AS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E O PROCESSO FORMATIVO: UMA CRÍTICA ÀS ORIIENTAÇÕES DA UNESCO E AS DIRETRIZES DOS PCNs LOPES, Fábio José Orsini UEM - PR [email protected] Eixo Temático: Comunicação e Tecnologia RESUMO Este trabalho versa sobre a relação entre tecnologias de informação e comunicação e as ações e propostas formativas contemporâneas. Primeiramente, busca-se analisar a correspondência e as afinidades entre dois documentos referenciais da Educação: o Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, da UNESCO, também chamado Relatório Delors, e os Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs. Os objetivos do trabalho são analisar as diretrizes desses documentos, no que respeita ao trato com as tecnologias de informação e comunicação, a fim de que se viabilizem os questionamentos pertinentes. As conclusões apontam para a superficialidade e generalidade dos documentos oficiais aqui considerados, bem como sinalizam o grau de complexidade que a temática suscita à pesquisa e reflexão críticas. Palavras-chave: Relatório Delors. Parâmetros Curriculares Nacionais. Tecnologias de Informação e Comunicação. Formação dos Sujeitos. Introdução O debate acerca das propostas formativas para a contemporaneidade se apresenta diversificado e repleto de referências aos impactos do desenvolvimento tecnológico à formação dos sujeitos. As discussões acerca das conseqüências das tecnologias de informação e comunicação representam campo de discussão fértil e vêm sendo objeto de inúmeras pesquisas e estudos. As interfaces entre práticas formativas e o desenvolvimento tecnológico há muito são referenciadas na academia. Os questionamentos são múltiplos e se voltam aos pressupostos, possibilidades e conseqüências desse diálogo. Questões como: quais tecnologias 7988 são aptas à formação dos sujeitos? Como as utilizar? Como a educação para este século deve posicionar-se frente a essas transformações? Os desafios adaptativos parecem sugerir conseqüências que vão da filosofia do processo formativo às questões que envolvem a didática e a formação docente. O trabalho aqui apresentado se volta para a relação entre dois documentos, o Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, da UNESCO, também chamado Relatório Delors, e os Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs, no que respeita ao trato com as tecnologias de informação e comunicação no processo formativo. O Relatório Delors alicerça suas análises sobre o duplo viés da insuficiência da educação tradicional e das necessidades de profundas mudanças para os desafios do século XXI, propondo quatro competências elementares, os chamados pilares da educação. Os PCNs, por sua vez, ratificando e endossando as diretrizes da Comissão Internacional da UNESCO, buscam aplicar esses conceitos à sistematização curricular, na promessa de melhor equalizar as transformações contemporâneas dos contextos social, econômico e cultural brasileiros. O propósito do trabalho, como se verá, é ensejar o posicionamento crítico frente a posição que estes documentos assumem, no tocante aos impactos que as novas tecnologias de informação e comunicação, as TICs, acarretam às ações e propostas formativas contemporâneas. O caminho percorrido no trabalho apontará o posicionamento das diretrizes desses documentos, o qual se mostrará de inclinação incondicional ao uso das novas tecnologias, e quais as possíveis repercussões para as ações formativas. Concluir-se-á pelo total ensejo e conveniência da pesquisa e reflexão crítica, uma vez que o conjunto de superestruturas que influenciam e direcionam a produção de tecnologias voltadas à formação em muito extrapola os limites dos documentos oficiais. As novas tecnologias e a formação para o século XXI Seja qual for o veio de análise que se proponha, talvez seja possível reconhecer certo consenso acerca dos impactos incisivos e permanentes que novas tecnologias de informação e comunicação provocam nas propostas formativas. Parece imperativo esta consciência e tal cenário resultaria na urgência pela evolução das propostas, ações e do pensamento voltados à formação dos sujeitos, sob o risco de formação de um hiato crescente entre possibilidades e demandas cada vez mais diversas e práticas formativas descompassadas. O acesso e difusão dessas tecnologias, que ora são considerados crescentemente