PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luis Gustavo de Paiva Leão A quebra da base objetiva dos contratos MESTRADO EM DIREITO CIVIL SÃO PAULO 2010 II PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luis Gustavo de Paiva Leão A quebra da base objetiva dos contratos MESTRADO EM DIREITO CIVIL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Civil sob a orientação do Professor Doutor Sílvio Luis Ferreira da Rocha. SÃO PAULO 2010 III Banca Examinadora ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ IV AGRADECIMENTOS A todos que, de uma forma direta ou indireta, contribuíram para este trabalho; e em especial para minha esposa, amigos e professores da PUC-SP, e meus familiares e companheiros de trabalho que muito puderam acrescentar a meu conhecimento e experiência. V Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas. (O fundamento da justiça é a boa-fé, isto é, o cumprimento sincero dos compromissos e acordos.) Cícero – De Officiis, Proêmio VI RESUMO LEÃO, Luis Gustavo de Paiva. A quebra da base objetiva dos contratos. 120 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2010. Por meio de uma sucinta análise das origens históricas do contrato, considerado enquanto acerto de partes com aval do Estado, observado em suas aplicações práticas, pretende-se analisar a quebra da base objetiva dos contratos, verificando as consequências desta ruptura tanto na jurisprudência como nas relações sociais envolvidas, bem como as possibilidades interpretativas da questão. A relevância do tema se demonstra por si só, vez que a sociedade contemporânea é contratualista em quase todos os aspectos, e a não observância dos termos contratuais é causa de inúmeros transtornos que impactam sobre a harmonia da vida social em todas as esferas: do nível familiar ao governamental. Temas como a autonomia e a liberdade contratual esbarram em questões que necessitam de revisões ético-políticas. Como objetivo principal subsiste a caracterização de como, quando e em que circunstâncias se pode alegar que houve a quebra da base objetiva do contrato, e, diagnosticada esta quebra como se procede diante da situação: haverá possibilidade do estabelecimento de novo acordo ou apenas restará a configuração de penas e ressarcimentos. Os objetivos secundários apontam para a identificação de efeitos diretos e indiretos da situação, e na ação das leis para este tipo de ocorrência. Será utilizado o método dedutivo para o desenvolvimento da pesquisa, sendo a revisão da literatura sobre o tema a fonte básica para o enriquecimento das discussões, no convite a autores que já se debruçaram sobre o assunto em livros, artigos, teses e demais dissertações. Palavras chave: contrato, quebra de contrato, base objetiva, ações conciliatórias. VII ABSTRACT LEÃO, Luis Gustavo de Paiva. The collapse in the objective basis of contracts. 120 pages. Dissertation (Master´s degree). Law School - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2010. Through a brief analysis of the historical origins of the contract, taking into account as party settlements with the State endorsement, observed in its practical applications, we intend to analyze the collapse in the objective basis of contracts, verifying the consequence of such breakaway, both in the jurisprudence as in the social relations involved, and as the interpretative possibilites of such issue. The relevance of the subject is shown by itself, once the contemporary society is contractarian in almost all respects, and the non compliance of the contractual terms is a result of numerous disorders that cause impact on the harmony of social life in all spheres: familiar level up to the governmental. Themes such as autonomy and contractual liberty come up against issues that need ethical-political reviews. As the main objective remains the characterization of how, when and under what circumstances it is possible to affirm that there was a collapse in the objective basis of the contract, and diagnosed such collapse, how to proceed in such situation: there will be a possibility of establishing a new agreement or just be left to setting penalties and compensations. The secondary objectives point to the identification of direct and indirect effects regarding the situation, and in the action of laws to this type of occurrence. The method that will be used is the deductive method in order to develop the research, being the review of literature on the theme the basic source to enrich discussions in the invitation to authors that have already leaned on the theme in books, articles, theses and further dissertations. Key Words: Contract, Contract breach, objective basis, conciliatory actions. VIII SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 CAPÍTULO I – HISTÓRICO E ANTECEDENTES ..................................................... 14 1.1 Evolução Histórica do Contrato ..................................................................... 14 1.2 Constitucionalismo e Direito Civil .................................................................. 24 1.3 Princípios Informadores do Código Civil de 2002 ......................................... 30 1.3.1 Princípios Estruturais ........................................................................... 31 1.3.2 Princípios Gerais de Direito e Cláusulas Gerais ................................. 34 1.4 Participação do contrato na vida cotidiana contemporânea .......................... 39 CAPÍTULO II - PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL....................................... 40 2.1 Autonomia e Liberdade Contratual ............................................................... 40 2.2 Princípio da Iniciativa Privada ....................................................................... 43 2.3 Igualdade, Paridade e Equidade ................................................................... 49 2.4 Obrigatoriedade ............................................................................................ 50 2.5 Intangibilidade ............................................................................................... 51 2.6 Boa-Fé .......................................................................................................... 51 2.7 Relatividade de Efeitos ................................................................................. 56 2.8 Justiça Contratual ......................................................................................... 58 2.9 Função Social ............................................................................................... 61 CAPÍTULO III – QUEBRA DA BASE OBJETIVA DOS CONTRATOS ...................... 70 3.1 Teoria da Causa ........................................................................................... 73 3.2 Base Objetiva do Negócio Jurídico ............................................................... 78 3.3 Requisitos para a Aplicação da Teoria da Quebra da Base Objetiva ........... 82 3.4 Consequências da Quebra da Base Objetiva ............................................... 86 IX CAPÍTULO IV - REVISÃO CONTRATUAL ................................................................ 89 4.1 Embasamento Teórico da Revisão Contratual .............................................. 89 4.2 Fundamentos Legais para a Revisão dos Contratos .................................... 90 4.3 Requisitos para a Revisão Contratual ........................................................... 91 4.4 Importância das Cláusulas Gerais para a Revisão Contratual no Novo Código Civil ..................................................................................................................... 95 4.5 Características da Ação de Revisão Contratual ............................................ 97 4.6 Integração do Juiz na Relação Contratual .................................................... 98 4.7 Revisão Contratual com fundamento na Teoria da Quebra Base Objetiva . 101 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 111 INTRODUÇÃO Quando Rousseau escreve sobre o Contrato Social1 em meados do século XVIII, no âmago das questões iluministas, sua intenção não era a de enobrecer o caráter natural da liberdade humana, mas sim, reforçar como, de um modo ou de outro, os homens em sociedade se enredam em acordos diretos ou indiretos que acabam transformando a vida numa sucessão de contratos. As ações humanas passam de um estado de liberdade natural para uma conduta. Em alguns casos a conduta é anterior à existência do homem, pois já estava determinada pelo grupo de pessoas às quais se junta o novo ser, o que torna o pequeno homem “preso” a um contrato mesmo antes de sua noção sobre os fatos. Conforme cresce, o homem pode aceitar as normas de conduta ou desviar-se delas. Esta decisão pode lhe ser custosa e remeter a consequências nem sempre reparáveis. Quando de comum acordo, lança-se em novos ajustes, seja de caráter interpessoal ou ligado a ações comerciais. É nesse momento que o Direito entende o estabelecimento de um verdadeiro contrato. Assim sendo, rodeado de contratos por todos os lados, o homem tem duas opções de conduta: honrá-los ou não. Por meio do presente trabalho objetiva-se analisar e compreender como ocorre o descumprimento do contrato, tendo em vista a existência de diferentes motivos para que isto ocorra, e, por trás destes motivos, os interesses de todas as partes envolvidas direta e indiretamente, e, diante dessa multiplicidade de fatores buscar saber como se deve proceder aos fatos, analisando a situação pela vertente do Direito. Partindo do pressuposto de que os contratos cuja execução prolonga-se no tempo ficam expostos à grande número de vicissitudes, – boa parte delas podendo ser atribuída às modificações das bases econômicas contratuais – há que se observar a permanente relação de tensão entre a estabilidade e a mudança, entre a 1 A obra maior do pensador suíço Jean-Jacques Rousseau, o Contrato Social (1762) é na realidade parte de um obra mais extensa, as Instituições Políticas, que acabou sendo destruída pelo próprio 11 segurança e a inovação, entre a permanência e a ruptura.2 Ao Direito cabe não apenas cotejar estas situações, mas dar-lhes solução quando necessário. Rousseau lastimava o fato da maioria de nossos males ser obra nossa, afirmando que os evitaríamos, quase todos, se conservássemos uma forma de viver simples, uniforme e solitária - que nos era prescrita pela natureza. Impensável nos dias de hoje, com a alta complexidade da sociedade em que estamos inseridos supor possível uma vida simples, uniforme e solitária, a fim de evitar aborrecimentos. No entanto, o próprio Rousseau sabia que muitos destes males poderiam ser discutidos em caráter conjunto com o apoio das leis, já que o Estado seria legitimado para tanto, fato este incontroverso nos dias de hoje, já que a sociedade complexa cada vez mais clama e busca pelo aparato do Estado para resolução de suas aflições privadas, provindas na grande maioria das vezes de relações interpessoais fundamentadas em contratos de toda natureza possíveis. Assim, entender sumariamente do que se trata o contrato, para que se possa analisar como se dá a quebra contatual, exige uma breve análise histórica, que, remontando às origens das obrigações contratuais descritas por Justiniano há quase dois mil anos, até a cena contemporânea, mais especificamente a realidade brasileira após as alterações do Código Civil em 2002, levará a compreensão da evolução deste tipo de acordo voluntário, e sua força dentro das relações sociais e comerciais nas sociedades. Ao tratar sobre a quebra da base objetiva de contratos, dar-se-á destaque às relações sociais envolvidas, bem como às possibilidades interpretativas da questão. A relevância do tema sustenta-se no fato de que cada vez mais a sociedade contemporânea é contratualista, e que a não observância dos termos contratuais é causa de inúmeros transtornos que impactam sobre a harmonia da vida social em esferas que avançam do nível familiar ao governamental. Muitos dos assuntos tratados no passado de forma verbal começaram a ser regulamentados por contratos escritos e cláusulas, criando situações novas para dilemas antigos. 2 Conforme Judith MARTINS-COSTA prefaciando obra de Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, pp. XVIII -XIX. 12 Temas como a autonomia e a liberdade contratual esbarram em questões que necessitam revisões ético-políticas e conferem necessidade de impessoalidade ao tema. O desenvolvimento do assunto procurará caracterizar como, quando e em que circunstâncias se pode alegar que realmente houve quebra na base objetiva de um contrato, e como se deve proceder diante dessa situação: haverá possibilidade do estabelecimento de novo acordo ou apenas a configuração de penas e ressarcimentos? A identificação de efeitos diretos e indiretos da situação, e na ação das leis para este tipo de ocorrência também serão abordados como objetivos secundários. O método escolhido para o desenvolvimento da pesquisa é o dedutivo 3, e a revisão da literatura é a fonte básica para o enriquecimento das discussões sobre o assunto, no convite a autores que já se debruçaram sobre o tema em livros, artigos, teses e demais dissertações. Num primeiro momento será feita breve análise histórica do conceito de contrato e das bases do Direito, com foco específico nos princípios do Direito Contratual e suas relações com a vida contemporânea, a fim de contextualizar o tema a ser tratado. Em seguida será analisado o cerne da questão: a quebra da base objetiva dos contratos, buscando delineá-la, Tendo debatido o núcleo da questão, isto é, a quebra da base objetiva, serão abordadas suas consequências, a saber: a legitimidade das revisões, o restabelecimento de novos contratos, bem como os imprevistos assumidos por questões decorrentes da situação de quebra. Por fim, objetiva-se interligar os três capítulos, relacionando teoria e prática, e sintetizar as principais ideias que podem auxiliar profissionais do Direito frente a situações de quebra de base objetiva de contratos em situações atuais regidas pelo novo Código Civil brasileiro. 3 Pelo método dedutivo, organiza-se e especifica-se o conhecimento que já se possui sobre um determinado tema. Ele tem como ponto de partida o plano do inteligível (ou seja: da verdade geral, já estabelecida) e converge para um ponto interior deste plano. A partir de considerações já feitas sobre um assunto estabelecem-se e ressaltam-se pontos de interesse para a compreensão de uma situação ou problema. 13 14 CAPÍTULO I – HISTÓRICO E ANTECENTES Para a perfeita compreensão da quebra da base objetiva dos contratos, se faz necessária breve análise da evolução histórica do direito e, principalmente, do regime jurídico pátrio em que se funda o contratualismo. No entanto, cabe esclarecer que a problemática dessa análise reside em saber em qual momento a relação contratual tornou-se objeto de estudo do direito, e como a extinção dos contratos foi tratada em cada momento histórico. Existem referências de acordos entre homens desde a pré-história, mas somente em Roma, com Justiniano, é que os acordos ganham ares contratuais e leis de obediência. Uma vez constatado que os romanos foram os primeiros a fazer distinção nítida entre o direito e a moral, estabelecendo pressupostos à norma jurídica autônoma e codificando regras de condutas que eram essenciais à manutenção de sua civilização, utilizar-se-á o Direito Romano como o ponto de partida. No entanto, considerações complementares tratarão da questão contratual no Renascimento, com ênfase no crescimento mercantil e no período iluminista, quando a discussão sobre o direito ganhou novos ares com tratados e adequações às bases do capitalismo instaurado. Fará parte dessa análise histórica, ainda que de forma sucinta, a questão contratual no Código Civil brasileiro, sua evolução e alterações mais significativas. 1.1 Evolução Histórica do Contrato Surgido no direito romano, com inspiração religiosa, o contrato se firmou no direito canônico assegurando à vontade humana a possibilidade de criar direitos e obrigações. Os canonistas atribuíam relevância de um lado ao consenso, e de outro à fé jurada, preconizando que a vontade seria a fonte da obrigação, bastando para criar o contrato a sua declaração. Orlando Gomes assevera: 15 O respeito à palavra dada e o dever de veracidade justificam, de outra parte, a necessidade de cumprir as obrigações pactuadas, fosse qual fosse a forma do pacto, tornando necessária a adoção de regras jurídicas que assegurassem a forma obrigatória dos contratos, mesmo os nascidos do simples consentimento dos contratantes.4 A teoria da autonomia da vontade, contribuição dos canonistas, foi desenvolvida pelos juristas e filósofos que antecederam a Revolução Francesa, e afirmava a obrigatoriedade das convenções, equiparando-as à própria lei para as partes contratantes. Estabelece-se assim o princípio pacta sunt servanda, que em tradução livre significa que “os pactos devem ser observados”, princípio este vigente até os dias de hoje na doutrina contratual, e que expressa a força obrigatória dos contratos. Rogério Ferraz Donnini acerca da noção de contrato para os romanos afirma: O contrato, para os romanos, por ser um acordo de vontades, era o que se denominava conventio; possuía força obrigatória e possibilitava a respectiva ação judicial em caso de inadimplemento.5 No entanto, a reapreciação do conteúdo de um contrato em virtude de eventos supervenientes que alterassem as circunstâncias de uma relação contratual era permitida já no Império Romano. Os teóricos do Direito Canônico da Idade Média desenvolveram a ideia da possibilidade de uma das partes rever a relação contratual em virtude de sua impossibilidade econômica de cumprimento do contrato, decorrente de evento superveniente que superasse o risco previsível do negócio jurídico, era o surgimento de um novo princípio o rebus sic standibus.6 Neste período, a manutenção do equilíbrio estava estreitamente associada à preocupação pela justiça do conteúdo. Seria injusto manter a vinculação se as circunstâncias se alterassem radicalmente. E, muito embora na Idade Média e nos períodos subsequentes permanecesse em vigor o princípio pacta sunt servanda, o Código Justiniano já fazia valer cláusula 4 Orlando GOMES, Contratos, p. 5. Rogério Ferraz DONNINI, Responsabilidade Civil Pós-Contratual, p. 7. 6 Álvaro Villaça AZEVEDO, Princípios gerais de direito contratual aplicáveis à divida externa de países em desenvolvimento. In Repertório Eletrônico de Jurisprudência IOB. Civil, Processual, Penal e Comercial. Ementário 1996/3/11885. A cláusula “rebus sic stantibus” surgiu na Idade Média, da frase seguinte: “Os contratos que tem trato sucessivo e dependência futura devem ser entendidos estando as coisas assim”, ou seja, como se encontram no momento da contratação (“Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur”). 5 16 implícita em todos os contratos, que alertava para que, se as condições externas à época da contratação fossem consideravelmente modificadas, o vínculo contratual poderia ser revisto ou resolvido. Rodrigo Toscano de Brito analisando a questão afirma: Aos poucos o pacta sunt servanda, que deu – e dá com feições contemporâneas – a fundamentação necessária para a formação, execução, e por derradeiro a segurança contratual, foi sendo relativizado, cedendo lugar á igualdade substancial.7 O contratualismo atinge o seu apogeu com os jusnaturalistas, que levando a teoria ao extremo baseiam num contrato a própria estrutura Estatal (como se vê em O Contrato Social de Rousseau) e fazendo com que, em determinadas legislações, o contrato não mais se limite a criar obrigações podendo criar, modificar ou extinguir qualquer direito, inclusive os direitos reais. A Escola de Direito Natural (século XIX) embasada no racionalismo e no individualismo, assim como a corrente dos canonistas, teve grande influência na formação do conceito atual de contrato. O Código de Napoleão foi o grande marco do contratualismo, que passou a ser a diretriz do Direito Civil deste momento em diante, seguindo até os dias atuais. Referido Código inspirou-se na forma liberal, reduzindo ao mínimo possível a interferência estatal, abrindo amplas perspectivas de liberdade à vontade humana. Orlando Gomes ao analisar este período histórico assevera: A Escola de Direito Natural, racionalista e individualista, influi na formação histórica do conceito moderno de contrato ao defender a concepção de que o fundamento racional do nascimento das obrigações se encontrava na vontade livre dos contratantes. Desse juízo, inferiram seus pregoeiros o princípio de que o consentimento basta para obrigar (solus consensus obrigat). Salienta-se no particular, a contribuição de Pufendorf, para quem o contrato é um acordo de vontades, expresso ou tácito, que encerra compromisso a ser honrado sobre a base do dever de veracidade, que é de Direito Natural. Ressalta-se ainda a influência de Pothier na determinação da função do acordo de vontades como fonte do vínculo jurídico e na aceitação do princípio de que o contrato tem força de lei entre as partes, formulado como norma no Código de Napoleão.8 7 8 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p. 34. Orlando GOMES, Contratos, pp. 5-6. 17 O liberalismo remonta ao século XVII, em que se preconizava a livre iniciativa e a livre concorrência, exprimindo dessa maneira tanto o liberalismo político quanto o liberalismo econômico, que se contrapunham aos já decaídos absolutismo e mercantilismo. O liberalismo tinha como principal característica o não intervencionismo, a pregação radical do individualismo e da livre concorrência, manifestando-se como garantia dos valores liberdade e propriedade, fundando-se na liberdade de discussão pelos indivíduos e pela comunidade das diretrizes orientadoras do destino da vida social, política e econômica, seria o autogoverno da sociedade civil. Fruto da Revolução Francesa, que proclamou os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o liberalismo preconizava que “o Estado que governa melhor é aquele que governa menos”.9 O liberalismo individualista do século XIX reage contra as limitações impostas pelo Estado durante a Idade Média, e consagra o postulado da liberdade dos homens no plano contratual em detrimento da acurada interferência estatal. Neste esteio a teoria, admitia a onipotência do cidadão na administração e na disponibilidade de todos os seus bens, garantindo amplamente o direito de propriedade e a faculdade de contratar com todas as pessoas nas condições e na forma das cláusulas determinadas. Ao arbítrio de cada um ficava decisão sobre todas as questões econômicas, sem qualquer interferência por parte da sociedade. No Brasil, a sociedade dominante do final do século XIX e início do século XX tinha postura ortodoxa e conservadora, que visava à perpetuação e proteção da sua classe - a qual era advinda em grande parte da Europa -, bem como à manutenção dos institutos familiares tradicionais, como o pátrio poder e o individualismo. É nesta fase, do processo econômico de consolidação do regime capitalista de produção que se consolida a moderna concepção de contrato como acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico a que se prendem. Desta forma, o contrato constitui-se como instrumento eficaz da economia capitalista, em sua primeira fase, permitindo, em seguida, a estruturação das sociedades anônimas e a grande concentração de capitais necessária para o desenvolvimento da economia, financiando o progresso técnico, a expansão das 9 Norberto BOBBIO, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, p. 226. 18 forças produtivas, e a criação de grandes unidades financeiras, industriais e comerciais. No Brasil, o Código Civil de 1916 foi influenciado em grande parte pela codificação francesa, elaborada com o intuito de preservar os direitos alcançados com a revolução. Tal circunstância acarretou a utilização de dispositivos casuísticos, que concediam pouca liberdade ao julgador. O Código Bevilácqua foi elaborado ao tempo de uma economia estável, moeda com valor definido, uma sociedade elitista, relações civis centradas na propriedade imobiliária, economia recém saída de um regime de escravidão, que, ao invés de dirigir-se para a indústria, investia só no comércio litorâneo e na terra para seu fortalecimento e segurança.10 A liberdade de contratar e a propriedade privada também decorreram da influência do setor produtivo de importação de bens acabados e exportação de matérias-primas. Arnold Wald ponderando a importância dos contratos no crescimento da economia mundial afirma: O extraordinário desenvolvimento dos transportes e das comunicações, que ocorreu após a última Guerra Mundial, ensejou um substancial aumento do comércio internacional de bens, serviços e tecnologias e uma progressão geométrica dos investimentos realizados no exterior, implicando na importância crescente atribuída aos contratos internacionais, que veio a ensejar a criação de um direito próprio, que alguns autores chegaram a denominar lex mercatoria. Assim, calcado na pregação radical do individualismo e da competição entre os indivíduos, o liberalismo contribuiu em enorme parcela para o estabelecimento de uma profunda desigualdade social. Aos poucos, o equilíbrio foi dando lugar à monopolização de determinados setores da economia; a parcela trabalhadora da população viu-se cada vez mais achacada pelas imposições fixadas unilateralmente pelos detentores dos meios de produção. A exacerbação dos conflitos entre trabalho e capital, e o clamor por maior liberdade política responderam pela emergência de um Estado intervencionista, de efetiva ingerência em diversos setores, a fim de atenuar as desigualdades sociais 10 Renan LOTUFO, Código Civil Comentado, V. 2 p. 9 19 criadas pelo modelo liberal não intervencionista. Pode-se afirmar nitidamente que a preocupação maior desloca-se da liberdade para a igualdade.11 Fernando Rodrigues Martins, pontuando esta modificação, alerta, no entanto para a compreensão que se tinha desta igualdade, e explica: (...) a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, que em muito afetou o ordenamento jurídico de antanho, fixava que os homens eram livres e iguais em direitos. A liberdade manifestava-se no direito privado como vontade advinda de uma autonomia (governo de si próprio) capaz de compor as contrapartes na realização do objeto contratual. Contudo, se a liberdade dessa forma se materializava, a igualdade, a seu tempo, era compreendida tão somente num aspecto neutro, ensejando a noção de que todos eram absolutamente iguais entre si, sem que houvesse outra perspectiva mais humanizada.12 A teoria revisional, amparada no rebus sic standibus, que havia caído em desuso por um longo período na história, no século XX, após a Segunda Guerra Mundial viria a ser revalorizada frente à complexidade de situações e circunstâncias sociais e econômicas daquela conjuntura, deixando enfraquecer a força absoluta dos contratos. O dinamismo social e a mudança desses conceitos advindos dos efeitos das grandes guerras, somados às mudanças socioeconômicas, levaram ao enfraquecimento dos dispositivos e princípios do Código Civil de 1916. Assim, iniciaram-se alguns movimentos que tinham por escopo a elaboração de um novo Código Civil para o país, que refletisse a inovação e os novos objetivos da Nação. Muito embora já se demonstrasse a necessidade de substanciais alterações em diversos assuntos, o Código Civil de 1916 vigeu por mais de oitenta anos, só sendo substituído por nova codificação em 2002, como se verá adiante. Mostrava-se neste momento necessária uma atuação estatal efetiva nas relações entre os particulares, e este princípio intervencionista se faz presente nas constituições de quase todos os países no pós-guerra. Como forma de equacionamento dos problemas nacionais a economia foi sendo planificada, constatando-se de forma inequívoca o desmantelamento do liberalismo econômico: era a instauração do Estado de Bem-estar. 11 Cf. Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 20. 12 Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, pp. 58-59. 