forma
sedutora da popularidade. Ele próprio dizia nos seus versos:
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«Foram com violência
Escritos pela mão do fingimento,
Cantados pela voz da dependência.»
A precocidade, de que alardeava, mostra que o raro dom de versejar começou a
fazer que o cercassem de admirações muito cedo, despertando-lhe antes do tempo um
exagerado sentimento de personalidade. Os elogios enfatuaram-no, colocando-o na
dependência de quem o lisonjeasse e tornando-o de uma sensibilidade extrema diante da
crítica. A improvisação que foi a base das admirações e as sátiras que vibrava,
implacavelmente, provinham da necessidade de aplauso, mesmo banal, e dos
ressentimentos de uma vaidade ferida.
O brilho fácil que essas composições produziam nos ambientes sociais atraíram
Bocage para uma vida desregrada levando-o, inclusivamente, a abandonar os estudos.
Recorrendo aos livros de registo, «Códice da Marinha nº 372» e ao «I Livro
Mestre da Corporação da Armada», o que consta sobre a escolaridade de Bocage para
além das faltas por doença, que não o impediam de auferir o soldo trimestral de 18.000
réis, é que em 6 de Junho de 1784, menos de um ano após a matrícula, recebeu baixa de
deserção por ordem do capitão-general da Armada Real, o Marquês de Angeja.
A sua saída poderá ter sido voluntária, pois à deserção não consta que fosse
aplicada qualquer pena disciplinar. O curso, se bem se destinasse à nossa Marinha de
Guerra, devia manter, em certa medida, o carácter de «voluntariado exercitante», que
era o título dos guardas-marinhas que o precederam.
Desconhece-se a razão da sua baixa como desertor. Terá cumprido até que, não
se sabe por que impulso, desertou. O que é sabido, e está bem documentado, é que, em
1786, Bocage obteve a nomeação de guarda-marinha que não tinha alcançado por
direito de escolaridade regularmente cumprida:
«Hei por bem fazer mercê a Manuel Maria Barbosa Hedois du Bocage de o
nomear guarda-marinha da Armada do Estado da Índia. O Conselho Ultramarino o
tenha assim entendido, e lhe mande passar os despachos necessários».
Samora Correia, 31 de Janeiro de 1786.
(Com a rubrica de Sua Majestade)
A 9 de Março, pouco mais de um mês do acto da sua nomeação, o guardamarinha Bocage assinou um documento em que declarava ter recebido 84 mil réis para
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embarcar com destino à Índia, ou seja, «24 mil réis de quatro meses de soldo singelo
por ajuda de custo e 60 mil réis de cinco meses de soldo dobrado adiantados».
A explicação mais plausível é o facto de que o Reino dispunha de poucos braços
para a tarefa de colonização do ultramar, especialmente para os Estados da Índia. Não é
de rejeitar que, seu pai, sabendo da vida desorientada do poeta, se tivesse empenhado
em retirar o filho do meio dissolvente de Lisboa, utilizando as suas influências,
nomeadamente junto de um amigo, familiar do Capitão de Mar e Guerra, Pedro de
Mariz de Sousa Sarmento, no sentido deste oficial superior interferir a favor de Manuel
Maria.
Parece não haver dúvida de que Bocage se sentiu atraído e ter-se-á decidido a
partir para tão longínquas paragens.
Em Março de 1785, a “Gazeta de Lisboa” publicou oito páginas sobre os
sucessos na Índia, provavelmente como parte de uma estratégia política do Governo que
visava estimular a juventude a embarcar para a aventura nas colónias do Oriente.
Talvez cansado de uma vida desregrada, Bocage ansiaria por sair do ambiente
asfixiante que o cercava. Praticamente tinha acabado de fazer vinte anos. Em Lisboa
vive-se o medo da propagação das doutrinas filosóficas, trazendo profundamente
empenhado o Tribunal da Inquisição, a Polícia da Corte e o feroz Intendente Pina
Manique. Para escapar à perseguição, já anteriormente havia emigrado, em 1778, para
França o padre Francisco Manuel do Nascimento (Filinto Elísio). Era uma época de
incertezas e dúvidas. Tudo e todos se tornavam suspeitos.
Para Bocage, continuar em Lisboa, não seria uma atitude prudente, numa época
em que os agentes de Pina Manique viviam disfarçados por tudo quanto era ajuntamento
público, além de que os “Moscas” já lhe conheceriam bem a “crónica”
Talvez, também, tenha imaginado repetir os passos de Camões, com que a sua
veia poética o fazia procurar analogias, percebendo que não poderia permanecer em
Lisboa, sem conhecer a vida militar no ultramar. Dado o seu temperamento entusiástico
e ardoroso, o que ele desejaria seria, talvez, ganhar fama e visitar o teatro dos nossos
maiores, resolvendo-se a afrontar os perigos e toda a espécie de contrariedades.Antes de
partir, mas já no convés do navio, improvisa os seguintes versos:
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«Antiga pátria minha e lar paterno!
Penates a quem rendo culto interno!
Lacrimosos parentes,
Qu´inda na ausência me estareis presentes!
Adeus! Um vivo ardor de nome e fama!
A nova região me atrai, e me chama!
………………………………………
Os mares vou talhar, cujos furores
Descreve o grão Camões, por que de amores
Inda as Musas suspiram,
Aqueles mares onde os Gamas viram
Do rebelde, horrendíssimo gigante
Os negros lábios, o feroz semblante.
Quer a sorte, propícia a meu desejo.
Manda-me a honra, cujas aras beijo,
Que com férvido brio
Contemple os muros da invencível Diu,
De onde, ó Silveiras, Mascarenhas, Castros,
Foi soar vossa fama além dos astros.
Nos climas, onde, mais do que na história,
Vive dos Albuquerques a memória,
Nos climas onde a guerra
Heróis eternizou da lísia terra,
Vou ver se acaso o meu destino agrada
Dar-me vida feliz ou morte honrada».
A Aventura do Oriente.
A partida de Bocage para a Índia, com escalas no Rio de Janeiro e na ilha de
Moçambique efectuou-se em 14 de Abril, Sexta-feira da Paixão, na nau de viagem
“Nossa Senhora da Vida, Santo António e Magdalena”. A data da publicação do seu
despacho em 1 de Abril distanciou-se alguns dias do seu embarque, que foi adiado por
causa dos temporais.
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Como estava previsto a nau fundeou no Rio de Janeiro para, entre outras
missões, aqui embarcar Francisco da Cunha Meneses que terminara as suas funções de
Governador e Capitão - General de S. Paulo, nomeado agora Governador da Índia e,
ainda, o Desembargador Sebastião José Ferreira Barroco, Ouvidor da capitania e
nomeado para o mesmo cargo em Goa.
Desembarcado no Rio de Janeiro, Bocage foi alvo das maiores atenções. Embora
não tivesse ainda reunido em volume as «Rimas», a sua fama havia já transposto o
Atlântico.
Era à época Governador do Brasil o ilustrado Luís de Vasconcelos e Sousa
Veiga Caminha e Faro (da casa dos marqueses de Castelo Melhor) que, além do seu
zelo como colonizador, dispensava grande atenção às Letras e às Ciências.
Bocage foi recebido com um trato de afabilidade que o elevava e uma
consideração a que não estava habituado. A simpatia do Governador facilitou a entrada
do poeta na sociedade local, coisa que em Lisboa ele talvez nunca tivesse desfrutado
senão muito vagamente. O seu talento poético e a sua cultura clássica permitiram-lhe
brilhar e… não lhe terão faltado novos amores desejando seduzi-lo.
Durante as poucas semanas que passou no Brasil, o trato de Luís Vasconcelos e
Sousa é tão cativante que Bocage lhe retribui em versos as gentilezas recebidas,
elogiando-o e, expondo claramente, se pudesse, o desejo de fixar-se no Rio de Janeiro:
…………………………………….
«Viver debaixo do teu jugo brando,
Sentir as leis do teu poder suave,
Teus méritos alçando
Ao palácio de Jove, em metro grave;
Oh, que risonha, que benigna estrela
Se o pensar é prazer, que fora tê-la?»
O agradecimento não pode deixar de ser sincero, mas o desejo de se fixar no Rio
de Janeiro não pode levar-se em conta como dado biográfico, porquanto os seus
objectivos estariam já bem definidos apontando decididamente para o Oriente.
Encorajava-o a vida activa que a sua imaginação já fantasiava para quando chegasse à
Índia. Ainda lhe povoariam a mente os feitos de Quinhentos, e era através deles que
visionava o Oriente.
De qualquer modo, se Bocage tivesse ficado no Rio de Janeiro a sua vida,
certamente, teria sido desgraçada, pois não deixaria de se envolver na Conjuração
suscitada pela Revolução Americana de 1777 ou, pelo menos, o seu espírito satírico não
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deixaria de manifestar-se contra os velhos usos conservadores na colónia, provocando
ódios como lhe viria a acontecer em Goa.
A nau deixando o Rio, provavelmente, em meados de Julho, tocou a ilha de
Moçambique, capital das possessões portuguesas na costa oriental da África, em 2 de
Setembro, demorando-se apenas três dias, o tempo necessário para carga e descarga e
deixar alguns oficiais e soldados, além de sessenta e quatro degredados.
No fim dos trabalhos de uma penosa navegação, Bocage desembarca,
finalmente, em Goa a 29 de Outubro de 1786.
O espectáculo que se lhe deparou era de molde a impressionar fortemente o seu
espírito de visionário e sonhador. Em vez dos guerreiros que imaginou encontrou
apenas mercadores, em vez da glória, ódios e misérias, cobiças e orgulhos. A Índia não
correspondia aos sonhos do poeta. Esperava-o ali uma grande decepção. Por outro lado,
a nostalgia começou de asfixiar a sua alma romântica – a Pátria, os amigos!
O seu carácter exaltado e impaciente, o seu temperamento volúvel e inadaptável,
a sua sensibilidade facilmente irritável, a sua saúde debilitada por um mau clima, e não
só, avivavam-lhe o espírito satírico; tudo isso o leva a «despejar sobre os habitantes de
Goa uma chuva de setas, uma torrente de versos mordazes que o tornaram odiado por
quase todos». O talento poético de Bocage, em que predominava a sátira, devia
complicar-lhe a vida naquele meio de uma petulante ignorância.
O génio expansivo de Bocage, habituado a vibrar «em companhia», em resposta
a aplausos ou apupos vindos da sociedade em que estava integrado que, principalmente,
sente e exprime, é a infinita tristeza da solidão, o seu desprezo, que não é sem amargura,
de um mundo a que é alheio ou não compreende, e onde é impossível «procurar
amizade em vis gafanos.»
«Ninguém me atende (oh, triste fado!)». É o grito de alma de quem supunha ir
encontrar à semelhança de Camões, admiradores e cavaleiros poetas, como os que
rodearam o autor de «Os Lusíadas».
O não sentir-se admirado devia ser o que mais profundamente o magoava. Não
entenderem, nem sentirem os seus versos foi o que logo de início lhe criou um
ressentimento profundo. Então, alvejava, por vezes com alguma crueldade as pessoas e
os costumes que o cercavam.
Uma das fraquezas dos indianos dessa época, era a da ostentação de uma riqueza
quase sempre hipotética e de uma nobre linhagem muito antiga, e em certos casos
apenas existente na imaginação de quem a apregoava. Além disso, para o goês, não
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havia no Mundo cidade mais bela e opulenta do que a de Goa. Pondo a ridículo esta
imagem, chegou a escrever:
«Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, Paris, ou que Lisboa».
Acrescenta, ainda, que embora cheia de honras, os fidalgos de Goa estão de
bolsa vazia e que nela reinaria a felicidade se um feiticeiro cambiasse as senhorias por
pardaus.
Bocage, durante os vinte e oito meses que se conservou em Goa, para além do
Governador, apenas encontrou um amigo no Desembargador da Relação, Dr. Sebastião
José Ferreira Barroco, sendo provável que o gosto pelas musas os atraíssem. O
Desembargador, antes de ser nomeado para o Brasil, cultivara a poesia e usara o nome
arcádico de Albano e era tido em alto apreço por Filinto Elísio.Traduziu as
«Metamorfoses» de Ovídio, foi autor de um poema épico sobre Afonso de Albuquerque
e obteve grande êxito nas tertúlias literárias que D. Leonor de Almeida, 4ª Marquesa de
Alorna, “Alcipe”, promoveu durante a época em que estivera detida no Convento de
Chelas de 1759 a 1777, isto é, durante a maior parte do consulado pombalino.
Afinidades intelectuais e a mesma repugnância pelo mesquinho ambiente goês
criaram, entre os dois poetas, fortes laços de amizade. Entretinham-se ambos a dizer mal
de Goa para desabafarem, embora o Dr. Barroco, devido aos antecedentes e à posição
que ocupava, não se expusesse a fim de evitar dissabores.
Em contrapartida, Bocage levava o seu ressentimento até ao exagero,
proclamando que era mais fácil assistir às coisas mais fantásticas do mundo do que ver
alguém conseguir a amizade dos naturais de Goa:
«Quer ver uma perdiz chocar um rato,
Quer ensinar a um burro anatomia.
Exterminar de Goa a senhoria,
Ouvir miar um cão, ladrar um gato:
Quer ir pescar um tubarão no mato,
Namorar nos serralhos da Turquia,
Escaldar uma perna em água fria,
Ver uma cobra castiçar co´um pato:
Quer ir num dia de Surrate a Roma,
Lograr saúde sem comer dois anos,
Salvar-se por milagre de Mafoma:
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Quer despir a basófia aos castelhanos,
Das penas infernais fazer a soma,
Quem procura amizade em vis gafanos».
Pouco depois de chegar a Goa, Bocage foi autorizado a frequentar a Aula Real
da Marinha que funcionava em Pangim.O ano lectivo começava em Janeiro e os exames
realizavam-se em Outubro e Novembro, constando no registo que, embora tivesse
frequentado as aulas, não fez exame por «causa legítima».
