ÍNDICE
ENQUADRAMENTO
01. A Luana que não deixavam crescer…
PÁG. 7
02. Afinal a situação é outra…
PÁG. 13
03. As vezes que me magoaste mãe
PÁG. 16
04. Crescer sozinho com jogos de zombies e de matar
PÁG. 19
05. Estou de costas voltadas para o mundo!
PÁG. 23
06. Na balança a religião e o amor
PÁG. 26
07. O caminho da mudança
PÁG. 29
08. O menino que não queria aprender
PÁG. 31
09. O meu cérebro já não funciona
PÁG. 34
10. Aprender a viver de acordo com as possibilidades…
PÁG. 36
Reflexões
2
Há escolas
que são gaiolas e há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam
a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle.
Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros
engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque
a essência dos pássaros é o voo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas
amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem
para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já
nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser
encorajado.
Rubem Alves
A Educação
é o principal fator estrutural e promotor das
sociedades modernas e desenvolvidas. Todos os
estudos e indicadores nacionais e internacionais revelam a existência de uma relação
direta e proporcional entre o grau de escolaridade, o nível de vida e a esperança de
vida. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), publicado anualmente pela ONU,
segundo o qual é efectuada a ponderação dos níveis de escolaridade, o PIB per capita
e a esperança de vida, comprova que existe uma relação direta e proporcional entre
estes vectores. Ou seja, os países com níveis de educação e formação mais elevados
dispõem de padrões de vida superiores e a idade média da população é mais alta.
A Educação é, pois, um “passaporte” para o futuro dos cidadãos, enquanto prolonga
o seu período de vida e, simultaneamente, constitui um “catalisador” para o
desenvolvimento da sociedade.
A promoção do sucesso educativo e o combate à exclusão e abandono escolar devem, pois, assumir particular
relevância no quadro das políticas públicas. Nesse sentido, a Câmara Municipal de Odivelas tem vindo a
desenvolver uma estratégia política com vista a contribuir para esse desidrato, nomeadamente, através do
projecto municipal “SEI! Odivelas”.
O “SEI! Odivelas” pretende prevenir situações e comportamentos de risco, combater a exclusão social, absentismo,
insucesso e abandono escolar precoce. Esta tarefa apenas poderá ser bem sucedida com o envolvimento e
participação dos agentes educativos (alunos, pais e professores) em torno de uma estratégia coerente e atuante
que deve ser assumida e partilhada por todos, onde a figura do mediador constitui o “pivot” desse triangulo
virtuoso. O sucesso que o “SEI! Odivelas” tem vindo a granjear de forma gradual e consolidada resulta da vontade,
determinação, disponibilidade e das aptidões dos alunos, das famílias e da comunidade educativa, que importa
enaltecer e incentivar. Este E-Book constitui mais um instrumento dinamizador e promotor do projecto e que
revela a dinâmica e pro-atividade daqueles que nele trabalham e o desenvolvem.
Os bons resultados obtidos através do “SEI! Odivelas” comprovam que estamos no rumo certo e que, sobretudo
em tempos de crise, devemos apostar no nosso maior capital colectivo: as pessoas.
A PRESIDENTE DA CÂMARA
Susana de Carvalho Amador
5
ENQUADRAMENTO
Implementado
nas Escolas Públicas do pré-escolar ao
3º ciclo do Concelho de Odivelas desde
2010, o Projeto para o Sucesso Educativo (SEI! Odivelas), conta com uma equipa de
técnicos das áreas das ciências sociais e humanas que se deparam diariamente com
histórias de vida de crianças, jovens e famílias que perante as adversidades do dia-adia vão-se manifestando em determinados comportamentos menos ajustados aquilo
que se entende por razoável nos estabelecimentos de ensino e que se revela muitas
vezes no desempenho escolar dos alunos.
Aos técnicos cabe-lhes muitas vezes e após um trabalho de continuidade, descortinar
o que está por detrás destes comportamentos e tentar transformar estas atitudes e
comportamentos em emoções geradoras de outros comportamentos mais aceitáveis,
conduzindo a melhores resultados escolares, mas também a jovens mais equilibrados
e felizes.