20 Cristiano Carvalho afirma que o princípio ético que rege a ideologia do Estado do Bem-estar é o da redistributividade: “esse princípio é absorvido pelo sistema jurídico, que o positiva sob a forma de princípios e valores e os instrumentaliza através da criação de institutos jurídicos”.13 Em 1934 é promulgada nova Constituição, que inspirada da constituição social alemã (Weimar) expande os direitos fundamentais para incluir os direitos sociais: família e trabalho passam a ser preocupações latentes. Fica expresso o dever do Poder Público intervir na ordem econômica e social. Procurando conciliar o liberalismo político e o dirigismo contratual o Estado passou a interferir diretamente sobre as relações particulares, por meio da elaboração de legislação trabalhista, de fiscalização de atividades, de tributação, dentre outras formas, a fim de conciliar a economia capitalista com as aspirações sociais. Wald afirma: Trata-se de transformar o dirigismo num planejamento dialogado que deve decorrer dos entendimentos entre a iniciativa privada e a administração, consagrando-se assim, a democracia tanto no plano econômico, como político, e garantindo-se os direitos individuais e sociais, que constituem a condição indispensável do desenvolvimento de qualquer sociedade. A meta a ser alcançada não é o simples processo econômico de caráter quantitativo, representado pelo aumento do produto nacional bruto, ou de renda per capita, mas uma modificação de caráter qualitativo que assegure a todos melhores condições de vida.14 Até aquele momento histórico, em tese, a liberdade contratual só sofria restrições em virtude da ordem pública, que segundo Arnold Wald “representa a projeção do interesse social nas relações interindividuais”.15 Segundo ele o ius cogens, isto é o direito imperativo, defende os bons costumes e a estrutura social, econômica e política da comunidade. Agora, no entanto, por meio do estado interventor a liberdade contratual passará a ser tolhida em nome da observância de direitos sociais, que como se verá se agigantarão no decorrer da história. Fernando Rodrigues Martins afirma a respeito: 13 Cristiano Rosa CARVALHO, Teoria do sistema jurídico: direito, economia e tributação, p. 295. Arnold WALD, Obrigações e contratos, pp.167-168. 15 Ibidem, p. 163. 14 21 A formação do Estado social, a despeito de sofrer uma influência inegável do marxismo dele rompeu com teoria de deslocamento da propriedade, abraçando a busca da igualdade não pela absoluta planificação econômica ou estatização dos meios de produção, senão por uma designação política democrática balizadora da igualdade, recuperada nas lições de Rousseau.16 Nos anos que se seguiram, prospera a economia, por meio da modernização do aparelho estatal com a implantação de grandes complexos industriais (siderurgia, hidrelétricas). Já início dos anos 60 o Brasil passa por uma grave crise políticoinstitucional, que viria a culminar em 31 de março de 1964 com o golpe militar: era a tomada do poder pelas Forças Armadas. A Constituição de 1967 foi promulgada num cenário de autoritarismo ditatorial, quando assumia a presidência o Marechal Arthur da Costa e Silva. A Constituição de 1964, no entanto, não durou muito: inspirada na Carta de 1937 preocupava-se essencialmente com a segurança nacional, e estava voltada completamente para o fortalecimento do Poder Executivo, da autoridade do Presidente da República. Em 1967 foi elaborado o projeto de um novo Código Civil, que serviu de base para o atual Código Civil. No entanto, o projeto original sofreu muitas alterações e restrições, principalmente advindas do regime ditatorial militar vivido pelo país. O Estado intervencionista fora aos poucos se enfraquecendo, e os princípios orientadores da administração centralizadora, da forte ingerência estatal na economia mostraram ser a própria razão do insucesso deste modelo administrativo. Um novo modelo passa a ser adotado, embasado no neoliberalismo. Segundo José Afonso da Silva, o país, após longo período de regime militar ditatorial viveu um momento histórico que a teoria constitucional denomina situação constituinte, ou seja, situação que se caracteriza pela necessidade de criação de normas fundamentais, traduzidas numa nova Constituição que consagrasse nova idéia de direito e nova concepção de Estado, informadas pelo princípio da justiça social. Sentia-se que aquele espírito do povo, que transmuda em vontade social, que dá integração à comunidade política, já havia despertado irremissivelmente, como sempre acontece nos instantes históricos de transição, em que o povo reivindica e retoma o seu direito fundamental primeiro, qual seja, o de manifestar-se sobre o modo de 16 Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, p. 96. 22 existência política da nação pelo exercício do Poder Constituinte Originário.17 A promulgação da Constituição de 1988 foi o marco legal redefinidor do Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito, embasado num modelo neoliberal e refletindo um momento histórico singular no constitucionalismo pátrio. Após a instalação do regime democrático e a abordagem de questões privadas na promulgação da Constituição Federal de 1988, com indeterminação deliberada de termos e conceitos, foram possíveis as introduções das últimas alterações substanciais no projeto da nova codificação civil, que acarretaram na utilização de critérios legais abertos e na consequente aprovação e promulgação do Código Civil de 2002. A flexibilização, embasada nas cláusulas gerais, nos conceitos jurídicos indeterminados, e a maior ênfase valorativa foram as grandes alterações trazidas pelo Código Civil de 2002, que tinha por objetivo a modernização do ordenamento, sem, no entanto, criar um novo direito. Fica nítido que o Código Civil de 2002 não tem por função a proteção dos interesses da classe dominante, mas sim a defesa dos direitos no aspecto social, o que o aproximou muito da Constituição Federal de 1988, também chamada de Constituição Cidadã. O projeto do presente Código alterou substancialmente esta matriz [referindo-se o autor à matriz elitista], porque teve diante de si outro tipo de sociedade e de cultura. Assim, abandona a posição individualista para afirmar que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (art. 431), princípio este que inaugura o título relativo aos “Contratos em geral”, dando a tônica de como a matéria deverá ser tratada pelo intérprete.18 A Constituição de 1988 recebe este nomenclatura em razão de ser a primeira carta brasileira a elevar a status constitucional a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito, – influenciada essencialmente por tratados internacionais adotados no Brasil – fundamentos estes que ao lado da livre iniciativa e dos valores sociais do trabalho dão a tônica da Democracia (Art. 1º da CF/88. 17 18 José Afonso da SILVA, Poder Constituinte e Poder Popular, pp. 107-108. Renan LOTUFO, Código Civil Comentado, V. 2, p. 9. 23 Destaca-se ainda a adoção dentre seus objetivos fundamentais da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e das desigualdades regionais e o bem geral extirpando qualquer espécie de preconceito ou discriminação (art. 3º da CF/88). Também merece destaque a função social da propriedade, determinada nos incisos XXIII do artigo 5º da Constituição Federal, que reproduzida na codificação civil se desdobrará também para a função social do contrato. Diante das modificações sociais e jurídicas ocorridas, principalmente com a Constituição Federal de 1988 e com o Código Civil de 2002, o direito privado passa a ter não só influências, mas também limitações sociais no campo do direito contratual; o conceito de contrato até então vigente, baseado no pacta sunt servanda, que determina que o contrato faz lei entre as partes e que não pode ser alterado salvo em situações expressamente previstas, passa a ser revisto. Atualmente, o contrato tem que observar não só os princípios e limites privados estabelecidos entre as partes, mas também é obrigado a respeitar o que se pode chamar de direito da coletividade, isto é, aqueles inerentes à sociedade, ao meio ambiente ou a terceiros. O contrato, que é fonte voluntária das obrigações, torna-se um instrumento da cooperação entre as pessoas, que, no âmbito do sinalagma e da comutatividade, há que preservar a igualdade dos sacrifícios, que, se não decorrer da colaboração conjunta dos que participam da avença, será por força da lei que busca a concretização dos princípios fundamentais.19 Sobre a importância que os contratos adquiriram na atualidade Caio Mário da Silva Pereira20 afirma que o mundo moderno é o mundo do contrato, e a vida moderna o é também, e em tal escala que, se por um momento se abstraísse o fenômeno contratual a consequência seria a estagnação da vida social. É o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários. A partir desse novo contexto histórico instaurado, pode-se conceituar contrato como uma espécie de negócio jurídico e, como tal, corresponde ao exercício da autonomia privada. Pode-se, portanto, definir o contrato como acordo de vontades 19 20 Renan LOTUFO, Código Civil Comentado, V. 2, p. 9. Caio Mário da Silva PEREIRA, Instituições do Direito Civil, p.13. 24 pelo qual as partes constituem, modificam ou extinguem relações jurídicas patrimoniais.21 Maria Helena Diniz22 entende que contrato é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial. Arnold Wald23 afirma que o contrato é um ato jurídico bilateral, pois que depende de no mínimo duas declarações de vontade, visando criar, modificar ou extinguir obrigações. Para Orlando Gomes24 o contrato é todo acordo de vontades destinado a construir uma relação jurídica de natureza patrimonial e eficácia obrigacional. Também ao se manifestar sobre o tema, Arnaldo Rizzardo 25 dispõe que desdobrando-se o conceito, transparece a bilateralidade do ato jurídico; exige-se o consentimento válido, emanado de vontades livres; pressupõe a conformidade com a ordem legal; e tem por escopo objetivos específicos, ou seja, a produção de direitos. Assim, contrato pode ser entendido como acordo bilateral ou plurilateral de vontades, destinado à formalização de objetivos e regras a serem cumpridas entre as partes envolvidas, ou ainda à modificação e/ou extinção de outras regras previamente existentes. 1.2 Constitucionalização do Direito Privado Quando se fala em Direito Civil Constitucional está a se falar na supremacia de valores inseridos na Constituição Federal que irão reger toda a compreensão das demais regras do ordenamento jurídico, inclusive as que tratam do Direito Civil, e 21 Conforme Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore (org.). Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p. 515. 22 Maria Helena DINIZ, Tratado teórico e prático dos contratos. V. 3, p. 24. 23 Arnold WALD, Obrigações e contratos, p. 161. 24 Orlando GOMES, Contratos, p, 12. 25 Arnaldo RIZZARDO, Contratos, p. 6. 25 que, indiscutivelmente, afetaram a compreensão existente até então das regras da codificação privada. O Direito Civil Constitucional supõe como base para toda interpretação, da dignidade da pessoa humana, que foi elevada a fundamento da República e finalidade do ordenamento jurídico brasileiro quando da promulgação da Constituição de 1988 (artigo 1º, inciso III, da CF). Ao tratar dos objetivos da República Federativa do Brasil, a Constituição Federal consagrou em seu artigo 3º, inciso I, que entre outros fins, está o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, instituindo o denominado princípio da solidariedade. Sobre a inserção da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal José Afonso da Silva, discorre: A Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática de direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça 26 social, fundando na dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana pode ser considerada qualidade intrínseca e distintiva, reconhecida em cada ser humano, que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando num complexo de direitos e deveres fundamentais, com o escopo de garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.27 A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. 28 Segundo Maria Helena Diniz “na linguagem filosófica, é o princípio moral de que o ser humano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio”.29 26 José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 124. Conforme Ingo Wolfgang SARLET, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais, p. 63. 28 Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore (org.). Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p. 521. 29 Maria Helena DINIZ, Dicionário jurídico, p. 133. 27 26 De acordo com Maria Celina Bodin de Moraes, seria desumano, isto é, contrário à dignidade da pessoa humana, tudo aquilo que pudesse reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto.30 Ingo Wolfgang Sarlet dispõe que se entende por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, em um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.31 Dessa forma, verifica-se que o princípio da dignidade da pessoa humana tem por valores fundamentais a proteção à vida e à liberdade, de modo que se pode afirmar que é a razão de ser do direito. Falar em dignidade da pessoa humana é reconhecer que todo homem tem direitos, capacidade de agir e liberdade volitiva, sendo esta última representada pelo princípio da autonomia da vontade e no campo do direito privado, pelo princípio da autonomia privada.32 De grande valia é o argumento de José Joaquim Gomes Canotilho ao analisar a inserção da dignidade da pessoa humana, igualmente, no texto Constitucional Português, tanto no preâmbulo quanto no art. 2º, ao asseverar que: O que é ou que sentido tem uma República baseada na dignidade da pessoa humana? A resposta deve tomar em consideração o princípio material subjacente à idéia de dignidade da pessoa humana. Tratase de princípio atópico que acolhe a idéia pré-moderna e moderna do dignitas-hominis, ou seja, o do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projecto espiritual. (...) 30 Maria Celina Bodin de MORAES, Danos à pessoa humana, p. 85. Ingo Wolfgang SARLET, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais, passim. 32 Rosana Guida Krastins MARCELINO, Os princípios de Direito Privado e a liberdade. In NERY, Rosa Maria de Andrade (Org.). Função do Direito Privado no atual momento histórico, p. 59. 31 27 a dignidade como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Conclui, então, que a República é uma organização política que serve o homem, e não é o homem que serve os aparelhos políticoorganizatórios. 33 Jorge Miranda por sua vez, esclarece que: A Constituição, a despeito de seu caráter compromissório, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, proclamada no artigo 1, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado.34 Assim, a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, passa a ser vista como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional,35 mas não apenas dele, e sim, e especialmente do Direito Civil. Alexandre dos Santos Cunha 36 dispõe que o princípio da dignidade da pessoa humana, não obstante sua inclusão no texto constitucional, é, tanto por sua origem, quanto pela sua concretização, um instituto basilar do direito privado. Enquanto fundamento primeiro da ordem jurídica constitucional, ele o é também do direito público. Indo mais além, pode-se dizer que é a interface entre ambos: o vértice do Estado de direito. Consoante os ensinamento de Judith Martins Costa, o princípio da dignidade humana é inspirador da razão de escolha e da compreensão de todos os outros princípios. Em razão da importância do princípio da dignidade da pessoa humana, muito se discute na doutrina se ele se apresenta como princípio eminentemente constitucional ou se pertence também ao direito privado. Como a dignidade da pessoa humana é um dos principais objetivos perseguidos pelo direito, o 33 José J. G. CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 218. Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 166. 35 Flavia PIOVESAN, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 237. 36 Alexandre dos Santos CUNHA, Dignidade da Pessoa Humana: conceito fundamental do direito civil In MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais do direito privado, p. 260. 34 28 entendimento de que está presente em todo o direito, inclusive no privado, parece mais coerente. 37 Na redação do Código Civil de 2002 o legislador claramente se valeu do núcleo básico e informador - da dignidade da pessoa humana - para orientar a outras determinações legais; institutos civis como o direito da propriedade e o contrato são refundidos, dando origem a uma nova configuração, como, a título exemplificativo, ao o princípio da função social da propriedade e o da função social do contrato. O princípio da dignidade da pessoa humana instituído pela Constituição Federal cria um novo patamar nas relações sociais, inclusive as jurídicas, propondo o solidarismo, isto é, a busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária que promova o bem de todos sem qualquer forma de discriminação. A solidariedade é a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana. No contexto atual, a lei maior determina – ou melhor, exige – que nos ajudemos, mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós.38 Assim sendo, Maria Celina Bodin de Moraes diz que a solidariedade pode ser compreendida como (i) fato social, intrínseca do ser humano; (ii) virtude ética, decorrente de uma consciência moral e de boa-fé; (iii) comportamento pragmático, decorrente de uma associação para delinquir; (iv) comportamento pragmático, para evitar perdas pessoais ou institucionais; e, (v) norma jurídica.39 Ao discorrer sobre o princípio da solidariedade no direito privado, Rosa Nery afirma que o princípio da solidariedade tem a ver com o risco da vida e da morte que a todos compromete; com isso o risco da vida em sociedade, que está cada vez mais intrincado no risco de viver. E prossegue afirmando que é no princípio da solidariedade que devemos buscar inspiração para a vocação social do direito, para a identificação do sentido prático do que seja funcionalização dos direitos e para a compreensão do que pode ser considerado pacificação social.40 37 Judith MARTINS-COSTA, apud Ruy Rosado de AGUIAR, O poder judiciário e a concretização das cláusulas gerais: limites e responsabilidade. In Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 18, 2000, p. 260. 38 Maria Celina Bodin de MORAES, Danos à pessoa humana, p. 178. 39 Ibidem. 40 Rosa Maria de Andrade NERY, Noções preliminares de direito, p. 34. 29 Do ponto de vista jurídico, como mencionado, a solidariedade está contida no princípio geral instituído pela Constituição Federal de 1988 para que, através dele, se alcance o objetivo da igual dignidade social. O princípio constitucional da solidariedade identifica-se, assim, como o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva livre e justa, sem excluídos ou marginalizados.41 Desta forma, o princípio da solidariedade equivale segundo a interpretação mais fiel a Constituição Federal, ao instrumental adequado e necessário a atribuir a cada um o direito ao „respeito‟ inerente à qualidade de homem. Ressalta-se que para Nelson Rosenvald o direito de solidariedade se desvincula de valores éticos, pois ganha fundamentação e legitimidade política nas relações sociais concretas, “nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum". 42 A solidariedade prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social. O fundamento ético desse princípio encontra-se na ideia de justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana, e que com base no princípio da solidariedade passaram a ser reconhecidos como direitos humanos os chamados direitos sociais, os quais são realizados pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir amparo e proteção social aos mais fracos e mais pobres, ou seja, aqueles que não dispõem dos recursos indispensáveis para viver dignamente.43 Por fim, Fábio Konder Comparato sustenta que é também com fundamento na solidariedade que, em vários sistemas jurídicos contemporâneos, consagra-se o dever fundamental de se dar à propriedade privada uma função social. 44 Nítida é a escolha do legislador pela valoração constitucional, que no Direito Civil se traduz por meio do solidarismo, quando se utiliza dos princípios estruturais 41 Maria Celina Bodin de MORAES, Danos à pessoa humana, p.78. Nelson ROSENVALD, Dignidade Humana e Boa-fé no Código Civil, p. 176. 43 Fabio Konder COMPARATO, Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p.45 44 Ibidem. 42 30 como os da sociabilidade, da operabilidade e da eticidade na elaboração do Código Civil de 2002, princípios que veremos adiante. 1.3 Princípios Informadores do Código Civil de 2002 Preliminarmente ao estudo dos princípios gerais de direito, faz-se necessário analisar o conceito do termo princípios: princípios são regras a serem analisadas a longo prazo, de onde se extraem soluções para a composição de conflitos levados ao conhecimento dos juízes. Os princípios devem que ser vistos a partir de seu papel determinante para a ação do homem e têm função de ajustá-las de acordo com o seu papel na comunidade. Ao dispor sobre a origem dos princípios, o jurista português Carlos Alberto da Mota Pinto afirma que se trata de produto histórico, para cuja gestação concorrem opções fundamentais sobre a organização econômica e social e mesmo sobre a concepção do homem.45 Opções, cuja gestação, por sua vez, é determinada pelos dados sociológicos, culturais e históricos que condicionam toda a organização da sociedade em cada momento e em cada lugar. Humberto Ávila, por sua vez, acrescenta a definição dos princípios como sendo normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, à medida que servem de fundamento normativo para a interpretação e aplicação do direito, de modo que, de acordo com esta doutrina, os princípios indicam a direção em que se situa a regra a ser encontrada.46 Não obstante as explanações acerca dos princípios jurídicos destaca-se a contribuição de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre o assunto: Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção 45 46 Carlos Alberto da Mota PINTO, Os Princípios Fundamentais do Direito Civil Português, p. 82. Humberto ÁVILA, Teoria dos princípios jurídicos, p. 35. 31 das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.47 Impende desta forma a importância dos princípios dentro do sistema jurídico, pois além de serem alicerce, seu fundamento, estes também representarão as diretrizes e os objetivos que se pretende perseguir naquele Estado por eles amparado. Ainda, consoante professor Miguel Reale, toda forma de conhecimento científico implica a existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem um dado campo do saber.48 E na mesma seara, José Cretella Neto define que toda e qualquer ciência está alicerçada em princípios, que são proposições básicas, fundamentais e típicas, as quais condicionam as estruturações e desenvolvimentos subsequentes dessa ciência.49 Os princípios podem ser considerados como estruturas do ordenamento, que viabilizam a integração entre valores e fatos, de modo que possuem extrema relevância para a operacionalização do sistema jurídico. Com relação às espécies de princípios, existem os princípios estruturais e os princípios gerais de direito. Os denominados princípios estruturais consistem nas diretrizes seguidas pelos legisladores quando da elaboração de determinado ordenamento jurídico, os quais, consoante Código Civil de 2002, são da eticidade, da operabilidade e da socialidade. Os princípios gerais de direito, por sua vez, consistem em ideais e objetivos traçados por filósofos e doutrinadores sobre aspectos essenciais do convívio em sociedade. 1.3.1. Princípios Estruturais O princípio da eticidade representa a essência da boa-fé objetiva das relações sociais, pelo equilíbrio, pela cooperação, pela lealdade e pelo prestígio à dignidade humana. 47 Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, pp. 888-889. Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, p. 303. 49 José CRETELLA NETO, Fundamentos principiológicos do processo civil, p. 05. 48 32 Nesse sentido, a superfície para aplicação do princípio se encontra pronta na codificação, na medida em que se alicerça em cláusulas gerais e em conceitos indeterminados, permitido ao Estado-juiz preencher o desenho legal com soluções concretas „mais justas‟ ou „equitativas‟, em observância aos critérios ético-jurídicos. Assim, o princípio da eticidade está intimamente ligado à configuração de que a dignidade humana há de ser tutelada pelo Código Civil de 2002, utilizando-se, para tanto, dos conceitos vagos, em especial das cláusulas gerais, para a busca da decisão mais justa e adequada. 50 O princípio da eticidade aponta que a dignidade humana é tutelada pelo Código Civil de 2002, determinando que o julgador busque a solução mais justa. 51 Jacy de Souza Mendonça, ao analisar a eticidade no Código Civil de 2002 afirma: Quando os autores do projeto se referem à eticidade, á boa-fé, aos bons costumes, não estão falando pois, em Ética ou Moral, mas empregando uma qualificação do elemento subjetivo, variável, mutável, que deve presidir a conduta humana. Esta parece ser a melhor forma de recortar a idéia que está por trás da eticidade, por eles utilizado.52 E Miguel Reale, um destes autores afirma por seu turno: Como se vê, ao elaborar o projeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo, pretendendo tudo prever detalhada e obrigatoriamente, como se na experiência jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais, aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e do conjetural. O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam. (...) Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios etico-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa.53 51 Rodrigo Reis MAZZEI, Notas iniciais à leitura do novo Código Civil. In ALVIM Arruda; ALVIM, Thereza, Comentários ao Código Civil Brasileiro. Parte Geral (arts. 1º a 103). Vol. I, p.CXIV. 52 Princípios e Diretrizes do Novo Código Civil. In PASSOS, Fernando; MARCATO, Antônio Carlos; MALHEIROS, Antonio Carlos. Inovações do Novo Código Civil, p. 19 53 Miguel REALE, Visão Geral do Projeto de Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 40, mar. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=509>. Acesso em: 19 mai. 2010. Importante destacar que o Professor Miguel Reale teve notável participação na elaboração do Código Civil de 2002 como coordenador da Comissão Elaboradora e Revisora do Anteprojeto de Código Civil, essencialmente pela apresentação das Diretrizes Fundamentais ou Diretrizes Metodológicas 33 Por sua vez, o princípio da socialidade determina que as relações não devem mais ser vistas como de interesse apenas interpessoal dos indivíduos vinculados à obrigação, mas de toda a sociedade, em virtude de valores de bem comum, fazendo com que, o princípio da autonomia da vontade seja relativizado, como por exemplo, nas relações contratuais, em que, hodiernamente, havia marcante intervencionismo estatal. O princípio da socialidade afasta-se da concepção de que o direito privado tem os olhos voltados apenas para o cilindro fechado das relações entre os particulares, pois esses vínculos têm também uma conotação que interessa à sociedade, razão pela qual se permite a intervenção estatal em hipóteses determinadas em lei, o que no objeto em estudo se aplica perfeitamente. 