Sabe-se, pelos seus próprios versos, epístola de «Elmano a Josino», que o poeta
esteve gravemente doente, referindo a «letal doença», que o teria feito perder o ano.
O seu primeiro biógrafo, A. Couto, atribui à vida passada nas viagens «um tão
excessivo e demasiado uso do tabaco de fumo e das bebidas espirituosas – não podendo
despojar-se d´este inveterado costume…» O excesso do tabaco determinou-lhe as
perturbações cardíacas, e a frequência das bebidas alcoólicas a esclerose, que o vitimou
na força da idade.
Por este tempo, foi descoberta a “Conjuração dos Pintos” fomentada pelos
indígenas com o apoio de muitos clérigos indianos, visando expulsar os brancos
daqueles domínios.
Embora grave, a “Conjuração” não podia tomar as proporções que os juízes lhe
atribuíram, tanto mais que os revoltosos não dispunham de forças bastantes para
subjugar a guarnição de Goa, que era constituída por 7140 praças bem armadas.
Completamente restabelecido da grave doença, Bocage voltou a matricular-se
em 1788 na Aula Real da Marinha, como se verifica no «Livro de Assentos das
Entradas dos Discípulos» mas, desta vez, nem sequer a frequentou e, também, «por
causa legítima». No mapa dos oficiais referente ao início daquele ano, o guardamarinha Bocage é definido pelo seu comandante, Vasco Luís Carneiro de Sousa e Faro,
como um oficial que «tem viveza e bom procedimento».
Bocage tinha entrado em combate, segundo a descrição que faz no idílio «A
Nereida»:
«Topámos há três dias o inimigo
Na altura de Chaúl; travámos guerra.
Sentiu do português o esforço antigo».
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É possível que esta diligência militar impedisse o poeta de continuar a frequentar
o curso da Aula Real da Marinha. Porém, dessa batalha, se acaso não se tratou de uma
simples escaramuça, não há noticia mais circunstanciada e a própria “Gazeta de
Lisboa” não faz referência que, ao tempo, algum navio português tivesse entrado em
combate; talvez «tenha sido mais um arroubo de retórica, quem sabe para aproximar o
seu fado do de Camões ou apenas para chamar a atenção para a vida de aventuras que
tivera no Oriente». O que se sabe é que, a 25 de Fevereiro de 1789, Bocage foi nomeado
«em atenção de seus merecimentos e serviços», tenente da 5ª Companhia da Guarnição
de Damão.
Despachado tenente do Regimento da Praça de Damão, embarcou na fragata
“Santa Ana” chegando ao seu destino a 6 de Abril. Tomando posse do seu novo cargo,
mais uma vez se sentiu desiludido, aspirando apenas a ver-se dali para fora quanto
antes.
Havia no regimento um alferes de nome José Dionísio que, crivado de dívidas
contraídas ao jogo e perseguido pelos credores, decidira que a melhor decisão seria a de
desertar.
Relacionando-se com Bocage e apercebendo-se do seu angustiado estado de
alma, logo congeminou que poderia contar com um companheiro para a fuga que
projectava. De tal maneira defendeu o seu plano, pintando-o com tão belas cores, que
Bocage concordou em lançar-se na tresloucada aventura.
Dois dias depois de ali ter chegado, a 8 de Abril, Bocage acompanhou o alferes
Dionísio na fuga.
O governador subalterno, António Leite de Sousa, ao tomar conhecimento do
caso, oficiou a Cunha Meneses comunicando que Bocage «se ausentou pela porta do
campo», acompanhado pelo alferes Manuel José Dionísio. Ao comunicar a situação ao
governador de Goa, Leite de Sousa dizia não saber o motivo que teria levado o tenente a
tomar aquela atitude drástica, admitindo que, quanto a Dionísio, talvez o tivesse feito
porque havia acumulado muitas dívidas por causa do vício no jogo.
O governador de Damão disse ainda que lamentava bastante a atitude de Bocage,
pois estava «sem oficiais para o serviço, muitos vagos no regimento e dois
absolutamente incapazes para todo o serviço».
A partir desta data, como seria natural, desaparecem as anotações oficiais sobre
a vida de Bocage no Oriente.
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A fuga fez-se, provavelmente, por Surrate, segundo parece deduzir-se dos versos
feitos a D. Ana Jacques Monteigui, formosa dama abandonada pelo marido, o alferes
Jacques Filipe de Monteigui, «pela impossibilidade de lhe fazer conter, na estreita dieta
da fidelidade conjugal, as voracidades sensuais de temperamento, as quais, depois de
serem o prazer do governador, D. Frederico Guilherme de Sousa, o distribuíram por
quantos adoradores bem lho souberam requerer». O Prof. Hernâni Cidade não duvida
que Bocage entrou no número… mas nada está provado. O que há são cinco sonetos em
que Bocage se desmancha em mesuras e elogios «à bela Manteigui», como se quisesse
chamar a atenção para o seu amor. Para ele, o «rosto gentil» de D. Ana «valia mais que
todo o mundo». Pelos versos, alguns biógrafos concluíram que Bocage se apaixonara
sem que fosse correspondido e, que ao ver-se desprezado, teria escrito um obsceno
poema porque a dama se recusara a corresponder-lhe aos desejos.
Concretamente, nem se sabe sequer se, algum dia, o poeta teve a oportunidade
de lhe dirigir a palavra. Ou se escreveu a peça erótica e satírica «apenas com base nas
maledicências que ouvia da populaça».
Efectivamente, a vida de Bocage encerra situações misteriosas que, em sentido
rigoroso, continuarão por explicar.
À falta de documentos, os biógrafos recorreram aos versos para fixar o possível
périplo de Bocage, depois de ter desertado de Damão. A este propósito, também é
estranho que não tenha sido encontrado nenhum documento que faça referência à
punição que o tenente Bocage teria de sofrer por ter abandonado o seu regimento.
Não se sabe ao certo quando chegou a Macau, nem quanto tempo lá esteve.
Sabe-se, contudo, que a sua estadia naquela cidade coincidiu com o governo do
Desembargador Lázaro da Silva Ferreira (16-7-1789 – 29-7-1790).
Em Macau é acolhido pelo rico comerciante Joaquim Pereira de Almeida, que o
apresenta ao Governador, e o relaciona com as melhores famílias. É o Governador que
lhe facilita o regresso à Pátria, onde terá chegado em Agosto de 1790, esquecido do
muito que tinha sofrido e já podendo exclamar com orgulho:
«Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co´o sacrílego gigante;
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Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo
Também carpindo estou, saudoso amante.
Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.
Modelo meu tu és… Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza».
Regresso a Lisboa.
Efectivamente, parece não haver qualquer dúvida de que em Agosto de 1790 o
poeta já se encontrava em Lisboa, o que é confirmado pela referência a um dramático
acontecimento: em 4 de Setembro desse ano ocorreu um desastre marítimo que vitimou
D. José Tomás de Meneses, filho do Marquês de Marialva, famoso pelos seus dotes na
arte equestre, mecenas de artistas de teatro e poetas, e a quem Bocage consagrou uma
elegia.
De regresso a Lisboa, logo que desembarca em Belém, um dos amigos que
reencontrou foi José Agostinho de Macedo, mas com quem não tardaria a entrar em
divergência.
José Agostinho de Macedo, filho de gente humilde, terá fugido de casa dos pais,
aos sete anos. Recolhido em Lisboa por um familiar, ingressou nos Oratorianos,
preparando-se para a carreira eclesiástica, única que lhe poderia dar alguma
notoriedade. Em 1778, professou na Ordem dos Eremitas de St.º Agostinho, tomando o
nome de Frei José de Santo Agostinho. Quatro anos depois, em Braga, é acusado de
apostasia e de ter roubado livros da livraria de N.ª S.ª do Pópulo. Foi preso, fugiu e
acabou indultado. Transferido para Évora, voltou a ser acusado de renegar a fé cristã,
ficando detido no Convento da Graça. Aí escreveu o seu primeiro poema, um panegírico
ao bispo de Beja. Remetido para Coimbra, conheceu o poeta brasileiro Frei José de
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Santa Rita Durão, autor do poema «Caramuru», que terá encorajado a sua musa. Por
fim, foi reenviado para o Convento da Graça, em Lisboa.
Na capital, manteve uma vida desbragada, vivendo com uma concubina e
frequentando os botequins da má fama. Homem «relaxado» e de «mau procedimento»,
em1789 voltou a ser preso, reconhecendo Pina Manique que o seu temperamento era
«pouco próprio para prelado». Apesar do seu comportamento indecoroso, Macedo era
reconhecido como excepcional orador, sendo famosos os sermões que improvisava no
púlpito. Contudo, acabou por ser expulso da ordem, em 1792. Recorreu então ao Papa,
que ordenou a sua passagem a presbítero secular. Nessa condição, 1793, foi nomeado
pregador oficial da corte, na mesma altura em que se desentendeu com Bocage, na
sequência da «guerra dos vates». Reconciliaram-se em 1805, mas, pouco depois da
morte do poeta sadino, voltou a insurgir-se contra as homenagens à memória do rival,
que não suportava ver recordada.
De volta a Lisboa, Bocage, sem trabalho nem alojamento fixos, retoma a boémia
de quatro anos atrás, passando a acompanhar Macedo nas suas aventuras por casas de
pasto, bilhares, lojas de bebidas, locais de prostituição, ruas e pelo Passeio Público. Na
definição de Pina Manique, Agostinho de Macedo seria um daqueles religiosos que
frequentavam teatros e locais públicos e se apresentavam «com a maior desenvoltura
nas plateias, a passear nas salas de entrada, observando pessoas de diferentes sexos ou
que à saída esperem que cheguem as suas carruagens».
Do Neutral, em Belém, ao café do Grego, no Cais do Sodré, ou ao Marcos
Filipe, na Praça do Pelourinho, continuando, no Terreiro do Paço, pela Casa da Neve,
todos os cafés e botequins de Lisboa, são verdadeiras tribunas populares. Por esse
animado mundo nocturno deambulava Manuel Maria, ao acaso ou de acordo com o
paradeiro dos conhecidos e amigos «que lhe podem pagar a conta, a troco de ébria
discussão filosófica ou disputa poética».
Porém, é na zona do Rossio o Nicola, nomeadamente, o Botequim das Parras do
José Pedro da Silva, admirador e amigo do poeta, que este frequenta com assiduidade. O
Parras atrai farta clientela e tantos poetas, que o seu proprietário, como referi, acaba por
lhes destinar um gabinete, pomposamente designado Agulheiro dos Sábios, onde a
privacidade permite que se recitem poemas enviados de França por Filinto Elísio, no
meio das mais acaloradas conversas. Muito por via da presença de Bocage, «aí se junta
assíduo e lucrativo grupo de livres-pensadores e outros heréticos inimigos da paz
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absolutista, como o sadino Tomás dos Santos e Silva, André da Ponte de Quental,
Francisco de Paula Cardoso de Almeida, morgado de Assentis, e todos os Bersannes
Leite, Câmaras Coutinho, Medinas e Vasconcelos, Nolascos da Cunha, Patos Moniz,
Azevedos, Botelhos, Bingres, Constâncios, Maias e Nóbregas do numeroso grupo a que,
mais tarde, Bocage se referiria como sendo o seu claro auditório».
A Nova Arcádia.
Precisamente em 1790, pouco tempo antes da chegada de Bocage a Lisboa, era
fundada a Academia de Belas Letras, também chamada Nova Arcádia, em substituição
da Academia de Humanidades de Lisboa, que por sua vez, era originária da Arcádia
formada em 1756 por António Diniz da Cruz e Silva, Manuel Nicolau Esteves Negrão,
Domingos dos Reis Quita e Correia Garção.
Parece ter partido de Macedo o empenho de levar Bocage para a Nova Arcádia,
onde foi admitido com o nome pastoril de «Elmano Sadino» – anagrama do seu
primeiro nome e de uma referência ao rio Sado, junto do qual nascera.
A imposição de um nome arcádico era uma tradição que vinha da Arcádia de
Roma, estabelecida em 1690 por alguns poetas célebres, entre os quais Crescimbeni, seu
fundador. Além de levar o nome de Arcádia, a instituição dava a denominação de
“Monte Ménalo”ao local das suas conferências.
Da nova academia fizeram parte desde o início o Padre Domingos Caldas
Barbosa, o líder, Joaquim Severino Ferraz de Campos, Belchior Curvo Semedo e onde
aliás, militaram também Francisco Joaquim Bingre, além de outros frequentadores do
Agulheiro dos Sábios com quem Bocage simpatizava.
Naturalmente, regressara a Lisboa na disposição de marcar um lugar de relevo
entre os maiores poetas da sua época, pretendendo dar nas vistas, reconquistar a
popularidade que principiara a formar-se em sua volta, quando, ainda como estudante da
Academia de Guardas – Marinhas, os seus versos já aliciavam admiradores na pequena
roda de clientes dos botequins que frequentava,
Inicialmente, a Nova Arcádia reunia na casa dos Condes de Vimioso. Refira-se
que a Condessa, D. Teresa de Melo Breyner, era muito interessada pelas Letras e já fora
premiada, em 1788, pela Academia Real das Ciências, quando da apresentação em
concurso anónimo da tragédia «Osmia». Depois, as sessões passaram para o palácio do
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Conde de Pombeiro, José Luís de Vasconcelos e Sousa, onde hoje está instalada a
Embaixada de Itália. As sessões decorriam às quartas-feiras e eram presididas por
“Lereno”, o padre Domingos Caldas Barbosa, mulato e exímio compositor de lunduns
e modinhas brasileiras, que acompanhava à viola. Em sua honra, são chamadas de
«quartas-feiras de Lereno», embora sejam, dizem, menos concorridas pelos versos
nelas recitados do que pelo chá, torradas e licores, correndo tudo por conta do «fofo
conde» a quem os poetas, uma ou outra vez, aplaudiam as declamações de versos de pé
quebrado e outras composições nitidamente plagiadas.