democráticos e ora social e economicamente seletivos, impõem à Educação desafios até aqui desconsiderados. Inauguram 7989 necessidades múltiplas, tais como o domínio de ferramentas de leitura e decodificação de linguagens e seleção apropriada das mesmas. Os impactos das novas tecnologias se fazem sentir no cerne dos princípios formativos, até aqui alicerçados na transmissão de saberes reconhecidos e sabatinados pelo consenso, mediados pela figura do professor, em linguagem oral e/ou escrita, e referenciados em limites físicos de uma instituição. Com as novas tecnologias de comunicação e informação, fronteiras esvaem-se. A informação e o conhecimento transitam, em profusão de meios e códigos, aparentemente disponíveis, mesmo que sob critérios seletivos; o que constituiria outro debate necessário. O fato incontornável é que as rápidas evoluções nas tecnologias de comunicação e informação assumem relevância central nas relações sociais e de produção, acarretando conseqüências imperativas e incontinenti aos processos formativos. As novas tecnologias geram tanto possibilidades quanto necessidades educacionais nunca antes imaginadas. No mesmo diapasão em que o desenvolvimento tecnológico sugere ampliar sobremaneira as possibilidades de conhecimento e acesso a diferentes conhecimentos e produções culturais, de distintos potenciais formativos, também se intensificam as responsabilidades dos sistemas educacionais rumo ao domínio das ferramentas decodificadoras dos signos e linguagens envolvidas. À formação dos sujeitos, parece impor-se uma evolução adaptativa. Como um divisor, pois as novas tecnologias parecem significar, em última análise, transformação paradigmática no modus operandi da transmissão e aquisição de conhecimentos. Compreender a extensão de suas influências nas sociedades atuais e quais as conseqüências para o processo formativo torna-se, pois, questão central para a filosofia da educação. A ubiqüidade das produções tecnológicas e o arsenal informativo em trânsito compõem um quadro de colorido multifacetado, sobre o qual as propostas formativas e, talvez sob necessária mea culpa, os profissionais de educação, parecem ainda não responder à altura. O sujeito contemporâneo a ser formado, seja educando em um sistema formal de ensino, seja o receptáculo das produções culturais em profusão, resulta hoje em um foco de convergência informacional e comunicacional em velocidade e variedade nunca sonhadas. Se outrora buscou-se justificar compreensíveis resistências, ancoradas no raciocínio de que caberia às propostas formativas “concorrer” com e combater os distintos meios e tecnologias de comunicação e informação, esta postura parece soar hoje essencialmente ingênua. Novas tecnologias de comunicação e informação constituem uma das marcas indeléveis da contemporaneidade. Portanto, não parece mais sensato, à maneira de quixotes modernos, opor resistência à irreversível imersão das sociedades contemporâneas no 7990 conjunto das inovações das TICs. O desafio parece não se referir a criar no sujeito em formação espécies de anticorpos repelentes às novas tecnologias; mas há que se indagar como possibilitar ao sujeito a apreensão e assimilação das informações, linguagens e signos possíveis, de modo a promover (se fosse possível definir duas razões nucleares para os processos formativos) a emancipação e o desenvolvimento humanos. Relatório da comissão internacional sobre educação para o século xxi da UNESCO e as tecnologias de informação e comunicação O relatório Delors, como também é conhecido, representa o posicionamento teórico e técnico da UNESCO, através de sua Comissão Internacional para a Educação, no que respeita aos desafios e direcionamentos das políticas e práticas de educação para o século que se inicia. Trata-se de documento que busca equacionar a evolução e o desenvolvimento das relações humanas e de produção e sua interface com as principais demandas educacionais contemporâneas e futuras. Calcado no reconhecimento de transformações profundas com implicações à formação dos sujeitos, o relatório traz como eixo central de suas análises a proposta de quatro pilares sobre os quais deverão sustentar-se as práticas pedagógicas para o século XXI. São eles: Aprender a conhecer, cuja idéia central concentra-se nas ferramentas de construção de saberes, e não simplesmente na aquisição destes; Aprender