54 O princípio da socialidade reconhece a natureza ultrassubjetiva das relações privadas, assim como de sua importância para sociedade. A eticidade e a socialidade constituem perspectivas reservadamente conexas, pois as regras dotadas de alto conteúdo social são fundamentalmente éticas, assim como as normas éticas têm afinidade com a socialidade. A distinção ora procedida, de cunho meramente pedagógico, não faz mais que assinalar ênfases, ora pendendo para o fundamento axiológico das normas, ora inclinando-se às suas características numa sociedade que tenta ultrapassar o individualismo, não significando, de modo algum, que uma regra ética não se ponha, também, na dimensão da socialidade, e viceversa.55 Por derradeiro, o princípio da operabilidade tem por objetivo conceber maior efetividade e facilidade na aplicação das regras do Código Civil. Nesse sentido, Rodrigo Reis Mazzei alega que o Código Civil de 2002 se utilizou de duas estratégias diferentes: (i) a abertura de acessos para facilitar a interpretação do Código Civil; e, (ii) o afastamento de controvérsias que pudessem surgir de institutos privados constantes na codificação.56 que nortearam a redação de todo o Anteprojeto. Rodrigo Reis MAZZEI, Notas iniciais à leitura do novo Código Civil. In ALVIM Arruda; ALVIM, Thereza, Comentários ao Código Civil Brasileiro. Parte Geral (arts. 1º a 103). Vol. I, p. XLIX. 54 Rodrigo Reis MAZZEI, Notas iniciais à leitura do novo Código Civil. In ALVIM Arruda; ALVIM, Thereza, Comentários ao Código Civil Brasileiro. Parte Geral (arts. 1º a 103). Vol. I, p.CXVIII. 55 Judith MARTINS-COSTA e Gerson Luiz Carlos BRANCO, Diretrizes teóricas do Novo Código Civil Brasileiro, p.23. 56 Rodrigo Reis MAZZEI, Notas iniciais à leitura do novo Código Civil. In ALVIM Arruda; ALVIM, Thereza, Comentários ao Código Civil Brasileiro. Parte Geral (arts. 1º a 103). Vol. I, p.CXXIII. 34 Discursando sobre o princípio da operabilidade, o professor Miguel Reale assevera que o direito é feito para ser executado, e direito que não se executa é como chama que não aquece, luz que não ilumina, ou seja, o direito é feito para ser realizado, para ser operado.57 A respeito da intersecção entre a socialidade e a eticidade Judith MartinsCosta afirma: Ambas – eticidade e socilidade – constituem perspectivas reservadamente conexas, pois as regras dotadas de alto conteúdo social são fundamentalmente éticas, assim como as normas éticas tem afinidade com a sociedade. A distinção ora procedida, de cunho meramente pedagógico, [entre cada um destes princípios] não faz mais do que assinalar ênfases, ora pendendo para o fundamento axiológico das normas, ora inclinando-se às suas características numa sociedade que tenta ultrapassar o individualismo, não significando, de modo algum, que uma regra ética não se ponha, também, na dimensão da socialidade, e vice-versa.58 Referidos princípios – eticidade, sociabilidade e operabilidade - foram classificados como estruturais em razão de sua importância e forte presença permeando todo o projeto de lei que deu origem ao Código Civil de 2002. 1.3.2. Princípios Gerais de Direito e Cláusulas Gerais Os princípios gerais de direito, por sua vez, consistem em ideais e objetivos traçados por filósofos e doutrinadores sobre aspectos essenciais do convívio em sociedade. Caio Mario da Silva Pereira, ao citar Cogliolo, afirma que os princípios gerais de direito são então aquelas regras oriundas da abstração lógica daquilo que constitui o substrato comum das diversas normas positivas.59 Mesmo entre os que estão de acordo sobre os princípios gerais de direito há divergências sobre o que se deve entender como tal no momento de avaliar o desequilíbrio contratual. Duas correntes dominaram sempre esta controvérsia: a corrente filosófica e a corrente que adota a concepção histórica. 57 Miguel REALE, Visão Geral do Projeto do Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 40, mar. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=509>. Acesso em: 19 mai. 2010 58 Judith MARTINS-COSTA e Gerson Luiz Carlos BRANCO, Diretrizes teóricas do Novo Código Civil Brasileiro, p. 131. 59 Caio Mario da Silva PEREIRA, Instituições ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil, V. 2, p. 29. 35 Consoante Serpa Lopes, entende-se por princípios gerais de direito as verdades jurídicas universais, à maneira de axiomas jurídicos, ou normas assentes pela reta razão, inspiradas no sentimento de equidade. Pela segunda, entende-se que seu conteúdo é composto pelos elementos que serviram ao legislador de guia para estatuir as regras do direito positivo, os princípios fundamentais informadores do sistema jurídico adotado pelo legislador, as bases fundamentais sobre as quais se apoia a legislação, conaturais ao ordenamento jurídico vigente, ainda sem se encontrarem formulados em qualquer ponto, como a igualdade civil, a liberdade de contratar, e de comércio etc.60 Afirma o autor que os que combatem a concepção dos princípios gerais de direito não negam o fenômeno, mas apenas o atribuem a outra ordem de ideias. Assim consideram: i) o movimento de suprimento como um expediente para liberação, de qualquer maneira, das passagens legais que não mais correspondem à opinião dominante; ii) um simples reconhecimento dos postulados da escola de Direito livre, como uma autorização para a livre criação jurídica por parte do juiz; iii) pela sua impossível determinação, dada a variabilidade da razão humana; iv) ausência de qualquer força jurídica criadora, não passando de uma simples fonte interpretativa e integrante das disposições legais. 61 Há ainda uma orientação eclética que procura conciliar estes dois pontos em oposição, ou seja, os princípios sistemáticos com o direito científico ou com os imperativos da consciência social, ou os princípios sistemáticos com a concepção de escola livre. Os partidários do positivismo jurídico são condenados pelos ecléticos por seu extremismo em querer submeter os princípios gerais de direito à regra de que só poderão ter lugar depois de esgotados todos os recursos, havendo a necessidade de primeiro buscar extrair a regra do direito positivo, e assim mesmo a solução encontrada não poderá contraditar as ideias fundamentais da lei, dos costumes ou da doutrina consagrada. Afirmam então que mais perigoso será forçar o juiz a extrair necessariamente do direito positivo uma solução de que este não lhe possa dar. 60 Maria Miguel de SERPA LOPES, Curso de Direito Civil: introdução, parte geral e teoria dos negócios jurídicos, vol. I, pp. 186-187. 61 Ibidem. 36 Verifica-se que existem princípios gerais que são direcionados e aplicáveis a todas as áreas do direito e outros que se destinam somente a algumas áreas. Com relação à aplicação no Direito Civil, é possível mencionar os princípios da dignidade humana, da autonomia privada, da imputação civil dos danos e da solidariedade, os quais serão abordados adiante. Nelson Nery afirma que os princípios gerais: São regras de conduta que norteiam o juiz na interpretação da norma, do ato ou negócio jurídico. Os princípios não se encontram positivados no sistema normativo. São regras estáticas que carecem de concreção. Têm como função principal auxiliar o juiz no preenchimento das lacunas (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 4° e Código de Processo Civil, art. 126).62 Quando se inclui determinado princípio geral no direito positivo do País, deixa de ser princípio geral, ou seja, deixa de ser regra de interpretação e passa a caracterizar-se como cláusula geral. Assim, as várias classificações que a doutrina tem empreendido nessa difícil problemática passam por caminhos mais tortuosos para chegar-se a solução parecida: o princípio positivado, ou norma princípio, não é regra de interpretação, mas norma jurídica. Mais técnico e menos confuso dizer-se que se tornam cláusulas gerais, que têm conteúdo normativo e são fonte criadora de direitos e obrigações.63 Para melhor compreender as diferenças entre os princípios e cláusulas gerais, cumpre tecer breves considerações sobre esta última. As cláusulas gerais podem ser conceituadas como normas que não prescrevem certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para a aplicação de demais disposições normativas.64 Do ponto de vista estrutural as cláusulas gerais constituem normas (parcialmente) em branco, as quais são completadas mediante a referência a regras jurídicas, de modo que a sua concretização exige que o juiz seja reenviado a modelos de comportamento e a pautas de valoração. É, portanto, o aplicador da lei, 62 Nelson NERY JUNIOR, Contratos no Código Civil. In FRANCIULLI NETO, Domingo; MENDES, Gilmar e MARTINS FILHO, Ives Gandra (Coords.). O Novo Código Civil, p.56. 63 Ibidem. 64 Gustavo TEPEDINO, A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil constitucional, p. XIX. 37 direcionado pela cláusula geral a formar normas de decisão vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um padrão social, assim reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta.65 As cláusulas gerais podem também ser conceituadas como um tipo especial de norma jurídica que, por sua natureza, encontra-se carecida de preenchimento de seu conteúdo, a ser efetuado com valorações provenientes de seu aplicador, ou seja, a cláusula geral não fornece critérios necessários para a sua concreção, podendo estes, fundamentalmente, serem determinados apenas com a consideração do caso concreto. A cláusula geral, portanto, não é meramente direito material, mas standing points ou pontos de apoio para a formação judicial da norma no caso concreto.66 As cláusulas gerais, segundo Karl Engisch, se definem por oposição às normas casuísticas. É necessário entender as cláusulas gerais como uma formulação da hipótese legal que, abrange e submete a tratamento jurídico todo o domínio de casos.67 Define-se ainda as cláusulas gerais como normas lançadas em formas de diretrizes, dirigidas ao Estado-Juiz, que deverá – dentro do que foi previamente traçado pelo legislador – dar a solução mais perfeita, observando, para a concretização da atuação judicial, não só o caso objetivo, mas também situações particulares que envolvem cada caso.68 As cláusulas gerais constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes 65 Claudio LUZATTI, La Vaghezza delle norme – un-analise del linguaggio giuridico, p. 314. André Pinto da Rocha Osório GONDINHO, Codificação e cláusulas gerais, Revista Trimestral de Direito Civil, v. 2, 2000, p. 5. 67 Karl ENGISCH Apud Alberto Gosson JORGE JUNIOR, Cláusulas Gerais no Novo Código Civil, p. 1. 68 Arruda ALVIM e Thereza ALVIM, Comentários ao Código Civil Brasileiro, parte geral, v.1, p. LXI. 66 38 de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo.69 A cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, de forma proposital, uma linguagem de tessitura "aberta", "fluida" ou "vaga". Esta disposição é dirigida ao juiz que diante do caso concreto, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, que poderá fazer uso de elementos que estejam fora do sistema, o que evidencia a importância da fundamentação das decisões.70 Assim, verifica-se que as cláusulas gerais são normas propositadamente vagas e abertas, as quais apresentam mera orientação de conduta a ser seguida, deixando ao aplicador do direito a função de subsumi-la ao caso concreto. Apesar da conceituação quanto à natureza jurídica das cláusulas gerais evidenciar certa divergência, parece mais acertado o posicionamento de que as cláusulas gerais têm função instrumental, porque vivificam o que se encontra contido, abstrata e genericamente, nos princípios gerais de direito e nos conceitos legais indeterminados, são mais concretas e efetivas que esses dois institutos. Cláusula geral não é princípio, tampouco regra de interpretação; é também norma jurídica, isto é, fonte criadora de direitos e de obrigações. Assim, as cláusulas gerais não são princípios nem regras de interpretação. Isso, porque diferentemente das cláusulas gerais, os princípios são enunciados admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem um dado campo do saber,71 e as regras de interpretação são critérios e orientações a serem seguidas para a correta compreensão das normas jurídicas. Assim, inequívoco que as cláusulas gerais são normas jurídicas, vez que formalmente inseridas no ordenamento jurídico e aptas a criar direitos e obrigações. 69 Judith MARTINS-COSTA, O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro, p. 221. 70 Ibidem. 71 Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, p. 299. 39 1.4 Participação do contrato na vida cotidiana contemporânea Fran Martins72 retoma o termo direito das obrigações para caracterizar a parte o direito que trata dos compromissos assumidos em sentido jurídico por uma pessoa a partir de suas vontades. Sua intenção é ressaltar a posição das pessoas envolvidas nesses compromissos e sua relação, uma com as outras no andamento da situação caracterizada. O que muitos autores afirmam, como Gustavo Tepedino,73 Inocêncio Mártires Coelho,74 Darcy Bessone,75 Maria Celina Bodin Moraes,76 entre outros, é que, com o crescente estabelecimento de compromissos na vida cotidiana, houve uma banalização do sentimento de responsabilidade e uma inobservância da equidade das partes em contrato. Assim sendo, a sociedade contemporânea fica em situação de risco, e se expõe com maior frequência ao estabelecimento de contratos repentinos, sem prévia análise de implicações futuras, num panorama em que reinam a especulação monetária e a usura. Os contratos estão presentes nas relações familiares (casamentos, adoções, doações, entre outros), no estabelecimento de moradia e serviços (compra e venda, locação, contratação de serviços telefônicos, de internet, de seguro e de previdência privada, entre outros). Por esta razão o estudo preliminar dos princípios - informadores do Código Civil de 2002 -, somado ao estudo dos princípios de direito contratual justifica sua importância. Adiante seguem os princípios do Direito Contratual. 72 Fran MARTINS, Contratos e Obrigações Comerciais, p. 9 Gustavo TEPEDINO, Problemas de Direito Civill Constitucional, passim. 74 Inocêncio Mártires COELHO, Interpretação Constitucional, passim. 75 Darcy BESSONE, Do contrato: teoria geral, passim. 76 Maria Celina Bodin de MORAES, Danos à pessoa humana, passim. 73 40 CAPÍTULO II - PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL Os princípios podem ser considerados como estruturas do ordenamento, viabilizando a integração entre valores e fatos, de modo que possuem extrema relevância para a operacionalização do sistema jurídico. Compreender os princípios do direito contratual associando-os a situações reais possibilita entender o cenário de uma forma mais ampla e rica. 2.1 Autonomia e Liberdade Contratual O conceito básico de contrato, segundo Fran Martins, é acordo de vontade de duas ou mais pessoas com finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direito. Tal conceito está abalizado nas ideias de Clóvis Beviláqua.77 O princípio da autonomia da vontade tem por escopo assegurar que a declaração de vontade seja a real manifestação do querer interno, sem qualquer vício, princípio este que deve ser observado em todos os ramos do Direito. Por sua vez, o princípio da autonomia da vontade privada, visa à manifestação da vontade com objetivo de se realizar um negócio jurídico, motivo pelo qual é um princípio exclusivo de Direito Privado. Arnold Wald afirma que: A autonomia da vontade se apresenta sob duas formas distintas, na lição dos dogmatistas modernos, podendo revestir o aspecto de liberdade de contratar e da liberdade contratual. Liberdade de contratar é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a liberdade contratual é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua realização.78 Nesse sentido sustenta Rosa Nery que a autonomia privada, ao contrário da autonomia da vontade, é princípio específico de direito privado e está vinculada à 77 Fran MARTINS, Contratos e Obrigações Comerciais, p. 61. Clóvis Beviláqua fora autor do Código civil brasileiro de 1899, redigido com base nos ideais positivistas do qual era defensor. 78 Arnold WALD, Obrigações e contratos, p. 162. 41 capacidade do indivíduo de criar normas jurídicas particulares que regerão seus atos, especialmente no que tange aos negócios jurídicos.79 Assim, verifica-se que o princípio da autonomia da vontade privada está diretamente relacionado com a liberdade do sujeito de direito de constituir direitos e obrigações particulares. Bem lembra Orlando Gomes que para a constituição do contrato há de existir declarações de vontade convergentes, e assinala A declaração de quem tem a iniciativa do contrato chama-se proposta ou oferta. A do outro, aceitação. (...) Consideradas individualmente proposta e aceitação não são negócio jurídico. (...) Para que o consenso se forme, proposta e aceitação devem coincidir no conteúdo.80 Vontade é a faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão. É sentimento que incita alguém a atingir o fim proposto por esta faculdade; aspiração; anseio; ou desejo. 81 Partindo-se do latim voluntate, cujo significado seria consentimento, vontade, ou ato de querer, chega-se à expressão generalizada do ato de querer, ou seja, “a faculdade de querer”, a manifestação exterior de um desejo, o propósito em fazer alguma coisa, a intenção de proceder desta ou daquela forma.82 Para melhor compreensão é necessário caracterizar o conceito de vontade à luz do Direito. Segundo Alexandre Araújo Costa, a análise jurídica consiste na decomposição da regra de direito nas suas unidades elementares, na separação e eliminação daquilo que pode ser entendido como particular e contingente, e na redução dos preceitos a conceitos jurídicos.83 Desta forma, é das normas de direito no seu todo, bem como de elementos de uma só norma, que são extraídos os 79 Rosa Maria de Andrade NERY, Noções preliminares de direito, p.116. Orlando GOMES, Contratos, p. 17 81 Aurélio Buarque de HOLANDA, Dicionário Aurélio Escolar da Língua Portuguesa, Verbete Vontade, p. 375. 82 Écio PERIN JUNIOR, A teoria da vontade na formação dos contratos e a autonomia do Direito Comercial em relação ao Direito Civil face ao projeto do novo Código Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 45, set. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=518>. Acesso em: 01 jul. 2010. 83 Alexandre Araújo COSTA, Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica A Jurisprudência dos conceitos. In Hermenêutica Jurídica. Disponível em: http://www.arcos.org.br/livros/hermeneutica-juridica/capitulo-iii-o-positivismo-normativista/3-ajurisprudencia-dos-conceitos#topo, acesso em 13 de maio de 2010. 80 42 conceitos jurídicos, isto é, as abstrações em que se concentra o pensamento e que constituem a parte sólida precipitada das disposições positivas. Muitas vezes, essa depuração é bastante complexa e ocorrem reducionismos cuja função seria facilitar às leis o uso linguístico dos termos, porém, isto pode ser contestável. Para Walter Brugger conhecer e querer são dois modos fundamentais da atividade espiritual.84 Assim como a ação não é necessariamente mutação, nem o conhecimento intelectual é necessariamente pensamento discursivo, a vontade não denota necessariamente tendência a um bem que se deva adquirir ou realizar. Seu ato fundamental é a afirmação de um valor, ou seja, o amor. Por isso, é também vontade a efetuação espiritual, não tendencial, do valor infinito. A vontade em geral tem como objeto característico o valor em geral ou o bem como tal. A vontade aparece como apetite só onde o bem não se identifica com a vontade ou onde não está originariamente ligado a ela. Já para Nietzsche a vontade seria o impulso fundamental inerente a todos os seres vivos, que se manifesta na aspiração sempre crescente de maior poder de dominação.85 Assim sendo, a vontade humana poderia ser compreendida como uma faculdade espiritual do homem para afirmar os valores intelectualmente conhecidos ou para tender a eles, com objeto característico de atingir a vontade em geral, algo como o “ser”, como o valor, mas presente pelo conhecimento e pelo entendimento humano. A vontade sensitiva (tendência momentânea) se restringe ao estreito domínio de bens sensivelmente aceitáveis, enquanto que a vontade ampla tem um domínio ilimitado. Por esse motivo, pode-se dirigir somente àquilo que de algum modo aparece como bom, mas também a tudo quanto possua esta qualidade. Seria a “bondade atrativa do objeto” o motivo de vontade. O querer está, assim, preso imediatamente no motivo conhecido, mas mediatamente em tudo o que, por parte das diversas disposições e "camadas" da alma, coopera para a constituição dos juízos de valor. 84 85 Walter BRUGGER, Dicionário de Filosofia, p.434. Friedrich NIETZSCHE, Vontade de potência, p.35. 43 Isso quer dizer que para o complexo de vivência valorativa contribuem igualmente todos os estados afetivos psíquicos, como a disposição de ânimo, o temperamento, as bases sensoriais do pensamento, o caráter, o tipo de personalidade e a profusão de complexos inconscientes. Pela vivência valorativa são provocados os primeiros movimentos da vontade, os quais, por sua parte, podem repercutir-se sobre a ulterior configuração da vivência motivacional. Entretanto, dentro de certos limites, a orientação última da vontade continua sendo, nas lutas suscitadas pelos motivos, dentro de certos limites, um ato voluntário livre (liberdade da vontade). Juridicamente, a vontade revela a intenção do indivíduo, ou desejo em se fazer alguma coisa. Corresponde, pois, à deliberação, ou à resolução, intencionalmente tomada pela pessoa, a fim de que se tenha como consentimento na prática, ou na execução de um ato jurídico, de que se geram direitos, ou se estabelecem obrigações. A vontade tem papel tão importante quanto o próprio consentimento, sendo o ato de volição que atribui às ações do homem o valor jurídico, de que necessitam para serem legítimas e produzirem os efeitos desejados. Somente a livre vontade, ou livre iniciativa, isto é, a livre manifestação dessa vontade, tem a eficácia legal, para que se produzam efeitos jurídicos. Vale dizer que a vontade, além de consciente, deve estar livre dos vícios, pressões ou defeitos, que a possam anulála.86 2.2 Princípio da Iniciativa Privada O princípio da iniciativa privada, ou livre iniciativa, tem por característica principal o aspecto econômico, inspirado na autonomia privada. Silvio Luís Ferreira da Rocha dispõe que ao homem, livre e igual, foi reconhecido o poder de disciplinar suas relações privadas, que no âmbito contratual foi chamado de liberdade contratual, cujo conceito abrange os poderes de auto-regência de interesses, da livre 86 Écio PERIN, A teoria da vontade na formação dos contratos e a autonomia do Direito Comercial em relação ao Direito Civil face ao projeto do novo Código Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 45, set. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=518>. Acesso em: 01 jul. 2010. 44 discussão das condições contratuais e da escolha do tipo de contrato conveniente à atuação da vontade, manifestando-se, por conseguinte, sob tríplice aspecto: (i) liberdade de contratar propriamente dita; (ii) liberdade de estipular o contrato; e, (iii) liberdade de determinar o conteúdo do contrato, e que já foi considerada a pedra fundamental da disciplina contratual. 87 Importante recuperar aqui as definições e as distinções entre autonomia da vontade (como princípio geral) e autonomia da vontade privada, analisando-se as considerações de Rosana Guida Krastins Marcelino, Rosa Nery e Karl Engisch, com o escopo de interpretar o conceito de verdade em situações diferenciadas nas quais a própria revisão contratual se estabelece entre pessoas jurídicas e físicas, e se impõem obrigatoriedades mesmo contra a vontade dos envolvidos. Segundo Rosana Guida Krastins Macelino o princípio da autonomia da vontade tem por escopo assegurar que a declaração do sujeito de direito seja a real manifestação de seu querer interno;88 assim, às pessoas é dado o direito de manifestar sua vontade, isenta de qualquer espécie de vício. Em contrapartida, Rosa Nery afirma que há abuso do direito em algumas situações, por parte do contratante e também do contratado, e que isto caracteriza um dolo para a parte oposta.89 Como muitas vezes esta situação é consciente, Karl Engisch encontrou a diferença entre dolo e culpa consciente no fato de que quem age com o dolo, ou deseja o resultado, ou é indiferente a seu respeito enquanto a consciência pode ser meramente uma conivência irrefutável. 90 Também são importantes as considerações de Taisa Maria Macena de Lima, que comenta o fato de alguns autores identificarem equivocadamente a autonomia da vontade com a liberdade de estipulação negocial, sendo essa bem mais restrita do que aquela. 91 Para autores, como Tércio Sampaio Ferraz Junior, a autonomia da vontade abarca questões patrimoniais e questões existenciais que necessitam de 87 Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore. Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p. 509. 88 Rosana Guida Krastins MARCELINO, Os princípios de Direito Privado e a liberdade. In NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Função do Direito Privado no atual momento histórico, p. 56. 89 Rosa Maria de Andrade NERY, Noções preliminares de direito, passim. 90 Karl ENGISCH apud Alberto Gosson JORGE JÚNIOR, Cláusulas Gerais no Novo Código Civil, p. 26. 91 Conforme Taisa Maria Macena de LIMA, Princípios Fundantes do Direito Civil Atual In FIÚZA, Cesar; SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.). Direito Civil: atualidades, Coords, p. 25. 45 muita análise para compreender o que se chama de “liberdade positiva”. Quando fala da liberdade da vontade relaciona a noção de contrato à chamada autonomia da vontade, também conhecida como liberdade positiva, que é a possibilidade dada a qualquer um de se vincular de acordo com seus próprios interesses, e jamais de modo definitivo. Termina afirmando que, fundamentalmente, a autonomia da vontade é a possibilidade de se vincular de acordo com seus próprios interesses, portanto, de obedecer apenas aquilo que lhe é interessante, e mais, de se vincular apenas por um período e jamais eternamente.92 As lições de Tércio Sampaio Ferraz Junior supratranscritas mostram outra função primordial do contrato, qual seja: a de permitir a neutralização dos agentes sociais e a de institucionalizar a impessoalização. Desta forma se estabelece o que se pode chamar de liberdade no sentido negativo. O contrato institucionaliza a liberdade no sentido positivo, que é a autonomia, de forma que cada um se vincula de acordo com seus próprios interesses, mas, também, institucionaliza a liberdade geral, para todos igualmente, sem restrições (liberdade negativa). No entanto, vale salientar que a liberdade no sentido positivo, que está dentro da ideia de contrato, e a liberdade no sentido negativo, que está ligada à ideia de igualdade entre todos, são noções não necessariamente compatíveis. A liberdade no sentido positivo, isto é, a liberdade de autonomia, a possibilidade de se vincular apenas de acordo com seus próprios interesses, pressupõe a noção básica de diferença. Pressupõe o direito de ser diferente. Livre, no sentido de autonomia, de dar a si próprio as suas regras, o direito de ser diferente e de ser desigual de todos os outros. Por outro lado, a liberdade no sentido negativo, de não estar impedido por ninguém, por nenhuma norma dos outros, exige a generalização mútua, que implica justamente a igualdade de todos, mas significando a possibilidade de não ser diferente. A liberdade no sentido da autonomia exige o respeito à diferença, e o respeito àquilo que cada um é, por si.93 A liberdade no sentido negativo exige que todos sejam iguais. E não é fácil compatibilizar ambas. É importante ressaltar, nesse ponto, que o Direito desenvolveu a capacidade de tecer contratos que parecem extrapolar a questão das vontades envolvidas para atingir uma modalidade de texto específico, livre de críticas. Eros Grau, ao discorrer 92 93 Tércio Sampaio FERRAZ JUNIOR, Destino do Contrato. Estudos e conferências, p. 52. Conforme Tércio Sampaio FERRAZ JUNIOR, Destino do Contrato. Estudos e conferências, p. 54. 46 sobre o dirigismo contratual, sustenta que a partir das colocações de Josserand, no início da década de 30, a expressão engloba o conjunto de técnicas jurídicas que transforma os contratos menos em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das atividades humanas à arquitetura geral da economia de um país, arquitetura que o Estado de nossos dias passa, ele mesmo a definir. 