Parece que de início Bocage se sentia honrado em pertencer à Nova Arcádia,
porquanto nessa fase escreveu e recitou nas reuniões dois cantos e uma cantata de
louvor à Conceição da Virgem, que era a protectora da instituição.
Embora mais tarde tivesse entrado em conflito com os seus confrades, a carreira
de Bocage como poeta tomou impulso depois da sua admissão à Nova Arcádia.
Em Maio de 1791,publicou «Idílio Marítimo recitado na Academia de Belas
Letras». De 1791, é também a écloga «Queixumes do pastor Elmano contra a
falsidade da pastora Urselina». Em 19 de Novembro do referido ano, a “Gazeta de
Lisboa” noticiava a publicação do primeiro volume de «Rimas». O volume saiu com
uma colecção de 108 sonetos, sete odes, quatro canções, duas epístolas e cinco idílios,
encontrando boa recepção entre as pessoas cultas. Três anos depois, em 1794, sairia a 2ª
edição por si revista e expurgada de alguns textos.
Embora continuando a frequentar as «quartas-feiras de Lereno», intervém nelas
«com cada vez maior afectação, perturbando a melindrosa assistência, que se agasta
diante do tom arrogante e da atitude de superioridade com que fustiga convenções e
formalismos». A pouco e pouco começa a saturar-se da rotina da Academia, preferindo
a alegria da tertúlia ao ambiente tenso das sessões.
Além das sessões oficiais, a Academia promovia encontros literários e musicais
sempre que um acontecimento considerado importante o exigisse.
O próprio Pina Manique dava assistência oficial à Nova Arcádia, satisfeito por
ver os vates «inocentemente distraídos com tão bonitas ninharias, em vez de se
encafuarem nos botequins a discutir os acontecimentos da França», convidando até,
oficialmente, a Arcádia a celebrar em sessão no Paço da Ajuda, o nascimento de D.
Maria Teresa, Princesa da Beira, filha do Príncipe D. João e D. Carlota Joaquina.
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Muito provavelmente, a rivalidade entre Bocage e José Agostinho de Macedo
começou a emergir a partir deste acontecimento. Vejamos o que nos diz Joaquim
Bingre, membro da Nova Arcádia e companheiro do poeta no Agulheiro dos Sábios:
«(…) foram todos os nossos sócios em seges da Casa Real; e indo eu em uma com o
Padre José Agostinho de Macedo, me perguntou Bocage – que obra levava ele. E
dizendo-lhe eu que nenhuma, pois, como ele devia fazer a oração de fecho em prosa,
desejava improvisá-la (…) respondeu-me o Bocage: - Como ele quer improvisar em
prosa, hei-de eu improvisar em verso, pois não trago nada escrito. E assim o fez, em
verso heróico, com tanto entusiasmo, que se ergueu do mocho em que estava assentado
e se virou para a porta onde estava o Príncipe entre cortinas, como encoberto, e fez um
genetlíaco (relativo ao nascimento) de repente, que assombrou toda a cortesã
assembleia (…)».
Também Agostinho de Macedo improvisou brilhante oração, arrancando tão
fortes aplausos que, desde logo, foi indigitado pregador do Paço.
Nem um nem outro ficaram agradados com o sucesso mútuo, ambos orgulhosos
preferiam que a admiração apenas a si cobrisse de êxito, acentuando-se a rivalidade
entre os dois e alargando-se à restante Academia, onde só Joaquim Bingre manteve uma
posição de neutralidade.
Macedo acusa Bocage de «sultão do Parnaso», e de querer impor aos demais as
suas concepções poéticas, o seu modo de ver o mundo e conceber a arte. O poeta trata-o
de «ex-frade» e «padre lagosta», em clara alusão ao seu rosto sanguíneo.
Não se sabe quem lançou a primeira pedra mas, em breve, toda a Academia se
agitava «como capoeira em que entrasse raposa», por via de um soneto atribuído a
Bocage:
«Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora insana;
Traz sujo moço amostras de chanfana;
Em copos desiguais se esgota a pinga.
Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga
Masca farinha a turba americana;
E o orangotango a corda à banza abana,
Com gestos e visagens de mandinga.
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Um bando de comparsas logo acode,
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa, berrando, o rouco bode.
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode
Eis aqui de Lereno as quartas-feiras».
A sátira explodiu como uma bomba. Bocage, presumível autor, é
apaixonadamente invectivado por uns, como apaixonadamente exaltado por outros.
Além de Caldas, Bocage atacou em sátiras Curvo Semedo, o abade de Almoster,
Luís Correia da França e Amaral, Tomás José Quintanilha e o Doutor Manuel Bernardo
de Sousa Melo. O mais atingido, porém, fora o padre Caldas que, como presidente da
instituição, decidiu responder-lhe com uma modinha para ser cantada à viola:
«De todos sempre diz mal
O ímpio Manuel Maria:
E se de Deus o não disse
Foi porque o não conhecia».
Bocage ofendera Caldas com epítetos como «neto da rainha Ginga» e
«orangotango», que reflectiam o preconceito racial da sua época. A rainha era Njinga,
de Matumba, que reinou em Angola no século XVII, mas ainda venerada pelos escravos
do Brasil no século XIX.
O poeta é expulso da Arcádia quando já não a frequentava, exacerbando ainda
mais a «guerra dos vates» o que levaria, mais tarde, ao fecho definitivo da instituição.
«Devoto incensador de mil deidades / (Digo de moças mil) num só
momento».
Muito se tem escrito e divagado sobre os amores de Manuel Maria, estribando-se
no confessionalismo que caracteriza numerosos poemas e nas insistentes referências que
na sua obra parecem apontar para a experiência empírica, para a vida do homem.
Vitorino Nemésio enumera do seguinte modo as mulheres cantadas pelo poeta:
«Tirseia, Tirsália cuja morte o fez pedir um pouco de paz às margens do Regaça, em
Óbidos; Anarda, Armânia, Filena, Armia, mortas em flor; Anália tuberculosa; Marfida
no caixão, e ele escondendo o rosto na praia da moda, em Pedrouços; Alcina, Corina,
Arselina e Urselina, Ulfina e Elfina; Felisa, roubada por um Luís, lá para Santarém; a
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Isabela de uma ode anacreôntica; Crinaura, testa de ouro; «Ritália bela», Nise
«ingrata», Lídia cruel. Ulânia desdenhosa; Flérida de «verdes olhos» e «trança cor de
sol, (como Eugénio de Castro: Judite, Dulce, Lavínia…)». Já agora, por minha conta e
risco, acrescento, ainda, Ismene, Inália, a loira Fílis, Isbela que o “matou”, Marília
“inocência e formosura”, Jónia por quem estava “louco, cego, mísero e perdido”,
Elmira, a “flor de Vénus, a melhor das flores”. Como Camões, teve também a sua
Natércia que, menos sensível em relação à outra, se esquivou a todos os seus galanteios.
Torturado pela sua paixão, ouviu a voz do Tempo a segredar-lhe:
«Sofre por ora o jugo de Cupido;
Que eu farei, quando menos o cuidares,
Que te escape Natércia do sentido:»
Não tardou muito o anunciado esquecimento, visto que, pouco depois, rendia
culto a outra dama tão formosa como esquiva: era a “tal”Flérida, de «verdes olhos» e
«trança cor de sol.»
Tudo amores reais? Nem pouco mais ou menos! Não faria sentido se se pensasse
ter Bocage amado a sério todas estas mulheres que … são mais de trinta! Muitos destes
criptónimos encobrem a mesma pessoa e, outros, personificam mulheres mais ou menos
fingidas ou de … encomenda.
Alguns biógrafos consideram que o primeiro amor real de Bocage foi Gertrudes
Homem de Noronha (Gertrúria), filha do Coronel de Infantaria, João Homem da Cunha
de Eça, Governador da Torre do Outão, em Setúbal e que a família do poeta visitava
com frequência.
A referida filha do Coronel ter-lhe-á inspirado os primeiros versos, e aquela que
em pensamento o acompanhou na sua viagem à Índia e, a que também primeiro, lhe
teria dado a «provar as lágrimas amargas da injúria amorosa», trocando-o pelo seu
irmão Gil, «rapaz de mais assento, estudante de Leis» e com quem viria a casar. Outros,
ainda, especulam em torno do nome de Ana Gertrudes Marecos, uma jovem que vivia
em Santarém.
Seja como for, o certo é que não há uma só estrofe em que Bocage se refira ao
irmão, bem ou mal e… outros argumentos se poderiam invocar. Aqui, como noutras
situações, corre-se o risco de levar em conta a matéria poética como realidade.
A não ser aquela infeliz paixão da sua meninice em Setúbal, só se sabe, ou julga
saber-se, de dois amores “autênticos.”
Carlos Jaca
26
A fama que lhe criara a publicação das «Rimas» relacionara-o com os filhos do
cirurgião Manuel Constâncio, Mestre de anatomia e médico da Real Câmara. Pedro
Constâncio, que versejava, simpatizou com o poeta e começou a levá-lo a casa. Uma
irmã dele, Maria Margarida, também gostava de versos.
A princípio tudo correu bem, mas… «logo que o rapaz se adiantou com
Margaridinha, por quem tinha uma paixão avassaladora, o cirurgião começou a franzir a
testa». Houve também ao que parece, a intervenção de um confessor. Bocage,
desiludido e amargurado, desabafa a Marília nas célebres «Verdades Duras»
(«Pavorosa ilusão da Eternidade»…) que viriam a preparar-lhe a “cama” na
Intendência e na Inquisição. Marília acabou «desleal», como parece que era preciso…
O melhor, e mais actualizado (em minha opinião), biógrafo de Manuel Maria, o
brasileiro Adelto Gonçalves, afirma que «a hipótese de Bocage, algum dia, ter curtido
paixão por Marília não está fincada em documentos».
A outra paixão com identidade obedeceu ao mesmo estilo, mas talvez fosse mais
grave. Doente e sem ninguém seu, o poeta fora em tempos recolhido por um amigo da
Arcádia, António Bersane Leite, que também tinha filhas bonitas: Maria Vicência e Ana
Perpétua. Maria, a mais velha, deixou-se prender pelo «valdevinos». Devia ser essa a
Márcia. Porém, a mãe de Márcia «tirou-lhe a rapariguinha, obrigando-a a jurar à hora
da morte que não casaria com ele».
Já para o fim da vida de Bocage, «há uma Anália enigmática, em que se quis ver
a outra menina Bersane, Ana Perpétua, e, portanto, um novelo de impossíveis. Assim, à
rivalidade dos manos Bocages com Gertrudes corresponderia a das manas Bersane com
Bocage. É muita simetria» … De facto…!
Ao debruçar-me sobre esta tão celebrada faceta do poeta setubalense não tive
dúvidas em optar pela tese do Professor Jacinto do Prado Coelho, porquanto o seu
raciocínio é construído numa base de grande solidez, afastando todas as outras hipóteses
por impossibilidade ou fragilidade.
Segundo o referido Professor, para Bocage a poesia foi desabafo,
autoconsolaçao, libertação de angústias pelo ritmo da consciência: «consoladora dos
meus negros males» – diz o poeta dirigindo-se à Musa.
Porém, os versos não devem ser invocados como documentos, de modo algum
devem ser interpretados como «chave biográfica». Ao contrário do que acontecia no
século XIX, o Barroco distinguiu e separou o autor e a obra o que, apesar disso, não
impediu que escritores, apoiando-se no tom de confissão e das evidências de
Carlos Jaca
27
experiências concretas que dominam a poesia de Bocage, abusassem do uso dos seus
versos como fonte histórica. Não levando em conta essas convenções, «acabavam
tomando por reflexo da realidade que circundaria o que, na verdade, era apenas uma
convenção literária da época». Um deles, Elói do Amaral, veio, até, a escrever uma
biografia baseada apenas em versos.
Obviamente, inúmeras passagens das «Rimas» bocagianas, contêm a evidência
das experiências concretas, de facto vividas. Referem-se, sem dúvida, a conjunturas
determinadas, a factos biográficos: «as quadras de «Trabalhos da Vida Humana»
parecem um simples diário da prisão, versificado; noutras composições fala-se da terra
natal, da morte da mãe, dos anos passados na Índia, da pobreza, da doença, epístolas a
pedir auxílio, elogios. Assim, compreende-se a tendência dos críticos a confundirem a
personalidade poética de Bocage com a sua personalidade prática, vendo na obra,
entendida ao pé da letra, mero documento para reconstituir uma vida, e substituindo
juízos estéticos por juízos morais sobre o homem. O biografismo, o moralismo, a
preocupação pedagógica tem-se envolvido com excessiva frequência no que devia ser o
estudo imanente da obra segundo um critério propriamente literário».
Porém, a reacção antibiografista pode exagerar ao negar qualquer ligação entre a
prática e a personalidade literária. Por outro lado, se a poesia lhe serviu de ganha-pão,
não admira que nos tenha deixado muitas composições de circunstância, para
comemorar aniversários ou deplorar mortes. Algumas seriam até de encomenda, como
anteriormente foi referido. Logo no primeiro dos sonetos das «Rimas», «avisa» que os
seus versos festivos foram «Escritos pela mão do Fingimento, / Cantados pela voz da
Dependência». Atenda-se que não se pode tomar a afirmação ao pé da letra. De
qualquer modo, muitas poesias, alegres umas fúnebres outras, indubitavelmente que
tiveram a sua origem em obrigações ou conveniências de amigo ou protegido. Na
epístola XXII verifica-se que Bocage «costumava celebrar em verso a mulher (ou
amante) dum benfeitor, Gregório Freire Carneiro, nos dias do seu aniversário; essa
mulher, a quem dá o nome poético de Marília, seria «deusa» nos olhos e nos sorrisos,
«doce ardor» dos sentidos do amigo. Num soneto em que lamenta o “trespasse” (a
morte) da jovem Lília, há a seguinte anotação: «Pediu-me uma pessoa que
virtuosamente a amava; e a mágoa do assunto, apurada na tristeza da minha situação,
deu um soneto que talvez penhore os corações ternos».