a fazer, que se refere à intervenção objetiva do homem no mundo do trabalho; Aprender a viver juntos, o qual chama a atenção para a necessidade de harmonização na convivência entre povos e culturas distintos; e Aprender a ser, elemento que forneceria a liga para os demais pilares, ao possibilitar ao educando o desenvolvimento integral de suas potencialidades e a consciência de si. A proposição destes quatro pilares objetiva orientar as práticas pedagógicas deste século, afim de que possam fazer frente aos desafios educacionais inaugurados ou reciclados pela atual fase das relações humanas e de produção. No que respeita ao trato com as novas tecnologias de informação e comunicação, também chamadas TICs, a Comissão Internacional sobre Educação da UNESCO reconhece seus efeitos incisivos nas sociedades contemporâneas. Questão capital no campo da formação atual, uma vez que “... ultrapassa, de fato, o contexto da sua simples utilização pedagógica e implica uma reflexão de 7991 conjunto sobre o acesso ao conhecimento no mundo de amanhã.”1 Sendo a evolução e a complexificação das linguagens e códigos um movimento irreversível, assim como também o são a utilização e entrança dessas linguagens nas práticas pedagógicas, o Relatório busca credenciar-se a fornecer pistas e recomendações acerca dos impactos dessas transformações para a Educação do século XXI. Parece reconhecer a relevância e universalidade da evolução das tecnologias de comunicação e informação, quando diz: As sociedades atuais são, pois, todas, pouco ou muito, sociedades da informação, nas quais o desenvolvimento das tecnologias pode criar um ambiente cultural e educativo suscetível de diversificadas fontes do conhecimento e do saber. Por outro lado, as tecnologias caracterizam-se pela sua complexidade crescente e pela gama cada vez mais ampla de possibilidades que oferecem. 2 Ou ainda: “(...) a Comissão chama a atenção para o fato de estas novas tecnologias estarem gerando, sob os nossos olhos, a uma verdadeira revolução que afeta tanto as atividades ligadas à produção e ao trabalho como as ligadas à educação e formação”.3 De maneira geral, o documento sinaliza potencialidades e antevê desafios. Supõe a evolução contínua e acelerada das tecnologias, tanto em aspectos técnicos quanto conceituais, na criação de mídias, códigos e leituras distintas, que exigiria do educando hercúleo trabalho de seleção e interpretação de códigos e desenvolvimento de competências. Quase sempre entusiastas das inovações tecnológicas, as diretrizes da Comissão Internacional acenam com um sem número de possibilidades formativas pela aplicação das novas TICs. Discurso que se poderia intitular como uma espécie de otimismo pedagógico4, em que as novas tecnologias de comunicação e informação são vistas como ferramentas modernizadoras e de grande potencial. Textualmente: “(...) a Comissão pensa que, tendo em vista as diversas vantagens, grifo meu- a questão da utilização de novas tecnologias na educação constitui uma opção financeira, social e política e deve ser uma das principais preocupações dos governos e das organizações internacionais”.5 1 Jaques Delors (org). Educação: Um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez. DF: MEC: UNESCO., 1998. Pg. 186. 2 Idem, pg. 189. 3 Idem. 4 Expressão emprestada de Jorge Nagle, do clássico “Educação e Sociedade na Primeira República”, em que a utilizou para referir-se ao entusiasmo gerado pelas teorias e ideias pedagógicas na década de 1920, em meio ao movimento Escola Nova. 5 Idem, pg. 191. 7992 O posicionamento do relatório se mostra, portanto, positivamente inclinado às novas tecnologias, pois as considera como ferramentas potencializadoras e democratizantes, que ampliam sobremaneira as possibilidades culturais e formativas. Ao considerar que as “TICs poderão constituir, de imediato, para todos, verdadeiro meio de abertura aos campos da educação não formal”6, o relatório sustenta a crença de que as tecnologias de informação e comunicação estão essencialmente à serviço da formação dos sujeitos. Todavia, é necessário dizer, tal postura receptiva é também temperada, ao longo do documento, com ressalvas pertinentes. A Comissão para Educação da UNESCO parece reconhecer, quase intuitivamente (posto que o mote central do documento se inclina às apologias e não às críticas ao uso das novas TICs), o conjunto