94 Talvez, o maior problema jurídico ligado à questão da autonomia da vontade é o de saber se, na divergência entre a vontade real e a vontade declarada, deve prevalecer esta ou aquela. Há um princípio baseado na valorização da vontade trazido pelo Código Francês que garante liberdade aos contratantes, qual seja: o princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei. Assim sendo, a autonomia da vontade ou liberdade subjetiva reside justamente no ato do indivíduo querer ou não querer alguma coisa, desde que não contrarie o ordenamento jurídico pátrio. Neste raciocínio Luís Renato Ferreira da Silva alude que autonomia privada é mais do que autonomia da vontade. Esta se relaciona ao agir livre do sujeito, ligando-se à vontade interna, psíquica. Já a autonomia privada diz respeito ao poder de criar normas para si. O acento é posto, assim, na possibilidade de decisões individuais com força normativa.95 Fernando Rodrigues Martins pondera: A substituição da autonomia da vontade pela autonomia privada, de que trata tão bem a doutrina italiana, como já anotado na incursão sobre o Estado social, baseia-se especificamente no perfil normativo genérico que faz coro com a atual ordem contratual (despersonificada e desmaterializada), impondo direitos e deveres como axiomas inter-relacionados, modificando aquela antiga concepção, por demais reducionista (...) a autonomia privada ganhou espaço com o advento do estado Social para justamente legitimar a livre iniciativa e a liberdade contratual, tanto que seus valores são ampliados neste pós-modernismo de cariz mais econômico.96 Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho a liberdade individual seria fruto da autonomia da vontade no campo negocial, o que torna a liberdade 94 Eros GRAU, Planejamento Econômico e Regra Jurídica, p. 410. Luís Renato Ferreira da SILVA, Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 27. 96 Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, p. 322. 95 47 contratual um princípio, devendo ser considerada em três planos distintos: (i) a liberdade de contratar; (ii) a liberdade de com quem contratar; e, (iii) a liberdade de o que contratar ou liberdade de escolha de conteúdo do ajuste. 97 Na autonomia da vontade há campo livre para negociações, podendo ser estipulado tudo entre as partes, desde que não contrarie a validade do negócio jurídico e não atente contra as normas, nelas compreendidas os dispositivos de lei e os princípios, de ordem pública e de proteção social. Ademais, Orlando Gomes declara que no século XIX os estudos da disciplina do contrato concentravam-se na manifestação de vontades, no exame dos vícios de consentimento. O que importava era verificar se a manifestação de vontade era, de fato, livre.98 Pela doutrina clássica, o contrato seria sempre justo, porque, se foi querido pelas partes, resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes, o que teoricamente presumir-se-á como o equilíbrio das prestações. Desta forma, sendo justo o contrato, segue-se que aos contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes. Assim, as partes envolvidas podem convencionar tudo aquilo que lhes interessa, o que, de resto, constitui um aspecto da liberdade individual, consubstanciada no princípio de que “é permitido tudo que não é proibido”. Seguindo essa ordem, pode-se, portanto, discutir livremente todas as condições contratuais, celebrar contratos regulados por lei, ou quaisquer outros inéditos que se imagine, escolher a melhor forma de declaração de vontade, fixar os efeitos, entre outros. Nos dissídios que por acaso se formem, a missão do juiz será circunscrever à apuração da vontade dos contratantes, em um processo de pura reconstituição. Ou seja, há uma declaração de vontades no contrato à qual o juiz deve-se limitar em primeira análise. Dando sequência ao modo de entender a vontade das partes no contrato, há em contraposição às chamadas normas obrigatórias e as normas facultativas, que 97 Pablo Stolze GAGLIANO e Rodolfo PAMPLONA FILHO, Novo Curso de Direito Civil – Contratos e Responsabilidade Civil: teoria geral, Tomo I, p. 39. 98 Apud Silvio de Salvo VENOSA, Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, Contratos em espécie e Responsabilidade Civil, pp.405-406. 48 se agrupam em normas supletivas e interpretativas. Em geral, o contratante, preocupa-se com os efeitos principais do contrato e descuida-se dos pormenores e das consequências secundárias que possam surgir. Poderia, com mais atenção, uma vez que as normas são facultativas, regulá-las por forma diversa da preferida pelo legislador e sustentada na experiência universal para cobrir todas as eventualidades. Contudo, em decorrência da omissão, subordina-se aos seus efeitos. Essa submissão torna a interpretação da autonomia da vontade um assunto mais aparente do que real. A aplicação de regras supletivas surpreende os contratantes nas situações que passam as consequências primárias, e surgirão efeitos e consequências estranhas à sua previsão, e até contrárias à vontade silenciada. Sob esse aspecto, a autonomia da vontade pode apresentar vulnerabilidades. A solução a posteriori de questões não previstas no contrato só poderá ser estabelecida pelas partes se estiverem de acordo. Não chegando a acordo, porém, a norma, em princípio, facultativa, ou seja, a que rege a lei da sociedade em geral, torna-se obrigatória para os contratantes em dissídio. Isto é imprescindível, para que se solucione o conflito. Analisando com este cuidado vê-se que a liberdade de contratar, então, deve ser entendida em termos. As partes podiam contratar o contrário do que dispunha a norma facultativa. Mas, se não usaram essa faculdade, a sua imprevisão poderá tornar necessário que ela se torne preceito obrigatório. No entanto, é importante notar que os tribunais pátrios vêm adotando soluções não convencionadas pelas partes, nem fornecidas pela lei supletiva, mas completamente respaldada no Direito Geral. Nesse sentido Écio Perin Junior dispõe que o juiz, simples aplicador ou intérprete da vontade, vê-se na necessidade de constituir uma solução estranha ao consentimento das partes quando, diante da situação concreta, não há previsão contratual ou legal.99 Assim, este tem que supor, imaginar solução que, no seu entender, seria a que as partes teriam adotado se o caso lhes tivesse ocorrido por ocasião da elaboração do contrato e, por ficção, admite-a como condição subentendida ou tácita. 99 Écio PERIN, A teoria da vontade na formação dos contratos e a autonomia do Direito Comercial em relação ao Direito Civil face ao projeto do novo Código Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 45, set. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=518>. Acesso em: 01 jul. 2010. 49 Entre a preponderância da vontade real contratada e não comprovada, ou da vontade declarada, a solução ideal é a intermediação. Se, em regra, é de preferir a vontade real, casos há em que, por conveniências sociais de segurança nas relações jurídicas a vontade declarada deve prevalecer, porque, sendo a declaração o meio normal de revelação da vontade interna, não devem os que nela confiarem sofrer prejuízo pela divergência entre uma e outra. 2.3 Igualdade, Paridade e Equidade É cediço que no contrato devem as partes estar em uma situação de equilíbrio. No entanto, questiona-se até que ponto há equilíbrio entre as partes de um contrato. Ao analisar referida problemática, Silvio Luís Ferreira da Rocha afirma que o contrato, por sua natureza seria paritário, isto é, os contratantes seriam iguais, e entre eles não haveria uma situação de desequilíbrio que implicasse na invalidade do contrato.100 Em razão da paridade, os contratantes submetem-se à mesma disciplina e nenhum deles pode impor ao outro o conteúdo do contrato ou alterar unilateralmente aquilo que foi estipulado. No que tange às questões de equidade Michele Cumyn afirma que é um modo de aplicação da justiça que consiste em adaptar em um caso particular uma solução derrogatória ao direito estrito conforme a justiça.101 Sem a paridade ou equidade surge visivelmente um desequilíbrio que pode assegurar a uma das partes a quebra do contrato. Ainda assevera que na realidade, a estrutura aberta do Código Civil facilita os recursos do juiz à equidade, sob a interpretação de suas disposições. As noções que fundamentam a decisão de equidade no domínio contratual, como a má-fé, a confiança legítima e a ilegalidade das partes ou das prestações, são noções que necessitam de uma apreciação de circunstâncias da espécie e do mérito respectivo das partes sob a luz clara do Direito. Em geral, é bastante difícil formular argumentos sob regras suficientemente abstratas e precisas para prever antecipadamente a solução que deverá ser dada a cada caso. Conclui que é por 100 Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore. Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p. 512. 101 Michele CUMYN, A Validade do Contrato segundo o direito estrito ou equidade: estudo histórico e comparado das nulidades contratuais, p. 13. 50 isso que a maioria dos princípios outrora reconhecidos por decisões de equidade fazem parte do direito positivo sob forma de regras formuladas em termos suficientemente grandes para deixar ao juiz a margem para apreciação em sua aplicação: são as regras de equidade. Dessa forma, verifica-se que o contrato significa também a institucionalização da igualdade entre as partes, de uma equalização entre as partes sociais que trocam. Todos podem trocar obedecendo a determinadas condições. A regra é a possibilidade para todos. 2.4 Obrigatoriedade Com escopo de melhor compreender o princípio da obrigatoriedade, torna-se interessante retomar as bases do Direito Romano que determina que o contrato tem força de lei entre as partes e qualquer contratante que não cumpra com as obrigações assumidas está sujeito à execução específica do contrato ou à resolução do contrato. Atribui-se à eficácia obrigatória do contrato, o fato de ter sido livremente estipulado ou aceito, o que quer dizer que as partes concordaram em impor restrições recíprocas à futura liberdade, e o fato de ter sido celebrado no próprio interesse, isto é, em razão das vantagens que irão auferir com ele. No entanto, surge mais um argumento para a quebra objetiva do contrato nas bases da obrigatoriedade: se o contrato vincula as partes pelo fato de ter sido livremente por elas estipulado em benefício próprio, a obrigatoriedade se vê em xeque a partir do momento em que não mais se aufere vantagens ou benefícios deste contrato. Assim, observa-se que o direito contemporâneo limitou, todavia, também a obrigatoriedade de realizar as prestações decorrentes dos contratos, interpretando tal obrigatoriedade rebus sic standibus, ou seja, enquanto as situações das partes não sofrerem modificações substanciais não cabe revisão ou reajustamento do contrato, mas caso haja tais transformações, uma revisão ou reajustamento do contrato se torna possível.102 102 Rosana Guida Krastins MARCELINO, Os princípios de Direito Privado e a liberdade In NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Função do Direito Privado no atual momento histórico, p.44. 51 2.5 Intangibilidade O princípio da intangibilidade abaliza-se no fato de que o conteúdo do contrato não pode ser modificado em razão da necessidade de preservar o resultado do acordo de vontades e a estabilidade dos negócios jurídicos. Para isso, nem as partes, nem o Poder Judiciário, estariam autorizados, em princípio, a modificar o conteúdo de um contrato. De acordo com tal princípio, a intervenção judicial deveria resultar, como regra, na decretação da nulidade ou na resolução do contrato e não na modificação de seu conteúdo. Todavia, Orlando Gomes afirma que a grande maioria da doutrina aceita a possibilidade da alteração dos contratos judicialmente – como exceção à regra da intangibilidade – nos casos em que ocorra fato imprevisível que modifique o estado de fato quando da celebração do contrato (teoria da imprevisão) e também quando o cumprimento do contrato se tornar demasiadamente oneroso para uma das partes, reservada esta hipótese para fatos supervenientes ocorridos nos contratos de consumo, porque social é todo o direito. Não obstante os conceitos como autonomia da vontade e negócio jurídico exijam proteção, a intangibilidade dos contratos é reduzida pelas chamadas normas imperativas, ou seja, a concepção predominante não é mais a da auto-regulação, do pacta sunt servanda, mas sim a do interesse social.103 2.6 Boa-Fé Para compreender melhor as questões do princípio da boa-fé, são importantes as considerações de Miguel Reale, nas quais declara de modo inicial que as normas jurídicas estão fundadas na pluralidade de valores, tais como liberdade, igualdade, ordem e segurança. No entanto, a justiça é a condição primeira 103 Rosana Guida Krastins MARCELINO, Os princípios de Direito Privado e a liberdade In NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Função do Direito Privado no atual momento histórico, p. 55. 52 de todos eles, ou seja, a justiça vale para que todos os valores valham, e para tanto a boa-fé faz-se necessária.104 A boa-fé objetiva constitui um princípio geral aplicável ao Direito. Pode-se defini-la como um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportarse de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade.105 Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença. Como se vê, a boa-fé objetiva diz respeito à norma de conduta que determina como as partes devem agir. Todos os Códigos modernos trazem as diretrizes do seu conceito, e procuram dar ao juiz diretivas para que possa decidir. Assim sendo, mesmo na ausência da regra legal ou previsão contratual específica, da boa-fé nascem os deveres, anexos, laterais ou instrumentais, dada a relação de confiança que o contrato fundamenta. Não se orientam diretamente ao cumprimento da prestação, mas sim ao processamento da relação obrigacional, isto é, a satisfação dos interesses globais que se encontram envolvidos. Pretendem a realização positiva do fim contratual e da proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes. Nos assuntos ligados à boa-fé analisam-se as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico, com escopo de interpretar a vontade contratual. Deve-se crer que, em princípio, nenhum contratante celebra contrato sem a necessária boa-fé. Mas a má-fé inicial ou interlocutória deve ser punida. E em cada caso o juiz deverá definir quando e onde foi o desvio dos partícipes do contrato, e levará em conta a hermenêutica e interpretação. As cláusulas gerais inseridas no novo Código Civil não expressam perfeita ideia do conteúdo, pois tem tipificação aberta e com conteúdo dirigido aos juízes. No 104 Miguel REALE, A Boa Fé no Código Civil. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm, acesso em 23 de junho de 2010. 105 Ruy Rosado de AGUIAR, O poder judiciário e a concretização das cláusulas gerais: limites e responsabilidade. In Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 18, 2000, p. 221. 53 entanto, constituem-se em mecanismo técnico-jurídico para aferição da abusividade do negócio jurídico ou da interpretação da vontade. Pretende-se preservar a função econômica para a qual o contrato foi concebido, resguardando-se a parte que tiver seus interesses subjugados aos de outra. O Código Civil de 2002 prevê a boa-fé objetiva em três grandes momentos. O primeiro momento é o do artigo 113, que tem função hermenêutico-interpretativa ao prescrever que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A seguir, é a vez do artigo 187, com sua função do controle dos limites do exercício de um direito, que assim prevê: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Por fim, o terceiro momento é o mais importante para as obrigações, por apresentar função integradora dos negócios jurídicos no que diz respeito à conduta das partes, nos termos do artigo 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim, na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”. 106 Não há dúvida que a noção de boa-fé objetiva, prevista pelo novo Código Civil, é a mesma que, em 1990, se pretendeu incorporar ao Código de Defesa do Consumidor – qual seja, a de uma cláusula geral de lealdade e colaboração para o alcance dos fins contratuais –, mas difere profundamente daquela visão protetiva da boa-fé que os Tribunais brasileiros aplicaram e continuam aplicando às relações de consumo. De fato, a noção de boa fé não tem ontologicamente este caráter protetivo. E em relações paritárias, como as que são tuteladas pelo Código Civil, não faz sentido atribuir uma função reequilibradora à boa-fé, pela simples razão de que, a princípio, não há, nestas relações desequilíbrio a proteger. Mais: aquela invocação indiscriminada da boa-fé objetiva como referência ética genérica, se era inofensiva nas relações de consumo, onde um sem-número de outros mecanismos a ela se somavam na indicação de uma solução favorável ao consumidor, torna-se altamente perigosa nas relações paritárias. Isto porque, não havendo, nestas relações, uma definição apriorística de que parte se deve proteger, torna-se necessário, para se chegar à solução adequada, preencher o conteúdo da boa-fé objetiva, não bastando 106 Daniel Penteado de CASTRO, Breves considerações acerca da boa-fé objetiva e revisão contratual In PEREIRA JUNIOR, Antônio Jorge; JABOUR, Gilberto Haddad (coords.). Direito dos Contratos II, p. 74. 54 mais sua simples invocação vazia de qualquer consideração concreta. Ao contrário do que ocorre nas relações de consumo, nas relações paritárias a insistência nesta concepção excessivamente vaga e puramente moral da boa-fé objetiva traz o risco de sua absoluta falta de efetividade na solução dos conflitos de interesses.107 A despeito do o Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/79) não tratar expressamente da boa-fé objetiva, dispõe de inúmeros mecanismos destinados a coibir a má-fé processual, o que se aproxima mais da boa-fé subjetiva. Neste contexto, a boa-fé objetiva pode ser aplicada sob a ótica da comprovação da má-fé processual das partes, funcionando mais como um princípio axiológico que um a norma processual prevista em lei. A título de elucidação, o Código de Processo Civil, ao arrolar em seu artigo 14 os deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, prevê em seu parágrafo único a aplicação de multa de acordo com a gravidade da conduta e não superior a 20% (vinte por cento) do valor da causa à parte que comete ato atentatório à dignidade da jurisdição previsto no inciso V desse mesmo artigo.108 Ademais, a boa-fé objetiva é um padrão genérico objetivo, de comportamento, que exige do contratante uma atuação refletida, preocupada com a outra parte. Cuida-se de um princípio que impõe a cada uma observância de comportamento respeitoso com a outra parte, que seja leal, não abusivo, nem lesivo. A boa-fé objetiva é atribuída, entre outras, à função de ser fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, denominados obrigações acessórias, e atuar como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos. Chama atenção ainda, o fato de que o princípio da boa-fé, bem como o da função social do contrato e da equivalência contratual não decorrem do princípio da autonomia da vontade, como era com os princípios norteadores dos contratos no passado.109 107 Gustavo TEPEDINO e Anderson SCHREIBER, A Boa Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil (artigos 113, 187 e 422). In TEPEDINO, Gustavo. Obrigações: estudos na Perspectiva Civil Constitucional, p.34. 108 Conforme Daniel Penteado de CASTRO, Breves considerações acerca da boa-fé objetiva e revisão contratual In PEREIRA JUNIOR, Antônio Jorge; JABOUR, Gilberto Haddad (coords.). Direito dos Contratos II, p. 67. 109 Conforme Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore. Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p. 520. 55 Se no Direito Romano era prevista a interpretação literal do instrumento contratual, isentando a análise subjetiva de seu conteúdo e de suas consequências, a evolução do conceito do próprio instituto e, por que não afirmar, do Direito, conduziu a consciência de que a boa-fé é um dos princípios basilares da contratualidade. É importante notar que, consoante Izner Hanna Garcia, o princípio da boa-fé está intimamente ligado ao princípio da supremacia da ordem pública e do bem comum, já que quando o artigo 113 do Código Civil 110 reconhece como princípio básico o dever de agir com boa-fé, procura dar à sociedade e suas relações socioeconômicas uma convivência imbuída de lealdade e confiança. 111 Nesse sentido, vale relembrar o conceito de idoneidade como pressuposto contratual. Assim, quando se fala em princípio da boa-fé, busca-se proteger a própria ordem jurídica em seu todo, assegurando à sociedade que todos devem contratar com boa-fé. Pelo princípio da boa-fé imagina-se a necessidade de compreender ou interpretar o contrato segundo as regras da lealdade e confiança entre as partes contratantes, já que não se pode aceitar que um contratante tenha firmado o pacto com má-fé, visando tirar proveito injustamente à custa do prejuízo de outrem. Nesse aspecto resgata-se a lealdade recíproca presente em todo o Direito de raízes romanas.112 Desta forma, pode-se conceituar a boa-fé objetiva como um conceito ético de conduta, moldado nas ideias de proceder com correção, com dignidade e probidade, pautadas as atitudes nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de prejudicar ninguém.113 Torna-se importante distinguir entre a boa-fé objetiva e subjetiva, e para tanto cita-se a distinção realizada com grande propriedade por Daniel Penteado de Castro: 110 “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”. 111 Izner Hanna GARCIA, Revisão de Contratos no Novo Código Civil, p.30. 112 Ibidem, p.30. 113 Sílvio RODRIGUES, Direito Civil. Dos Contratos e das declarações unilaterais de vontade, vol. 3, p. 60. 56 Denomina-se „objetiva‟ porque a sua finalidade é impor aos contratantes uma conduta de acordo com os ideais de honestidade e lealdade, independentemente do subjetivismo do agente; em outras palavras, as partes contratuais devem agir conforme um modelo de conduta social, sempre respeitando a confiança e o interesse do outro contratante. Já na boa fé subjetiva, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado. 114 Assim sendo, a boa-fé objetiva analisa as condições em que o contrato foi firmado, seu momento histórico e econômico, bem como o nível sociocultural dos contratantes. A antítese desta espécie, para Daniel Penteado de Castro “não é permitir a intenção de prejudicar, como na boa-fé subjetiva, mas a exteriorização de um comportamento ímprobo, egoísta ou reprovável, verificado sob a ótica da vida em harmonia dentro da comunidade”.115 Seria afronta ao princípio da boa-fé objetiva, portanto, um ato que viola um dever adjacente ao contrato, cuja análise não se encontra permeada somente na intenção das partes contratantes, como também nas condutas por elas perpetradas, antes, durante e após a execução do contrato. 2.7 Relatividade de Efeitos O princípio da relatividade dos contratos surgiu entre os romanos em virtude do caráter estritamente pessoal da obrigação dentro da sistemática do direito que construíram primitivamente, a qual importava na sujeição pessoal do obligatus ao poder – manus – do credor. A pessoalidade da obrigação impedia que o contrato projetasse seus efeitos com relação a terceiros não participantes do mesmo no momento de sua formação.116 114 Daniel Penteado de CASTRO, Breves considerações acerca da boa-fé objetiva e revisão contratual In PEREIRA JUNIOR, Antônio Jorge; JABOUR, Gilberto Haddad (coords.). Direito dos Contratos II, p. 99. 115 Ibidem, p. 100. 116 Orlando GOMES, Contratos, p. 23. 57 Sílvio de Salvo Venosa afirma que o contrato sobre bem que não pertence aos sujeitos não atinge terceiros.117 Deve-se ter em mente que a relatividade do contrato é ato de autonomia contratual, por meio do qual as partes têm a prerrogativa de regular seus próprios interesses Importante frisar que as partes são centros de interesses compostos pelos sujeitos que integram o vínculo contratual, e terceiros são pessoas estranhas a essa relação jurídica que, no entanto, podem vir a sofrer as consequências do contrato ou auferir suas vantagens. Justifica-se tal retorno às noções elementares da teoria geral dos contratos, na medida em que frequentemente se confundem os sucessores causa mortis – tanto a título universal quanto singular – e os sucessores inter vivos, a título particular, com os terceiros, o que na verdade constitui-se um equívoco, visto que ao assumirem a posição dos seus predecessores tornam-se partes nos contratos. Também nos contratos coletivos, quer nos oriundos das relações trabalhistas, quer nos relativos ao consumidor, por vezes se verifica certa incorreção técnica ao se definir, como terceiros, a coletividade de pessoas que será atingida por seus efeitos. Os contratos denominados oponíveis admitem a oposição do terceiro quando o contrato alheio a sua pessoa, considerado como fato, causa-lhe prejuízo digno de proteção. O credor, por exemplo, pelo fato de ser sujeito ativo de uma relação jurídica obrigatória, da qual um dos contratantes é sujeito passivo, pode ter a esfera dos respectivos interesses afetada pelo contrato, o que normalmente ocorre quando o contrato diminui o patrimônio do devedor, que era a garantia do credor de que receberia o seu crédito. Nesse caso, presentes certos requisitos, o credor terá a possibilidade de pedir a ineficácia do contrato em relação a sua pessoa, na hipótese de fraude de execução, ou a invalidação do contrato, na hipótese de fraude contra credores.118 117 Sílvio de Salvo VENOSA, Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, Contratos em espécie e Responsabilidade Civil, p. 26. 118 Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore. Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p.52. 58 2.8 Justiça Contratual O princípio do equilíbrio contratual ou da justiça contratual tem por finalidade buscar com que o contrato seja realizado em uma ordenação objetivamente justa nas relações entre os contratantes, que supere e torne inócua a desigualdade fática das partes.119 É possível afirmar que o princípio da justiça contratual apresenta determinadas características, dentre as quais é possível citar: (i) ambas a equivalência objetiva entre prestação e contraprestação exigindo que tenham valor sensivelmente correspondente. Encontram-se manifestações concretas sobre isto na exceção do contrato não cumprido; no abatimento do preço por vício da coisa e evicção; na proibição da perda das parcelas pagas (prevista no artigo 53120 da Lei nº. 8.078/90); (ii) na justa distribuição de ônus e riscos do contrato (artigo 234121 e 494122 do Código Civil); (iii) na proibição da lesão. No que diz respeito aos defeitos do negócio jurídico, Silvio Luís Ferreira da Rocha123 fala que o novo Código Civil disciplinou o instituto da lesão considerando anulável o negócio jurídico realizado por pessoa sob premente necessidade ou inexperiência que se 119 Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore. Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, p. 72. 120 “Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. § 1° (Vetado). § 2º Nos contratos do sistema de consórcio de produtos duráveis, a compensação ou a restituição das parcelas quitadas, na forma deste artigo, terá descontada, além da vantagem econômica auferida com a fruição, os prejuízos que o desistente ou inadimplente causar ao grupo. § 3° Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional.”. 121 “Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.”. 122 “Art. 494. Se a coisa for expedida para lugar diverso, por ordem do comprador, por sua conta correrão os riscos, uma vez entregue a quem haja de transportá-la, salvo se das instruções dele se afastar o vendedor.”. 123 Sílvio Luis Ferreira da ROCHA, Princípios Contratuais. In NANNI, Giovanne Ettore. Temas relevantes do Direito Civil Contemporâneo, 2008. 