Camilo Castelo Branco, no início da «Agulha em Palheiro», descreve Bocage a
fazer «quadras natalícias» para o sapateiro Francisco Lourenço, seu amigo, conquistar
Carlos Jaca
28
o coração duma tal Maria, transformada em Marília na pena do poeta, que Francisco
Lourenço recompensa com seis mil e quatrocentos réis…
Concluindo este capítulo, pode afirmar-se, e sem qualquer dúvida, que muitos
críticos confundiram a personalidade poética de Bocage com o homem. E mais:
«nenhuma mulher marcou lugar definitivo no coração do poeta que, inclusive, em
versos censurados do poema «A água estagnada» chegou a definir o matrimónio como
«prisão».
Bocage e a Revolução Francesa.
Em 1790, Bocage regressava da Índia. Os extraordinários acontecimentos
ocorridos em França são tema dominante das conversas nos locais frequentados pelo
poeta. Ao chegar a Lisboa, Bocage toma conhecimento dos ventos revolucionários em
França e das suas repercussões em Portugal.
Os efeitos das notícias da Revolução atingem directamente Portugal, então
dominado por um regime absolutista que pretendia manter inalteradas as suas
características, condenando e perseguindo qualquer contestação. A Revolução Francesa
é, por conseguinte, vista pelo poder como a grande ameaça, o desabar de um mundo
julgado imutável.
Os portugueses vivem apaixonadamente os acontecimentos de França, uns
condenando-os vigorosamente, outros vendo neles a chama da liberdade pela qual
anseiam.
Bocage tem razões para estar particularmente atento às novidades que chegam
de França: desde logo está perto da cultura francesa, pois sua mãe é de origem gaulesa,
e tomando conhecimento das ideias dos grandes filósofos do Iluminismo, não seria de
estranhar o seu interesse pelos acontecimentos desencadeados a partir de 1789.
Conhece-se a sua oposição ao despotismo que condena num soneto: «Sanhudo,
inexorável Despotismo, / Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas…».
Bocage, como se sabe, frequenta assiduamente os botequins de Lisboa, locais
particularmente suspeitos aos olhos do Intendente da Polícia, Pina Manique, por aí se
discutirem abertamente os acontecimentos de França e as suas implicações em Portugal.
Então, «nos cafés do Rossio nem é bom falar. Por lá tudo cheirava a jacobinismo, a
Carlos Jaca
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maçonaria e outros nomes com que o Intendente baptizava esta gafaria de sarampo
político, que atacara muito bom português». Neste final do século XVIII em Portugal,
francês ou afrancesado, são sinónimos de subversivo e revolucionário.
Tendo em atenção o posicionamento filosófico e ideológico de Bocage, não são
inesperados os variados exemplos da presença directa da Revolução Francesa na obra
do poeta. Vários são os sonetos onde surgem as referências directas aos acontecimentos
de França. É o caso do soneto que intitulou «Aspirações do Liberalismo, excitadas pela
Revolução Francesa e consolidação da República em 1797»:
«Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Que faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!), porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?
De santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh! Venha…Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!»
Era uma confissão de delito, um libelo revolucionário, a acusação de que a
monarquia degenerara em despotismo.
Ainda em 1797, escreveu a epístola intitulada «Verdades Duras», além de
conhecida como «Pavorosa», também passou a circular com o título de «Epístola a
Marília», que seria o pseudónimo escolhido para homenagear Maria Margarida
Constâncio e onde Bocage patenteava as ideias livres de Rousseau:
«Pavorosa ilusão da eternidade / Terror dos vivos, cárcere dos mortos» …
A epístola seguia numa extensão de duzentos e tantos versos, para concluir com
esta sentença lapidar:
«Céus não existem, não existe o inferno,
O prémio da virtude é a virtude,
É castigo do vício o próprio vício».
Nesta epístola, chega a negar a eternidade das penas e a exprimir um conceito de
Deus que «não poderia receber a concordância dos zelosos guardiães da fé. O seu Deus
não era o Deus que horroriza a natureza nem o Deus do fanatismo ou da impostura, era
o Deus que consola a Humanidade, o Deus da Razão, criado pela filosofia anticatólica
do século XVIII».
Carlos Jaca
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Tudo isto estava em contradição com a ideologia oficial e era mais que
suficiente para deitar a perder o audacioso Bocage. Uma simples denúncia ao Intendente
Pina Manique e o poeta seria encarcerado. Assim foi.
Prisão no Limoeiro. Reeducação no Mosteiro de S. Bento e na
Congregação do Oratório (S. Filipe de Néry).
O poeta que residia, nesse tempo, com o seu amigo André da Ponte Quental e
Câmara, cadete da Armada (e que veio a ser avô de Antero de Quental), teve quem o
avisasse do mandado de captura, aconselhando-o a fugir sem perda de tempo. Bocage
apercebendo-se do perigo que corria, foi acolher-se na “Aviso”, uma corveta dos
Correios que se aprontava para partir para o Brasil. Na precipitação da fuga nem sequer
tivera tempo para avisar o amigo. Porém, o Intendente que tinha espiões por toda a
parte, e muito especialmente nos barcos que entravam e saíam do Tejo, depressa
descobriu o refúgio de Bocage que, a 7 de Agosto, foi detido e conduzido à cadeia do
Limoeiro, onde foi encarcerado numa das celas subterrâneas do “segredo”. Bocage iria
saber que, afinal, o “inferno” existia.
Para o Intendente, a tentativa de fugir só fornecera «mais claros indícios de (o
acusado) ser réu dos delitos de que havia sido denunciado».
Como escreveu Hernâni Cidade, o poder pretendia eliminar «o micróbio
pestífero que matou em França a monarquia, feriu de morte a religião e por toda a parte
ameaça o trono e o altar».
Em 10 de Agosto de 1797, Pina Manique enviava ao juiz do crime do Bairro do
Andaluz uma nota de serviço, justificando a prisão de Bocage, nos seguintes termos:
«Consta nesta Intendência que Manuel Maria Barbosa du Bocage é autor de
alguns papéis ímpios, sediciosos e críticos que nestes últimos tempos se têm espalhado
por esta Corte e Reino; que é desordenado nos costumes, que não conhece as
obrigações da religião que tem a fortuna de professar e que há muitos anos não satisfaz
aos sacramentos a que obriga o preceito de ir todos os anos buscar os sacramentos da
penitência e eucaristia à freguesia onde vive: Vossa Mercê logo por meio de uma
devassa à averiguação destes factos para legalizar a verdade deles, fazendo-lhe
apreensão em todos os papéis assim manuscritos como impressos, e ainda naqueles que
estiverem em poder de terceiros seus sequazes, que devem ser igualmente presos e
averiguada a sua vida, e costumes, para ver se imitam o referido Manuel Maria
Carlos Jaca
31
Barbosa du Bocage, que foi preso a bordo da Corveta denominada – Aviso – a qual
saiu para a Baía com o comboio, que proximamente partiu deste porto, por cuja fuga
dá mais de ser o réu dos delitos de que havia sido denunciado nesta Intendência».
Assim se fez. Sem tardar, os “moscas” invadem o andar na Praça da Alegria e
confiscam muitos «papéis sediciosos», entre os quais o célebre poema «Verdades
duras», que Bocage não tivera tempo de pôr a bom recato, e prendeu André da Ponte
acusado de dar guarida ao poeta.
Durante o tempo que passou na prisão, Bocage, sob o título de «Trabalhos da
vida humana», em forma de Fado popular, talvez para ser cantado, e assim tornar
pública a arbitrariedade de que era vítima, compôs uma série de quadras em que narra as
suas dores e desgraças. Agora não há lugar para erguer hinos à sedução feminina, às
suas graças e futilidades. Ele próprio o diz, ao iniciar o seu diário da prisão:
«Se em verso cantava dantes / O poder da formosura, /
Hoje vou chorar em verso / Inconstâncias da ventura.
Vou pintar os dissabores / que sofre meu coração, /
Desde que lei rigorosa / Me pôs em dura prisão»...
Enquanto a burocracia judicial decide, lenta, entre formalidades e acareações, o
destino a dar a tão anti-social réu, Bocage sente que poucos enfrentarão inconvenientes
para lhe fazer visita no «cárcere profundo», e receia que se eternizem os «dias
miseráveis» em tão «negra estância». Após a captura de André da Ponte, alguns dos
amigos que mais de perto privavam com Bocage, afastaram-se tomados do terror que a
severidade do Intendente lhes infundia.
Apenas um amigo se manteve fiel, António José Álvares, não receando
represálias e que nunca o abandonou durante os vinte e dois dias que esteve
incomunicável. A este amigo se deve, em grande parte, a protecção que arrancou
Bocage às garras do Intendente, pois foi ele o portador dos instantes apelos que o poeta
fazia a pessoas de alta influência, intervindo em seu favor, levando aos grandes do
Reino epístolas suplicando piedade e liberdade.
Na prisão, Bocage, desesperado, procurou a intercessão de amigos e conhecidos
poderosos: escreveu versos amargurados para Henrique José de Carvalho e Melo, filho
primogénito do Marquês de Pombal, presidente do Desembargo do Paço e da Mesa da
Consciência e Ordens; a José de Seabra da Silva, Ministro do Reino e inclinado a
homens de Letras; a Mariana Joaquina Pereira Coutinho, mulher de Seabra da Silva,
enviou uma epístola em quintilhas:
Carlos Jaca
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«Meu crime é ser desgraçado,
Ou talvez não ser indigno
De atrair da fama o brado:
Um bando inerte e maligno
De inveja me fere armado»...
Ao Juiz do Crime do Bairro do Andaluz, Inácio José de Morais e Brito,
responsável pelo registo do seu depoimento, não se cansou de dirigir elogios.
Vinte e dois dias depois da prisão foi chamado a perguntas, e é acareado com
André da Ponte, mostrando tal magnanimidade que tomou para si todos os erros que
imputavam aos dois.
Interrogado o poeta pelo Desembargador Morais e Brito – pessoa da confiança
do Ministro Seabra da Silva – o processo foi encaminhado de modo que Bocage fosse
acusado de heresia e não de crime de lesa-majestade, o que veio a acontecer. O
Desembargador despronunciou Bocage de delito contra o Estado e entrega-o à
Inquisição por erro religioso.
Porém, viu-se na triste contingência de ter de fingir que renegava a verdade,
como Galileu perante os seus juízes, e recalcar no fundo da sua alma revoltada o
desabafo do «e pur si muove», e «contudo ela move-se». (Célebre frase de Galileu,
astrónomo italiano -1564 / 1642 -, depois que o Santo Ofício o obrigou a desdizer a sua
opinião de que a Terra girava sobre si mesma, e que serve para exprimir a persistência
duma convicção, ainda que seja coagido a dizer o contrário).
É que, a ser dado como «sedicioso e apologista das ideias francesas», Bocage
seria encarcerado para sempre, ou, na melhor das hipóteses, deportado para Angola
como um malfeitor.
Bocage foi levado da prisão do Limoeiro para o cárcere da Inquisição de Lisboa
em 14 de Novembro, onde se manteve até 17 de Fevereiro de 1798.
No Santo Ofício, mais brando agora do que antes de Pombal, Bocage assumiu-se
«confesso», sendo transferido para o Mosteiro de S. Bento da Saúde (Cortes) a fim de
ser doutrinado e onde a sua chegada não deixou de ser bem assinalada. No “Dietário”
(livro escrito por um frade da Ordem, que tinha o cargo de registar nele todos os
sucessos principais do tempo) deste Mosteiro, na parte referente ao mês de Fevereiro
pode ler-se o seguinte: «Providências políticas internas em qualquer ramo de
administração pública».
Carlos Jaca
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«A dezassete do presente mês de Fevereiro foi mandado para este Mosteiro pelo
Tribunal do Santo Ofício, o célebre poeta Manuel Maria du Bocage, bem conhecido
nesta Corte pelas suas poesias, não menos pela sua instrução. Tinha sido preso pela
Intendência, e ele reclamou para o Santo Ofício, onde esteve até ser mandado para este
Mosteiro, apesar de encerrar já no seu recinto o regimento de Gomes Freire, seis
expatriados e um preso do Estado do julgado levantamento de Minas Gerais».
Encerrado no Mosteiro de S. Bento da Saúde, o poeta era tratado com a maior
brandura, refeições fartas, melhores leituras e sábias conversas com os beneditinos. Mas
esteve lá poucos dias: ou porque o Mosteiro estivesse sobrecarregado com o alojamento
que dava ao regimento de Gomes Freire e a oito albergados e reclusos, ou porque se
movessem influências para melhorar a situação de Bocage, o certo é que o Intendente da
Polícia, a 22 de Março, deu ordem ao Juiz do Crime do Bairro dos Remolares para
conduzir o preso do Mosteiro de S. Bento ao Hospício das Necessidades.
Os Congregados eram ainda a elite dos religiosos de Lisboa: «graves, cultos,
cheios de compaixão e de misericórdia». Aqui, Bocage, não podia «sair fora sem nova
ordem, nem comunicar com alguma pessoa de fora, à excepção dos religiosos
conventuais ou filhos da mesma Congregação, andando em liberdade no mesmo
hospício, sem que venha abaixo às portarias e à igreja e nas horas de recreação poderá
ir à cerca, na companhia dos religiosos e conventuais no mesmo hospício, e assistir no
coro a todos os ofícios, se assim o julgar o Prelado, e não encontrar algum
inconveniente».