de superestruturas econômicas e sociais que pautam a produção, circulação e usufruto das tecnologias de informação e comunicação. Talvez possivelmente por se tratar de documento pluriautoral, as posturas se revezam entre otimismo e alguma precaução. No que respeita aos complexos fatores socioeconômicos, a Comissão reconhece que Os sistemas de informação são ainda relativamente caros, e de difícil acesso para muitos países. O seu domínio confere às grandes potências, ou aos interesses particulares que o detêm, um verdadeiro poder cultural e político, principalmente sobre as populações que não foram preparadas, através de uma educação adequada, a hierarquizar, a interpretar e a criticar as informações recebidas. O quase monopólio das indústrias culturais por parte de uma minoria de países e a difusão de sua produção pelo mundo inteiro, junto de um público vastíssimo, constituem poderosos fatores de erosão das especificidades culturais. Se bem que uniforme e, muitas vezes, de grande pobreza de conteúdo, esta falsa “cultura mundial” não deixa, por isso, de trazer consigo normas implícitas e pode induzir, nos que lhe sofrem o impacto, um sentimento de espoliação e de perda de identidade 7 Tal alerta também sinaliza pouca ingenuidade no posicionamento da Comissão Internacional, uma vez que o relatório expressa os impactos determinantes que as novas tecnologias implicam à circulação de produções culturais, informação e conhecimento, pressupondo profundas assimetrias em sua criação, transmissão e assimilação. Assim, o intitulado Relatório Delors, documento referência no alicerce de sistemas de ensino e projetos pedagógicos para governos dos países em desenvolvimento, parece, de fato, transitar entre entusiasmos e críticas aos efeitos das tecnologias de informação e comunicação para as 6 7 Idem, pg. 66. Idem, pg. 40. 7993 propostas formativas. O que resulta em posicionamentos por vezes inespecíficos e até aparentemente contraditórios, ao sugerir que A responsabilidade dos sistemas educativos surge em primeiro plano: cabe-lhes fornecer, a todos, meios para dominar a proliferação de informações, de as selecionar e hierarquizar, dando mostras de espírito crítico. São ainda responsáveis por preparar as pessoas para manterem a devida distância em relação à sociedade dos meios de comunicação e informação (grifo meu), que tende a ser, apenas, uma sociedade do efêmero e do instantâneo.8 Não há como não se perguntar de que maneira seria possível “proteger” o sujeito em formação do oceano sígnico contido nas novas tecnologias comunicacionais e informacionais, cuja universalidade e ubiqüidade são cada vez mais inegáveis. Assim, as diretrizes da UNESCO sobre Educação para o Século XXI parecem acender velas a santos distintos, pois suas recomendações oscilam entre total aderência e velada ressalva. Todavia, o relatório da Comissão Internacional se faz reverberar proficuamente nos debates pedagógicos e na legislação educacional contemporânea. Ao propor diretrizes gerais e estruturantes, o relatório resultou, em especial para as ações e propostas formativas implantadas no Brasil, em referência norteadora das grandes reformas pedagógicas do final dos anos 1990, notadamente no que se refere à composição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, francamente balizados sobre as diretrizes da UNESCO para a educação deste século. A hipótese aqui aventada é de que as propostas norteadoras do Relatório Delors, voltadas às implicações das novas TICs para as propostas formativas não constituem subsídios consistentes e suficientes à orientação e implantação de reformas e planos pedagógicos, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs. Os PCNs e as tecnologias de informação e comunicação A interlocução entre os documentos aqui considerados, o Relatório Delors e os Parâmetros Curriculares Nacionais, não se constitui desinteressada. Esta relação é reconhecida, consciente e referenciada nos Parâmetros, em diferentes momentos. Os PCNs elegem a proposição dos quatros pilares da educação da UNESCO como a via de efetivação das transformações paradigmáticas pelas quais devem passar as práticas formativas 8 Idem, pg. 66. 