59 obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação (artigo 157124 do Código Civil). Henrique da Silva Lima125 também fala sobre o instituto da lesão no Código Civil; e, (iv) na proibição das cláusulas abusivas. À procura de equilíbrio contratual, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.126 Importante ressaltar que, para combater a violação ao princípio da justiça contratual, têm, recentemente, sido suscitados os artigos 317127 e 478128 do Código Civil, especialmente nos casos de contratos sob os quais incidiram juros compostos por longo período de tempo tornando valores de negociação absurdamente excessivos para a parte devedora. É o caso dos juros bancários e principalmente das dívidas de cartões de crédito, em que está presente a vulneração do consumidor frente aos bancos. Acerca disso, assevera-se que se há reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, do que resulta a intervenção estatal no sentido de protegê-lo, inclusive legislativamente, remanesce cristalino que a tutela do consumidor também se justifica pelo objetivo de consumo, com o que se busca o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Se existe consenso no que se refere ao desequilíbrio nas relações de consumo, estando o consumidor em uma posição de debilidade e subordinação estrutural em relação ao produtor do bem 124 “Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. o § 1 Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. o § 2 Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”. 125 Henrique da Silva LIMA, O instituto da lesão no código civil, passim. 126 Cláudia Lima MARQUES, Antônio V. HERMAN e Bruno MIRAGEM, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 60. 127 “Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”. 128 “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 60 ou serviço de consumo, nada mais justo e correto do que buscar restabelecer o equilíbrio desejado quer protegendo o consumidor, quer educando-o, quer fornecendo-lhe instrumentos e mecanismos de superação desses desequilíbrios. Com isso, as relações de consumo poderão cumprir seus objetivos, com maior harmonia e redução de conflitos.129 No que se refere à justiça contratual, é de grande relevância a análise da equivalência das prestações. Isso, pois a justiça contratual objetiva tem repercussão direta no princípio objetivo de equivalência entre prestação e contraprestação, quando houver correspondência entre as duas, e na ideia de distribuição equitativa de ônus e riscos relacionados com o contrato. Fernando Rodrigues Martins chama a atenção para o fato de que: O surgimento de uma nova ordem contratual impõe a adequação de seus princípios, especialmente da justiça contratual, cuja compreensão vai além da noção de simples equilíbrio, porquanto, se este parte de uma ótica sobre o intercâmbio de prestações, aquele se refere a julgamento éticos, possibilitando investigações mais acendradas de comportamentos e de conteúdo obrigacional. (...) é possível inferir que o princípio da justiça contratual é revelado na composição harmoniosa quanto ao conteúdo jurídico e econômico do contrato, com base na equânime proporção entre forças antagônicas e na interação dos elementos contratuais de dimensões diferentes.130 Karl Larenz, sendo citado por Fernando Noronha afirma que o princípio da distribuição equitativa (ou justa) de ônus e riscos, que visa uma equilibrada repartição de benefícios e encargos entre as partes um domínio de grande alcance no direito legal dispositivo. Mas o princípio da distribuição equitativa de ônus e riscos hoje em dia se revela especialmente importante no âmbito dos contratos padronizados e de adesão: empresas industriais, comerciais e de prestação de serviços, quando elaboram os contratos que oferecerão aos clientes aderentes, são levadas, por força do progresso econômico e da luta por melhores condições de competitividade, a transferir para eles quantos encargos e riscos, possíveis e imaginários, seja-lhes permitido – e às vezes, mesmo aquele não permitidos. 131 129 Conforme João Batista ALMEIDA, A proteção jurídica do consumidor, p.33. Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, pp. 395-396. 131 Conforme Fernando NORONHA, Direito das obrigações, p. 55. 130 61 2.9 Função Social Sendo o contrato um dos poucos institutos que sobreviveu por tanto tempo e se desenvolveu sob inúmeras formas nas sociedades diversas, sempre se adequando às peculiaridades de cada tipo de sociedade, sua função confunde-se com a própria história das sociedades. Podendo ser observado pelo crivo de instrumento burguês de dominação ou pela consagração dos princípios contratuais como princípios próprios da ordem natural, o contrato muda de feição e atende aos interesses jurídicos dos contratantes de cada época. Até que se mostre, a cada época, como insustentável ou deficiente, quando então se adapta e busca sua readequação, para prosseguir como o que sempre fundamentalmente foi: um instrumento essencial da organização social. De se ressaltar que a organização social por meio dos contratos se dá na medida em que, ao mesmo tempo em que garante a regulação dos interesses individuais com igualdade entre as partes contratantes, atende à necessidade premente de ampliação e difusão das relações de troca, como bem lembrado por Orlando Gomes. A esse respeito, Henrique da Silva Lima assevera que embora o contrato seja uma espécie de negócio jurídico, esses termos não são sinônimos, devendo, nos contratos, existir a emissão de vontades reguladas por lei e, embora pareça óbvio e pacífico, o contrato ainda não atingiu, da forma como deveria, a dimensão e o poder que possui de promover e resguardar os direitos dos contratantes, que muitas vezes, ao revés, ficam subjugados a vontade da parte mais forte na relação. 132 Torna-se oportuno ressaltar as ideias de Fran Martins que atentam para a função social do contrato como a fonte de obrigação mais comum estabelecida entre partes e fundamental para que a sociedade se manifeste frente a contestações. O autor afirma, nesse sentido, a função do contrato como verdadeira prova das partes junto à sociedade. 133 Houve uma adequação do que se fazia antes mesmo do modelo de contrato romano ao paradigma do Estado Democrático de Direito, em que o contrato está 132 133 Henrique da Silva LIMA, O instituto da lesão no código civil, passim. Fran MARTINS, Contratos e Obrigações Comerciais, p.63. 62 sujeito a uma princiopiologia contratual moderna, voltada para os preceitos constitucionais, de forma a resguardar direitos e garantias fundamentais dos contratantes. A ideia do interesse social passa a nortear os contratos privados e o princípio da função social é compreendido como algo que interessa a toda a coletividade. Nesse entendimento Flávio Tartuce percebe a função social do contrato como regramento contratual de ordem pública (art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil), pelo qual o contrato deve ser necessariamente, analisado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade. 134 Ainda sobre o tema, o mesmo autor conclui que a função social constitui verdadeiro princípio geral do ordenamento jurídico, abstraído das normas, do trabalho doutrinário, da jurisprudência, dos aspectos sociais, políticos e econômicos da sociedade.135 Desde logo, importa notar os aspectos históricos que influenciaram o princípio da função social, que certamente é fruto de transformações de ordem social, econômica e política, sobretudo alcançando aspectos jurídicos. A Revolução Francesa demarcou o período em que as ideias individualistas predominaram, sendo que vigia o princípio da mínima intervenção do Estado na ordem privada. A Doutrina individualista do direito representou eixo fundamental da defesa dos direitos do homem. A visão individualista instituiu ainda o direito à propriedade e a livre circulação de bens e riquezas, donde se atribuiu nas palavras de Moacyr Costa Neto papel subjacente às manifestações de vontade e a concepção de justiça diante da mínima intervenção na ordem privada.136 Para Augusto Geraldo Teizen Junior a revolução permitiu a libertação das instituições e humanização dos direitos o que contribuiu para mitigação do servilismo feudal e ganhou destaque nesse período o instituto da propriedade.137 134 Flávio TARTUCE, A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, p. 248. 135 Ibidem, p. 248. 136 Moacyr COSTA NETO, A interpretação dos contratos e abuso de direito In NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.). Função do Direito Privado no atual momento histórico, passim. 137 Augusto Geraldo TEIZEN JUNIOR, A função social no Código Civil, p. 151. 63 Nesse sentido, o Código de Napoleão pronunciava conceito novo e revolucionário de propriedade, através do direito de gozo e disposição quase que absolutos. Os valores do passado moldam a dogmática atual do direito moderno, que denotam, segundo Augusto Geraldo Teizen Junior, a transição do indivíduo para a sociabilidade.138 Averigua-se que a preocupação constante com a utilização da propriedade não é nova, nem revolucionária, e nos remonta à doutrina cristã da Idade Média. O jusnaturalismo, por sua vez, por meio de critérios de equidade, proclamaria a função social da propriedade como instrumento de realização da justiça divina. O liberalismo do século XIX, individualismo, ajuda a moldar a função social e inspira posteriormente a codificação europeia do século XIX e assim o Código Civil de 1916. Toda disciplina jurídica do século XIX girou em torno da liberdade e exercício da economia por meio dos contratos e nessa esteira o direito a propriedade. A primeira guerra marca mudança no papel do legislador que passa a intervir na economia e busca expansão da igualdade e atendimento de interesses sociais básicos, leciona Augusto Geraldo Teizen Junior. Franz Wieacker estabelece que associações de empresários e trabalhadores através de influência sobre o mercado viabilizaram a evolução social. Franz Wieacker sentiu pela primeira vez que a evolução trouxe restrições à liberdade de utilização da propriedade no sentido de tomarem providências legislativas com relação às carências de habitação. Nesse diapasão, após a Revolução Francesa a justiça retributiva dá lugar à redistributiva com acentuado intervencionismo estadual e dirigismo contratual documentado no Brasil a partir de 1930.139 Fórmulas abstratas poderiam aduzir que a função social do contrato é a circulação de bens e riquezas, o que não garante instrumentos para efetiva demonstração da funcionalização da relação contratual.140 Maria Celina Bodin de 138 Ibidem, p. 157. Franz WIEACKER, História do Direito Privado Moderno, p. 630. 140 Conforme Pablo RENTERIA, Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coord), Princípios do Direito Civil Contemporâneo, p. 304. 139 64 Moraes, nessa esteira estudou o tema e concluiu que a teoria da causa serve à realização da análise funcional da relação contratual.141 O ordenamento jurídico não prevê a causa como requisito de validade do negócio jurídico o que poderia denotar óbice à sua admissão. Entretanto, mesmo sobre a égide do Código Civil de 1916 juristas como Pontes de Miranda, defendiam a existência do elemento causal em nosso ordenamento. A causa do contrato não se confunde com o objeto contratual, que é o conjunto dos atos que as partes se comprometem a realizarem singularmente considerados, isto é, prestações das partes.142 Orlando Gomes estabeleceu que o contrato tem por objeto as prestações das partes, enquanto que a causa é o intercambio entre as prestações das partes. 143 Em conformidade com a doutrina de Pablo Rentería, após advento do Novo Código Civil verifica-se que vários dispositivos invocam a análise funcional do contrato e investigam renovação do debate sobre a causa.144 Alerta ainda o autor que a concepção do contrato veio a ser contestada por um movimento socializante do direito e nessa esteira a causa abandonou a concepção subjetiva, cujo fundamento era a intenção que levava cada parte a contratar e passou-se então, a privilegiar critérios objetivos da relação contratual.145 A causa, para Pietro Perlingueri, é o que ilumina o contrato na sua dimensão de valor e regulamento de interesses. Com efeito, o fato da causa não ter sido elencada como requisito de validade do negócio jurídico, evita confusões ao identificar a causa em conjunto com os demais requisitos.146 Com efeito, a causa, para Maria Celina Bodin Moraes, se aproxima da ideia de função econômica – social ou prática – do contrato. A autora prossegue e assevera que não basta que o comportamento das partes seja conforme a ordem 141 Maria Celina Bodin de MORAES, A causa dos contratos, p. 107. Maria Celina Bodin de MORAES, A causa dos contratos, p. 107. 143 Orlando GOMES, Contratos, p. 24. 144 Pablo RENTERIA, Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coord), Princípios do Direito Civil Contemporâneo, p. 307. 145 Ibidem. 146 Pietro PERLINGUERI, Perfis do Direito Civil, p. 25. 142 65 pública, mais ainda deve-se buscar a realização de interesses, reputados dignos de tutela.147 Dessa linha de raciocínio estabelece-se que a causa consiste na síntese dos efeitos essenciais de cada contrato. Para Judith Martins Costa, a causa é útil para qualificar o contrato, enquanto que a função social é útil para impor aos contratantes deveres que tornem os contratos em conformidade com bem comum.148 Contudo, Pablo Renteria afirma que dentre as principais sugestões de concretização da função social do contrato a que recebe maior potencialidade normativa é a aproximação com a causa do contrato.149 Pablo Renteria, com fundamento no que descreve Maria Celina Bodin Moraes, contradiz a distinção entre a causa e função social. Em primeiro lugar, porque a causa do contrato sob o aspecto objetivo tem caráter anti-individualista, por outro lado sob visão subjetiva traz ideia de que o fundamento de cada obrigação contratual baseia-se na motivação de cada parte para contraí-la. A ideia objetiva de causa exige, por sua vez, que o contrato veicule interesse prático, que esteja em consonância com o interesse social e geral, que demonstra deslocamento do ponto de vista de valoração dos contratos sob a ótica dos contraentes para a ótica do ordenamento jurídico. Em segundo lugar, a função social do contrato não pode exigir que as partes privilegiem interesses dos outros, antes de privilegiar seus próprios interesses. Portanto, há interesse social a ser atendido quando se tutela o interesse individual de cada um.150 A causa como síntese dos efeitos essenciais do contrato consegue delimitar o contrato, e atribuir disciplina jurídica adequada. Nessa esteira, ao analisar a finalidade concreta do negócio ou a sua função se distingue a qualificação do tipo contratual e, por conseguinte averigua-se o controle de sua ilicitude. 151 147 Maria Celina Bodin de MORAES, A causa dos contratos, p. 111. 148 Ideia elaborada pela autora Judith MARTINS-COSTA na nota de rodapé n. 2, do texto Reflexões sobre o Princípio da Função social nos contratos, publicado na Revista Direito GV1, p. 66. 149 Pablo RENTERIA, Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coord), Princípios do Direito Civil Contemporâneo, p. 309. 150 Ibidem. 151 Maria Celina Bodin de MORAES, A causa dos contratos, p. 112. 66 A função social exige análise da relação contratual em seu perfil funcional e consequentemente gera consagração da aplicação tradicional da causa do contrato quanto à eficácia contratual. É possível aproximar a função social do contrato da causa, tendo em vista que o artigo 421 do novo Código Civil torna inevitável a análise funcional da relação contratual. Do ponto de vista técnico jurídico a funcionalização consagrada pela função social do contrato se faz presente através da análise da causa objetiva e concreta do contrato. Portanto, a noção de causa do contrato contribui para que se tenha método mais técnico e operacional para efetiva a funcionalização da relação contratual, trazendo conteúdo dogmático àquilo que a função social do contrato poderia apresentar de volúvel.152 Importa mencionar que há divergência quanto aos princípios envolvidos na função social do contrato, já que pretende buscar a vedação de excessos e o equilíbrio de valores contratuais, de modo que resta evidente a necessidade de se anotar inicialmente a relatividade desses princípios relacionais. A relatividade dos contratos é um dos princípios fundamentais do direito privado, profundamente relacionado com a noção de autonomia da vontade. Existe no ordenamento uma complementariedade entre a relatividade dos efeitos contratuais e a função social dos contratos, de forma que respeita-se a autonomia dos privados, mas também se verifica a compreensão que deve apresentar esse princípio com outros valores, como é o caso da boa fé objetiva e o equilíbrio sinalagmático dos contratos. O princípio da relatividade, consoante Luciano Camargo Penteado, consiste primeiramente no efeito que o contrato gera entre os figurantes, ou seja, entre as partes. Nesse sentido, ensina que o princípio da relatividade garante que o efeito voluntário da expressão do querer ensejará efeitos somente entre as partes, sejam elas formais ou materiais. Alerta ainda que o princípio da relatividade não impede efeito vinculado do contrato perante terceiro, apenas restringe seu âmbito para garantir a liberdade de contratar. 152 153 Pablo RENTERIA, Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coord), Princípios do Direito Civil Contemporâneo, p. 310. 153 Luciano de Camargo Penteado, Efeitos Contratuais perante Terceiros, p. 190. 67 Por seu turno, Augusto Geraldo Teizen Junior alega que o princípio da relatividade permite delimitar o âmbito de eficácia do contrato sendo que produzirá efeitos somente em relação aos contratantes.154 Nessa esteira, Nelson Nery Junior aduz que análise literal do artigo 421 poderia traduzir ideias de que função social do contrato limita autonomia privada, mas em verdade não se contrapõe, e sim se coaduna e compatibiliza.155 A relatividade tutela a liberdade de contratar na medida em que ninguém se torna parte contra sua vontade sem querer expresso, leciona Luciano Camargo Penteado. Nessa linha, assevera que a preservação da liberdade encontra limites nas normas jurídicas que impõe efeitos protetivos perante terceiros, especialmente no que tange a função social do contrato.156 Portanto se vê necessária a estruturação da vontade em face de outros valores significativos do direito, assim como a função social. Neste esteio Fernando Rodrigues Martins afirma: A cláusula da função social do contrato permite a avaliação da justiça contratual entre as partes ante a exigência do solidarismo e da proteção da dignidade da pessoa humana, ainda garante o exercício jurídico de releitura do princípio da relatividade dos efeitos do contrato para proteger a justiça contratual realizada pelas partes de terceiros e protege terceiros e a sociedade dos efeitos injustos do contrato celebrado pelas partes, além de, autorizar a volta ao status quo ante nos casos de perda do fim ou de sua utilidade.157 Augusto Geraldo Teizen Junior expõe que a concepção subjetiva do princípio da relatividade que vê a vontade como razão da força obrigatória dos contratos cede e dá lugar ao princípio da função social do contrato.158 Quando a autonomia da vontade e os fins sócio-econômicos e interesses públicos entrarem em conflito deverá ser preservada a função social do contrato para harmonização dos interesses contrapostos para garantia da justiça e paz social. A função social confere proteção pelo ordenamento jurídico aos mais fracos 154 Augusto Geraldo Junior TEIZEN, A função social no Código Civil, p. 162 Nelson NERY e Rosa Maria de Andrade NERY, Código Civil Comentado, p. 412. 156 Luciano de Camargo PENTEADO, Efeitos Contratuais perante Terceiros, p. 191. 157 Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, p. 306. 158 Augusto Geraldo Junior TEIZEN, A função social no Código Civil, p. 164. 155 68 na relação contratual para garantia do equilíbrio das partes – o princípio da isonomia é assim resguardado.159 Nesse sentido a queda do princípio da relatividade dos efeitos contratuais permite que os efeitos obrigatórios dos contratos avancem sobre terceiros não envolvidos na relação contratual originária ou até na própria coletividade. Tanto no caso do terceiro alheio à relação contratual, quanto no caso da parte envolvida na relação contratual que sofreram prejuízo em face do inadimplemento, impõe-se uma análise acurada do princípio da relatividade dos efeitos do contrato a luz do princípio da função social. Assim, o terceiro prejudicado, alheio à relação contratual, não poderia pleitear indenização com base no princípio da relatividade. Entretanto, em razão da nova interpretação do princípio da relatividade, no sentido de sua flexibilização, advinda da aplicação da função social do contrato, o terceiro prejudicado pode requerer sua indenização. Conclui-se que o princípio da relatividade, que antes restringia os efeitos do contrato apenas aos integrantes da relação contratual, a partir da aplicação da função social, passa a viabilizar a que terceiros prejudicados possam também requerer indenização às partes contratantes. No que tange à oponibilidade dos efeitos do contrato a terceiros, Rômolo Russo Junior, expõe que o princípio da função social promove a real alteração do referido princípio relativista, cuja máxima romana, embora inexistente no Código Civil, determina que o que foi negociado entre as partes não pode prejudicar ou beneficiar terceiros.160 Tereza Negreiros ao dispor sobre a história do princípio da relatividade, em paralelo com a história do princípio da autonomia da vontade, demonstra transformação na concepção de vontade das partes para concretizar o negócio, sendo que não há necessariamente que se querer para se tornar adstrito a relação contratual.161 Dessa forma, o princípio da relatividade há que ser reformulado e reinterpretado em face do novo princípio da função social. 159 Ibidem, p. 167. Romolo RUSSO JUNIOR, O poder do juiz integrar o contrato a realidade. In NERY, Rosa Maria de Andrade (Coord.), Função do Direito Privado no atual momento histórico, p. 138 161 Tereza NEGREIROS,Teoria do contrato, p. 67 160 69 Sendo assim, a função social permite conceber que terceiros não permaneçam alheios como se a relação contratual não existisse. Portanto, por meio da consubstanciação do princípio da função social verificase que o contrato pode influenciar terceiros alheios a relação contratual, o que corrobora o abandono da autonomia da vontade em prol do interesse coletivo. Por fim, vale notar que o próprio Código de Defesa do Consumidor levou à ruptura do princípio da relatividade quando criou direitos para ex-terceiros, agora consumidores, e impôs ainda patamar de boa-fé em face de todos os consumidores, tanto aqueles que contratam quanto aqueles que utilizam indiretamente o serviço ou produto. 70 CAPÍTULO III – QUEBRA DA BASE OBJETIVA DOS CONTRATOS Todo contrato é celebrado pelas partes levando em consideração determinadas circunstâncias de caráter geral, como a ordem econômica e social existente, o poder aquisitivo da moeda, as condições normais do tráfico, sem as quais o contrato não alcança a sua finalidade. As partes apenas contratam diante da constatação de circunstâncias determinadas que as façam crer que o negócio jurídico firmado será proveitoso para si, e proporcionará o atingimento de um objetivo determinado. A causa é o motivo determinante pelo qual uma parte é levada a contratar e explicita o seu interesse concretamente perseguido. A causa liga-se diretamente com a expectativa do contratante em ver realizado seu interesse. Dentro deste contexto, a noção de equilíbrio caminha paralelamente à noção de contrato – como visto no capítulo anterior – apesar de em cada época distinta ela apresentar matizes diferentes de acordo com a valoração dada pela sociedade. Atualmente, o contrato deve ser equilibrado em face dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade substancial, da proporcionalidade e razoabilidade, e sempre no sentido da equidade e da eticidade, procurando evitar abusos em relação às suas diversas naturezas, em face do ambiente globalizado.162 Fundamentalmente, o equilíbrio é elemento que se faz presente no momento da contratação, pois, em busca de um interesse particular, cada parte aceita submeter-se às regras do contrato, e celebra o negócio jurídico convencido – ainda que momentaneamente – de que a contraprestação que se compromete a cumprir é equivalente à prestação, ao bem ou benefício que receberá em nome do contrato. Isso claro, se levando em conta a livre manifestação da parte e a expressão genuína de sua autonomia e liberdade de contratar. Ocorre que, muitas vezes as circunstâncias externas se alteram, modificando o cenário inicial em que se deu a contratação, e essas alterações podem vir a repercutir sobre o contrato firmado, fazendo com que uma das partes 162 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p. 30. 71 (em regra) sinta-se desprivilegiada em relação à outra dentro da relação contratual, criando um desequilíbrio que em tese autorizaria uma quebra contratual. Essa quebra de contratos pode estar fundada em diversas situações de desequilíbrio, tais como: (i) lucro desmedido para uma parte em contrapartida de um prejuízo grande para a outra; (ii) impossibilidade de honrar acordos por motivos diversos; (iii) percepção de falhas contratuais a posteriori; entre outras hipóteses. Embora nem sempre haja pressupostos econômicos envolvidos, a paridade e harmonia das vantagens e desvantagens econômico-financeiras do negócio se revelam ao longo do tempo. Muitas vezes, até mesmo um contrato de cunho social, pela quebra, acaba envolvendo questões financeiras e vice-versa. Assim, indissoluvelmente o contrato está ligado à conjectura econômica, que é flutuante, já que nela se repercutem todos os acontecimentos de ordem social, política e internacional. E embora o Estado intervenha nas relações entre os particulares de forma preventiva por meio da elaboração de legislação regulamentadora dos contratos, e também posteriormente por meio da atividade do judiciário que dirime as demandas quando provocado, inegável é o fato de que as relações contratuais em muito perpassam o controle do Estado. A este respeito Ronaldo Porto Macedo Júnior afirma: Embora as referências ao intervencionismo estatal e ao surgimento da sociedade de massas sejam frequentes nos livros de direito brasileiro, a cultura jurídica dominante sobre o direito contratual ainda hoje tende a subestimar ou muitas vezes negligenciar a relevância das transformações econômicas ocorridas neste século, em particular a forma de organização da produção industrial, e seu papel na conformação e estabilização do paradigma contratual hegemônico. Ainda hoje são poucas as análises concretas do significado destas transformações para a teoria contratual. (...) Concluindo as novas exigências de justiça contratual e as novas formas de organização do mercado oriundas de sua nova conformação, tendo em vista as mudanças econômicas ocorridas no século XX, notadamente o advento da produção em massa e posteriormente do pós fordismo e o surgimento da especialização flexível, introduziram novas dimensões e a exigências que passaram a desafiar os princípios contratuais dominantes nas teorias contratuais clássicas e neoclássicas e a racionalidade jurídica nelas proposta.163 163 Ronaldo Porto MACEDO JUNIOR, Contratos relacionais e defesa do consumidor, pp. 49-50. 72 Desta forma são inúmeras as variantes que podem vir a interferir num contrato, alterando-lhe substancialmente a base. Como já observado nos capítulos anteriores, na Idade Média, a manutenção do equilíbrio estava estreitamente associada à preocupação pela justiça do conteúdo. Seria injusto manter a vinculação se as circunstâncias sofressem uma alteração radical. Embora a cláusula pacta sunt servanda vigorasse nos contratos desde os primórdios, também desde o Código de Justiniano já se fazia valer uma cláusula implícita que alertava para o fato de que se as condições externas à época da contratação fossem consideravelmente modificadas o vínculo contratual poderia ser revisto ou resolvido: era o gérmen da ideia de base objetiva. Já nos dias de hoje a preocupação não se explica pela justiça do conteúdo como na Idade Media, mas caracterizada pela intervenção estatal, especialmente legislativa nas esferas do contrato e da propriedade, por meio da constitucionalização da ordem econômica e social, expande-se para abarcar os interesses sociais. Rodrigo Toscano de Brito afirma que “os interesses individuais apenas são admitidos se estiverem em conformidade com os interesses sociais”. E continua, afirmando que a consequência dessa mudança de paradigma, na concepção dos contratos, é a emergência dos princípios sociais, que embora não eliminem os princípios liberais, passam a limitá-los e a conformá-los, em delicado equilíbrio.164 Frise-se que na hipótese de quebra da base objetiva nenhuma alteração se opera em relação à causa do negócio jurídico: o interesse dos contratantes permanece inalterado, mas em razão da modificação das circunstâncias externas o contrato – da forma em que fora firmado – não mais servirá para o atingimento do interesse perseguido pela parte. Supõe-se nestes casos que apenas uma das partes seja prejudicada, ou ao menos mais prejudicada, já que no caso do contrato deixar de atender a ambas, simplesmente poderia se operar a rescisão contratual. Segundo Maria Helena Diniz165 a quebra do contrato nestas condições é objetiva, pois a ninguém é atribuível, não havendo elemento subjetivo. É uma situação que se desfaz independentemente de quem ou como aconteceu. 