No Real Hospício de Nossa Senhora das Necessidades, dos padres de S. Filipe
de Néry, Bocage ficou entregue à direcção espiritual de Frei Joaquim de Fóios, filólogo
e também poeta, até que fosse concluída a sua reabilitação. Na companhia dos
religiosos, Manuel Maria encontrou sossego e força para se dedicar a um trabalho
organizado que lhe poderia vir a garantir uma sobrevivência decente.
Aproveita a rica biblioteca dos Oratorianos e começa a traduzir do latim e do
francês. Primeiro, passagens de «As Metamorfoses» de Ovídio, a quem passou a
considerar um dos seus modelos. Depois, episódios de «Jerusalém Libertada», de
Torquato Tasso; de a «A Henríada», de Voltaire, e o primeiro canto de «A
Colombíada», de Mme. Du Bocage, onde em nota final, recorde-se, destaca a honra de
pertencer à família da ilustre poetisa.
Fechado na biblioteca, traduz o episódio «Bosque de Marselha», da Farsália, de
Lucano, algumas fábulas de La Fontaine, escreve uns quantos dos seus próprios
Carlos Jaca
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apólogos morais e compõe o elogio «Aos faustíssimos anos da sereníssima senhora
D. Maria Benedita, Princesa do Brasil, viúva», que seria recitado no Teatro do
Salitre, a 25 de Junho.
Bocage está agora muito mais prudente, o que talvez se possa considerar uma
estratégia de autodefesa, que lhe facilita a vida e, quem sabe, poderá até ajudá-lo a
abreviar a hora de ser de novo livre. Efectivamente, não tarda que seja restituído à
liberdade. Estava terminado o processo de reeducação.
Regresso à liberdade. Poeta – Tradutor.
Assim, quando a 31 de Dezembro de 1798 Bocage é autorizado a sair do Real
Hospício das Necessidades, tem «muitos e reconhecidos elogios a endereçar ao
príncipe regente», mas continua sem ofício certo nem alojamento seguro. Nesse final do
ano, o Ministro Seabra da Silva oferece-lhe trabalho e remuneração na recente Real
Biblioteca Pública. O poeta responde-lhe negativamente por prezar muito a sua
independência. Embora cauteloso, pode, no entanto, vangloriar-se de ser livre como
sempre fora.
Logo que Bocage conseguiu a liberdade, procurou manifestar a sua gratidão
pelos amigos desinteressados que procuraram livrá-lo da arbitrariedade de Pina
Manique, ou o sustentavam na cadeia. É de 1799 o segundo volume das «Rimas»,
dedicado a António José Álvares, que o fora socorrer com dinheiro, quando se
encontrava no “segredo”: «A minha gratidão te dá meus versos» …
Mas, Bocage, agora tinha de ganhar a vida, amparar a irmã Maria Francisca,
solteira, com uma menina de dois aninhos, que até à partida da Marquesa de Alorna
para Inglaterra teriam estado na companhia da poetisa. Também o pai, o velho
advogado José Luís Barbosa tinha falecido.
Sem dúvida que aqueles dois familiares criaram-lhe uma noção de forte
responsabilidade, pois enquanto permaneceu um isolado do mundo, pouco lhe
importava trabalhar ou não. Agora já não vivia só para ele, vivia para a irmã e para a
sobrinha.
Depois de ter passado a última semana de Agosto de 1799,internado no Real
Hospital de S. José, trava conhecimento com o naturalista Frei José Mariano da
Conceição Veloso, um dos directores da Oficina Tipográfica, Calcográfica, Tipoplástica
do Arco do Cego, onde Bocage se torna responsável por um trabalho exaustivo –
Carlos Jaca
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envolvendo traduções revisões de provas e o aperfeiçoamento de textos alheios – a troco
de 24 mil réis mensais, quantia razoável para a época. Tal ajuste parece ter satisfeito
plenamente o poeta, pois o seu reconhecimento para com o religioso arrábido ficou
eterno como bem o demonstra o drama «Virtude Laureada».
O franciscano José Veloso era protegido de Rodrigo de Sousa Coutinho,
Ministro dos Negócios da Marinha e Ultramar e, em breve, Presidente do Real Erário
Público. Como director da Oficina, poder-se-á concluir que Bocage estava agora sob a
tutela de um homem politicamente bem colocado, visto contar com a protecção de
Sousa Coutinho. De qualquer modo não havia suspeitas de que em Pina Manique
pudesse existir alguma animosidade em relação ao poeta, a não ser que este viesse
novamente a delinquir. A adesão de Bocage à Monarquia era notória e a sua reabilitação
parece ter surtido o efeito desejado pelas autoridades, como se pode depreender da sua
participação a elogiar os aniversários da família real, caso da cantata «Milagroso
pincel, pincel divino» que escreveu «aos anos da sereníssima senhora D. Maria
Teresa» e recitada no Teatro da Rua dos Condes a 29 de Abril de 1800.
Provavelmente, o que Pina Manique pretendia era, agora, atrair Bocage para o
grupo de literatos aderentes ao regime monárquico. A essa época, segundo parece,
Bocage já teria abandonado aquela fase de vida dissoluta e de tardes e noites perdidas
entre cigarradas e copos de genebra nos cafés do Rossio.
Ao passar a trabalhar regularmente sob a direcção de José Mariano Veloso, o
poeta viu o seu prestígio crescer ainda mais, sendo estimulado e requisitado a escrever
textos para serem lidos em teatros, além de que, sob as ordens de Veloso, Bocage ficava
imune a possíveis perseguições de Pina Manique, porquanto o naturalista como director
da Oficina do Arco do Cego respondia directamente a Sousa Coutinho. Muitas das
obras que Frei Veloso imprimia, ou mandava imprimir, não precisavam de licença do
Santo Ofício e muito menos do crivo do Intendente.
Em 1801, Bocage traduz o poema didáctico «Os Jardins ou a Arte de
Aformosear as Paisagens», muito louvado pela crítica, por honrar o texto original do
Abade francês Delille. Dada a terminologia específica desse texto e de outros de índole
didáctica sobre temas científicos relativos à Botânica, é bem capaz que a sugestão
tivesse partido de Frei Veloso, apaixonado pela ciência que cultivava e, também, que
Bocage tenha sido levado a estudar a ciência.
Porém, se o poeta, de certo modo, passara a ser um intelectual conotado com o
meio oficial, as produções anteriores à sua prisão, em 1797, circulavam
Carlos Jaca
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clandestinamente por todo o Reino, satisfazendo aqueles que se mostravam mais ávidos
pelas suas sátiras e críticas manuscritas.
Ainda do ano de 1801, continuando sob as ordens de Veloso, são as traduções
que fez de «O Consórcio das Flores», de Lacroix, «A Agricultura», de Rosset, e «As
Plantas», de Ricardo Castel, que receberam a designação de «Poemas Didácticos».
Bocage traduziu o primeiro do latim e os dois últimos do francês, «compondo as
traduções em verso conforme o eram nos originais». Essas traduções e a primeira
edição das suas obras, que saíram pela Oficina do Arco do Cego, ricamente impressas,
por ordem do Príncipe Regente, ficaram como propriedade da editora, sem que ao
tradutor e poeta coubesse algum acréscimo além do salário mensal.
Rompimento com Agostinho de Macedo. «Pena de Talião».
Apesar de Bocage o ter “beliscado”algumas vezes de raspão, durante o conflito
com os neo-árcades, as relações entre os dois poetas ainda mantinham uma aparência
amistosa. Parece certo que, depois do abandono, ou expulsão, de Bocage da Nova
Arcádia, quando o poeta foi vítima das sátiras provenientes dos antigos companheiros e,
por seu lado, devolveu sonetos e epigramas satíricos que atingiam os antigos consócios,
Macedo manteve-se à parte das desavenças, ainda que alvejado em soneto dirigido aos
membros da instituição.
Nenhuma composição de José Agostinho de Macedo dirigida contra Bocage foi
detectada nesse período, embora o antigo padre continuasse ligado à Nova Arcádia,
acontecendo até, que em 1797, Macedo, ao traduzir «A Tebaida», poema em doze
cantos de Públio Estácio, submeteu o trabalho à aprovação de Bocage reconhecendo-lhe
superioridade como tradutor. Porém, como talvez só esperasse elogios, Macedo não terá
gostado das correcções efectuadas, em que «Elmano Sadino» marcara com o vinco da
unha os versos que considerou imperfeitos. Além disto, Bocage também não aceitou a
opinião de Macedo a respeito de Ovídio, a quem julgava superior a Virgílio. O religioso
teria aceitado estes reparos, optando guardar silêncio, até que surgisse momento
propício para lhe “saltar em cima”.
A 29 de Setembro de 1801, ao lado da sua conterrânea Luísa Todi, cantora de
renome europeu, e dos sócios da “titubeante” Nova Arcádia, Agostinho de Macedo
incluído, Bocage participa na sessão cultural do Castelo de S. Jorge, em comemoração
da paz.
Carlos Jaca
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Em Novembro do mesmo ano, Bocage parecia tão recuperado aos “olhos do
poder”, que o Intendente decidiu voltar a convidá-lo a participar, a 11 do referido mês,
no Teatro de S. Carlos, «ataviado de damascos, tochas, orquestra de sopro, fina plateia
e outros luxos», onde Bocage colaborou com a «Congratulação ao Príncipe Regente e
à Pátria na Paz Universal». Claro, Macedo estava presente.
Assim, não admira que a série de festividades desta época servisse também para
acirrar ainda mais a rivalidade dos antigos amigos. É que, Macedo, estava habituado a
monopolizar as atenções dos grandes, pois Bocage sempre fora visto de “esguelha”,
como inimigo do regime.
Embora de forma aparente, Macedo não suportava, nem estava disposto, a ter de
repartir a sua, até aí, condição de poeta favorito da Corte.
Na tradução de «As Plantas», de Castel, para além de um prefácio do autor, há
um prólogo em verso em que Bocage se refere a sete amigos, tratando-os pelos seus
nomes
arcádicos
e
identificando-os
em
notas
de
rodapé,
não
aludindo,
propositadamente, a José Agostinho de Macedo.
Parece, sim, na última parte do prólogo em verso, haver uma referência ao agora
rival, comparado a Zoilo, (crítico grego do século IV a. C., detractor de Homero, cujo
nome servia, e ainda serve, para definir todo o crítico injusto ou invejoso) e, também,
duas frases que, igualmente, parecem ser-lhe endereçadas:
«Maldito grasnador, nocturno enxame, / Que, voar não podendo, odeia os
voos».
Pouco depois, Macedo publicou o poema «Contemplação da Natureza», onde
surge um comentário que parece destinar-se a Bocage: «Aos impertinentes e
incontestáveis não dou outra satisfação mais que lhes deixar grandes margens no livro
para fazerem à sua vontade glosas e anotações, esperando também com muito boa
vontade que escarneçam deste com outro melhor». E, ainda, sem lhe citar o nome
zurziu os «Momos petulantes» que se nutrem de «frívolas quimeras». Fazia, deste
modo, alusão depreciativa e transparente àquele a quem pedira conselhos e de quem
admitira (ou não) emendas nos seus trabalhos. A partir daqui desencadeava-se a querela
entre Bocage e Macedo. Terminava a guerra surda feita de mútuas alusões, evitando a
citação directa dos respectivos nomes.
Ao escrever a «Sátira a Manuel Maria Barbosa du Bocage», explodiu a cólera
que Agostinho de Macedo desde há muito tempo vinha acumulando e “engolindo”,
Carlos Jaca
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consequência do orgulho muitas vezes ferido e inveja de méritos e popularidade do
rival. O ataque agora era directo:
«Sempre, oh Bocage, as sátiras serviam / Para dar nome eterno e fama a um tolo»
E mais adiante diz-lhe, «tu és vadio, és magro, és pobre, és feio», acusando-o de
«ser um déspota em poesia», considerando-o um «tradutor de aluguer», que «a soldo
de um frade» impinge aos leitores «rasteiras cópias de originais soberbos» e que nada
escrevera «de inveja digno» … «depois que o estro deixaste nas gangéticas ribeiras».
Atira-lhe que, «para teres pão, traduz mais versos». Para Macedo, os títulos de
glória de Bocage «consistiam em quatro traduções medíocres e na arte de amplificar
com velhos e rebuscados lugares-comuns os motes já ditos e rebatidos». Diz-lhe, ainda,
que não passa de um «doente imaginário», um «sabujo impertinente», que a todos
inclui num único e «inumerável esquadrão de zoilos» e a ninguém louva.
Trata-se de uma sátira violentíssima, procurando salientar a vida boémia de
Bocage em outros tempos, esquecendo-se que, desde a saída do Real Hospício das
Necessidades, o poeta estava não só recuperado como era um homem que lia, agora,
pela “cartilha” do regime.
Macedo foi longe de mais, demonstrando, apenas, o empenho pessoal de
rebaixar até à lama o maior poeta do seu tempo, além de que não tinha nenhuma
autoridade moral para atacar Bocage: «No aspecto físico, seria um homem pouco
atraente, rotundo, vermelhão, obeso, gordurento, desleixado. Como orador, ainda que
tivesse fama, costumava enfastiar os ouvintes, ao repetir vezes sem conta as vitórias
portuguesas na Ásia e na África, dizendo o que todos já sabiam. E, no aspecto moral,
como religioso, era tudo o que não devia ser: apesar do seu conhecido desprezo à
mulher, ao “gado feminino”, ao “estupor fêmea”, como se comprova na sua produção
intelectual, tivera várias amantes, sempre fora visto em companhia de prostitutas e em
boa parte da sua vida conviveria, em situação irregular, com Maria Cândida do Vale,
ex-freira do Convento de Coz, a quem, segundo acusação de Pato Moniz, teria reduzido
à prostituição. Da sua existência emanam mazelas em que furtos a livrarias são pecados
menores». José Agostinho de Macedo nem imaginava a réplica que o esperava.