Estas são as histórias dos nossos alunos e suas famílias, das nossas escolas, mas
também dos próprios técnicos do SEI, pois como irão descobrir pela leitura das histórias,
elas não se resumem a factos, elas são também a soma de muitos desafios, tristezas,
alegrias e outras emoções que todos vamos sentido ao longo do nosso percurso
profissional mas também pessoal.
Por uma questão de confidencialidade todos os nomes dos alunos foram alterados
e parte da história foi ficcionada de forma a não serem identificados com facilidade
pelos vários intervenientes.
6
01.
A LUANA QUE NÃO DEIXAVAM CRESCER…
Nome: Luana
Idade: 13 anos
Agregado Familiar: mãe
Sinalização: instabilidade emocional
Ano escolar: 7º ano
Estava
sentado na sala a refletir sobre um caso do dia anterior, aproveitando
o tempo de uma sessão cancelada, quando a Luana bateu à porta.
Quando a vi, deparei-me com uma menina de 13 anos, frágil, esguia,
de cabelo curtinho e olhos de um azul brilhante entristecido. Calça de ganga, camisola castanha e
casaco de malha branco, é assim que me lembro dela. Ao peito trazia um pequeno crucifixo de prata,
mesmo por fora da camisola, como se de um aviso se tratasse.
Era a primeira vez que vinha ter comigo e a ficha de sinalização pouco dizia para além de que estava
com dificuldades a diversas disciplinas, 6 negativas ao todo. A Diretora de Turma, referia ainda de que
se tratava de uma jovem meiga e emocionalmente instável, provavelmente com “problemas familiares
e com más companhias”, “um pouco respondona” referia a professora.
Foram várias as sessões até que a Luana me olhasse nos olhos, mas em todas elas, invariavelmente,
deixava cair umas lágrimas quando confrontada com a sua situação escolar. Referia ser boa a
Matemática e Educação física, mas fraca a História, Geografia, Inglês e em outras tantas disciplinas.
Com o tempo e o ganho de confiança, lá foi confessando que não gostava da professora de Inglês,
que a de História era uma “velha chata” e que tinha um fraquinho pelo professor de Educação Física,
na verdade ela e quase todas as miúdas da turma.
7
Não lhe detetei nenhum problema cognitivo, simplesmente alguma falta de atenção, pouco estudo e
organização. Nada que não se resolvesse em meia dúzia de sessões. Mas foi quando abordámos em
conversa a “vida lá de casa” que a coisa descambou. Uma choradeira tal que gastou o típico pacote de
lenços de papel que, por defeito profissional, os psicólogos costumam manter em cima da mesa.
Mediador – “Então Luana? O que se passa? Já sei que vives com a tua mãe e tens uma irmã mais
velha que já não vive convosco. E o teu pai?”;
Luana – “O meu pai faleceu há dois anos… morreu com cancro.”
Não é que a Diretora de Turma tinha razão? Tirando a parte das “más companhias”, aos poucos o
problema revelara-se emocional e familiar. O pai da Luana morrera há pouco tempo e o luto não
estava a ser fácil para a adolescente, pensei eu. Mas, na verdade, não era bem a Luana que precisava
de fazer o luto… Convoquei a mãe, convencido que havia descoberto a razão de tanta “desmotivação
académica”.
A mãe era uma mulher com pouco menos de 50 anos. Não lhe reconheci na cara os traços da Luana,
mas foi a roupa que a denunciou – o mesmo estilo de roupa, clássica, conservadora e o pequeno
crucifixo de prata ao peito, para compor o quadro. E o irritante casaquinho de malha…
Foram necessárias apenas um par de sessões com a mãe para perceber que esta se encontrava
deprimida e que o luto da morte do marido estava longe de ser feito. A relação com a filha mais velha
era extraordinariamente conflituosa, desde a morte do marido, o que acabou por conduzir à saída
prematura de casa da jovem, ainda estudante universitária. Algo que perturbara consideravelmente a
Luana e a mãe.
Mãe – “Dr., acho que as discussões que tive com a minha filha mais velha (Raquel) afetaram um
8
pouco a Luana. Algumas foram bastante acesas e não me orgulho disso, mas a rapariga tira-me do
sério…”;
Mediador – “De que forma é que acha que essas discussões afetaram a Luana?”