164 165 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p. XV. Maria Helena DINIZ, Tratado teórico e prático dos contratos, vol. 3, p. 32. 73 Dessa forma, determinadas situações supervenientes ao contrato podem alterar o modo de cumprimento da prestação, modificar o quantum devido, ou até mesmo impedir a prestação por uma das partes, destruindo, assim, a relação de equilíbrio existente quando da contratação, já que inexiste a equivalência entre prestação e contraprestação neste segundo momento. Roberto Senise Lisboa afirma que: Contrato justo é o negócio jurídico que, desde sua formação, apresenta o equilíbrio dos direitos assegurados às partes com as suas obrigações co-respectivas, com a equivalência traduzida da equação financeira ou econômica daí resultante. O equilíbrio da equação financeira e dos direitos e obrigações devem ser mantidos durante a execução do pacto, até a sua extinção.166 O desequilíbrio é o indício de que houve a quebra da base objetiva do contrato, e é no restabelecimento deste equilíbrio entre as partes que se baseia a teoria da quebra da base objetiva dos contratos, objeto do presente estudo. Para prosseguir nesta empreitada, apresenta-se a seguir breve análise acerca da causa, conceito indispensável para se compreender a base objetiva do negócio jurídico. Ainda é necessário analisar a existência de algum fator extraordinário ao universo em que se insere um contrato e partes envolvidas, o qual pode modificar a base jurídica do contrato. Imperioso ter em mente, durante toda esta análise, os princípios do direito, essencialmente as considerações acerca da solidariedade e da boa-fé já tratadas anteriormente. A seguir apresentar-se-ão elementos sobre base objetiva para em seguida explicitar do que se trata a quebra contratual, e quais são suas causas. 3.1 Teoria da Causa Descobrir e analisar o real motivo que levou cada uma das partes a firmar o contrato é de sua importância para a análise da quebra da base objetiva. Deve-se vislumbrar que da mesma forma que existe uma causa para a quebra do contrato, já houve uma causa anterior que determinou a sua existência; 166 Roberto Senise LISBOA, Contratos Difusos e coletivos: consumidor, meio ambiente, trabalho, agrário, locação, autor, p. 164. 74 assim, cumpre analisar a denominada teoria para melhor compreender sua aplicação no vínculo obrigacional. Silvio de Salvo Venosa conceitua causa como aquele motivo que tem relevância jurídica, e se confunde com o objeto do negócio. Todavia, afirma que não se pode elevar qualquer motivo como elemento essencial do negócio jurídico, e consequentemente, do contrato. O Código Civil de 1916, acompanhado pelo novo estatuto, afastando-se da problemática sobre o tema da causa, que gera tantas dificuldades de ordem prática, entendeu que a noção de objeto substitui perfeitamente a noção de causa.167 No direito civil brasileiro, a causa constitui o próprio contrato, ou seu objeto. Quando se diz assim que a causa ilícita vicia o ato jurídico é porque o seu objeto vem a ser ilícito. O mesmo não acontece, porém, com o Código Comercial (revogado neste particular), que no artigo 129, n. 3 prescrevia ser nulo o contrato que não designasse a causa certa de que derivava a obrigação. Vê-se, portanto, diante desses textos, que embora o Código não houvesse incluído a causa entre os requisitos das obrigações convencionais, não prescinde desse elemento. Contudo, o legislador não faz dele um elemento autônomo, dotado de individualidade própria. Ao contrário, identifica-o com o próprio contrato, ou com o seu objeto. O negócio jurídico tem eficácia independentemente de sua causa, bastando a vontade, devidamente manifestada, para dar origem ao ato.168 Neste esteio, Luciano de Camargo Penteado reconhece que a doutrina nacional, via de regra, identifica o conceito de causa da obrigação, relegando-a a segundo plano, tudo isto tendo em vista a absorção do tema pela categoria de objeto. Assim, o conceito acaba por ter relevância apenas quando se discutem as obrigações abstratas de causa, como, por exemplo, as referentes a alguns títulos de crédito. Para o autor, quase nunca se detecta a relevância conceitual da categoria da causa do contrato como algo autônomo, o que é imprescindível no estudo da teoria da quebra da base objetiva como se verá. 169 Mas, embora para parte da 167 Sílvio de Salvo VENOSA, Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, Contratos em espécie e Responsabilidade Civil, p. 439. 168 Luciano de Camargo PENTEADO, Causa Concreta, Qualificação Contratual, Modelo Jurídico e Regime Normativo: notas sobre uma relação de homologia a partir de julgados brasileiros, p. 241. 169 Ibidem, p. 242. 75 doutrina – e no Código Civil - a causa identifique-se com o objeto, a discussão não fica à míngua. Há quem acredite que a causa é a razão prática do contrato, a base do reconhecimento da autonomia contratual, é elemento essencial do contrato, sendo que sua ausência pode gerar a nulidade do ato. A causa é elemento fundante do negócio jurídico, inafastável, de forma que não haveria negócio jurídico sem uma causa. Assim, a causa é a razão concreta do contrato, o interesse concretamente perseguido, sendo que a teoria da causa concreta é utilizada na interpretação dos contratos.170 Todavia, nesta interpretação a causa se difere do objeto, na medida em que o objeto é o conteúdo, o programa contratual, enquanto a causa é o interesse, a finalidade prática a que este programa está voltado. 171 Reforce-se que na hipótese de quebra da base objetiva – que será adiante esmiuçada - nenhuma alteração se opera em relação à causa do negócio jurídico: o interesse dos contratantes permanece inalterado, mas em razão da modificação das circunstâncias externas, o contrato – nos moldes em que fora firmado – não mais atingirá o objetivo almejado pelas partes. Por esta razão, com vênia, se discorda da opinião majoritária que afirma que a causa e objeto se confundem. Aprofundando este entendimento, Antonio Manoel da Rocha Menezes Cordeiro ao falar sobre a o tema, afirma que a causa ocorre em “fatos jurídicos complexos de produção sucessiva, isto é, em conjunções nas quais o Direito requeira para o aparecimento de determinado efeito jurídico uma sucessão articulada de eventos, que se vão produzindo no tempo”. Firmado o contrato, a parte tem uma esperança (spes iuris) crescente de, nos termos contratados ver constituir um direito ou vantagem: ela tem uma expectativa. Para o autor “a expectativa tem, contudo, interesse por permitir comunicar uma situação que explica todo um regime”.172 170 Tânia Lehmann HERNANDEZ, Teorias da imprevisão e da quebra da base objetiva do negócio jurídico, p. 31. 171 Note-se que a grande maioria da doutrina pátria identifica objetivo e causa, sendo possível afirmar que a causa constitui o próprio contrato. Há, no entanto, nova corrente doutrinária em formação, que se orienta de forma diferente, distinguindo causa e objeto: “a causa se difere do objeto, na medida em que o objeto é o conteúdo, o programa contratual, enquanto que a causa é o interesse, a finalidade prática a que este programa está voltado”. Ibidem, p. 31. 76 Assim, a expectativa é aquilo que alimenta no sujeito uma vontade de firmar o contrato, de celebrar o negócio jurídico, integrando, ou ao menos interferindo nesta causa. Isto é, quando o sujeito celebra o contrato há nele a expectativa de que o objetivo seja alcançado (seja o recebimento do pagamento, seja o recebimento do bem, por exemplo), e esta expectativa se não é a própria causa, pode nela interferir diretamente. Teixeira Freitas já comentava que os fatos que não forem atos, serão sempre causas passivas de direitos, e causas primas, do mesmo modo que os atos não livres: mas os atos livres nunca serão causas primas, serão sempre efeitos em relação às pessoas, e só causas segundas, em relação a efeitos ulteriores. Assim se dá a verdadeira interpretação da realidade, que legitimará em seu devido lugar a isolada doutrina da causa das obrigações, que nenhum escritor tem satisfatoriamente explicado. Prossegue afirmando que das causas jurídicas dimanam todos os direitos possíveis, regulados pelas leis do direito privado e do direito público; deles em geral trata o 2º Livro do Código Geral sob a inscrição de efeitos jurídicos, porque incontestavelmente não há direitos que não sejam efeitos, não há direitos inatos. A liberdade é o homem. A liberdade em política jamais teria o nome de direito se os povos não se houvessem remido das instituições opressivas; e na vida civil não teria correlativo se não fora o abuso da escravidão.173 Para a teoria objetiva, em que se baseia a quebra da base contratual, que adiante esmiuçaremos, a causa é atribuição contratual, o fundamento de fato da obrigação; já pela teoria subjetiva, a causa é o escopo pelo qual a parte assume a obrigação, a motivação do consenso, a razão psíquica determinante da vontade.174 Portanto, haveria dois sentidos da palavra „causa‟ no direito contratual que demandam preocupação preferencial, a saber: causa razoável e a causa suficiente. A causa razoável é um quid necessária para dar juridicidade ao acordo. No direito italiano, este problema, por exemplo, parece superado pelo critério da patrimonialidade do objeto da regulação jurídica a ser feita mediante contrato (artigo 173 Teixeira FREITAS, Documento n. 2: Carta de Teixeira de Freitas de 20 de setembro de 1867. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial 1/362-367. Edição comemorativa do Sesquicentenário da Fundação dos Cursos Jurídicos no Brasil. Jul-set, 1977, sem número. 174 Tânia Lehmann HERNANDEZ, Teorias da imprevisão e da quebra da base objetiva do negócio jurídico, p. 32. 77 1321 do Codice Civile175). No Brasil, entretanto, inexiste a norma, a tal ponto que é necessário saber o que faz de um simples acordo um contrato, ou seja, o que transforma a mera loquela (do latim “palavra”), conceito esse com que os canonistas medievais identificavam uma promessa meramente verbal em um pacto sancionável e passível de ser levado a objeto de conhecimento de um tribunal e obter a tutela estatal visando a execução da obrigação. Trata-se de saber qual é a vestimenta que torna um acordo um contrato, porque se acredita que nem todas as convenções humanas em sociedade são jurídicas, no sentido de gerar uma obrigação no sentido técnico do termo e, portanto, a consequente pretensão e ação. A origem da ação, portanto, depende essencial e existencialmente de um elemento do pacto que o torne, em verdade, contrato. Este elemento é a causa contratual no sentido de causa razoável. É ela que dá a aura de juridicidade ao acordo. Por outro lado, a causa suficiente pressupõe a presença de uma causa razoável. Todavia, o contrato já existente pode ter a sua causa suficiente perquirida. A suficiência da causa refere-se à maneira como, concretamente, encontra-se composta a relação entre os termos que dependem um do outro. Tomando, a partir de agora, apenas os contratos bilaterais, trata-se, em relação à causa suficiente, de saber qual é a exata coordenação entre as prestações devidas e qual o grau de dependência entre elas. Será causa suficiente a identificação perfeita de nexo vinculativo entre prestação e contraprestação? A ideia de uma suficiência de causa está relacionada à „equidade‟ do contrato, isto é, a sua qualificação. Qualificar é dar o nome, é identificar o fato perante o direito, sendo esta matéria tarefa de direito e não de fato, apesar de depender de elementos que podem parecer de fato (exames de cláusulas contratuais). Às vezes não é fácil diferenciar as espécies jurídicas: há situações de zona cinzenta, por exemplo, entre compra e venda e fornecimento, ou mesmo distribuição; comissão mercantil e corretagem; o seguro-saúde e o plano de saúde e assim por diante. A composição exata da espécie que ensejar a análise demanda apurar qual nexo entre as prestações, quais os deveres estipulados, qual a dependência entre os mesmos. 175 “Art. 1321 Nozione: Il contratto è l'accordo di due o più parti per costituire, regolare o estinguere tra loro un rapporto giuridico patrimoniale”. Fonte: http://www.jus.unitn.it/cardozo/obiter_dictum/codciv/ Codciv.htm acesso em 02/03/2010. 78 A causa suficiente, além de ser aquela que permite a qualificação, em perspectiva de argumentação, pode ser o elemento apto a descaracterizar um tipo e incluir a figura em outro modelo jurídico, perturbando o esquema causal anterior. 176 3.2 Base Objetiva do Negócio Jurídico O negócio jurídico é celebrado sobre uma base negocial, que contém aspectos objetivos e subjetivos, base essa que deve manter-se até a execução plena do contrato, bem como até que sejam extintos todos os efeitos decorrentes do contrato (pós-eficácia). Por base do negócio jurídico devem se entender todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em conta ao celebrar o contrato, que podem ser vistas nos seus aspectos subjetivo e objetivo. 177 A base do negócio jurídico foi definida por Oertmann como sendo a representação mental de uma das partes no momento da conclusão do negócio jurídico, conhecida em sua totalidade e não recusada pela outra parte, ou a comum representação das diversas partes sobre a existência ou aparecimento de certas circunstâncias em que se baseia a vontade negocial.178 Posteriormente à definição de Oertmann, Karl Larenz aprofundou a análise da teoria da quebra da base do negócio jurídico, afirmando que existem dois planos a serem observados. O primeiro diz respeito a quebra da base subjetiva do negócio jurídico, que consiste na representação mental que guiou os contratantes na fixação do conteúdo do contrato, e a quebra da base objetiva do negócio jurídico, que toma por base a boa fé objetiva, o fim que se presta o contrato e, a impossibilidade de cumprimento deste.179 Ao desenvolver a teoria da quebra da base objetiva, Larenz afirma que a interpretação de um contrato não depende, pois, exclusivamente das palavras usadas e de sua significação inteligível às partes, senão também das circunstâncias 176 Luciano de Camargo PENTEADO, Causa Concreta, Qualificação Contratual, Modelo Jurídico e Regime Normativo: notas sobre uma relação de homologia a partir de julgados brasileiros, p. 246. 177 Conforme Nelson NERY JUNIOR, Contratos no Código Civil. In FRANCIULLI NETO, Domingos. MENDES, Gilmar Ferreira e MARTINS FILHO, Ives Gandra (Coords.) O Novo Código Civil, p. 340. 178 OERTMANN, apud Karl LARENZ, Base del Negocio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, p. 07. 179 Karl LARENZ, Base del Negocio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, p. 41 e seguintes. 79 em que foi concluído e as que se acomodaram. Assim, se posteriormente ocorre uma transformação fundamental das circunstâncias, possibilidade que as partes contratantes não haviam pensado e que de nenhum outro modo haviam tido em conta a ponderar seus interesses e distribuir os riscos, pode ocorrer que o contrato, de executar-se nas mesmas condições, perca por completo o seu sentido originário e tenha consequências totalmente distintas daquelas que as partes haviam projetado ou deveriam razoavelmente projetar.180 Para Larenz a base objetiva do negócio jurídico é formada pelas circunstâncias e o estado geral das coisas cuja existência ou subsistência é objetivamente necessária para que o contrato subsista, segundo o significado das intenções de ambas as partes, como regulação dotada de sentido.181 O conceito de base objetiva não leva em conta a posição de apenas uma das partes do contrato, e, sim, a de ambos os figurantes conforme entendimento de Clóvis do Couto e Silva. A base objetiva do contrato decorre de uma „tensão‟ ou „polaridade‟ entre os aspectos voluntaristas do contrato (aspecto subjetivo) e o seu aspecto meio econômico (aspecto institucional) o que relativiza, nas situações mais dramáticas, a aludida vontade para permitir a adaptação do contrato à realidade subjacente.182 Ainda de acordo com o mesmo autor, caracteriza a teoria da base objetiva do negócio, de acordo com um conceito de justiça comutativa inerente ao negócio jurídico, a permanência de uma série de condições econômicas, sem as quais o contrato se descaracterizaria. Nesse sentido, desaparece a base do negócio jurídico quando a relação de equiponderância entre prestação e contraprestação é destruída, não sendo mais possível falar em contraprestação.183 A base objetiva dos negócios jurídicos são, nas palavras de Ludwig Enneccerus, as representações dos interessados, no momento da conclusão do contrato, sobre a existência de certas circunstâncias básicas para sua decisão. Essas circunstâncias não são meramente conhecidas, mas erigidas por ambas as partes, à base do contrato, por exemplo, a igualdade entre as prestações nos 180 Karl LARENZ, Base del Negocio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, pp. 97-98. Ibidem, p. 170. 182 Conforme Clóvis do COUTO E SILVA, A Teoria da Base do Negócio Jurídico. In: FRADERA, Véra Maria Jacob de (Org.). O Direito Privado Brasileiro na Perpectiva de Clóvis do Couto e Silva, pp. 9394. 183 Clóvis do COUTO E SILVA, A obrigação como processo, p. 135. 181 80 contratos bilaterais, a permanência aproximada do preço convencionado, a possibilidade de repor a provisão de mercadorias.184 Assim, verifica-se que há uma relação indissolúvel entre o contrato e a conjectura econômica, como já mencionado anteriormente, a qual é variável, uma vez que reflete todos os acontecimentos políticos, econômicos e sociais. Nesse sentido, Rubén S. Stiglitz sustenta que os interesses reais que se encontram em jogo não representam um puro conceito jurídico, de modo que o contexto sócio econômico condiciona a formação e execução do contrato.185 Portanto, o contrato não é um instituto jurídico que se relacione somente às partes contratantes, pois o equilíbrio contratual concerne à própria estrutura econômica e social, uma vez que está inserido em um conjunto que se liga à estrutura da sociedade.186 Dessa forma, a base do negócio desaparece quando a relação de equivalência entre prestação e contraprestação pressuposta for destruída, em tal medida que não se possa mais falar racionalmente de uma contraprestação e quando a finalidade comum objetiva do contrato, expressada por seu conteúdo, tenha resultado definitivamente inalcançável, mesmo quando a prestação do devedor seja ainda possível.187 Cumpre esclarecer que a teoria da quebra da base objetiva dos negócios não se confunde com a teoria da imprevisão. Na lição de Luís Renato Ferreira da Silva, a primeira dispensa a imprevisibilidade das circunstâncias supervenientes, bem como o elemento causador do desequilíbrio é mais específico e não genérico.188 Na doutrina e jurisprudência atuais fala-se mais na base do negócio. A própria expressão é usada no Código Civil português de 1966, no artigo 252/2, que trata do erro sobre a base do negócio como modalidade de erro sobre os motivos. Remete, porém, para o artigo 437 o regime a aplicar. Aí se que regula a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar. 184 Ludwig ENNECCERUS, Derecho de Obligaciones, vol. 1, t. 2, p. 209. Rubén S. STIGLITZ, Autonomia de La Voluntad y Revisión del Contracto, p. 42. 186 Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p. 51. 187 Karl LARENZ, Base del Negócio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, p. 211. 188 Luís Renato Ferreira SILVA, Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p.127. 185 81 Comparando os requisitos exigidos para a aplicação da teoria da base do negócio e os exigidos pela teoria da imprevisão, denota-se que a primeira requer condições mais flexíveis, não erigindo a imprevisibilidade dos acontecimentos que desestabilizam a economia contratual a requisito essencial. Dessa forma, a teoria da quebra da base objetiva facilita a revisão dos contratos por alteração das circunstâncias, visto que a imprevisibilidade do evento causador do desequilíbrio, elemento nem sempre de fácil comprovação na prática, não é exigido com toda a veemência como na teoria da imprevisão.189 A quebra da base objetiva também não pode ser alegada quando da existência do estado de perigo, em que o contratante contrata visando salvar-se, ou o instituto da lesão, prevista no artigo 157 do Código Civil, na qual o contratante lesado contrata por necessidade. Isso, pois na quebra da base objetiva o desequilíbrio surgirá após a formação do contrato, e no instituto da lesão ou do estado de perigo, este desequilíbrio estará presente já no nascedouro do vínculo, e na quebra da base objetiva a situação de desequilíbrio ocorre independentemente da vontade das partes, inclusive sem a intervenção do próprio beneficiado. Por outro lado, a lesão e o estado de perigo são fruto da querência do beneficiário. No Brasil, a primeira manifestação legal sobre a quebra da base objetiva dos negócios, aparece com o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, que não exige que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, mas tão somente a quebra da base objetiva do negócio, a quebra do seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre prestações. Ao desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual que agora apresenta mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que poderia ser previsto e não foi.190 Como visto, a teoria da base objetiva do negócio jurídico sofreu inúmeros aperfeiçoamentos por meio da evolução da interpretação doutrinária, até chegar nos 189 Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p. 51. Cláudia Lima MARQUES, Antônio V. HERMAN e Bruno MIRAGEM, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 34. 190 82 dias de hoje, em que se admite como razão principal (e porque não dizer embasamento) da quebra da base objetiva pressupostos econômicos como a paridade e harmonia das vantagens e desvantagens econômico-financeiras do negócio. Desta forma, desapegando-se das antigas concepções, em que apenas era possível o desfazimento contratual frente ao descumprimento do contrato por uma das partes – o que implicava tacitamente a ideia de responsabilidade, ou culpa, isto é, um elemento essencialmente subjetivo –, a quebra da base objetiva do contrato, que justifica o seu desfazimento abandona por completo a necessidade deste elemento subjetivo, sendo que a razão da quebra a ninguém é atribuível como causa querida ou provocada. O prejuízo grande para uma das partes e lucro desmedido para outra, ou seja, a disparidade e desarmonia das vantagens econômicofinanceiras das partes a ninguém é atribuível, não havendo assim elemento subjetivo, mas tão somente o elemento objetivo da alteração das condições externas – e independentes dos sujeitos do negócio – que, diante dessa nova interpretação permitem a rescisão contratual. A quebra na base contratual significa de certa forma uma nova visão sobre as circunstâncias do contrato. Seja qual for o motivo da quebra, ela se relaciona a uma nova percepção sobre o panorama em que se insere o contrato, do passado ao presente e com vistas ao futuro. 3.3 Requisitos para a Aplicação da Teoria da Quebra da Base Objetiva Para que seja possível a aplicação da teoria da quebra da base objetiva não é necessária a comprovação de forma inequívoca da imprevisibilidade dos acontecimentos, conforme visto na seção anterior. No entanto, alguns requisitos devem ser observados, como a necessidade de inexistência da relação de equivalência e a frustração da finalidade do contrato. É o que se passa a analisar. Os contratos bilaterais têm como premissa a existência da equivalência entre as prestações e contraprestações das partes envolvidas. Assim, as relações contratuais devem ser permeadas pela justiça compensatória, que não se refere 83 apenas à estrita equivalência das prestações, mas também, e com maior alcance, à justa distribuição dos encargos e riscos relacionados ao contrato.191 Nesse sentido, Larenz afirma que é prescindível que as prestações recíprocas sejam equivalentes segundo um critério objetivo: basta que cada parte considere a outra prestação uma compensação suficiente para sua prestação, dentro de um juízo subjetivo de cada parte contratante.192 Giuseppe Osti, citado por Laura Frantz, defende que eventual desequilíbrio objetivo que possa ocorrer não tem influência sobre a natureza do contrato, que continuará a ser oneroso se as partes atribuíam às respectivas vantagens e sacrifícios uma relação de equivalência.193 A forma pela qual é possível a mensuração da equivalência entre as prestações é, portanto, subjetiva e distinta para cada parte: é a própria necessidade de celebrar o contrato, as legítimas expectativas de cada um dos contratantes, de acordo com o tipo negocial em questão. Assim, a equivalência reside no que a parte esta disposta a receber e a pagar em contraprestação194. Desta forma, como para o contrato bilateral é imprescindível a condição de que cada contratante receba por sua prestação um equivalente, que poderá ser inferior ao valor de mercado desta, porém deve ser tido como equivalente por aquele que irá recebê-la. Se a relação de reciprocidade das prestações é da essência do contrato bilateral, este perderá seu sentido e o caráter originário quando, devido à transformação das circunstâncias, a relação de equivalência se modificar tanto que não mais se poderá falar de contraprestação.195 Rodrigo Toscano de Brito em sua obra Equivalência Material dos Contratos acerca da busca da justiça contratual nos dias atuais afirma: O princípio da equivalência material ou do equilíbrio contratual é aquele pelo qual se deve buscar e manter a justiça contratual, objetivamente considerada, em todas as fases da contratação, independentemente da natureza do contrato, e sempre com base na eticidade, lealdade, socialidade, confiança, proporcionalidade e razoabilidade nas prestações.196 191 Karl LARENZ, Derecho Civil: Parte General, p. 61. Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p. 55. 193 Giuseppe OSTI, Contrato. In Novissimo Digesto Italiano, p. 489. 194 Karl LARENZ, Base del Negócio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, p. 130. 195 Ibidem, p. 131. 196 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p. 29. 192 84 Conforme a teoria de Larenz, as variações na economia exigem a intervenção do juiz no contrato a fim de evitar uma intolerável situação que atente contra a boafé e às mais elementares normas de justiça e equidade. 197 E não apenas a equivalência se destaca como princípio inerente aos contratos na atualidade. De forma acertada Fernando Rodrigues Martins, relembrando lições de Giovanni Ettore Nanni, afirma que: (...) se o contrato se apresenta no anelo de uma “relação jurídica fundamenta”, não se pode esquecer que cumpre a cada um de seus partícipes o dever de respeitar e de ser respeitado, do que sobressai a reciprocidade, especialmente com fulcro na dignidade da pessoa humana. Por isso, em algumas situações extraordinárias, “quando plenamente configurada anormalidade, ilegalidade ou inequívoco desequilíbrio do negócio, é possível buscar a liberação, desde que preservada a igualdade de sacrifícios.198 O outro critério essencial para a configuração da quebra da base objetiva é a frustração da finalidade do contrato. Esta somente afeta a subsistência da relação contratual quando se trate não da finalidade de uma só das partes, senão de uma finalidade comum. 