"RELATO" humorístico do primeiro jogo
da equipa de transmissões.
Numa estante onde guardo com carinho os livros dos meus antepassados, alguns bem
antigos, fui encontrar (não sei como lá foi parar), o diário da minha vida militar em
Moçambique que julgava perdido.
Encontrei coisas escritas nos anos de 1970 a 1972 que me fizeram recuar no tempo e
recordar-me de muitos dos meus ex-camaradas de armas.
O “relato” escrito da parte humorística (só essa me interessou) do primeiro e único jogo da
equipa dos transmissões nos dois anos de comissão militar, foi escrito em Pauila, no mês de
Outubro do ano de 1970.
Não sei se vou criar inimizades com os meus ex-camaradas de armas aqui citados mas, se
isso acontecer, o remédio é não ir aos convívios para evitar ser “agredido”.
Compreendam que éramos jovens, com uma idade propícia a dizer e a fazer disparates que
hoje, à distância de 40 anos, nos fazem sorrir.
Era com estes momentos de humor e boa disposição que a “malta” esquecia as amarguras
da guerra e o perigo em que vivíamos. A qualquer momento, perdia-mos a vida
estupidamente e em plena flor da idade.
Sem a existência destes momentos divertidos, dos humoristas da companhia e de um
comandante de companhia que investia muito no desporto, usando isso como arma
psicológica para nos abstrairmos de tudo e dessa maneira mantermos a mente sã,
entraríamos em depressão, tal era o isolamento em que vivia-mos em Pauila.
Mulheres, só as do Joel, refiro-me, evidentemente, às fotos que ele afixou nas paredes
interiores do “edifício” das transmissões, que era um regalo vê-las!.
Evidentemente, que havia um ou outro camarada que não andava afinadinho. Acham
normal gritar “olha o avião” às 10 horas da noite?
Os jovens de hoje não fazem ideia do sofrimento daqueles rapazes dos anos 60 e 70,
arrancados aos seus pais (a quem presto aqui a minha sincera homenagem por tudo quanto
sofreram), às namoradas, às mulheres (alguns eram casados), aos filhos, e lá vai carne para
canhão.
Informo-vos que não alterei nem uma vírgula ao texto que foi escrito no mês de Julho de
1970, apenas me limitei a copiá-lo com todas as incorrecções de acentuação e português (e
são muitas), de um “cronista” de meia tigela, com vinte anos de idade.
Esta é a melhor maneira de vos demonstrar a veracidade daquilo que escrevi.
Peço-vos desculpa pelo “calão” empregue no texto, era o mais usado no dia-a-dia de cada
um de nós. Apagar essa parte seria retirar a pureza ao texto.
Começa assim:
O PRIMEIRO JOGO DE FUTEBOL DA EQUIPA DE
TRANSMISSÕES
Neste mês de Outubro do ano de 1970, o nosso amigo mister Joel, um grande desportista,
bem preparado fisicamente, e que vive com entusiasmo o desporto de manhã à noite, (a
verdade é para ser dita e estou certo que ninguém me desmente), num daqueles seus dias
iluminados, resolveu organizar um jogo de futebol entre uma equipa composta por
elementos das transmissões e outra dos oficiais e furriéis.
Se assim o pensou, assim o fez! Ideia que se lhe meta na cabeça tem que a concretizar!
Quem se fartou de gozar com tal ideia foi o nosso camarada Silva Valenciano que, com as
suas habituais gargalhadas, mandou a seguinte “boca” de provocação:
“Oh Joel! Não te metas nisso pá! Tu não vês que para a maioria dos elementos das
transmissões a bola é quadrada? Vamos ser ridicularizados homem!!!.
Mister Joel, como sempre, não deu ouvidos ao Silva, mandou-o para o caralho e, zangado,
acabou por lhe dizer que na equipa dos oficiais e furriéis existem três ou quatro bons
jogadores mas quanto aos restantes viram uma bola quando assentaram praça!.
Foi a gargalhada geral entre os transmissões ao ouvir isto da boca do Joel!
Começou por convidar o nosso camarada Cunha que, de imediato, lhe respondeu que não
aceitava.
Após uns minutos de ponderação e como tinha uma certa consideração pelo Joel, disse-lhe
que não se importava de jogar a guarda redes.