Mãe – “Não sei, mas a morte do meu marido e a saída da Raquel de casa fizeram que deixasse de
sorrir (choro). Eu agarrei-me muito à minha filha, é tudo o que restou, compreende?”
Mediador – “Não deve ter sido nada fácil para si. Já compreendeu que está deprimida e necessita
de um acompanhamento especializado. Mas diga-me, agarrou-se muito à Luana, isso significa
exatamente o quê?”
Mãe – “Protejo-a muito, só quero o melhor para ela. Não a deixo sair e andar com qualquer amiga. E
agora meteu na cabeça que quer jogar voleibol na escola e seguir um curso de desporto! Já viu?! Que
raio de futuro pode ela ter assim? Mas há uma coisa…”;
Mediador – “Sobre a questão do curso havemos de falar os três em conjunto, pode ser? Que coisa é
essa de que fala?”
Mãe – “Desde que o pai morreu que a Luana dorme comigo na mesma cama. Ela no início não se
importava, mas agora fica amuada por ter de ir dormir comigo. Mas eu não consigo Dr., sinto-me muito
sozinha (choro), compreende?”
Era agora evidente que a Luana vivia asfixiada pela mãe que não a deixava crescer. Como se isso não
fosse o suficiente, a Luana servia de “bengala emocional” para a mãe, dormindo com ela, vestindo-se
como ela, com as amizades escolhidas e controladas pela mãe, assim como tinha pouca ou nenhuma
autonomia nas escolhas académicas.
10
Muito havia para trabalhar. Em primeiro lugar combinámos que a Luana passaria a dormir sozinha,
no seu próprio quarto e cama… intransigentemente! Em segundo lugar, que a mãe iria procurar ajuda
profissional, junto do seu médico de família. Combinei com a Luana que, se ela começasse a estudar,
organizar-se, concentrar-se nas aulas, tentaria convencer a mãe a deixá-la jogar voleibol na escola e
prometi-lhe que, concluído o 9.º ano, voltaríamos a falar, juntamente com a mãe, sobre a possibilidade
de seguir desporto.
Tivemos algumas sessões conjuntas (com a presença das duas) para conversarmos sobre diversos
assuntos – a morte do pai, as discussões e saída de casa da irmã, etc. Instalou-se um “clima de paz”
e, no 2.º período a Luana teve apenas 3 negativas, aliás, acabou por passar o ano com 2 negativas
apenas, beneficiando de alguma compreensão e carinho que gerava nos professores.
A mãe manteve o acompanhamento psicológico, foi adequadamente medicada e aprendeu a viver
com a “dor”. A Raquel não voltou para casa, mas a relação melhorou, sendo que passaram a falar-se
diariamente por telefone.
Quanto à Luana, bom, quanto à Luana, cresceu, libertou-se daquela imagem e tornou-se uma jovem
bonita, alta, de sorriso na cara e com uns olhos azuis enormes, do tamanho do seu futuro. É certo que
não se tornou uma aluna brilhante, mas a última vez que a vi já estava no 10.º ano, antes de mudar
de escola. Na realidade, a última vez que a vi foi com um rapazote, no canto da escola… mas isso é
outra história.
11
AFINAL A SITUAÇÃO É OUTRA….
02.
Nome: Francisco
Idade: 9 anos
Agregado Familiar: mãe
Sinalização: défice de atenção e concentração
Ano escolar: 3º ano
O Francisco
foi sinalizado a um dos Gabinetes de Apoio
Psicológico no início do presente ano letivo,
pela professora titular. Frequenta o 3º ano
de escolaridade, vindo transferido de outra escola do Concelho de Odivelas. As queixas da professora
prenderam-se com o fato do Francisco se apresentar como uma criança muito mexida, que não parava
de falar, impulsivo, segundo ela com um défice de atenção e concentração muito acentuado.