O poeta sadino só veio a ler as injúrias que sobre ele lançara o autor da
«Contemplação da Natureza» quando elas já eram do conhecimento de muita gente,
imaginando que Bocage “engolira em seco”. No dia em que leu o violento poema
Carlos Jaca
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satírico, com o qual Macedo pensava tê-lo aniquilado, teve uma reacção que ultrapassou
todas as previsões, quer do autor, quer dos amigos.
De acordo com a tradição, Bocage, mal tomou conhecimento da existência da
sátira, que correria de mão em mão, entrou no Botequim das Parras, «as feições
transtornadas e os olhos cintilantes», dirigindo-se ao Agulheiro dos Sábios, onde
apenas se encontrava nesse momento Francisco de Paula Cardoso de Almeida, morgado
de Assentis, seu companheiro de tertúlia.
Ao fim de algumas voltas à sala, parou bruscamente e pediu ao morgado que
fosse escrevendo o que ele passou a ditar e que viria a ficar conhecido pelo título de
«Pena de Talião». Emborcando copos de genebra e fumando cigarro sobre cigarro,
enquanto o amigo escrevia o mais rapidamente possível para lhe seguir o pensamento,
os versos saíam espontaneamente, «rítmicos, perfeitos, mas de uma violência ainda
mais agressiva do que a do mestre polemista que o quisera arrasar».
Trata-se de um documento extenso de que apenas é possível extrair os passos
mais expressivos e que melhor ilustram a história de tão lamentável conflito.
Embora considerando que «Sátiras prestam, sátiras se estimam / Quando nelas
calúnia o fel não verte / Quando voz de censor, não voz de zoilo / O vício nota, o
mérito gradua», Bocage responde à letra aos insultos de Macedo. Trata-o de «refalsado
animal, das trevas sócio», troça da sua inteligência, afirmando que «Nuvens de insectos
vis te sobem trovas / À mente erma de ideias, nua de arte». Diminui-lhe os dotes de
orador, acusando-o de se aproveitar da «estúpida irmandade» que o ouve «repimpando
nos púlpitos». Troça, ainda, do seu aspecto físico e da sua vida desregrada, dizendo:
«Tu, que vadio, errante, obeso, inútil / As praças de Ulisseia à toa oprimes / Peçonhas
de invectiva espremes d´alma».
Cáustico, diz ser Macedo um «sanguessuga de pútridos antros», um
«palavroso» que engana «néscios» e «Arrotas ante o vulgo a Enciclopédia» …
Para mostrar que já não levava uma vida dissoluta, como afirmara o ex-frade,
Bocage defende-se, cumprindo «Ali deveres, que não tens nem prezas / Com fraternal
piedade acato, exerço / Cultivo afectos à tua alma estranhos / Dando à virtude quanto
dás ao vício». Os deveres que exercia com «fraternal piedade» e os afectos que
cultivava eram os que a terna presença da irmã e da sobrinha lhe impunham.
Relevando quer as suas capacidades de trabalho quer a sua idoneidade, Bocage
vai dizendo que «Elmano a cisne aspira», ao passo que «Elmiro» (Macedo) é ganso».
Carlos Jaca
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Bocage não deixou de lembrar versos que lhe dirigia, ao tempo em que ainda era
frade e estava detido no cárcere do Convento da Graça, em Lisboa, reconhecendo-lhe o
talento, declarando-se «arrebatado» pelo «seu divino canto». O poeta citava-o de
memória, lembrando o elogio para o achincalhar.
Por fim, Bocage volta a responder à referência que Macedo fizera do seu
passado boémio, como se aquela fase da sua vida o incomodasse e, ainda, sem deixar de
estimular o rival a prosseguir a carreira de versejador, não lhe perdoa a megalomania de
escrever o «Gama», poema épico com o qual pensava eclipsar a glória de Camões:
«Mas não desmaies na carreira; avante,
Eia! Ardor, coração… vaidade, ao menos!
As oitavas do Gama esconde embora,
- Nisso não perdes tu, nem perde o mundo.
Mas venha o mais! Epístolas, sonetos
Odes, canções, metamorfoses, tudo…
Na fronte põe teu nome – e estou vingado!»
Nunca, em Portugal, a sátira atingira uma vibração tão tensa e, até, corrosiva.
Entretanto, a “Pena de Talião” é declamada uma e outra vez, todos a querem copiar e
correrá por toda a Lisboa.
Porém, José Agostinho de Macedo, furioso, veio mais tarde a terreiro descendo
ao nível mais baixo, ao ponto de acusar Bocage de manter «relações sexuais com um
recém-vindo trasmontano frade» e outras afrontas de igual calibre. Nessa mesma sátira,
réplica à «Pena de Talião», acusava o poeta de ter pedido ajuda a Teotónio Gomes de
Carvalho, «homem rico que protegeu e beneficiou Bocage e a quem bem como a outros
pagou com a maior ingratidão». E também teria pago com ingratidão «aos frades do
Espírito Santo, que, por algum tempo, lhe deram casa, cama e mesa». Acusou, ainda,
Bocage, de ter «a presunção de pertencer a uma nobre família francesa» como atribuiu
«à sua loucura» o facto de não ter seguido a carreira das Armas.
Manuel Maria nunca respondeu a esta sátira; ou a ignorou sempre, porque os
amigos a ocultaram, para evitar-lhe situações prejudiciais à sua saúde, que já andava um
tanto abalada, ou porque tomou consciência de que já tinha dito tudo que havia para
dizer sobre o rival.
Antigos biógrafos afirmaram que, quer Macedo quer Bocage, tentaram obter
licença da Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros para
publicar as respectivas sátiras, o que lhes teria sido recusado.
Carlos Jaca
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Elogio de Filinto Elísio a Bocage. Denunciado à Inquisição.
Terminada a efervescência daquela polémica literária, Bocage regressou aos
seus hábitos de homem cumpridor dos seus deveres, vivendo para as suas traduções, as
suas experiências de literatura dramática, que então o entusiasmavam, e para o amor
fraternal que deixou bem vincado na «Pena de Talião».
Sabe-se, com base em documentação relativa à freguesia das Mercês, pelo
«Livro de arruamento e lançamento da décima», para o ano de 1802, que Bocage estava
novamente desempregado, pois aparece no referido livro como «sem ofício», o que não
significa que não trabalhasse.
Acontece que a Oficina do Arco do Cego, onde Bocage tivera ordenado fixo,
fora incorporada na Imprensa Régia, sendo provável que o poeta continuasse a prestar
serviços temporários, ou eventuais, de tradutor e revisor à nova empresa, o que aliás,
num caso ou noutro, se pode comprovar. Como quer que seja, até ao agravamento da
sua doença, Bocage esteve sempre activo.
Em Fevereiro de 1802, o impressor Simão Tadeu Ferreira enviou à “Real Mesa
da Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros”, um pedido de licença para
reimpressão do 2º tomo de «Rimas», significando que a edição anterior estava esgotada
ou em vias disso.
Embora sem o emprego na extinta Oficina do Arco do Cego, Bocage continuava
a trabalhar, tendo logo no início do ano produzido uma peça, escrevendo o poema
«Espantosas acções d´Antão Broega memorável narigudo», que só veio a lume em
1835. Em Abril de 1802, foi publicada «Galateia», novela pastoril imitada de Cervantes
por Jean-Pierre Claris de Florian, que o poeta traduziu em volume de 128 páginas. Em
Maio, a Imprensa Régia publicou o elogio que Manuel Maria dedicou «Aos anos
faustíssimos do sereníssimo Príncipe Regente de Portugal». Em Outubro surgiu nos
escaparates o livro «Rogério e Victor de Sabran», tradução elaborada a partir do
francês. Ainda em 1802, publicou uma «Elegia à morte de Anselmo José da Cruz
Sobral», dada a lume pela Imprensa Régia.
De 1802, é igualmente um monólogo composto por Bocage para ser declamado
pelo actor dramático António José de Paula. Possivelmente dessa época, seria a tradução
que fez de «Raimundo e Mariana», romance espanhol. Também nesta fase se pode
incluir a tradução de «Carta Amorosa de Heloísa a Abelardo», do inglês Pope, cujo
texto só seria publicado em 1823, num folheto de 20 páginas.
Carlos Jaca
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Terá sido por esta época, pela leitura do 2º volume de «Rimas», que Filinto
Elísio, no seu exílio de França, teve oportunidade de apreciar o grande poeta, que
Bocage não conhecia pessoalmente, louvando-o numa Ode publicada no 2º Tomo dos
«Poemas», impresso em Paris, considerando-o herdeiro da sua glória poética. Com a
autoridade que lhe advinha de patriarca da poesia arcádica, teceu-lhe um louvor que, por
vir de quem vinha, constituía uma autêntica consagração para Bocage e, parece, que
antes de publicar o elogio, o enviou em manuscrito ao poeta.
Esta curta Ode, que se compõe de quatro estrofes, veio reanimar Bocage e
assegurar-lhe o triunfo decisivo sobre os seus émulos.
Imagine-se a alegria que não terá sentido quando leu a Ode que lhe era dedicada
pelo prestigioso mestre, tanto mais que ainda estava “quente” a célebre polémica com
Agostinho de Macedo:
«Lendo teus versos, numeroso Elmano,
E o não vulgar conceito, e a feliz frase,
Disse entre mim: Depõe Filinto, a lira
Já velha, já cansada,
Que este mancebo vem tomar-te os louros,
Ganhados com teu canto na áurea quadra
Em que ao bom Coridon, a Elfino, a Alfeno
Aplaudia Ulisseia
Rouca hoje, e sem alento, a minha Clio
Não troa sons altivos, arrojados:
Vai pedreste soltando em frouxo metro
Desleixadas cantigas.
Desceu Apolo e o coro das donzelas
A morada de Elmano; e esse que outrora
Canto nos dava nome, o pôs na boca
Do novo amado cisne».
Num improviso, agora estimulado pelo contentamento, como a cólera lhe
inspirou a «Pena de Talião», Bocage dedica a Filinto Elísio um poema que incluiu no
seu terceiro livro de «Rimas», de 1804:
«Zoilos, estremecei, rugi, mordei-vos:
Filinto, o grão-cantor, prezou meus versos.
Sobre a margem feliz do rio ovante
Donde, arrancando omnipotência aos fados,
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Universal terror vibrando em raios,
Impôs tropel de heróis silêncio ao globo,
O imortal corifeu dos cisnes lusos
Na voz da lira eterna alçou meu nome.
Adejai, versos meus, ao Sena, ufano
De altos, fastosos, marciais portentos,
E, ganhando amplo voo após Filinto,
Pousai na Eternidade, em torno a Jove.
Eis os tempos, a inveja, a morte, o Letes:
Da mente, que os temeu, desaparecem.
Fadou-me o grão - Filinto, um vate, um nume
Zoilos! Tremei. Posteridade! És minha».
Provavelmente, terá sido este um dos maiores prazeres que Bocage encontrou na
vida literária, mas também onde se pode observar o alto conceito em que tinha o seu
próprio talento e que não deixa de ser uma manifestação do orgulho que lhe era
peculiar.
Ao ficar novamente desempregado, com a saída da Oficina do Arco do Cego,
Bocage passou a frequentar com maior assiduidade o Convento de S. Vicente de Fora,
em cuja biblioteca existia um fundo de excelentes livros renovado, amiúde, com
volumes publicados no estrangeiro.
Constava que a biblioteca era local suspeito, devido a ser frequentada por
pedreiros – livres e… «outros que tais». Segundo o ex – frade Agostinho de Macedo,
dizia-se existir no Real Convento de S. Vicente de Fora «a loja – mor da pedreirada».
Se era ou não um ponto de reunião da maçonaria, ignora-se. O certo é que era frequente
a presença de personalidades ligadas à maçonaria, com as quais Bocage tinha estreitas
relações, não sendo, por isso, estranho que o poeta se visse de novo a braços com o
Santo Ofício.
Assim, em Novembro de 1802, Bocage era denunciado à Inquisição como
pedreiro – livre. A queixa foi apresentada pelo confessor de uma filha de Roque
Ferreira, administrador do Correio do Reino e amigo de Bocage. Maria Teodora, assim
se chamava a filha do amigo do poeta, ao confessar-se a Frei António da Mãe de Deus,
Carlos Jaca
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religioso do Convento do Varatojo, disse, que «certo dia de Março, depois da
Quaresma, em casa de uns vizinhos de sua escada, vira Bocage, José Maria de Oliveira
e o filho de Matias José de Castro, do qual não sabia o nome, mas que seria conhecido
como capitão Castro, conversando sobre assuntos que suspeitava serem relativos à
maçonaria».
Perante tal denúncia, o Tribunal do Santo Ofício não podia deixar de agir,
motivo por que encarregou o Padre José Reis Marques de proceder às necessárias
averiguações.
O relatório que Reis Marques elaborou merece apreço pela correcção das
informações e ausência de facciosismo. Ao reproduzir o que ouviu à delatora, terá
concluído que, se por um lado existiam elementos susceptíveis de levar à convicção de
que Bocage e os seus amigos estariam ligados à maçonaria, por outro a denunciante
acabaria por confessar nunca ter observado no poeta «coisa que conhecesse ser oposta à
religião».
O Santo Ofício, depois de informado acerca da denúncia, arquivou o processo do
qual, aliás, Bocage nem sequer chegou a ter conhecimento.
Convém ter em conta que, neste período, se fortalecia dentro do Governo a
influência do partido francês em relação ao partido inglês o que, obviamente, faria
diminuir a pressão policial sobre os suspeitos de ideias liberais e, também, a Inquisição
já não teria a força de outros tempos, agora mais tolerante e compreensiva.
Últimos Tempos. Doença e morte.