Ao ouvir isto da boca do Cunha, o nosso “seleccionador” levou as mãos à cabeça aflito, e
disse para a malta:
“O Cunha a guarda redes!
É impossível!!! As bolas chutadas a meia altura entram todas!”
Nesse momento, ouviu-se uma voz vinda do gabinete dos criptos, a do Bastos de Sousa
que, com o seu sentido de humor apurado, mandou a seguinte “boca”:
“Oh Joel! Não fiques aflito! O Cunha é de estatura baixa mas tem uma elasticidade do
caralho!”
Como calculam, foi uma barrigada de riso. O amigo Cunha não gostou da piada mas, ao ver
toda a malta a rir, acabou por entrar na “festa”.
Quando o Joel estava a organizar a equipa, (sempre com as gargalhadas do Silva
valenciano como pano de fundo), eis que surge uma voz calma, serena, cheia de
personalidade, a voz do cabo Pinto que, com o ar mais sério deste mundo, disse o seguinte:
“Joel! Não precisa de ter receio! Diz ao Silva que vá rir para o caralho! Tu podes
contar comigo!”
É nesse momento que o amigo Pinto faz a revelação mais sensacionalista deste mundo, ao
ponto de pôr todos os transmissões de boca aberta e de olhos em bico, mesmo não sendo
chineses!
Zangado com a malta e com cara de poucos amigos, virou-se para o Joel e desvendou o
segredo!!!
“Joel! Eu antes de assentar praça vivi em França, jogava na equipa do Sant Etienn!!!”.
A surpresa foi geral!!!, Como é possível o Pinto ter jogado num clube de tamanha dimensão,
( o Sant Etiene, é neste ano de 1970 um dos melhores clubes europeus), sem que tal facto
fosse do nosso conhecimento?
O Silva valenciano, o Silva vianense, o Dinis e os restantes elementos ficaram radiantes
com tamanha revelação e o caso não era para menos.
O Joel, com ar desconfiado, olhava constantemente para as pernas do Pinto e, virando-se
para mim, disse-me o seguinte:
“Lusquiños, aqueles pernas não são de quem jogou futebol, mas de quem praticou
ballet!”.
O Silva valenciano, completamente radiante e convicto de que o Pinto ia fazer miséria na
equipa dos oficiais e furriéis, insistia que guardássemos segredo absoluto da existência
desta vedeta até à hora do jogo e, mudando imediatamente o seu comportamento crítico,
virou-se para o Joel e disse-lhe:
“Camarada Joel! Com um jogador desta qualidade a vitória está no papo! Avança com
a tua ideia, tens todo o meu apoio! Avança!.
Organizou-se a equipa, com a malta de transmissões muito confiante de que o Pinto ia fazer
miséria na equipa dos oficiais e furriéis, era como limpar o cu a meninos, a vitória era certa!.
Logo na primeira jogada o furriel T. Costa com aquela velocidade e força corporal conhecida
de todos, pegou na bola, foi na direcção do Silva Valenciano que, em vez de o tentar
desarmar, fugiu dele a sete léguas e assim, facilmente, marcou o primeiro golo.
Joguei a defesa central nesta “FAMOSA” equipa de transmissões e, embora não sendo uma
vedeta (sei pelo menos a bola é redonda), fiquei zangado com o comportamento do Silva
valenciano, dirigi-me a ele e disse-lhe:
“Que merda de jogador és tu que em vez de desarmar o homem foges dele!!! “
Respondeu-me o Silva, com aquele ar de quem tinha visto um fantasma na sua frente
momentos antes!
“Ora vai para o caralho!!! Tu preferias que eu morresse esmagado por um elefante em
passo de corrida?”
Logo de seguida, o Alf. Meira, jogador da equipa adversária, um jogador superdotado para o
futebol (pede licença ao pé esquerdo para chutar com o direito), fez um passe para o Alf.
Carvalho outra grande vedeta, outro superdotado para o futebol, (quando a bola lhe vai
parar aos pés a desgraçadinha pede-lhe encarecidamente que não a trate tão mal), que dá
um autêntico charuto, metade na bola e metade na terra, perdão, (areia), cega o nosso
“grande” guarda redes Ludgero (a areia saltou-lhe para os olhos), que nem sequer viu a bola
passar e surge assim o segundo golo.
Como é evidente, o Alf. Carvalho não parava de contente! Coisa rara! Marcou um golo à
equipa do Joel!.