7994 contemporâneas. No que concerne às tecnologias de informação e comunicação, os Parâmetros, aqui considerada especialmente a parte voltada ao Ensino Médio, os PCNEM, identificam, à luz das recomendações da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI da UNESCO, a relevância e os impactos que as novas TICs acarretam aos sistemas e práticas educacionais. Propõem medidas e objetivos de apreensão de suas formas. Sugerem “(...) entender o impacto das tecnologias de comunicação e informação na vida, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.” 9 Defendem “(...) que as tecnologias da comunicação e informação e seu estudo devem permear o currículo e suas disciplinas” 10. O caráter irreversível do estreitamento da relação entre educação e linguagens tecnológicas parece pacífico e abordado em diferentes momentos ao longo do texto. Os PCNEM parecem se referir às transformações representadas pela disseminação e evolução constantes das TICs como um movimento naturalizado da história social, econômica e cultural dos homens. Para o documento, as produções e criações tecnológicas, de conteúdo comunicativo, informativo, artístico, estético ou ideológico, estariam a serviço dos sujeitos em formação. Dos discursos inquietadores ou apologistas sobre as novas tecnologias, a escola deve compreendê-las como atividades humanas e sociais, intrinsecamente ligadas à historia das lutas da humanidade para a superação dos limites biológicos e para a criação de um mundo social mais democrático. As tecnologias estão no passado, no presente e estarão no futuro como armas humanas de desvendamento do universo natural e social 11(grifo meu) A crença nas benesses tecnológicas parece, pois, inquestionável. Os PCNs encaram as transformações representadas pelas TICs como potencializadoras das práticas pedagógicas. “A problemática se encontra nas formas de seus usos e não nos fins de sua criação.”12 Supõem, desta forma, que as linguagens e os recursos tecnológicos, com conteúdo e intencionalidade plurais, mediados e midiatizados por canais randômicos, constituem fins legítimos à formação dos sujeitos; restando ao pensamento educacional tão somente desvendar os meios e as formas adequados de selecioná-los, classificá-los e utilizá-los. 9 BRASIL, 2002, pg. 132. Idem, pg. 134. 11 Idem, pg. 132 12 Idem 10 7995 Assim, as novas tecnologias de informação e comunicação são encaradas como ferramentas que simbolizam a revolução pela qual devem passar as propostas formativas contemporâneas. Pela assimilação inconteste das novas tecnologias, a educação se credenciaria a fazer frente aos desafios deste século. A imersão das ações formativas nas tecnologias de informação e comunicação é apresentada pelos Parâmetros como a via natural rumo à superação do modelo ultrapassado de educação tradicional. Muito mais que meras ferramentas, as novas TICs parecem representar a razão-mor das propostas de formação atual, reformuladas sob as diretrizes das reformas do final dos anos de 1990. O trato com o conjunto avassalador de produções tecnológicas se eleva à condição sine qua non para a inserção do sujeito no conjunto de códigos e símbolos de linguagens contemporâneas. Nas palavras dos Parâmetros: “No mundo contemporâneo, marcado pelo apelo informativo imediato, a reflexão sobre a linguagem e seus sistemas, que se mostram articulados por múltiplos códigos, e sobre os processos e procedimentos comunicativos é mais que uma necessidade, é uma garantia de participação ativa na vida social, a cidadania desejada.”13 Assim, as ações formativas para o século que se inicia, defendidas pelas diretrizes dos PCNs, parecem apontar para um conjunto de habilidades e competências (vocabulário especificamente pós-Jomtien14) ligadas à seleção, filtragem, assimilação e interpretação de um conjunto complexo de informações e saberes veiculados em mídias e formatos diversos. A “cidadania desejada” do século XXI estará, pois, relacionada às capacidades de leitura e manejo das diferentes linguagens e ferramentas das tecnologias de informação e comunicação. Segundo o posicionamento dos PCNs brasileiros, diretamente balizados pelas diretrizes da UNESCO sobre Educação para o Século XXI, toda ação ou projeto que se proponha à formação dos sujeitos deverá necessariamente reconsiderar a maneira como estes terão acesso e se utilizarão de informações, conhecimentos e valores, produzidos e veiculados nos mais distintos meios. Consoante demonstrado, o Relatório da UNESCO e os Parâmetros Curriculares brasileiros sustentam a interpretação segundo