De acordo com informações recolhidas na entrevista com a mãe, chegou-se à conclusão que o Francisco
foi diagnosticado com uma Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção. Deve tomar medicação
diariamente, uma vez que não consegue controlar a sua agitação motora nem o seu défice de atenção
e concentração (que é bastante acentuado). No entanto, segundo informações prestadas pela mãe, a
mesma não tem condições financeiras para comprar a medicação ao filho.
O Francisco é filho único de um segundo relacionamento da mãe, tem uma irmã mais velha da parte
da mãe que, com 12 anos, decidiu ir viver com o pai. Esta situação aconteceu há 2 anos. Segundo
relatos da mãe, a filha acusa-a de negligência, dificuldades económicas, e maus tratos físicos. A mãe
presentemente vive com outro companheiro, a quem o Francisco trata por padrasto. Segundo a mãe,
na altura em que a filha saiu de casa terá feito uma queixa à Comissão de Proteção de Crianças e
Jovens por considerar que o seu irmão era vítima de maus tratos.
13
O Francisco em contexto individual, apresenta-se como uma criança mexida, incapaz de se concentrar
numa só atividade. Revela-se como muito carente, procurando constantemente a aprovação, o afeto e
o toque do outro. Sempre que se cruza no corredor, intervalo ou qualquer outro local da escola com a
técnica do GAP pede-lhe para ir trabalhar com ela, sabendo que num contexto mais individual terá mais
atenção, e poderá apesar de uma forma desorganizada falar dos seus sentimentos mais íntimos.
É notório que a ausência de medicação prejudica o aproveitamento e organização do pensamento do
Francisco, como também a dinâmica da sala de aula. Os resultados que o Francisco apresenta são
muito inferiores às suas verdadeiras capacidades.
Frequentemente o GAP trabalha estratégias com a professora titular de forma a conseguir aumentar
os momentos de atenção e concentração do Francisco mas as mesmas tornam-se falíveis após pouco
tempo.
É importante referir que a mãe do Francisco não entregou o relatório com o diagnóstico do Francisco
à professora. O mesmo não constava no processo do Francisco uma vez que ela tinha ido com o
filho ao hospital, onde é funcionária de limpeza, no final do ano letivo anterior. Quando o filho entrou
para a atual escola não tinha ainda tido tempo, ou considerado importante revelar esta informação à
professora.
À medida que o GAP vai tentando perceber melhor este caso, por considerar algumas questões
preocupantes verifica que o Francisco beneficia do escalão A, sendo que toma o pequeno-almoço e o
almoço na escola, tendo apenas que trazer o lanche da manhã de casa. No entanto, até nisso a mãe
se revela incapaz de fazer, apesar de já ter sido alertada para a situação com alguma frequência, pelo
que o GAP vem a perceber, não só pela professora e funcionárias, como depois pela técnica do GAP
via telefone. O Francisco acaba por ser o único aluno que diariamente não tem lanche da manhã. É
frequente andar a pedir comida aos colegas ou aos adultos da escola.
Segundo a professora, que sempre suspeitou que haveria qualquer coisa com este aluno apesar de
14
nunca ter tido acesso a um relatório, é frequente o Francisco ter falta de material, não ir às visitas de
estudo, nem mesmo as pedestres ou frequentar outras atividades propostas pela escola. É importante
acrescentar que muitas vezes estas atividades são-lhe proibidas pela mãe como punição.
No que diz respeito à higiene, é notória uma negligência diária. O Francisco cheira mal, tem as unhas
sujas, cabelo comprido durante longos períodos de tempo e sujo, usa calças de pijama por baixo
das calças, e a roupa nem sempre é adequada ao clima. Os amigos poem-no de parte com alguma
frequência devido às questões acima referidas.
A Encarregada de Educação revela-se incapaz de cumprir com os pedidos que lhe são solicitados
por parte da escola no que diz respeito à alimentação, higiene, medicação, material, comportamento
do filho e visitas de estudo. Sempre que chamada à escola a mãe apresenta um discurso confuso.
Existem claramente enumeras dificuldades económicas no seio familiar, negligência e perturbação
emocional.
No final do mês de novembro o Francisco chegou à escola com nódoas negras na testa, um arranhão
na bochecha do lado esquerdo, duas marcas na parte interior das orelhas (parecia claramente que
alguém lhe tinha pegado pelas orelhas) e ainda marcas nas mãos.