199 A finalidade primordial de todo contrato bilateral é a obtenção da sua contraprestação. Segundo Larenz, essa finalidade se depreende da natureza do contrato em questão, é uma finalidade comum, pois cada parte procura a finalidade da outra para assim garantir a sua, o que integra, portanto, o próprio conteúdo do contrato.200 Assim, a frustração da finalidade do contrato pode ser entendida como a perda de utilidade da prestação para uma das partes, que não mais terá motivos para cumprir o contrato, pois o escopo que ordenou a contratação desapareceu. 201 De suma importância ressaltar que a prestação permanece possível, podendo até não se tornar mais onerosa, mas resta inócua. No entanto, há que se observar que a impossibilidade de alcançar a finalidade do contrato não pode ter por fundamento motivos pessoais do contratante ou que 197 Karl LARENZ, Base del Negócio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, p. 134. Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, p. 258. 199 Ibidem, p. 162. 200 Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, p. 166. 201 Luís Renato Ferreira SILVA. Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p.139. 198 85 estejam em sua esfera de influência, assim como não pode ter repercutido no contrato unicamente porque a parte prejudicada estava em mora, e, obviamente, também não pode pertencer ao objetivo normal do contrato. Dessa forma, a frustração da finalidade inerente ao contrato, por fatores externos e não incluídos na álea normal daquele tipo de negócio, faz com que desapareça o objetivo de permanência da obrigação.202 O contrato não pode ser analisado isoladamente, mas sim como parte de um todo, que sofre influências da economia e da sociedade, de modo que cada parte deve assumir determinado grau de risco, na medida em que cada contratante visa um aspecto do contrato, em que empenha toda sua economia. Desse modo, o contrato só pode ser coerente diante de certas circunstâncias, sem as quais o contrato pode perder seu sentido e o adimplemento das prestações causar danos a uma das partes, incompatíveis com o equilíbrio econômico do contrato. A frustração da finalidade do contrato poderá decorrer dos seguintes fatores (i) a finalidade do contrato tornou-se impossível de ser alcançada, (ii) resulta inútil para a parte que o desejava ou o fim foi obtido por outros meios.203 Diante do exposto, é possível afirmar que numa relação contratual quebrada ou diferida, podem ocorrer situações cujas consequências modifiquem o modo em que a prestação de uma das partes venha a ser cumprida, e assim conduza à destruição da relação de equivalência entre prestação e contraprestação, bem como a frustração do fim objetivo do contrato. Significa dizer que essa alteração abrupta seja tamanha a ponto de que a prestação agora exigida se encontre em manifesta repulsa à manifestação volitiva da parte, quando inicialmente contratada. E nesse sentido o julgador, ao perquirir o equilíbrio econômico financeiro contratual, deve aferir tais elementos. Atente-se para o fato de que, em negócios jurídicos de grande complexidade, celebrados entre empresas que exploram diversas atividades, as partes normalmente entreveem possibilidades de ganhos e perdas futuras, indiretamente relacionadas ao contrato, muitas dos quais se concretizam, e muitas outras não. Trata-se de conjecturas, que não são relevantes para a interpretação do contrato, nem para verificação do equilíbrio das prestações. 202 203 Ruy Rosado AGUIAR JÚNIOR, Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor, p. 151. Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p. 59. 86 Vale ressalvar ainda que benefícios indiretos eventualmente ambicionados por uma das partes, por sua vez, representam mera especulação e, portanto, não devem ser levados em conta, sob pena de se ensejar grande insegurança jurídica Havendo a frustração das vantagens indiretas, não há como ser considerado no cálculo de perdas e danos a realização desses benefícios, tampouco ser computada para fins de verificação dos requisitos para resolução contratual pela teoria da imprevisão. Pois isso ocasionaria uma forma contrária à lógica jurídica. Logo, a alteração abrupta das circunstâncias, de modo a modificar substancialmente o cumprimento da prestação, é o que justifica a vedação de imputar à vontade aquilo que, por desconhecimento, a parte nunca poderia ter querido, razão pela qual a boa fé objetiva se impõe novamente como medida de equidade apta a conduzir a revisão ou até mesmo a resolução do contrato. 3.4 Consequências da Quebra da Base Objetiva Constatada a quebra da base objetiva dos negócios jurídicos, se torna necessário verificar as consequências para as partes envolvidas decorrentes da referida quebra. Rodrigo Toscano de Brito compreendendo que a manutenção do equilíbrio contratual – tratado por ele também como a equivalência material dos contratos – é indispensável, afirma: Ora, se se está diante de um princípio contratual que tem sua base teórica na ideia de equidade, de eticidade, de socialidade, de manutenção de lealdade, e da confiança contratual, da proporcionalidade e da razoabilidade, é plausível afirmar que, independentemente da posição de vulnerabilidade do contratante é possível buscar sua revisão ou resolução, digamos, em face do desequilíbrio objetivo do contrato.204 Fernando Rodrigues Martins chama a atenção para o fato de que é indispensável também – além da equidade – fundamentar as mudanças frente à quebra da base objetiva nos preceitos legais, levando-se em conta a imperativa 204 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p. 21. 87 segurança jurídica e a primordial força obrigatória dos contratos que ainda hoje continua a fundamentar os pactos por meio do pacta sunt servanda. O manejo incorreto, portanto, do recurso da equidade, sem o chamamento legal permissivo (CPC, art. 127), e que não leva em conta os efeitos econômicos e sociais do contrato nos moldes, adequado aos anteios das partes, coloca em xeque e de lado aspectos valiosíssimos como a confiança, a segurança no tráfego jurídico e a força obrigatória. Aliás, é marcante que entre estudantes do curso de Direito o brocardo pacta sunt servanda não tenha tardado a ganhar contornos de gracejos sobre um tempo ido e vetusto, quando na verdade até hoje é elemento justificante do contrato.205 A primeira consequência, decorrente do desequilíbrio entre as prestações, via de regra é resolvida por meio da adaptação do contrato às novas circunstâncias, com a utilização da chamada interpretação integradora do contrato.206 Sobre referido tópico importa esclarecer que caso somente uma das cláusulas do contrato esteja causando a quebra da base objetiva, apenas esta deve ser analisada e adequada à nova realidade, sendo que as demais cláusulas devem permanecer devidamente válidas. Assim, é possível afirmar que na hipótese do contrato bilateral ter sua relação de equilíbrio quebrada, em decorrência de fatos imprevisíveis e posteriores à sua formalização, e que modifiquem o estado de fato, a parte que for prejudicada poderá requerer a adequação da contraprestação que se tornou desproporcional, com o objetivo de retomar o equilíbrio contratual. Em atenção ao princípio da conservação ou aproveitamento do negócio jurídico, somente na impossibilidade de se chegar a um novo equilíbrio contratual é que a parte prejudicada pode, subsidiariamente, pedir a resolução contratual. A segunda consequência, advinda da frustração da finalidade do contrato, não alcançada por motivos alheios ao credor da prestação tornada inútil, é a possibilidade de a parte prejudicada requerer a extinção da relação contratual, que nesses casos é a solução mais adequada, pois a revisão do contrato somente será a resposta mais acertada quando houver, nas partes, o intento de manter o contrato, 205 206 Fernando Rodrigues MARTINS, Princípio da Justiça Contratual, p. 135. Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p. 63. 88 quando ele ainda for útil, o que não ocorre nos casos de frustração de sua finalidade.207 Adiante, se verificará a hipótese de revisão contratual quando da quebra da base objetiva do contrato. 207 Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p. 64. 89 CAPÍTULO IV - REVISÃO CONTRATUAL 4.1 Embasamento Teórico da Revisão Contratual Inicialmente cumpre tecer breves considerações acerca das divergências doutrinárias existentes com relação à teoria adotada pelo Código Civil Brasileiro com relação à revisão contratual por fato superveniente. Parte da doutrina nacional, como Renan Lotufo208, Maria Helena Diniz209, Álvaro Villaça Azevedo210 e Nelson Rosenvald211, sustenta que o Código Civil de 2002 adotou a teoria da imprevisão, cuja origem é a cláusula rebus sic standibus. Outra parte da doutrina, como Judith Martins-Costa212, Laura Coradini Frantz213, Paulo R. Roque Khouri214 e Antônio Junqueira de Azevedo, em atualização da obra de Orlando Gomes215, sustenta que o Código Civil Brasileiro teria adotado a teoria da onerosidade excessiva, com inspiração no Código Civil Italiano de 1942.216 No entanto, como o presente trabalho não visa analisar qual teoria é adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas tão somente a possibilidade de aplicação da revisão contratual, cumpre apenas destacar que o Novo Código Civil brasileiro traz a revisão contratual por fato superveniente diante de uma imprevisibilidade, somada a uma onerosidade excessiva. 208 Renan LOTUFO, Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1. Maria Helena DINIZ, Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 16 ed., São Paulo: Saraiva, vol. 3. 210 Álvaro Villaça AZEVEDO, O novo Código Civil brasileiro. Tramitação, função social do contrato; boa-fé objetiva; teoria da imprevisão e, em especial, onerosidade excessiva – „laesio enormis‟. In DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. vol. 2. 211 Nelson ROSENVALD In Cesar PELUSO, Código Civil Comentado. São Paulo: Manole, 2007. 212 Judith MARTINS-COSTA, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2003. 213 Laura Coradini FRANTZ, Bases Dogmáticas para interpretação dos artigos 317 e 478 do Novo Código Civil brasileiro. In DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005. vol. 4. 214 Paulo R. Roque KHOURI, A Revisão Judicial dos Contratos no Novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei 8.666/1993. São Paulo: Atlas, 2006. 215 Orlando GOMES, Contratos. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 216 Flávio TARTUCE, Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. 3, p. 181. 209 90 4.2 Fundamentos Legais para a Revisão dos Contratos O novo Código Civil, utilizando como base principalmente os princípios estruturais da eticidade e socialidade, instituiu regras que permitem a revisão ou a resolução do contrato quando uma das partes se encontra prejudicada por fatos posteriores à sua celebração, e que não sejam necessariamente imputáveis à outra parte. Referidas regras se fundamentam no artigo 317217, inserido no Livro do Direito das Obrigações, no Título III que trata do Objeto do Pagamento e sua Prova, e nos artigos 478 a 480218 do Código Civil, também inseridos no Livro do Direito das Obrigações, na parte que trata da Extinção dos Contratos. Esses dispositivos visam instituir formas de manutenção do equilíbrio entre as prestações devidas pelas partes, e impedir com que haja o enriquecimento sem causa. A seguir serão analisados de forma mais detalhada os institutos, as formas e hipóteses em que é possível a revisão do vínculo contratual em decorrência da desproporção das obrigações das partes. Para melhor enquadrar o estudo em questão, o presente trabalho analisará as possibilidades de revisão e extinção contratual existentes, e, posteriormente, focará a aplicação destes com relação à quebra da base objetiva dos contratos 217 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 218 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. 91 4.3 Requisitos para a Revisão Contratual Para que seja possível a aplicação do instituto da revisão contratual, é necessário que alguns requisitos sejam preenchidos, sob pena de distorção do referido instituto. Inicialmente, para a possibilidade de revisão contratual é necessário que o contrato seja de execução continuada ou periódica e diferida. Laura Coradini Frantz distingue as duas categorias afirmando que existem certas obrigações nas quais o adimplemento sempre se renova sem que se manifeste alteração do débito. Prossegue afirmando que essas obrigações são mais ricas numa dimensão, no tempo, no elemento duradouro, o qual se relaciona com a essência do dever de prestação. As relações obrigacionais simples vivem desde a conclusão do negócio até o adimplemento. As duradoras são adimplidas permanentemente e assim perduram sem que seja modificado o conteúdo do dever da prestação, até o seu término pelo decurso do prazo, ou pela denúncia. Nessa última hipótese - contratos instantâneos de execução diferida - cuida-se de mera divisão da prestação do preço. Cada uma das prestações que se solve determina extinção parcial do débito. Entre as obrigações duradouras em sentido próprio admite-se, em geral, possam ser incluídas as que nascem da locação, arrendamento, depósito, contrato de trabalho, e da sociedade.219 Laura Frantz sustenta ainda que os contratos têm que ser bilaterais perfeitos ou sinalagmáticos, que são os que apresentam reciprocidade entre a prestação e a contraprestação. Tal relação se mostra essencial, no sentido que não é possível a resolução ou a extinção do contrato por quebra da base objetiva se inexiste relação entre as prestações das partes capaz de ensejar desequilíbrio. Assim, as partes são obrigadas a realizar as prestações decorrentes do contrato, mas somente enquanto a situação das partes não sofrer modificações substanciais, e, permitindo, no caso de haver tais transformações, uma revisão ou reajustamento dos termos do contrato. A revisão se impõe, também, por força da aplicação do Código Civil e de todo o sistema de direito de obrigações, que não admite – e nunca admitiu – que uma das partes desfrute condição extremamente 219 Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, p.108. 92 vantajosa com o negócio e a outra colha, somente, desgastes e perdas exageradas em virtude de sua celebração.220 Nesse sentido, verifica-se que o desequilíbrio entre as prestações é outro requisito essencial para a possibilidade da revisão ou resolução do contrato. O desequilíbrio, conforme expõe Ruy Rosado de Aguiar, pode ocorrer de duas formas, ou seja, a desproporção manifesta pode ser tanto pela desvalorização do bem a ser prestado (desvalorização da moeda pela inflação, p. ex.), como pela superveniente valorização excessiva da prestação, quebrando a proporcionalidade entre o que fora convencionado e o que agora deve ser cumprido, em prejuízo do devedor.221 Laura Frantz, ao tentar definir o que se entende por equilíbrio contratual, detecta os diversos problemas encontrados pelos doutrinadores, que apresentam por vezes conceitos muito amplos ou restritos. Assim, citando o doutrinador Frances Laurance Fin-Langer, afirma que para a definição correta do equilíbrio contratual é necessário haver a reciprocidade, a comutatividade, a equivalência e a proporcionalidade.222 Para a reciprocidade é necessária a constatação da existência de obrigações recíprocas, ou uma cláusula que preveja correspectividade de direitos para cada um dos contratantes, a qual deve existir entre os elementos do conteúdo do contrato e perdurar durante sua execução. A reciprocidade é relacionada com a noção de comutatividade, que significa que cada uma das partes reconhece, desde a conclusão do contrato, a importância das prestações recíprocas tidas por equivalentes. A equivalência, por sua vez, caracteriza-se pela igualdade dos valores de troca de duas prestações correlativas, sendo que a igualdade é considerada como conceito de proximidade e não exatidão. Por fim, a proporcionalidade visa se atingir um sentido de conveniência e adequação entre dois elementos.223 Orlando Gomes ressalta a respeito: 220 Orlando GOMES, Contratos, p.23. Ruy Rosado AGUIAR JÚNIOR, Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor, p. 152. 222 Laura Coradini FRANTZ, Revisão dos Contratos, pp.116-117. 223 Ibidem, pp. 117-118. 221 93 Nos contratos bilaterais as duas partes ocupam simultaneamente, a dupla posição de credor e devedor. Cada qual tem direitos e obrigações. À obrigação de uma corresponde ao direito da outra. Nos contratos unilaterais, uma das partes tem a condição de credor e a outra de devedor. A uma correspondem direitos, a outra obrigações. a relação jurídica oriunda de contrato unilateral é simples, pois só uma parte se constitui devedora, enquanto a que nasce de um contrato bilateral se apresenta complexa, visto que ambas as partes figuram reciprocamente como sujeito ativo e passivo.224 Fernando Rodrigues Martins acerca da reciprocidade afirma que “representa uma carga de correlação quanto às prestações assumidas no programa contratual entre as contrapartes”, e que a comutatividade “exige uma sociedade entre as partes com o objetivo específico e ensejador de vantagens mútuas”, isto é, deve haver uma mútua conveniência das prestações que por sua vez devem ser de valor análogo. 225 Acerca da equivalência material Rodrigo Toscano de Brito afirma que: O sentido da equivalência material é o de justa proporção, igualdade de valores ou, pelo menos, proporção justa entre as prestações contratuais. Do ponto de vista técnico, o princípio da equivalência material ou do equilíbrio contratual é aquele pelo qual se deve buscar e manter a justiça contratual, objetivamente considerada, em todas as fases de contratação, independentemente da natureza do contrato e sempre com base na eticidade, lealdade, socialidade, confiança, proporcionalidade e razoabilidade nas prestações. Por isso, pode-se dizer que o centro nervoso do princípio da equivalência material, seu objeto nuclear, é a necessidade de preservação do equilíbrio nas contratações.226 Outro requisito necessário para a revisão dos contratos é a imprevisibilidade. Vicenzo Maria Cesàro, citado por Laura Frantz, afirma que não é qualquer modificação da composição dos interesses fixada no contrato que poderá receber a tutela normativa de tais dispositivos, mas somente aquelas produzidas por eventos que estão fora do campo de previsão das partes, e, consequentemente, que superem a previsível oscilação da álea contratual.227 A imprevisão contratual pode ser conceituada como a mudança radical nas condições do contrato, por forças (ou agentes) imprevistas e imprevisíveis à época 224 Orlando GOMES, Contratos, p.74. Fernando Rodrigues Martins, Princípio da Justiça Contratual, pp. 273 e 276. 226 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, pp. 188-189. 227 Ibidem, p. 122. 225 94 da formação do negócio jurídico, criando uma situação de desequilíbrio, cuja execução do contrato gerará uma onerosidade excessiva a uma das partes.228 Apesar da relevância da imprevisibilidade para a revisão contratual, a dificuldade de sua aplicação prática reside na dúvida doutrinária quanto a seu embasamento legal, e na forma de sua efetiva aplicação. Isso, pois parte da doutrina fundamenta a revisão contratual no artigo 317 e outra parte fundamenta no artigo 478 do Código Civil. A alegação de alguns autores, como Flávio Tartuce e Paulo Luiz Netto Lôbo, é que o artigo 478 está inserido no capítulo que trata sobre a extinção do contrato, de modo que não poderia sustentar a revisão contratual, enquanto o artigo 317 está inserido no capítulo sobre pagamento das obrigações. Visando sanar referida controvérsia, a III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça (CJF/STJ) editou o Enunciado 176, no qual se determinou que em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o artigo 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.229 Com relação à aplicação da imprevisibilidade, a I Jornada de Direito Civil do CJF/STJ editou os Enunciados 17 e 175, sendo que o primeiro prevê que a interpretação da expressão “motivos imprevisíveis”, constante do artigo 317 do Código Civil, deve abarcar tanto casos de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultado imprevisíveis, e o segundo prevê que a menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no artigo 478 do Código Civil, deve ser interpretado não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz. Ambos os enunciados levam em consideração as consequências do fato imprevisível, e não somente o fato em si.230 228 Izner Hanna GARCIA, Revisão de Contratos no Novo Código Civil, p.84. Disponível em: http://columbo2.cjf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296, acesso em 10 julho de 2010. 230 Ibidem. 229 95 4.4 Características da Ação de Revisão Contratual A ação de revisão dos contratos pode ser conceituada como ação declaratória, concomitantemente desconstitutiva e constitutiva, que adentra ao vínculo estabelecido entre os contratantes, buscando refazer o equilíbrio desfeito. 231 Assim, a ação denominada revisional tem por escopo a definição de novos parâmetros e patamares obrigacionais para as partes, uma vez que, em razão de mudanças financeiras, econômicas, políticas ou quaisquer outras posteriores à sua celebração, surgiu desequilíbrio entre a prestação e a contra prestação. Assim, a fim de rever as bases contratuais em que foi feito o negócio jurídico ou lesionário, ou ofensivo à boa fé, ou descumpridor de sua função social, em suma, que fere a proporção, o equilíbrio, pode (e deve) o contratante lesado (ou em via de ser) propor ação judicial, buscando proteção da tutela jurisdicional, no sentido de que o vínculo contratual formado seja restabelecido judicialmente dentro de bases equânimes. Afirma Rodrigo Toscano de Brito: Diante da atual teoria dos contratos, não importa perquirir, do ponto de vista principiológico, se o contrato e civil, empresarial, consumerista ou qualquer outro. O importante é o respeito aos princípios sociais e, primordialmente, à manutenção do equilíbrio das prestações, independentemente, inclusive, da presença de parte fraca. Isso foi resultado da evolução da teoria contratual, que, num primeiro momento, estava fundada na liberdade total; depois viu-se que a problemática mais relevante era a tutela da parte fraca, que sofria com a liberdade meramente formal, daí o surgimento de diversos microssistemas legislativos preocupados com a tutela do hipossuficiente. Agora, ao que nos parece, não importa mais se a parte é fraca ou forte, ou qual a natureza do contrato. O que interessa é o equilíbrio da contratação, seja qual for, autorizando a intervenção judicial. (...) A possibilidade de pedir o reequilíbrio do contrato, revisando-o, ou sua resolução, por não mais suportá-lo, do ponto de vista objetivo, sempre estará á disposição do contratante que se sente lesado, diante de qualquer natureza contratual.232 Nesta linha de raciocínio, uma vez desconstituído o negócio lesivo, cabe à sentença constituir positivamente as novas bases contratuais, porquanto, não é 231 232 Izner Hanna GARCIA, Revisão de Contratos no Novo Código Civil, p.62. Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, pp. 188-189. 96 demais lembrar, não se trata a ação de revisão simplesmente de uma rescisão de contratos, mas antes, e primordialmente, um reequilíbrio da relação negocial, trazendo o contrato aos parâmetros da comutatividade quebrada. Deste modo, a sentença desconstitui o contrato – ou parcela dele – para, em seguida, constituir as novas bases equânimes da relação contratual objeto da demanda. Este é o escopo da ação de revisão de contratos. Nesse sentido, no novo Código Civil, é requisito primeiro da ação de revisão que haja uma relação contratual desproporcional que resulte ou em ofensa aos princípios fundamentais, ou ainda que descumpra sua função social. Importante frisar que a ação de revisão não se presta a anular ou declarar nulo o vínculo contratual quando este contiver vícios de consentimento (coação, dolo, erro, fraude, simulação). Como fala Garcia,233 aqui teremos um contrato formalmente perfeito, o qual, contudo, fere o princípio do equilíbrio comutativo e, portanto, comporta revisão, a qual buscará, justamente, restabelecer aquela proporção ofendida. Assim, o objeto da ação, geralmente, foca-se em cláusulas e condições específicas do contrato, cláusulas essas que provocaram o desequilíbrio. No mais, às cláusulas que não são responsáveis pelo desequilíbrio, têm pleno vigor e não são objeto da ação. Entretanto, também é importante fixar que, muitas vezes, os contratos são por demais complexos, entrelaçando-se cláusulas e a elas vinculando-se contratos subsidiários, bem como títulos de crédito. Neste panorama, o objeto da ação deve abranger toda a relação contratual, de modo que se possa identificar, na análise do contexto, o prejuízo experimentado por uma das partes. O limite, pois, da ação de revisão está, segundo Garcia 234 em preservar-se o que, do acordado, não resulte em desequilíbrio, visto que o princípio autorizador da revisão judicial está vinculado às estipulações que infirmem o equilíbrio do vínculo, devendo deixar intocadas, em atenção ao princípio da autonomia de vontades, aquelas cláusulas que não provoquem tal resultado. 233 234 Izner Hanna GARCIA, Revisão de Contratos no Novo Código Civil, p.60. Ibidem. 97 4.5 Importância das Cláusulas Gerais para a Revisão Contratual no Novo Código Civil Verificada a ocorrência dos requisitos descritos no item anterior, a parte lesada pode requerer a revisão do contrato, a qual pode ser feita judicial ou extrajudicialmente, dependendo da possibilidade ou não das partes chegarem a um acordo quanto aos novos termos a serem cumpridos. No primeiro capítulo foram analisadas as cláusulas gerais de forma ampla, o que dá subsídio para no presente momento verificar as funções que estas possuem no ordenamento jurídico, e como podem auxiliar na revisão judicial dos contratos, em especial em razão da quebra da base objetiva. Nas palavras de Nery Junior, a função das cláusulas gerais é a de dotar o sistema interno do Código Civil de mobilidade, mitigando as regras mais rígidas, além de atuar de forma a concretizar o que se encontra previsto nos princípios gerais de direito e nos conceitos legais indeterminados. Prestam-se, ainda, para abrandar as desvantagens do estilo excessivamente abstrato e genérico da Lei. 235 As cláusulas gerais preenchem a função de componentes destinadas à conformação do ordenamento jurídico.236 Assim, a função precípua das cláusulas gerais é a de permitir, num sistema jurídico de direito escrito e fundado na separação das funções estatais, a criação de normas jurídicas com alcance geral pelo juiz. Tal função, em última análise, permite que o código acompanhe a velocidade das mudanças sociais que ocorrem dia-a-dia em nosso país, mantendo-o sempre atualizado. Nery Júnior afirma que a cláusula geral deixa o sistema do Código Civil com maior mobilidade, abrandando a rigidez da norma conceptual casuística. Faz o sistema ficar vivo e sempre atualizado, prolongando a aplicabilidade dos institutos jurídicos, amoldando-os às necessidades da vida social, econômica e jurídica. Evita o engessamento da vida civil. Em razão da existência de cláusulas gerais com técnicas diferenciadas na sua tipologia, autores como Cordeiro, Costa, André Osório Gondinho e Mazzei as 235 Nelson NERY JUNIOR, Contratos no Código Civil. In FRANCIULLI NETO, Domingos, MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra (Coords.). O Novo Código Civil, p.429. 236 Idem, O Novo Código Civil. Homenagem ao Professor Miguel Reale, p. 21. 98 tem classificado em três diferentes espécies, de acordo com sua estrutura, que podem ser: (i) restritivas, quando surgem para delimitar ou restringir determinadas situações que decorrem de regra ou de princípio jurídico, como, por exemplo, a função social da propriedade; (ii) regulativas, quando são utilizadas como princípio para regular situações fáticas sem desenho acabado na legislação, como, por exemplo, o dever de indenizar por ato ilícito (art. 186); ou (iii) extensivas, que permitem o alargamento da regulação jurídica, através do uso de regras e princípios de outros textos legais, como, por exemplo, com o estabelecido em lei especial (art. 1.228). 