a qual as novas TICs estariam integralmente favoráveis ao sujeito em formação. O postulado é de que a profusão de signos e códigos, de linguagens e leituras distintas, deverá ser prontamente absorvida pelas propostas formativas, pois representa a via da modernização inconteste e imperativa. O diálogo entre 13 Idem, pg, 126. Referente à Conferência de Jomtien, na Tailândia, em 1990. Reunião intergovernamental (155 países representados) encabeçada pela UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial, definidora de diretrizes e propostas educativas para o Século XXI. 14 7996 esses documentos é, portanto, convergente e amistoso, o que constitui objeto de diversas pesquisas no campo da formação dos sujeitos. O viés considerado neste trabalho busca identificar nestes textos quais os elementos que possam fornecer subsídios para melhor compreensão da relação entre as novas tecnologias de informação e comunicação e as propostas formativas para o século que se inicia. Sobressai da análise destes documentos a percepção de que o trato com essas tecnologias não somente é considerado pertinente ao debate pedagógico, pois supõe os impactos e as conseqüências para as práticas e técnicas educacionais, mas, fundamentalmente, uma questão de mudança paradigmática. Os quatro pilares das práticas pedagógicas sugeridos pela Comissão Internacional da UNESCO e repercutidos pelos Parâmetros brasileiros indicam um cenário de galopantes transformações, no qual a formação tradicional não teria condições de fazer frente à celeridade dessas mudanças. Sendo assim, o Relatório propõe o desenvolvimento de competências básicas, mediante as quais os conhecimentos selecionados permitiriam ao educando evoluir com adaptabilidade exponencial e criativa. O enciclopedismo deve ser substituído pelo treinamento de habilidades cognitivas e práticas, além da busca pelo desenvolvimento da capacidade relacional e do autoconhecimento. No contexto considerado de revolução, as novas TICs estariam assumindo o papel de facilitador do processo formativo, na medida em que representam a modernização por onde deverão passar as ações educativas. Os PCNs, assumindo e reiterando esse alicerce referencial, parecem propor, no que respeita às tecnologias e linguagens de informação e comunicação, o reconhecimento e a assimilação das possibilidades educativas e culturais destes signos, o que se daria mediante a apreensão de seus elementos constitutivos e domínio sobre sua técnica. E aqui se enseja a proposta crítica deste trabalho. A crítica necessária O propósito de análise crítica acerca das implicações das diretrizes dos documentos aqui considerados, o Relatório da UNESCO e os Parâmetros Curriculares Nacionais, não se configura exatamente como original. Tarefa de certa forma até mesmo usual, uma vez que, como documentos oficiais que propõem balizar a legislação e as práticas pedagógicas, atraem, naturalmente, questionamentos. Soma-se a isto o fato de que tal crítica não se mostra tarefa hercúlea, pois as limitações e generalidades, notadamente no que respeita ao objeto deste trabalho (as tecnologias de informação e comunicação) parecem constituir a essência destes 7997 documentos. De fato, não é muito difícil posicionar-se criticamente às diretrizes curriculares, por exemplo. O próprio Ministério da Educação o faz: (...) embora se adeqüem aos novos desafios das complexas sociedades globalizadas, que funcionam a partir de novas tecnologias de comunicação e que exigem novos tipos e níveis de letramento, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) e, sobretudo, os PCN+15 - na parte voltada para o ensino de línguas da Área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias – não chegam a referenciar, de forma satisfatória, às mudanças de estrutura, organização, gestão e práticas didáticas que seriam necessárias para a realização dos princípios e diretrizes expostos nos documentos legais.16 Não poderia se tratar aqui, portanto, apenas de crítica pura e simples, pois inúmeros são os questionamentos que gravitam em torno desses documentos oficiais. A imersão das ações formativas no vasto universo de novas tecnologias de informação e comunicação, é preciso reconhecer de antemão, não se daria sem rupturas, descontinuidades, solavancos. Fazse necessária a reflexão acerca das especificidades das linguagens historicamente presentes