A Mãe dirigiu-se à escola explicando as marcar visíveis com uma queda da cama. Não satisfeitas com
esta situação, a escola e o GAP entraram em contato com a CPCJ a dar conhecimento da situação.
Pelo fato da escola, em articulação com o GAP, considerar que já tinha esgotado todos os meios ao
seu alcance, enquanto instituição de primeira linha, decidiu solicitar a colaboração da CPCJ, a título de
urgência para esta situação, uma vez que se considerou tratar de um menor em perigo.
15
03.
AS VEZES QUE ME MAGOASTE MÃE
Nome: Carla
Idade: 13 anos
Agregado familiar: pai, madrasta e irmã
Motivo de Sinalização: défice de atenção em sala de aula
Ano de Escolaridade: 8º ano
Quando
a Carla me bateu à porta pela primeira vez fiquei surpreendida
pela atitude da jovem, apesar dos seus tenros 13 anos teve
uma conversa comigo como se de uma mulher feita se
tratasse e perguntei-me a mim própria o que poderia fazer por ela, já que a Carla sabia muito bem o
que queria da escola, o que esperar da sua família (neste caso do pai e da irmã) e as suas ambições
enquanto estudante.
A verdade é que as suas expetativas e a sua atitude não condiziam com os fracos resultados escolares
que estava a apresentar. A Diretora de Turma tinha-me pedido que eu sondasse a jovem porque
ultimamente a Carla adormecia nas aulas durante o período da tarde e como é óbvio não apanhava
nada nas aulas…
Após algumas sessões para a conhecer melhor e para que ela confiasse na pessoa que estava ali à
sua frente a Carla apareceu-me no Gabinete num dia sem eu contar e naquele dia “despejou” uma
série de acontecimentos que iam para além da sua convivência familiar atual.
Embora a Carla vivesse a maior parte do tempo com o pai, a madrasta e a irmã, havia noites e finsde-semana que ia dormir a casa da mãe. Nas noites que antecediam e precediam as visitas à mãe,
a jovem dormia mal, muito mal “ao todo eu durmo 2, 3 horas…dou voltas e voltas e não consigo
16
adormecer”. Segundo a jovem há 3 anos que estas insónias persistiam e depois ainda havia outra
questão que a Carla omitiu mas que o pai desvendou numa reunião tida naqueles dias: a Carla fazia
chichi na cama quase todas as noites.
A origem da sonolência nas aulas estava ali explicada, sendo que desde logo pedi à Diretora de Turma
para que transmitisse aos outros professores que fossem um pouco tolerantes face ao comportamento
da Carla, visto que não era falta de interesse, era mesmo falta de horas de sono, enquanto eu tentaria
modificar aquele comportamento.
Na sessão seguinte após trocar algumas impressões com a equipa SEI sobre aquela jovem, deilhe algumas dicas para dormir melhor “Carla, se acordares durante a noite ou não fores capaz de
adormecer bebes um copo de leite morno, escondes o relógio e se ainda assim não adormeceres vais
escrever um diário com tudo de bom e de mau que te aconteceu/acontece”.
Nas sessões seguintes a jovem foi-me contanto o medo que tinha de voltar a viver com a mãe (porque
a regulação de poder parental ainda estava por resolver), pois quando estava com a mãe, havia noites
em que a mãe bebia muito, que chegava tarde a casa e que ia verificar se a jovem tinha feito todas as
tarefas domésticas previamente fixadas numa lista no frigorífico e que gritava e puxava-lhe os cabelos
até ao chão se algo não estava como a mãe queria.
As sessões com a Carla tornaram-se do ponto de vista emocional muito intensas, o que quer dizer que
cada hora que estava com ela mais se aprofundava a origem do problema. A certa altura pedi-lhe que
escrevesse uma carta dirigida à mãe e que a guardasse para si intitulada “As vezes que me magoaste
mãe”. Pedi-lhe que o fizesse um dia se tivesse vontade.