O ano de 1803 não correspondeu a um período de grande actividade intelectual
de Bocage, pelo menos no que diz respeito à publicação de livros, embora não tenha
deixado de produzir outras obras, facto que levou Teófilo Braga e outros biógrafos a
concluir que a doença que o viria a vitimar estava já em evolução.
Em Julho de 1804 publicou o terceiro tomo de «Rimas», incluindo uma boa
parte de produções que se encontravam dispersas pelas mãos de antigos companheiros.
Só por razões que se podem considerar de ordem burocrática, a publicação deste tomo
demorou nove meses, porquanto o parecer do censor Francisco Xavier de Oliveira diria:
«na verdade, os poemas deste poeta coetâneo, podem ombrear com os dos nossos mais
antigos, Ferreira, Caminha, Miranda e Bernardes e, por isso, merecem com eles serem
Carlos Jaca
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transmitidos ao conhecimento dos séculos futuros e davam glória e credito à nossa
poesia».
Apesar disso, durante este ano de 1804, o poeta, a par com a doença e por via
dela, passa por grandes dificuldades económicas, como se verifica pelas epístolas que
envia aos seus amigos, nomeadamente ao desembargador Vicente Cardoso da Costa e
Gregório Freire Carneiro, implorando-lhes a «benéfica piedade» ou o «socorro eficaz
com que aligeire / dos agros dias o férreo peso». Chega a reconhecer em Freire
Carneiro o benfeitor que «mil vezes» o teria salvo da indigência.
Bocage não era de compleição forte, a sua vida, desregrada, não podia ser de
longa duração, num organismo que a natureza apenas dotara de fracas resistências.
Já anteriormente, dois anos, ou pouco mais, depois de ter chegado da Índia,
foram bastantes para que uma doença perigosa o levasse à cama. Porém, como não tinha
alojamento próprio esteve em casa e aos cuidados da família Bersane Leite, onde
encontrou o mais carinhoso tratamento e recuperou da moléstia.
Onze anos depois, de novo caía doente, mas desta vez sem esperança de
melhoras. Um ano, aproximadamente, lutou com a doença, não lhe faltando a necessária
assistência médica nem a visita carinhosa dos amigos e o interesse dos estranhos. Até os
émulos, os «zoilos», esqueceram (ou fingiram esquecer) os antigos ódios.
Os médicos tinham diagnosticado um aneurisma «que se formou sobre a artéria
cervical interior do lado esquerdo», agravado quando há factores de risco como o
excesso de tabaco e álcool. Dado o quadro clínico verificado, o médico que o tratava,
Manuel Joaquim de Oliveira, não tinha a mais leve esperança de o salvar. A vida de
Bocage estava por um fio, uma questão de dias, ou de meses, quando muito.
No último ano que lhe restou de vida (1805) Bocage já pouco sairia de casa, não
só pelo seu delicado estado de saúde mas também por causa do mau tempo, dado que se
registou um dos mais rigorosos Invernos que se abateram sobre Lisboa. Dia a dia ia-selhe lhe definhando o corpo e enfraquecendo o coração. Agravando, ainda mais, o seu
estado de espírito, acontece que em finais de Março morreu a sobrinha com cinco anos
de idade, deixando-o desolado ainda que, num improviso, a recorde a rir e a folgar
«co´a Divindade». Também não tardaria que a morte levasse mais dois vizinhos, um
velhinho e uma jovem de dezoito anos, não deixando de registar os casos em nota a um
dos seus sonetos.
Junto a si tem todos os dias a irmã, o médico Manuel de Oliveira e Frei João
Maria de Santa Ana de Noronha. Este religioso dos Paulistas, e futuro Bispo de
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Bragança e Miranda, morava próximo de Bocage e era seu amigo de longa data,
cabendo-lhe o trabalho de conforto espiritual perante o trágico desfecho que esperava o
poeta. Incumbia-lhe também, «a reaproximaçao não só com velhos amigos, mas com
antigos desafectos». Assim, pouco tempo depois, o poeta mostrou-se disposto a receber
aqueles que contra ele haviam feito as mais infames intrigas, como Belchior Curvo
Semedo, Miguel António de Barros, Luís Rafael Soyé, João Soyé Waffer e até o padre
José Agostinho de Macedo. Um amigo que não faltava com a visita diária, admirador do
talento de Bocage, e profundamente comovido com a sua desgraça, era o proprietário do
Botequim das Parras, José Pedro da Silva, também conhecido por Zé Pedro das
Luminárias, devido à profusão de luzes com que iluminava as janelas da sua residência,
nomeadamente nos dias festivos. Este amigo não lhe faltava com a sua visita, nem com
o seu auxílio financeiro, o que levava o poeta a declarar, enternecido, que lhe pagava em
«metro» o que dele recebia em «ouro».
Cerca de quarenta anos após a morte do poeta, o bondoso José Pedro das
Luminárias declara a José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha:
«Desde o dia em que Bocage adoeceu, não lhe desamparei o leito, visitando-o
todas as tardes, e, afinal, permanecendo ao seu lado quase sempre. No progresso da
moléstia, incomodado de observar tanta indigência, e notando que todos os amigos lhe
dirigiam produções, a que geralmente respondia com bons sonetos, disse-lhe eu:
- Ó senhor Bocage, dá-me estes versos dos últimos dias? Não mos recusou».
A partir daqui a ideia “luminosa” de Zé Pedro das Luminárias estava em
marcha: conseguir recursos para que Bocage tivesse, até ao resto dos seus dias, um
mínimo de qualidade de vida e… teve.
No dia 6 de Julho de 1805, a “Gazeta de Lisboa” noticiava a publicação de um
folheto intitulado «Improvisos de Bocage, na sua mui perigosa enfermidade,
dedicados a seus bons amigos», a quem devia a sua subsistência, encontrando-se à
disposição do público na «na loja da “Gazeta”, na de bebidas de José Pedro, ao
Rossio, junto à do Nicola, e em casa do autor que mora na Rua de André Valente, 11, 4º
andar, defronte da Igreja das Mercês».
Por iniciativa de José Pedro, o folheto saíra a público em apenas três dias, «por
ordem superior». Sem dúvida, que o dono do Botequim das Parras teria desencadeado
as suas influências para que a “Real Mesa” autorizasse com a máxima urgência a
publicação pela Imprensa Régia.
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O folheto saiu com vinte e quatro páginas incluindo, além de uma quadra –
epitáfio, catorze sonetos de Bocage e mais seis da autoria de Pato Moniz, Tomás
António dos Santos e Silva, Domingos Maximiano Torres, J. A. Soares e um anónimo
que Manuel Maria dizia ser fácil reconhecer pelo seu estilo.
No depoimento que José Pedro da Silva fez a José Feliciano de Castilho,
recordava que, «o dinheiro que de dia colhia, entregava-lho à noite». Lembra-se, ainda,
de obrigar Bocage a dedicar exemplares a gente abastada, acompanhados de cartas do
próprio punho e que «em resposta, geralmente, vinham dez, vinte mi réis e mais» …
«Bocage em sua vida nunca vira tanto dinheiro junto», garantia José Pedro.
Em poema de abertura, Bocage agradecia aos amigos, identificando-os. A edição
esgotou-se rapidamente, sendo tal o êxito que o proprietário do Botequim das Parras e
outros amigos prepararam nova colectânea que viria a sair no mês seguinte.
Efectivamente, a «Colecção dos Novos Improvisos de Bocage na sua moléstia,
com as obras que lhe foram dirigidas por vários poetas nacionais» sai em Agosto de
1805 e, conforme refere a “Gazeta de Lisboa”, em homenagem à «triste situação» de
Bocage «por causa do aneurisma que padece», o que revela que todo o Reino estava ao
corrente da situação do poeta.
A obra era dedicada «ao seu benéfico amigo Marcos Aurélio Rodrigues,
cavaleiro professo da Ordem de Cristo e deputado e tesoureiro da Junta Económica,
Administrativa e Literária da Impressão Régia», que talvez tenha contribuído para a
celeridade com que o folheto saiu. Também lhe dedicou um soneto acompanhado da
seguinte nota: «Foi sempre com os tesouros da memória e da fama que os poetas
pagaram a seus benfeitores; mas esta paga será sempre mui valiosa para as almas
sensíveis e elevadas». Noutro soneto dedicado «aos amigos», incluiu o nome do
capitalista Joaquim Pereira de Almeida que conhecera em Macau.
Desta obra faz parte, ainda, um soneto que dedicou a António Mendes Bordalo
em retribuição a outro que recebera. Bordalo tinha relações com as pessoas mais
notáveis de Lisboa, como José Seabra da Silva e o ministro Martinho de Melo e Castro,
personalidades que tiveram influência de peso no desenrolar do processo quando o
poeta esteve sob a alçada da Inquisição. Também Vicente Pedro Nolasco da Cunha,
sobrinho do célebre matemático José Anastácio da Cunha, foi homenageado com um
soneto.
Os «Novos Improvisos» marcam também a reconciliação final de Bocage com
Curvo Semedo e Agostinho de Macedo. Nesta obra, Bocage troca elogios com Macedo,
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que já em «Improvisos» considerara «mui sobranceiro aos engenhos vulgares», e a
propósito de quem aqui exclama «cantas, ó génio, como os deuses falam!». Refere-se,
também, a Semedo que tem agora na conta de «divino cantor». Outro poeta com quem
Bocage se reconciliou foi Miguel António de Barros, que lhe dedicou um soneto na
«Colecção de Novos Improvisos».
A influência de Frei José Maria de Santa Ana, a precária saúde do poeta e
sobrevivendo, fundamentalmente, de favores de amigos, tê-lo-ão quebrado e a aceitar
situações que noutras circunstâncias teria recusado.
Durante o mês de Setembro foram publicados dois folhetos: o idílio pastoril
«Mágoas Amorosas de Elmano», onde descreve uma «cena tão suave aos amadores»
possível de «amenizar o horror da morte / que, de asas negras» lhe «esvoaça em
torno». O outro folheto, igualmente um idílio, «A Saudade Materna, na prematura e
chorada morte da senhora D. Ana Raimundo Lobo, filha do senhor Roque Ferreira
Lobo, administrador do Correio Geral», e irmã de Teodora Lobo que o denunciara ao
Santo Ofício. Escreve, ainda, «A Gratidão, elogio dramático para recitar Claudina
Rosa Botelho no dia do seu benefício», folheto de oito páginas, impresso pela Oficina
de António Rodrigues Galhardo, e a tradução de «Erícia ou a Vestal», folheto de
sessenta e cinco páginas, pela Impressão Régia, destinada ao palco do teatro dirigido
pelo morgado de Assentis.
Pouco tempo depois, anuiu que chamassem ao seu quarto o pintor Henrique José
da Silva para que lhe fizesse um retrato, o que era indicativo de que o seu fim estava
próximo e os seus amigos procuravam preservar a sua imagem para a posteridade. O
retrato apresenta-o «com dignidade, de rosto magro, cabelo grisalho caído em farripas
sobre a testa alta e olhos brilhantes».
Em meados de Dezembro, oito dias antes da sua morte, era anunciada, para
breve, uma colecção de sonetos, alguns dos quais dedicados a Nelson, Almirante inglês,
morto na batalha de Trafalgar, mas… tinha chegado a sua hora.
Já não consegue levantar-se e recebe os amigos sentado no leito, encostado à
cabeceira com a ajuda de uma almofada. O mal agrava-se a tal ponto que, o médico, Dr.
Manuel Joaquim de Oliveira, esperava o desenlace fatal a cada momento e, até, o
próprio Bocage tinha consciência de que o seu destino estava traçado:
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«Adeus, ó génios que Ulisseia admira!
Cantor, que honrastes, honrareis cantores,
Versos, pranto lhe dai, que Elmano expira!
Deixai-lhe a cinza em paz fatais amores;
E vós, do extinto vate a campa e lira,
Virtudes, que exaltou, cobri de flores!»
Assim foi. Na manhã de 21 de Dezembro, um sábado frio e ventoso, o poeta
entrou em agonia. No testemunho de sua irmã, Maria Francisca, e das pessoas que se
tornaram íntimas da casa, a morte de Bocage foi serena. De facto, pode inferir-se que o
poeta estava espiritualmente preparado, situação a que não teria sido estranha a
constante assistência religiosa de Frei José Maria de Santa Ana de Noronha.
«Post Mortem».
Ao concluir este trabalho de divulgação não poderia deixar de abordar dois
aspectos que, desde a morte do poeta, foram e continuaram a ser objecto de várias
versões e consequente polémica. Refiro-me ao caminho, ou descaminho, de boa parte
da sua produção inédita e ao soneto «Já Bocage não sou»! …
Aceitando o testemunho de Nuno Álvares Pereira Pato Moniz, grande amigo de
Manuel Maria, a reconciliação de José Agostinho de Macedo com Bocage teria sido
nefasta para a preservação da maior parte da produção inédita do poeta. Após a
reconciliação, reconquistando a amizade do doente, Macedo passou a frequentar a sua
casa captando a confiança de Maria Francisca, permitindo-lhe apoderar-se de
manuscritos, a pretexto de fazer a sua revisão e prepará-los para publicação.
A este propósito, Teófilo Braga aventa a hipótese de Agostinho de Macedo ter
como principal objectivo apoderar-se, também, da sátira «Pena de Talião», ainda
inédita, rasgá-la ou escondê-la, evitando a sua publicidade.
Porém, Inocêncio Francisco da Silva parece pôr as mãos no lume pela
sinceridade de Macedo, justificando a sua boa fé com uma epístola e uma ode que
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enviara a Bocage e, outra, durante a sua enfermidade, em que previa a imortalidade do
ex - rival: «… Entre os mortais, Elmano, eterno vives».