na educação tradicional e nas novas TICs. A escola possui veios oral-falado e escrito; tradição de transmissão de conhecimento via códigos lingüísticos definidos e estanques. As tecnologias de informação e comunicação engendram mutabilidade, desenvolvimento e complexificação crescentes, atrelados à evolução tecnológica. O contato e inter-relação entre essas estruturas de linguagem não se mostra diretamente natural. Mesmo supondo o mundo contemporâneo, em geral, midiatizado e expectador de meios, tecnologias e códigos audiovisuais, a relação entre propostas formativas e tais linguagens sugere, minimamente, aclimatação. Reservadas as proporções, é necessário dizer que, à semelhança da alfabetização da linguagem escrita e normatizada, a apreensão, por exemplo, de linguagens audiovisuais contemporâneas demanda tempo e maturação. Embora reconheça-se que a contemporaneidade se traduza na quase imersão totalizante do sujeito em formação nos meios e linguagens tecnológicos (debates acerca de inclusão à parte), a melhor capacidade de leitura deste universo não se dá espontaneamente. Assim, mesmo não sendo fato consensual a disseminação ampla e o largo alcance das tecnologias de informação e comunicação, o grau de inserção e difusão de suas linguagens é tal que o questionamento que se avizinha não se refere somente ao acesso, mas também à qualidade e especificidade das leituras. São muitas 15 Espécie de complemento aos Parâmetros, intitulado “Orientações Complementares aos PCNs.” BRASIL, MEC, Secretaria de Educação Básica – Departamento de Políticas de Ensino Médio. Orientações Curriculares do Ensino Médio. Brasília, 2004, pg. 14. 16 7998 as questões pertinentes. Quais tecnologias utilizar? Como as interpretar? O que as propostas formativas podem e devem fazer para aparelhar o educando na leitura dessas linguagens mutantes e dinâmicas? Como as utilizar para os objetivos educacionais do século XXI? Mesmo que se reconheça a impossibilidade de esgotamento da temática, algumas considerações, dentro da especificidade deste trabalho, se mostram essencialmente indispensáveis. São elas: Em primeiro lugar, toda análise que proponha a interlocução entre o Relatório Delors e os Parâmetros brasileiros deverá reconhecer que suas reformas e propostas estão intrinsecamente relacionadas ao desenvolvimento do sistema capitalista como um todo. São diversificadas as pesquisas que apontam para a irmandade entre as transformações do capitalismo dito tardio, pós-globalizado, e as propostas formativas contemporâneas defendidas por organismos supranacionais como a UNESCO.17 Os conceitos de competências e o aprender a aprender dos “pilares” da educação para o século XXI apontam para um cenário intermitente de substituição e reciclagem de saberes, elevando a adaptabilidade à linha mestra do trabalho pedagógico para o sujeito em formação. Uma lógica assemelhada às transformações do capital, que empresta às propostas e ações formativas um caráter produtivista e industrial, amalgamado aos compromissos de mercado, na medida em que a apreensão de conhecimentos e competências atrelados ao desenvolvimento tecnológico se sobreleva. Neste sentido, a inclinação inconteste e acriteriosa das propostas educacionais reformistas, encabeçadas pela UNESCO e reverberadas pelos PCNs brasileiros, à assimilação das novas TICs ao processo formativo, enseja e fortalece a vigília crítica, pois as tecnologias de informação e comunicação configuram terreno de excelência do desenvolvimento do sistema capitalista. De fôlego incansável, sua lógica recai sobre o fim mercantil que gerencia as forças de produção. A veloz substituição e o desenvolvimento de novas tecnologias são e serão sempre arrazoados pela finalidade exclusiva da acumulação do capital. Ao se atrelar as propostas e ações formativas a esta cadeia produtiva, promove-se o padrão industrial próprio dessa acumulação e exploração capitalistas ao cerne do processo formativo. A transposição da lógica e intencionalidade industriais, muito bem simbolizadas no arsenal de inovações “tecno- 17 Entre outros bons exemplos, pode-se citar: Gentili, P. e Silva, T. T. (orgs.): “Escola S.A: Quem ganha e quem perde com o neoliberalismo”, Brasília, DF: CNTE, 1996. Newton Duarte: “Vigotski e o Aprender a Aprender”. Campinas: Autores Associados, 2001. De Tomasi, Warde e Haddad: “O Banco Mundial e as políticas educacionais.” São Paulo: Cortez, 1996. 