A Carla apareceu-me na sessão seguinte com a carta e quis-me ler a sua carta dirigida à mãe e foi com
tanta emoção que o fez. Com uma força que não sei de onde veio, amparei-a, segurei-lhe as mãos,
afaguei-a e enchi-a de mimos. A leitura da carta serviu para se libertar porque até ali era incapaz de
17
chorar e naquele dia chorou e chorou muito.
Só percebi o alcance do que tinha conseguido quando a Carla me disse que nunca conseguia chorar,
que quando estava a sofrer muito se trancava no quarto e se cortava para aliviar o sofrimento em sítios
que não eram visíveis para as outras pessoas.
Uma situação que aparentemente não era nada, podia ser uma miúda a desafiar os seus professores
que diziam entre dentes “adormece porque os pais devem-na deixar ver televisão até às tantas”, afinal
era uma situação tão diferente.
Com o acordo da Carla e na sua presença chamei o pai que sempre se tinha mostrado disponível e era
a âncora da filha e contámos-lhe tudo.
Acordámos que eu faria um relatório dirigido ao Tribunal dando conta dos fatos relatados, o sofrimento
a que tinha sido exposta pela mãe na infância e que continuava a ser exposta agora na adolescência
e que era necessário suprimir.
Encaminhada para o serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, a jovem continuou a “visitarme” e foi com muita satisfação que as nossas conversas começaram a ser sobre a adolescente Carla,
sobre os seus namoricos, sobre as brigas com as suas amigas e sobre as suas notas que passaram
de 6 negativas no 1º período, para 1 negativa no último período.
O Tribunal confiou a regulação de poder parental ao pai e retirou a medida relativa aos fins-desemana na casa materna (ainda que temporariamente) tendo solicitado uma avaliação psiquiátrica
da progenitora.
A Carla desde então chora.
18
CRESCER SOZINHO
COM JOGOS DE ZOMBIES E DE MATAR
04.
Nome: António
Idade: 6 anos
Agregado Familiar: mãe e duas irmãs
Sinalização: comportamentos de recusa e agressividade
Ano escolar: 1º ano
O António
tem 6 anos de idade e está no primeiro ano de
escolaridade, é o filho mais novo de uma fratria de
3 irmãos, onde ele é o único elemento masculino. A
mãe é cozinheira e trabalha nas horas em que o António fica em casa sob supervisão das duas irmãs,
uma adolescente estudante e outra jovem adulta, que já trabalha.
A ausência de uma figura efetiva de autoridade na vida do António é evidente neste agregado e
reflete-se no que o António me disse na primeira sessão: “As minhas irmãs deixam-me fazer tudo. Fico
acordado a jogar até a mãe chegar. Ela não sabe. Depois deito-me assim que ela chega e finjo que
estou a dormir há muito tempo (risos) ”.
Mas vamos começar pelo princípio. Na sala de aula começou a ter comportamentos de recusa sempre
que era contrariado pela professora atirando-se para o chão e gritando. Com os colegas e as assistentes
operacionais tornou-se cada vez mais agressivo de uma forma muito grave para um menino desta
idade. Os comportamentos ocorreram em escalada e a cada semana o que me contavam era cada
vez pior. Quando o António passava nos corredores, no intervalo, ouvia-se um burburinho: “O que é
que ele irá fazer a seguir? O que é que falta?”. E nada parecia parar o António…
19
Como resultado das suas últimas agressões na escola, foi efetuada uma queixa à polícia por uma
assistente operacional. A mãe começou finalmente a perceber a gravidade da situação e dizia-nos
a chorar que o filho não era mau e não queria que viesse a tomar medicação. Explicámos que a
medicação não é nem um milagre nem um monstro. A maior parte das vezes ajuda a controlar os
comportamentos e só queremos que o António revele o que de melhor tem, e não o pior.
Só após a quarta tentativa consegui que a mãe viesse à escola. A sua vinda passou a ser então mais
regular. Numa das sessões a mãe diz-me: “Podemos falar só do António? Não gosto muito de falar da
minha vida particular”.
Expliquei-lhe que entendia que custava revelar temas que lhe eram sensíveis, mas disse-lhe também
que os filhos são o resultado de uma família, com as suas características, defeitos e qualidades e que
precisava muito de conhecer a dinâmica desta família para poder compreender o que se estava a
passar com o António.