O Fur. Josefa, que jogou pela equipa dos homens de transmissões (ele é o chefe da malta,
e percebe tanto de transmissões que até nos … comove), furioso por ver o Alf. Carvalho
marcar um golo, foi ter com ele e disse-lhe:
“Oh Carvalho! Não faças tantos buracos no chão quando chutas a bola que ainda
accionas uma mina anti-carro e vamos todos para o caralho!!!”
O terceiro golo foi espectacular. O Fur. Matos, guarda redes nosso adversário, ( excelente
guarda redes é este homem), chutou a bola de baliza a baliza (o que não é difícil olhando às
dimensões do campo), o Ludgero abre os braços para apanhar a bola, esta bate-lhe na cara
e entra na baliza.
Sabendo que ia ouvir do Joel, desculpou-se dizendo que o sol lhe bateu de frente e cegou-o.
Ora, naquela altura não havia sol. Que grande mentiroso é este nosso amigo Ludgero!.
O Dinis, ao ver aquele frango, corre para o Ludgero abre os braços e diz-lhe:
“És um grande frangueiro! Quando acabares a comissão já tens profissão! Vais
montar um negócio de frangos na tua terra!!!.
Ora, não sei se ele vai seguir o conselho do Dinis. Como é natural de Portimão , um negócio
de frangos na terra das sardinhas até é capaz de dar! Que ele tem jeito para frangos, lá isso
tem!
Temos nas transmissões um defesa extraordinário, um fora de série, refiro-me, como é
evidente, ao nosso amigo Pereira (Alvezes).
Derrubou com os braços e com o corpo todos os adversários que lhe apareceram pela
frente incluindo o capitão Rocha que, embora não gostasse da “brincadeira”, manteve
sempre o seu sorriso característico.
Quando a bola lhe ia parar aos pés dificilmente acertava na “bogalhinha”.
A única vez que acertou na bola estava virado para a baliza adversária mas foi atingir em
cheio e violentamente o “coitado” do nosso camarada Amorim da “machamba” que assistia
pacatamente ao jogo na lateral do campo, fazendo com que ele caísse redondamente no
chão com o fortíssimo impacto da bola e incapaz de se levantar.
O Bocas enfermeiro, correu para junto do rapaz e, com os braços levantados, começou a
gritar:
“O Alvezes matou o homem caralho!!! O Alvezes matou o homem caralho!!! Oh
Alvezes matou o homem caralho!!!
E, extremamente exaltado, virou-se para o Alvezes e disse-lhe:
“Meu jogador de merda!!! Sai do campo antes que chutes novamente e mandes a
messe dos sargentos abaixo!!!
Ao fim de algum tempo, ajudado pelo Bocas e por outros companheiros o nosso camarada
Amorim levantou-se, muito combalido, completamente atordoado, e lá foi na direcção da
machamba, lamentando o dia em que foi assistir a um jogo de futebol onde uma equipa
integrava o terrível Alvezes.
Meus amigos.
O Pereira Alvezes deu tantos pontapés na atmosfera que, a determinada altura do jogo, o
Joel dirigiu-se a ele e perguntou-lhe:
“Oh Alvezes! Oh meu caralho! Tu tens a perna bem aparafusada? Tem cuidado pá! Ela
pode soltar-se e aleijar alguém!!!
O Alveses, completamente desorientado de tantos rodopios que fez ao não acertar na bola,
a primeira reacção que teve foi a de olhar imediatamente para a perna para se certificar que
estava no devido sitio e só depois, ao ver a malta a rir desalmadamente, se apercebeu do
ridículo em que tinha caído.
Quanto à vedeta do Sant Etienne só posso dizer o seguinte:
O amigo Pinto não tocou na bola e, a determinada altura do jogo, vem uma bola na direcção
dele e, em vez de acertar na redondinha, acerta nas pernas do fur. Josefa, seu companheiro
de equipa que, como é lógico (quem não se sente não é filho de boa gente!), proferiu muitos
palavrões, ficando a dançar o vira do Minho ao pé coxinho durante uns minutos, obrigando o
nosso grande especialista em enfermagem Dr. Soares “Bocas” a entrar em campo com a
sua bolsa de enfermagem ao ombro (ele, por iniciativa própria, quis ser o enfermeiro de
serviço dos transmissões e só dos transmissões já que está zangado com alguém da equipa
adversário), ao mesmo tempo que insultava o Pinto dizendo-lhe:
“Meu caralho! Se continuas a jogar dessa maneira a varrer as pernas dos próprios
colegas de equipa, quando precisares de levar uma injecção esfrego a agulha numa
pedra antes de a espetar no cu de tão “ilustre” vedeta!.