7999 didático-pedagógicas”, transfere também o caráter racional e mercantil contido nessas tecnologias. O computador, por exemplo, surge pelas necessidades da indústria e da pesquisa científica, e, nessas esferas, pode representar bem as contradições. Se surge nessas áreas, está impregnado de sua racionalidade; quando se espraia para outras, como a da educação, leva consigo aquela racionalidade, dando seu ar de produtividade industrial.18 Não obstante, o posicionamento das diretrizes da UNESCO e dos PCNs, especialmente na parte voltada ao ensino médio, conclama as propostas de formação a se adequarem ao contexto de inovações tecnológicas, sob o risco de anacronismo insanável. Uma pregação de ares darwinista, que decreta o óbito das ações formativas que não se adaptarem às transformações decorrentes do desenvolvimento tecnológico. Sob o panorama das mudanças paradigmáticas, os documentos norteiam-se por um cenário de inconstância, o qual inquire e condena a educação tradicional obsoleta. Pressupõem a formação de um descompasso entre o cenário de transfiguração das relações de produção e os sistemas e práticas educacionais. Neste contexto, a apreensão e domínio sobre o desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação são elevados à condição capital na adaptabilidade dos sujeitos e ferramenta indispensável na formação contemporânea. Os objetivos formativos passariam a não prescindir de competências atreladas às novas tecnologias, como por exemplo, a aquisição e o domínio de ferramentas de leitura e interpretação de linguagens audiovisuais. A melhor capacidade de decodificação deste universo lingüístico, de acordo com essa “necessidade” adaptativa, passaria a criterizar as ações formativas. Desta forma, a reciclagem industrial que rege as inovações das tecnologias de informação e comunicação encontra nas propostas formativas para este século a parceria ideal, pois o também reciclável aprender a aprender e suas competências significaria a reposição necessária dos saberes e conhecimentos adequados ao trato com tais inovações. Aparentemente um círculo hermético e retroalimentado. As conseqüências para a formação dos sujeitos representam, inquestionavelmente, o campo próprio e indeclinável para a pesquisa e a investigação críticas, pois o denunciado casamento entre ações formativas e estruturas de mercado, é digno de 18 José Leon Crochík, Teoria Crítica e novas Tecnologias da educação; in: Bruno Pucci, Luiz Antonio Lastória, Belarmino Cesar da Costa (orgs.) “Tecnologias, Cultura e Formação... ainda Auschiwitz”; São Paulo: Cortez, 2003, pg. 99. 8000 atenção permanente. “A crítica, assim, deve destacar, nas modernas tecnologias utilizadas na educação, sua proximidade da racionalidade da indústria”.19 Esta proximidade, ao legitimar competências de uso das novas TICs como fim das ações formativas, deve ser objeto de reflexão perene. Nisto consiste a crítica: apontar que a verdadeira função das propostas formativas não deve se limitar a inserir tecnologias na didática e nas práticas pedagógicas; pois isto a própria racionalidade industrial de sua produção se encarrega muito mais eficazmente de distribuir-se. Todavia, as reformas e propostas defendidas pelos documentos aqui analisados apontam para a inserção das ações formativas no universo das novas tecnologias de modo inconteste, desconsiderando todo arranjo das forças de produção que envolve a circulação de bens e ferramentas de informação, cultura e conhecimento. Há que se considerar as análises que se voltam para nomear verdadeiramente as relações entre formação e tecnologias, como há muito se propõe a teoria crítica. Os conceitos de cultura administrada, semiformação e indústria educacional, nunca estiveram tão presentes na ordem das questões acerca da formação dos sujeitos. Urge amplificá-los e reverberá-los. REFERÊNCIAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. BRASIL. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCN+ Ensino Médio. Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC; SEMTEC, 2002. DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC: UNESCO, 1998. PUCCI, Bruno; LASTÓRIA, Luiz Antonio Calmon Nabuco; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães (orgs.). Tecnologia, Cultura e Formação... Ainda Auschivitz. São Paulo: Cortez, 2003. 19 Idem.