“Mas o meu filho não é mau, garanto-lhe!”. Eu sei que não é, mas é quase sempre o resultado daquilo
que nós permitimos que ele seja, tentei explicar.
Aos poucos, a mãe foi fazendo revelações, que lhe custaram mas que ajudaram a compreender a teia
de relações desta família, de duas jovens adultas já autónomas e de um menino que aparece muito
depois e a quem era mais fácil fazer sempre as vontades do que contrariar. De um menino que não
vê o pai. De um menino que acaba por ser educado … a ver jogos de computador “de zombies e de
matar”.
Tinha de agir e rapidamente. Elaborei uma declaração relatando os últimos acontecimentos na escola
e a gravidade dos mesmos: agressão grave a assistente operacional, agressão a colegas, desafio
permanente da autoridade, comportamentos de risco (subida a um armário da escola com queda;
subidas ao telhado da escola).
A declaração tinha como propósito marcar uma consulta de pedopsiquiatria de urgência que a mãe
pudesse levar a uma instituição hospitalar, como aliás já tinha sido proposto pelo médico que viu o
20
António quando este caiu do armário e que a mãe na altura recusou.
O António foi finalmente visto por uma equipa de pedopsiquiatria e já está marcada a consulta de
seguimento. Está medicado e a mãe compreende a importância de controlar alguns comportamentos,
tal como deve continuar a controlar o seu comportamento em casa. Deixou de poder jogar no
computador “jogos de matar e de zombies” e de ver televisão depois do jantar. As irmãs prometeram
estar mais atentas ao irmão e agora o António tem pequenas tarefas de auxílio às irmãs que, segundo
dizem, o António gosta de realizar. A mãe está a ponderar deixar o turno da noite para poder estar
mais presente na vida do filho.
O caso do António está longe de estar terminado, mas quando conseguimos ter a família do nosso
lado, temos meio caminho andado para podermos prosseguir com mais segurança e sustentação.
A mãe percebeu finalmente que os comportamentos desadequados do filho, muitas vezes por estar a
crescer sozinho com as regras dos jogos que ele mais gosta precisam ser diminuídos, para podermos
encontrar um António que goste de jogos (sem zombies e sem matar).
21
ESTOU DE COSTAS VOLTADAS
PARA O MUNDO!
05.
Nome: Tânia
Idade: 13 anos
Agregado familiar: Pai, Mãe e irmão mais velho
Sinalização: falta de assiduidade
Ano escolar: 7º ano de escolaridade
“Estou
de costas voltadas para o Mundo” – disse a Tânia e foi com estas
palavras que se deu a conhecer.
Sentia-se não só de costas voltadas para o mundo, como também para ela própria.
Tinha ficado claro que não seria fácil dar-se a conhecer!
Estava zangada com o mundo: com os pais, com a escola, com os professores com os outros! Não se
sentia bem no seu mundo interno.
O mundo desmoronou-se a partir do dia em que a mãe lhe contou que os pais não eram seus pais e
que ela tinha sido adotada logo à nascença. A confiança que tinha depositado na família que julgara
ser sua, tinha sido severamente abalada. Como iria agora olhar para eles? Quando eles para si já não
eram os mesmos! Ela própria também já não era a mesma! Tudo ficou diferente a partir daquele dia!
Senti que aproximar-me da Tânia era como pisar um terreno tão frágil que a qualquer momento poderia
ruir.
23
Como construir uma ponte entre nós? As palavras teriam que ser usadas de forma refletida e a confiança
teria que ser a ponte da nossa relação.
Nos primeiros dias, Tânia fechou-se no quarto e não queria comunicar com ninguém. O seu silêncio
revelava sofrimento e a dificuldade em digerir as suas emoções, em pôr por palavras os seus sentimentos.
Afinal os seus pais biológicos não a desejaram e estavam prontos para a entregarem numa instituição,
este era o pensamento associado ao sentimento de rejeição. A dureza dessas palavras ecoava na
mente e feriam-na profundamente! Tânia sentia a necessidade de transformar aquelas palavras, de
dar dentro de si outro significado, mas não sabia como fazer!