Por outro lado António Maria Couto, já referido como seu primeiro biógrafo,
acusa peremptoriamente Macedo de ter vendido cópias de versos de Bocage – «que não
eram poucos» – «negociando com o alheio». Conquanto não se possa considerar fonte
imparcial em relação a Agostinho de Macedo, tem a favor o facto de ter sido
contemporâneo dos acontecimentos.
Voltando a Pato Moniz, o amigo do poeta declara que, Macedo: «sendo seu
antiquíssimo e acerbo inimigo, a título de reconciliação, se lhe aproximasse nesses
momentos fatais e metesse a proveito a atribulação da sua família para praticar com
ele a última perfídia e roubar um lauro à sua memória, escondendo ou aniquilando os
seus manuscritos». Com esta afirmação, Moniz não deixava dúvidas de que Macedo
fora o autor do descaminho de inéditos de Bocage. Quais? Quantos? Não se sabe.
O que se depreende é que terá sido Macedo quem ficou com os manuscritos,
porquanto, ele próprio, confessou em 1813 que os referidos manuscritos haviam ficado
em suas mãos («Quem quiser ver os originais, vá à minha casa») e nas da irmã do
poeta, com a finalidade de serem recuperados para a edição dos «verdadeiros» quarto e
quinto volumes da obra poética de Bocage. Só que… essa promessa nunca se cumpriu e
Macedo nunca deu satisfações, nem prestou esclarecimentos a respeito dos manuscritos.
Deste modo, terá ficado a dúvida que os tenha destruído ou extraviado.
Porém, era público e notório que Macedo sempre alimentou grande rancor
contra o poeta setubalense e que este ingenuamente, ou pelas circunstâncias, tivesse
tomado a reconciliação como sincera. Parece que, mesmo depois da morte, Bocage
continuava a fazer-lhe sombra, como ressalta de uma carta dirigida, menos de um ano
depois do seu falecimento, a Frei Francisco Freire de Carvalho, Superior do Colégio da
Graça de Coimbra. Ao comentar a notícia da “Gazeta de Lisboa” de que estavam à
venda gravuras feitas por Bartolozzi sobre o retrato do poeta pintado por Henrique José
da Silva, Macedo foi rude, corrosivo: «Ainda não parou a disenteria que inquieta as
cinzas do vatalhão Bocage; que mania!»
No Rio de Janeiro, as obras de Bocage são publicadas quase em simultâneo com
a sua saída em Portugal e, em Londres, o jornal “O Investigador Português em
Inglaterra” , dirigido por Bernardo Abrantes e Vicente Nolasco da Cunha, além de
ridicularizar o poema «Gama» com que Macedo pretendia ultrapassar Camões, chega ao
ponto de publicar “Pena de Talião” e elogiar o «imortal Bocage».
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A inveja de Macedo era indisfarçável. Ao publicar «Motim Literário», em 1811,
ataca declaradamente as duas escolas literárias que já apareciam definidas – o
“elmanismo” e o “filintismo”: «têm aparecido agora dois que fizeram seita, e que
contam adeptos, o primeiro é o tal Filinto para os do Mondego, e o segundo é um tal
Elmano para os do Tejo. Nas composições dos mancebos dados a metromania não
transpira outra coisa mais que o mecanismo dos versos, a cantilena, os pensamentos
destacados de um e a aspereza e pedantesca cerzidura de palavras antigas do outro.
Quantos danos produz esta perniciosa mania.!...»
Quer tenha ou não destruído, ou extraviado, manuscritos inéditos do poeta, não
repugnará pensar que José Agostinho de Macedo tinha “estômago” para o fazer e… se
calhar fê-lo … o mais rancoroso caluniador de Bocage.
Segundo António Maria Couto, Bocage compôs até aos seus derradeiros
momentos, tendo, num último arranco poético, improvisado o «imortal soneto com o
qual fechou a sua carreira literária»: «Meu ser evaporei na lida insana…».
Além deste, outro soneto teria andado de mão em mão nos cafés do Rossio e em
toda a capital, pouco depois da morte de Manuel Maria, e que o morgado de Assentis
teria registado a «velocidade taquigráfica», antes do poeta exalar o último suspiro:
«Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura:
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa! … Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do sonho fantástico corria:
Outro Aretino fui… A santidade
Manchei! …Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!»
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Depois da análise feita aos elementos disponíveis, julgo que a questão do soneto
«Já Bocage não sou»!...tem muito a ver com o momento em que foi escrito e, até, com
o seu autor.
Alguns estudiosos de Bocage, não consideram muito verosímil que, às portas da
morte, e mesmo mantendo a lucidez, ditasse um improviso cuja qualidade exigia
trabalho e tempo, dado «todo o esquema métrico, rimático e metafórico a roçar a
perfeição». Só decorrido algum tempo, após a sua morte, se começou a divulgar essa
cena dramática, na qual ninguém falou. De facto, só muitos anos depois, o morgado de
Assentis (ele próprio havia de ditar o seu último soneto, revelando predilecção por
lances deste género) em depoimento a Inocêncio Francisco da Silva, disse que tinha
escrito o poema ditado por Bocage, «num momento de transfiguração que antecedera a
sua morte».
Se assim aconteceu, natural seria que o soneto «Já Bocage não sou!..., tivesse
sido incluído nas edições publicadas imediatamente a seguir à morte do poeta. Ora, nas
edições dos «Improvisos» de Bocage de 1805 a 1810, vindas a lume em Lisboa e Rio de
Janeiro, e que constam da Biblioteca Nacional de Lisboa, não aparece o celebrado
soneto, que deve ter sido incluído em edições posteriores; e nem a irmã, Maria
Francisca, nem Pato Moniz, dilecto amigo, nem Frei José Maria de Santa Ana, nem o
fiel José Pedro da Silva, quase constantemente à sua cabeceira, fazem referência a
documento de tamanha importância.
Além disso, Pato Moniz refere que nos seus últimos tempos de vida, Bocage «já
raramente improvisava» a conselho, inclusive, dos «seus verdadeiros amigos», que
viam «em seus improvisos uma grande ruína de sua saúde». Acrescente-se que, quando
improvisava, o poeta em seus «tropéis de fantasia, descorava, afogueava-se,
estremecia, caía-lhe em bagas o suor e não comia». Embora se possa pensar que o
soneto tenha sido feito, dias ou meses, antes de surgirem as inibições da fase terminal da
doença, mas em que, provavelmente, o poeta já não alimentava sequer uma ténue
esperança de vida, não foram poucos os que duvidaram da autenticidade do poema.
De facto, pode dizer-se que Bocage, em alguns versos do poema se penitencia de
erros que não cometeu, exagerando ou, até entrando em contradições, situação que lhe
não era de todo estranha. Vejamos:
«Eu aos céus ultrajei»!... «A santidade manchei…». Através de toda a sua
obra, em prosa e em verso, parece ser difícil detectar qualquer passagem em que a
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consciência o possa acusar de ter «ultrajado os céus». Bocage nunca foi ateu e, desde
cedo, demonstrou a sua crença religiosa que jamais renegou, mesmo estando preso na
Inquisição por perfilhar ideias que considerava perfeitas, proclamando bem alto: «Não
sou vil delator, vil assassino, / Ímpio, cruel, sacrílego, blasfemo; / Um Deus adoro, a
Eternidade temo. /Conheço que há vontade, e não destino» …
Não é coisa que se possa estranhar na Lírica de Bocage a presença de Deus e o
culto a Santa Maria, legando várias composições de tema religioso exaltando os
sagrados dogmas da religião católica.
Marina Freitas, num ensaio intitulado «Rimas de Bocage», com base no Tomo I
das «Rimas», 2ª edição, prefaciada pelo próprio Autor, dada à luz em 1794 e existente
na Biblioteca Pública de Braga, refere o Soneto 78 em que o poeta setubalense
«condensa numa bela síntese o prodígio do Presépio, a Lei da Graça do Redentor, o
suplício da morte de Cristo», ao dizer: «Se considero o triste abatimento / Em que me
faz jazer minha desgraça, / … me diz o pensamento, /Para aplacar-me a dor, que me
trespassa, /Que esse, que trouxe ao Mundo a Lei da Graça, / Teve num vil Presépio o
Nascimento: / Vejo-o morrer depois, ó Pecadores, / Por nós, e fecho os olhos,
adorando / Os castigos do Céu como favores.»
No Soneto 87, roga à Virgem: «Tu, por Deus entre todas escolhida, / Virgem
das Virgens…/ Valha-me o teu Poder, e Amor materno, / Guia este cego, arranca-me
da estrada / Que vai parar ao tenebroso Inferno.»
Suponho bastarem estas breves e incompletas transcrições para não haver
qualquer dúvida acerca do espírito religioso de Bocage que era, de facto, um cristão
convicto, só que talvez não visse com bons olhos a hipocrisia de muitos religiosos seus
contemporâneos, o que até vinha ao encontro da orientação vigente, porquanto Pina
Manique pretendia eliminar, de qualquer modo, os eclesiásticos de «maus costumes e
comportamento relaxado ou escandaloso».
«Rasga meus versos, crê na Eternidade»! Não é crível que o poeta pedisse que
rasgassem os seus versos, tanto mais que sempre receara se perdessem para a
posteridade.
Que versos seriam esses, em que o poeta renega a sua obra, pedindo à «gente
ímpia» que rasgasse os seus versos e cresse na Eternidade? Seria uma referência aos
improvisos satíricos e obscenos que lhe teriam valido, em tempos, a fama de
chocarreiro? Uma fama que hoje, aliás, não corresponde ao que se conhece da sua obra.
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Ao fim e ao cabo, o que se constata é que Bocage, excluindo uma ou outra
produção menor, não teria muito de que se arrepender. As «Cartas de Olinda a
Alzira», que lhe são atribuídas e podendo considerar-se «um hino de amor libertino»,
foram escritas por Voltaire e, por isso, não lhe podem ser creditadas. No canto «A
Manteigui», condena-se um «corpo vil», que apenas por interesse se entrega ao
adultério. Desse modo, aqui, a sátira cumpre uma função morigeradora, razão pela qual
nem esses versos mais obscenos merecerão que a «gente ímpia» os rasgue, para
acreditar «na Eternidade». Mesmo a famosa epístola a «Marília», em que aparece ao
vivo a «Pavorosa ilusão da Eternidade», considerada a mais ímpia composição poética
que «Elmano Sadino» escreveu, não deixa de louvar o seu Deus: «Há Deus, mas Deus
de paz; Deus de piedade, / Deus de amor, pai dos homens; não flagelo; / Deus que às
nossas paixões deu ser, deu fogo, / Que só não leva a bem o abuso delas, / Porque à
nossa existência não se ajusta, / Porque ainda encurta mais a curta vida».
Certamente, não seria com estes versos que Bocage teria «ultrajado os céus» ou
«manchado a santidade». Assim, como entende Adelto Gonçalves, o arrependimento de
Bocage é desproporcional às suas culpas, o que «só reforça a imagem de homem
contraditório que construiu ao longo de toda a sua produção».
Embora levasse, em tempos, uma vida desregrada a que, talvez, não possa ser
estranho o facto de ter visto cedo o pai afastar-se e cedo perder a mãe, Bocage nunca foi
sacrílego, nem libertino.
«Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois
dele decaiu. Da sua geração, e das que a precederam, foi ele o máximo cinzelador da
métrica. A plástica da língua e do metro; a perícia no ensamblar das orações e no
escandir dos versos; a riqueza e graça do vocabulário; o jogo sábio e às vezes
inesperado das vogais e das consoantes dentro da harmonia da frase; a variação
maravilhosa da cadência; a sobriedade das figuras; a precisão e o colorido dos
epítetos; todos estes difíceis e complicados segredos da arte poética, cuja beleza e
raridade às vezes escapam até aos mais cultos amadores da poesia e aos mais argutos
críticos literários, e que somente os iniciados podem ver, compreender e avaliar; esta
consciência, este gosto, esta medida, este dom de adivinhação e de tacto, de que os
artistas natos têm o privilégio – tudo isto coube a “Elmano”, tudo isto se entreteceu no
seu talento. Depois dele, Portugal teve talvez poetas mais fortes, de surto mais alto, de
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mais fecunda imaginação. Mas nenhum o excedeu nem o igualou no brilho da
expressão».
Olavo Bilac (Poeta brasileiro)
Bibliografia consultada.
Alcântara, Adriano – «Bocage». Editora Planeta DeAgostini. Lisboa, 2004.
Amaral, Elói do – «Bocage, Fragmentos de um estudo autobiográfico». Editora
Ulisseia.
Arranja, Álvaro – «Bocage e a Revolução Francesa».Revista «História», nº 127,
Abril de 1990.
Braga, Theophilo – «Bocage, Sua vida e época literária». Livraria Chardron –
sucessores Lello & Irmão. Porto, 1902.
Cidade, Hernâni – «Bocage». Editorial Presença. 2ª Edição, 2005.
Coelho, Jacinto do Prado – «Bocage: a vocação do obscuro». A Letra e o Leitor.
Lisboa, Morais, 1972.
Domingues, Mário – «Bocage». A sua vida e a sua época. Livraria Romano
Torres, 1942.
Freitas, Marina da Silva – «Rimas de Bocage», ensaio, Braga, edição da autora,
1971.
Gonçalves, Adelto – «Bocage, O Perfil Perdido». Editorial Caminho. Lisboa,
2003.
Menezes, Carlos José de – «Bocage». Sua vida histórica e anedótica. Guimarães
& Cª – Editores.
Monteiro, Gomes – «Bocage, Esse Desconhecido». 2ª Edição. Livraria Romano
Torres.
Murta, Guerreiro – «Bocage, Poesias». Livraria Sá da Costa – Editores. Lisboa,
1944.
Nemésio, Vitorino – «Bocage». Editorial Verbo, 1972.
Nemésio, Vitorino – «Bocage» Sonetos. Livraria Clássica Editora, 1956.
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poetas, e a quem Bocage