Quem gozou com o espectáculo foi o meu amigo e conterrâneo fur. Oliveira que, junto à
messe dos sargentos, num acto de provocação, mandava as seguintes bocas para o
fur.Josefa:
“Oh peninha! Tem amor às tuas pernas! Se as levas à Vila das Taipas ficam lá para
garfos de tão fininhas que são!!!
O Joel, muito furioso, correu na direcção da vedeta do Sant Etiene e disse-lhe:
“Meu jogador de trazer por casa! Tu deves é de ter jogado no clube os “Passarinhos
do Monte“ cujo presidente é o “Bocas”.
O Soares, ao ouvir isto da boca do Joel, ficou zangadíssimo e quase entrava em vias de
facto, pois considerou aquilo um insulto à sua dignidade de homem e de presidente e,
exaltado, respondeu-lhe:
Olha lá vedeta da merda que hoje passaste o tempo todo a “sanicar” o cu (refere-se à
maneira do Joel jogar quando tenta fintar os adversários), o clube do qual eu sou
presidente é um clube de dança e não de futebol!!!.
De imediato o Joel, (também em jeito de provocação), respondeu-lhe:
Oh Bocas! Afinal eu tenho razão! A vedeta só podia ter saída de tão “Ilustre” Clube!!!
A partir daquele momento ficamos entregues à nossa sorte! Ficamos sem massagista!
Revoltado, e sem papas na língua, mandou a malta das transmissões levar no cu, pegou na
sacola dos medicamentos, retirou-se zangadíssimo, vociferando pelo caminho os palavrões
que lhe vinham à cabeça naquele momento, ao mesmo tempo que era fortemente aplaudido
por toda a assistência ao jogo.
Perdemos o jogo por 4-1, com golos do Fur. T.Costa, do Alf.Carvalho, do fur. Matos de
baliza a baliza, e do capitão Rocha.
O Golo da equipa dos transmissões (um excelente golo), foi marcado pelo Silva de Viana.
Neste jogo, dei uma queda e fiz uma luxação no ombro que me obrigou a ir à enfermaria
minutos antes do jogo acabar, com muitas dores.
Entrei na enfermaria com receio de que, num acto de vingança, o “Bocas” me fizesse aquilo
que prometeu fazer à vedeta do Sant Etiene, ou seja, esfregar uma agulha numa pedra
antes de a espetar no meu pobre “dito cujo”, eu que até sou um “tipo” pacato.
Como é evidente, tomei as minhas precauções!
Mestre “Bocas”, muito zangado, olhou para mim, mexeu e remexeu em agulhas com o
sentido de me intimidar (ao ponto de eu me deslocar para junto da porta, prontinho a dar à
sola a qualquer momento) e, sem me dirigir a palavra, pôs as agulhas de lado, deitou-me o
conteúdo de uma bisnaga no ombro, pegou numa liga e enrolou-a desde a minha cintura até
ao pescoço, deixando apenas o meu braço direito de fora.
Fartei-me de lhe dizer que as ligaduras estavam muito apartadas e que me sufocavam. Não
quis saber e disse-me para não me intrometer no trabalho dele, que se considerava um bom
enfermeiro.
Quando vinha a sair da enfermaria apareceu o nosso médico que, espantadíssimo com a
minha “linda” figura, virou-se para o “Bocas”, com aquela sua calma habitual e conhecida de
todos:
“Oh Bocas! Será que estou a ver bem! Esse é o Lusquiños ou é uma múmia?
Confesso, que a presença do nosso médico foi a minha salvação!
Imediatamente exigiu que me fossem retiradas metade das ligaduras.
Muito contrariado, “Dr”. Soares “Bocas” cumpriu as ordens dadas pelo nosso médico, de
contrário, eu teria morrido naquela noite, não em combate, mas asfixiado.
Pauila, Julho de 1970.
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O Primeiro Jogo de Futebol da Equipa de Transmissões