4.6 Integração do Juiz na Relação Contratual O art. 317 e os artigos 478 a 480 preveem atuação em juízo para a revisão contratual. Disso se poderia inferir que os efeitos jurídicos do instituto da alteração das circunstâncias só poderão resultar de processo judicial. Há que ponderar se isto deve ser aceito, já que passa por uma determinação dos limites da intervenção do juiz na fixação dos efeitos, que seria aparentemente constitutiva. O Código Civil brasileiro se refere vastamente ao juiz como agente integrador da relação contratual nas situações em que se verifique desproporção do quanto avençado entre as partes. Em certos casos deixa-se a solução ao critério (equitativo) do juiz, e em outros caberá às partes exercer poderes potestativos. Nesse segundo caso esses poderes deverão ser judicialmente exercidos por provocação da parte prejudicada, como por exemplo, na aplicação do artigo 464 do Código Civil, no qual o juiz diante da inadimplência da outra parte supre sua vontade, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar. Deve-se recordar também, que uma das dimensões da diretriz de operabilidade presente no Código Civil, é a concretude, isto é, o legislador buscou plasmar no Código um mecanismo que desse condições suficientes ao juiz para alcançar a correspondência necessária entre o fato e a norma. 99 Ora, se o objetivo é a concretude, isso conduz à possibilidade de o magistrado colocar-se no ambiente do contrato levado em consideração em dado litígio e construir a solução adequada ao caso concreto, para atingir o equilíbrio contratual. Ocorre que essa atividade judicial intervencionista, a par da necessidade de manter o equilíbrio das contratações, deve encontrar limites. 237 Quando se afirma que a revisão demanda a atuação judicial, cria-se a impressão de uma indevida judicialização da vida corrente. Porém, essas regras são para o dia-a-dia, uma vez que só em casos em que não é possível atingir consenso entre as partes, é que são trazidas à aplicação judicial. Apesar da roupagem judicial dos preceitos, nada impede que as partes acordem na solução a dar ao caso. Esse acordo pode ser inovador, baseado na autonomia da vontade. Seja o caso do art. 473, parágrafo único. Diante da inexistência de qualquer previsão em sentido contrário, qualquer das partes pode resilir o contrato com o aviso prévio de 30 dias, desde que decorrido prazo compatível com a natureza e o vulto do investimento. Divergindo as partes quanto a este prazo, o juiz decidirá da razoabilidade do prazo. A regra é simplesmente a de que a denúncia do contrato só se pode fazer depois de decorrido prazo razoável. Resulta já dos princípios gerais que, se as partes não se entenderem na determinação deste, o litígio terá de ser dirimido em juízo. Isso irá representar também a aplicação da lei, por valoração concorde das orientações legais. Assim, só quando as partes não se entendam sobre o sentido da solução legal e se decidam a trazer o caso ao foro é que o juiz intervém efetivamente a dar a solução. Mas a aplicação dos preceitos não é necessariamente judicial. A formulação legal traz, porém já neste caso uma dificuldade particular. O art. 478 dispõe que os efeitos da sentença que decretar a resolução retroagirão à data da citação. Compreende-se, pois a sentença verifica nesse caso que havia realmente fundamento para a resolução do contrato. Mas pode-se perguntar se será essa a única solução possível. Uma vez que a atuação também pode ser extrajudicial, os efeitos poderão retroagir à data da interpelação dirigida por uma parte à outra, uma vez verificado que havia realmente fundamento para a resolução do contrato. 237 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p.160. 100 Para isso o artigo 478 do Código Civil de 2002 deve ser interpretado de modo amplo a fim de propiciar aos contratantes não só a resolução da avença, mas também para permitir ao juiz, acaso entenda justo e em conformidade com os princípios da equidade e da boa-fé objetiva, a integração do contrato, seja para reduzir prestação excessivamente onerosa, seja para rever o contrato, sempre atendendo às necessidades de ambas as partes. O juiz nesta atuação deve, no entanto, observar alguns critérios. Primeiramente, deve-se recordar que todo o ordenamento jurídico – inclusive as normas que regulam as relações privadas – hoje pautam-se por fundamentos constitucionais, dentre eles o mais importante o princípio da dignidade da pessoa humana. Rodrigo Toscano de Brito afirma que o juiz deve inquirir se o contrato afronta direta ou indiretamente a dignidade das pessoas nele envolvidas. 238 Em caso de resposta positiva abre-se a primeira porta para a intervenção, já que um valor supremo não estaria sendo observado. Mister destacar isto, pois este princípio será o balizamento maior e primeiro a ser observado pelo juiz quando da sua intervenção no ambiente contratual. No mesmo esteio seguem-se os princípios da socialidade e da eticidade, já discutidos no capítulo I, que determinam que deve o magistrado ater-se a critérios éticojurídicos, considerando valores sociais e coletivos, e procurar encontrar a solução mais justa e equitativa para a contenda que lhe é apresentada. Deve também o magistrado ater-se ao princípio da proibição do excesso, que nada mais sinaliza que a necessidade de proporcionalidade entre as prestações a serem estabelecidas, e a observância da razoabilidade no que tange às obrigações das partes. Mais uma vez se chama a atenção para o fato de que – ainda que as partes tenham optado (ou menos uma delas) por submeter a questão da revisão contratual à justiça – caberá predominantemente à elas buscar a solução que lhes pareça mais justa. O princípio da autonomia privada permanece em pleno vigor, e deve ser observado. Neste ponto, em que a questão já foi judicializada, não importa mais a exigência cega do cumprimento do contrato da forma como celebrado, mas se sua 238 Rodrigo Toscano de BRITO, Equivalência Material dos Contratos, p.162. 101 execução de uma outra maneira ainda é possível, e se persiste o interesse das partes em se compor para a sua manutenção diante de novas condições. 4.7 Revisão Contratual com fundamento na Teoria da Quebra Base Objetiva Após analisar a revisão contratual com base nos requisitos previstos no Código Civil, cumpre agora verificar sua aplicação com base na teoria da quebra da base objetiva dos contratos. Revisitando alguns conceitos já debatidos anteriormente, permite-se neste momento retomar as diretrizes do ordenamento jurídico alemão, o qual positivou a teoria da quebra da base objetiva como um dos pressupostos válidos para a revisão contratual, bem como a doutrina alemã que serviu e serve de modelo para a teoria da quebra da base no ordenamento jurídico brasileiro. Por ocasião da elaboração do Código Civil Alemão de 1900, Windscheid, jurista alemão, teria desenvolvido a “teoria da pressuposição” que preconizava que em todos os contratos, concomitantemente às condições inicialmente pactuadas, existiria a “pressuposição” de que elas perderiam sua força vinculante se posteriormente se revelassem incompatíveis com aquilo que fora desejado (manifestação da vontade) pelos contratantes, de tal sorte a guardar relevância na permanência ou não do vínculo contratual. No entanto, essa teoria fora rejeitada pelo legislador alemão na elaboração do Código Civil, por “fazer perigar a segurança do tráfego”, na medida em que a teoria da pressuposição apresentava conceitos abstratos e genéricos, os quais não esclareciam em quais circunstâncias se poderia romper o vínculo contratual. Indubitável, no entanto, que tenha contribuído para a evolução do tema. Paul Oertmann em 1921 com o intuito de distinguir a pressuposição (formulada por Windscheid), do motivo do contrato debruçou-se no que mais tarde viria a ser conhecido como a teoria da base objetiva dos contratos. Oertman afirmava que constitui base do negócio a manifestação mental de cada uma das partes no momento da conclusão do ajuste, conhecida integralmente e não repelida pela outra parte, ou, ainda a comum intenção quanto ao que está exteriorizado e quanto ao que pudesse sobrevir. 102 Se um negócio é concluído em obediência a determinada condição, ambos contratantes sabem que aquela condição poderá vir a ser alterada por fatores supervenientes, de molde que qualquer delas pode escusar-se ou exonerar-se de cumprir a sua prestação sem prejuízo da vontade do parceiro, uma vez que este já o previa. Othon Sidou, por sua vez, interpretando as duas teorias formuladas afirmava que a diferença da teoria da base do negócio jurídico para a teoria windscheidiana residiria justamente no fato de que na teoria de Windscheid a pressuposição seria unilateral, enquanto que na doutrina da base do negócio jurídico, a pressuposição estaria nas intenções subjetivas recíprocas, e não nas reservas mentais de cada sujeito. Assim estaria firmada a base do negócio jurídico, que determina a obrigatoriedade do avençado, sendo que a exigência do cumprimento da bilateridade volitiva só se efetiva se não houver que quebra da base do negócio jurídico, salvo nos caso de mudanças circunstanciais supervenientes não previstas ou imprevisíveis que onerem sobremaneira qualquer um dos pactuantes. Seguindo na mesma vertente doutrinária, Karl Larenz, servindo-se da terminologia usada por Paul Oertmann, constrói sua própria teoria da base do negócio jurídico, fazendo diferenciação entre os aspectos subjetivo e objetivo da base do negócio. Por base do negócio subjetiva juridicamente relevante, entendemos a comum representação dos contratantes, de que tenha partido ao concluir o contrato e que tenha influenciado na decisão de ambos. Esta representação pode referir-se a uma circunstância considerada como existente ou esperada no futuro. Porém, tem que se tratar de uma determinada representação ou esperança; não é suficiente a simples falta de expectativa de uma variação posterior das circunstâncias existentes na conclusão do contrato. A representação ou expectativa têm, ademais, que ter sido decisivas para ambas as partes no sentido de ambas – supondo procederem legalmente – não tivessem concluído o contrato, ou não o tivessem concluído tal como o fizeram, se tivessem conhecimento de sua inexatidão. Não é suficiente que a representação ou expectativa tenha determinado de modo decisivo tão-só a vontade de uma das partes, inclusive no caso de a outra parte haver tido conhecimento disto. Com efeito, cada parte sofre, em princípio, o risco de que se realizem suas próprias esperanças.239 239 Fabiana Rodrigues BARLETTA, A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p.37. 103 Pela teoria desenvolvida por Karl Larenz vê-se que o que ele propõe é a revisão contratual nos casos de “erro bilateral”, isto é, numa situação em que as partes tenham uma falsa projeção mental que não se realiza no campo factual, permitindo assim a revisão por quebra da base contratual em virtude de vício de vontade ocorrido na formação do ajuste. A base do negócio jurídico objetiva, se fundamenta nos próprios dizeres de Karl Larenz em sua obra “Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos” , em que na “equivalência das prestações e contraprestação” e a “finalidade objetiva do contrato”, que devem sempre se fazer presentes sob pena de quebra da base do negócio e consequente e extinção.240 Na teoria por ele desenvolvida base do negócio jurídico corresponde: [...] as circunstâncias e o estado geral das coisas cuja existência ou subsistência é objetivamente necessária para que o contrato subsista, segundo o significado das intenções de ambos os contratantes, como regulação dotada de sentido. Um contrato não pode subsistir como regulamentação dotada de sentido: a) quando a relação de equivalência entre prestação e contra-prestação que se pressupõe no contrato tenha sido destruída em tal medida que não se possa mais falar racionalmente de uma „contra-prestação‟; b) quando a finalidade objetiva do contrato, expressa em seu conteúdo, tenha se tornado inalcançável, ainda quando a prestação do devedor seja, todavia possível.„Finalidade Objetiva do contrato‟ é a finalidade de uma parte, sem que a outra tenha tido como sua. Há de se admitir isto especialmente quando tal finalidade se deduza da natureza do contrato e quando tenha determinado o conteúdo da prestação ou a quantia da contraprestação.Não há de se levar em conta, pelo contrário, os acontecimentos e transformações que: a) são pessoais ou estão na esfera de influência da parte prejudicada (neste caso opera como limite a „força maior‟);b) repercutiram no contrato somente porque a parte por eles prejudicada se encontrava, quando eles ocorreram em mora solvendi ou accipiendi; c) porque, sendo previsíveis, formam parte do risco assumido no contrato.241 O sistema do Código Civil Brasileiro possibilita a revisão dos contratos bilaterais, em razão da superveniência de eventos imprevisíveis que causem onerosidade excessiva para qualquer uma das partes envolvidas. Assim, a dificuldade para a revisão dos contratos com base na teoria da quebra da base objetiva perante o ordenamento jurídico brasileiro consiste em sua fundamentação 240 Base del Negócio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos. Madrid. Editorial Revista de Derecho Provado, 1956. 241 Karl LARENZ apud Fabiana Rodrigues BARLETTA, A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, pp.15-16. 104 legal. Isso, pois referida teoria não demanda a imprevisibilidade ou onerosidade excessiva para sua aplicação, requisitos necessários para a aplicação dos artigos 317 e 478, ambos do Código Civil, mas tão somente a inexistência da relação de equivalência entre as partes e suas prestações e a frustração da finalidade do contrato. Diante da inexistência de fundamentos legais para a aplicação da teoria da quebra da base objetiva, se faz necessária a utilização de outros institutos, como o das cláusulas gerais, para que o magistrado, integrando a relação contratual, possa atingir a finalidade de estabelecimento de novas prestações contratuais, em estrito cumprimento à principiologia da justiça contratual, da boa-fé e da função social do contrato. Na prática, a aplicação da teoria da quebra da base há que se fundamentar nas cláusulas gerais que remetem aos princípios fundamentais – como o já citado princípio da dignidade da pessoa humana – que pelo caráter amplo e indefinido pode causar estranheza à primeira vista na fundamentação da decisão judicial. Mister esclarecer que referido princípio pode ser invocado somente em favor das pessoas físicas, não devendo ser considerado nas relações que envolvam pessoas jurídicas. Tal restrição decorre de seu próprio enunciado, e também do fato de que a dignidade é atributo exclusivo dos seres humanos, sendo inclusive uma das características que os diferenciam dos outros seres, não apenas no campo jurídico, mas essencialmente no campo social. A dignidade, por ser atributo intrínseco à pessoa humana, não poderia de forma alguma ser estendida, na forma de princípio, às pessoas jurídicas. Estas poderão sim, dentro da evolução do direito, e do Direito Civil evocar proteção aos seus direitos – e também a novos direitos que venham a surgir, mas jamais se admitirá o reconhecimento do direito à dignidade para a pessoa jurídica, tal como se reconhece – expressamente e com vigor após a Constituição de 1988 – às pessoas físicas, seres humanos. Isso, pois como do ponto de vista estrutural as cláusulas gerais constituem normas (parcialmente) em branco, estas poderão ser utilizadas pelo juiz para a concretização de um valor, de um direcionamento ou de um padrão social, o qual sempre estará vinculado ao cumprimento dos princípios contratuais e dos princípios gerais de direito. Corroborando a possibilidade de utilização de referidos institutos, a jurisprudência pátria já assentou posicionamento no sentido de que é possível a 105 revisão dos contratos quando constatada a quebra de sua base objetiva, conforme pode se verificar pelas decisões a seguir transcritas: Uniformização de Jurisprudência - Impossibilidade da instauração do incidente em hipótese que versa exclusivamente sobre a interpretação de cláusula contratual indigitada abusiva - Instrumento que se presta à dirimir divergência apenas entre teses jurídicas Negada a instauração de incidente. Compromisso de Compra e Venda - Loteamento - Imóvel adquirido mediante financiamento em 72 prestações - O preço-base do imóvel, fixado para o financiamento, foi cerca de duas vezes o preço-base ajustado para pagamento à vista, mesmo sem se computar os juros e correção monetária Abusividade contratual patente, na medida em que tal equivalia à simultânea pré e pós-fixação de juros e correção monetária, cobrados em duplicidade - Visível modificação do sinalagma, de que decorreu quebra da base contratual em desfavor da adquirente Necessidade de revisão contratual, mantendo-se a incidência de juros e correção monetária, mas sobre o primitivo preço do imóvel, e não sobre aquele já majorado - Cálculos remetidos ao cumprimento de sentença, autorizando-se a compensação de eventual saldo devedor com os montantes já pagos a maior -Sentença reformada, a fim de julgar procedente a demanda -Recurso provido. (Apelação 994040156648 (3776034200). Relator(a): Paulo Eduardo Razuk. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 19/01/2010. Data de registro: 11/02/2010). (grifo nosso) Tutela antecipada - Ação revisional ou anulatória de contrato de derivativos - Medida visando afastar os efeitos da mora contratual, mediante o oferecimento de imóvel em caução - Admissibilidade Medida necessária para permitir à demandante discutir em juízo os termos da contratação em tela, os quais sustenta que lhe são lesivos por gerar grave desequilíbrio na relação jurídica estabelecida entre as partes - Caráter aleatório do contrato que não obsta, em princípio, o ajuizamento da demanda, posto que pressupõe a equivalência do risco de cada contratante, razão pela qual se o risco for de apenas um ou se for desproporcional, muito mais arriscado para um, que para o outro contratante, haverá quebra da base objetiva do negócio, que pode ensejar a revisão do contrato ou a sua resolução, de acordo com o previsto nos artigos 421, 422, 317 e 478 do Código Civil - Requisitos para sua concessão configurados - Decisão que a deferiu que deve, por isso, ser mantida - Aceitação do imóvel oferecido em caução que também merece prevalecer - Avaliação muito superior ao do contrato em questão - Fato do bem encontrar-se registrado em nome de terceiro e de ser objeto de retificação judicial que também não configura óbices para tanto, tendo havido consentimento expresso das proprietárias para tanto. (Agravo de Instrumento 991090606443 (7324656700). Relator(a): Thiago de Siqueira. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 14ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 25/03/2009 . Data de registro: 27/04/2009). (grifo nosso) 106 Arrendamento Mercantil. Revisão Contratual. Quebra da base objetiva do negócio. Constatação da impossibilidadede cumprimento do contrato. Contrato resolvido por causa objetiva. Inexistência de culpa. Peculiaridade do caso que autoriza a procedência da ação e a devolução do carro à credora. Apelação julgada em conjunto com a apelação nº 765.494-0/00. Recurso Provido em parte. (Apelação com Revisão 719.915-0/4. Relatora: Rosa Maria de Andrade Nery. Comarca: São Paulo. Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado. Data do Julgamento: 03/05/2006). (grifo nosso) Arrendamento Mercantil. Reintegratória. Juízo Possessório. Diante do caráter dúplice da ação possessória foram analisadas as circunstancias da mantença do bem com a credora. Negócio que não pôde ser cumprido por quebra de sua base objetiva. Fato não atribuível a ninguém. Matéria relativa à Cláusula geral de boa-fé que deve ser analisada de ofício pelo Juiz (CC2035, caput e parágrafo único). Devolução das parcelas pagas à guisa de VRG antecipado pela autora. Retenção, pela credora, de valores para compensar as parcelas do arrendamento em aberto. Custas e despesas repartidas. Honorários compensados. Recurso da ré parcialmente provido, com observações. (Apelação com Revisão 717.155-0/6. Relatora: Rosa Maria de Andrade Nery. Comarca: Votuporanga. Data do Julgamento: 30/11/2005). (grifo nosso) Assim, diante das possíveis aplicações das cláusulas gerais, do papel atribuído aos magistrados de participação e integração dos contratos, e, adicionalmente do princípio de manutenção dos negócios jurídicos, verifica-se que o Código Civil de 2002 possibilita à parte lesada pela quebra da base objetiva dos contratos a revisão de seus termos e obrigações, visando obter paridade das contraprestações e evitar o enriquecimento sem causa. 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da breve análise histórica dos contratos e das bases do direito no presente trabalho, que foi realizado com foco nos princípios de direito contratual e suas interconexões, verificou-se a evolução das teorias que versam sobre a obrigatoriedade de cumprimento contratual, assim como as formas e hipóteses em que se admitem sua revisão ou resolução. Nesta trajetória constatou-se que conhecer a fundo os princípios do direito contratual e as bases do novo Código Civil, em especial os princípios estruturais da eticidade, da socialidade e da operabilidade, mostra-se fundamental à compreensão dos contratos de qualquer natureza. Dentre as inúmeras inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, cumpre ressaltar as cláusulas gerais, as que (i) foram inseridas no Código Civil de 2002 com o objetivo de manter o sistema jurídico atualizado, passível de adequação aos princípios e valores da presente época e de fácil aplicação pelos operadores do direito; (ii) são normas jurídicas, capazes de criar direitos e obrigações; (iii) têm por função a correta aplicação do direito por meio da criação de normas específicas para cada caso concreto; (iv) apresentam sobre o sistema casuístico a vantagem de ter maior durabilidade, de ter mobilidade na aplicação, de ter fácil atualização e de aproximar o juiz ao caso concreto; (v) necessitam de interpretação para cada caso concreto por parte do juiz, o qual, após identificar o dispositivo legal aplicável, aplicará a sanção que entender cabível naquele momento e lugar; e (iv) diferem-se dos conceitos legais indeterminados e dos princípios gerais de direito em razão da função em que são utilizados no ordenamento jurídico. Diante das possíveis aplicações das cláusulas gerais, do papel atribuído aos magistrados de participação e integração dos contratos, e, adicionalmente do princípio de manutenção dos negócios jurídicos, verifica-se que o Código Civil de 2002 possibilita à parte lesada, por meio da teoria da quebra da base objetiva dos contratos pleitear a revisão de seus termos e obrigações, visando obter paridade das contraprestações e evitar o enriquecimento sem causa. Para a aplicação da teoria da quebra da base objetiva é extremamente importante a análise das circunstâncias em que se firmaram o contrato, como a 108 ordem econômica e social existente, o poder aquisitivo da moeda, as condições normais do tráfico, sem as quais o contrato não alcança a sua finalidade. Da mesma maneira, relevante para a aplicação da teoria da quebra da base contratual é a compreensão de conceitos como causa, vontade e expectativa, pois, as partes apenas decidem contratar em razão de circunstâncias que as façam crer que o negócio jurídico firmado será proveitoso, e cumprirá determinado objetivo. Assim, o equilíbrio entre as prestações e contraprestações apresenta grande relevância nos contratos, não apenas no momento da contratação, mas essencialmente durante a execução do contrato, sob pena de revisão contratual com base na quebra da base objetiva no caso de desequilíbrio. Desta forma, em razão da possibilidade de alteração das circunstâncias em que se firmaram o contrato, e de que essas alterações influam sobre a relação contratual, gerando desequilíbrio entre as partes, é possível a quebra contratual, a qual pode decorrer de (i) lucro desmedido para uma parte em contrapartida de um prejuízo grande para a outra; (ii) impossibilidade de honrar acordos por motivos diversos; (iii) percepção de falhas contratuais a posteriori; entre outras hipóteses. Na hipótese de quebra da base objetiva não há qualquer alteração em relação à causa do negócio jurídico, uma vez que o interesse das partes não se modifica, mas em decorrência da alteração das circunstâncias externas, não será mais possível se atingir o interesse almejado. Para que seja possível a aplicação da teoria da quebra da base objetiva não é necessária a comprovação de forma inequívoca da imprevisibilidade dos acontecimentos, sendo necessária apenas a comprovação da inexistência da relação de equivalência e a frustração da finalidade do contrato. Assim, é possível afirmar que na hipótese do contrato bilateral ter sua relação de equilíbrio quebrada, em decorrência de fatos imprevisíveis e posteriores à sua formalização, e que modifiquem o estado de fato, a parte que for prejudicada poderá requerer a adequação da contraprestação que se tornou desproporcional, com o objetivo de retomar o equilíbrio contratual. A dificuldade para a revisão dos contratos com base na teoria da quebra da base objetiva perante o ordenamento jurídico brasileiro consiste na ausência de 109 fundamentação legal explícita, e, diante dessa ausência, se faz necessária a utilização de outros institutos: as cláusulas gerais. Manejando as cláusulas gerais, o magistrado, deverá, integrando a relação contratual, buscar atingir a finalidade de estabelecimento de novas prestações contratuais, em estrito cumprimento à principiologia da justiça contratual, da boa-fé e da função social do contrato. As cláusulas gerais são normas diretrizes dirigidas aos Estado-juiz, para que este, por meio da atividade jurisdicional preencha seu conteúdo – embasado em modelos de comportamento e pautas de valoração – a fim de solucionar a lide que lhe é apresentada. Relembre-se que cláusula geral não é princípio, tampouco regra de interpretação, mas é sim norma jurídica, e como tal, é fonte criadora de direitos e de obrigações. Portanto, cabe ao aplicador da lei, direcionado pela cláusula geral a formar normas de decisão, vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um padrão social, assim reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta. Na prática, a aplicação da teoria da quebra da base há que se fundamentar nas cláusulas gerais que remetem aos princípios fundamentais – como o já citado princípio da dignidade da pessoa humana – fundamentação que pelo caráter amplo e indefinido ainda causam certa estranheza à primeira vista na tomada da decisão judicial, mas que por esta razão não pode ser deixado à margem do ordenamento jurídico. Como visto as cláusulas gerais constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo. 110 Se o legislador, quando da elaboração do Código Civil de 2002 introduziu as cláusulas gerais como disposições normativas que utilizam no seu enunciado uma linguagem de tessitura "aberta", "fluida" ou "vaga", esta escolha foi muito bem pensada, tendo em vista a complexidade da sociedade e das demansas que hoje se apresentam ao Judiciário. Desta forma, a teoria da quebra da base objetiva – fundamentada essencialmente nas cláusulas gerais – mostra-se como uma das legítimas possibilidades para a revisão contratual no caso do desequilíbrio, e assim, também representa grande avanço na Ciência Jurídica que deve buscar sempre atender às demandas sociais de forma eficiente e justa. 111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O poder judiciário e a concretização das cláusulas gerais: limites e responsabilidade. In Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 18, 2000. ______. Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 2 ed. Rio de Janeiro: Aide, 2003. ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. vol. 2. ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980. ALVIM, Arruda e ALVIM, Thereza (Org). 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