Foi preciso aproximar-me da Tânia para poder trabalhar com ela aos vários níveis, quer com ela própria
para aderir ao encaminhamento à consulta de especialidade, quer com os pais e professores.
O trabalho realizado com os pais adotivos teve por base o consentimento da Tânia e consistiu na
transmissão da importância de restabelecer a confiança e a segurança na relação entre ela e a família,
em especial quando estes a faziam sentir-se culpada por não se sentir reconhecida com a generosidade
que eles manifestaram para com ela. Talvez não soubessem lidar com a fúria e desespero de uma
rapariga, na força da adolescência, depois de receber tal noticia e esperavam dela sobretudo palavras
de gratidão para acalmar a culpabilidade que eles próprios sentiam ao manterem tal segredo durante
os primeiros 13 anos da vida de Tânia.
Para além do trabalho com os pais adotivos, foi necessário trabalhar também com os professores, em
especial com aqueles cujo modo de agir fazia lembrar Tânia da forma como a mensagem lhe tinha
sido transmitida naquele dia.
Tânia começou a faltar às aulas, pois não estava capaz de ouvir os professores, os pensamentos
levavam-na sempre para outro lugar. As palavras transmitidas pela mãe naquele dia, mal penetravam
na sua mente! Naquele momento não estava disponível para aprender, ainda para mais quando dela
24
só esperavam silêncio e aceitação.
Era Tânia obrigada a engolir a sua revolta!? Não, teria que trabalhar essas emoções e iniciar
acompanhamento psicoterapêutico o mais depressa possível. Foi necessário encaminhá-la para uma
consulta de especialidade, mas seria necessário antes trabalhar a sua adesão à mesma.
À medida que lhe falo, escolho as palavras, visto-as para lhes dar corpo e cuidadosamente vamos
construindo entre nós a confiança. Após alguns encontros e desencontros sinto que o olhar da Tânia se
mostra menos carregado, os dentes menos cerrados e de vez em quando, já se atreve a olhar-me.
Estaria a pouco e pouco a abrir-se para os outros, mas também para si própria? Não é fácil para
uma jovem adolescente que procura construir a sua identidade, sentir que de repente se alteraram os
modelos: materno e paterno que julgara serem os seus. Afinal os pais biológicos viraram-lhe as costas
e estes que até agora pensava serem os seus, viraram-lhe as costas também ao não compreenderem
as suas reações. Porque mantiveram em segredo, algo que era tão vital para ela? Esta era a questão
que mais a atormentava.
A caminhada com a Tânia inicialmente não foi de mãos dadas, mas ao fim de algum tempo, permitiuse voltar a confiar nos outros, a deixar-se confortar, consolar e a poder transformar a sua raiva. Afinal
de contas de costas voltadas não se vê o futuro!
25
06.
NA BALANÇA A RELIGIÃO E O AMOR
Nome: Maria
Idade: 17 anos
Agregado Familiar: pai, mãe e 3 irmãs
Sinalização: indisciplina, oposição e falta de estudo
Ano escolar: 9º ano
Após
primeira entrevista com a aluna e a família a mediadora entendeu que
existiam problemas na relação mãe e pai. A filha sentia uma afinidade com
o pai que tinha saído de casa e a jovem tinha saudades e culpabilizava a
mãe.
No atendimento a jovem sempre mostrou dificuldade em falar do que sentia e sempre muito
desconfiada.
Mediadora: Maria então porque tens faltas disciplinares?
Maria: os professores têm a mania e eu não tenho paciência.
Mediadora: e o que é isso de ter a mania?
Maria: são injustos!
Mediadora: e o que é para ti ser injusto?
Maria: os outros não se portam bem e não levam faltas e eu levo, não gostam de mim!
Mediadora: e o que é para ti portar bem?
Maria: fazer o que os professores dizem.
Mediadora: queres dizer cumprir com as regras de funcionamento.
Maria: sim.
Mediadora: e tens esse comportamento assim em todas as disciplinas?
26
Maria: não, inglês e história é pior, eu não percebo nada…
Mediadora: ah! Estás-me a dizer que não entendes a matéria. Maria, excecionalmente existem
pessoas que são boas a tudo, a maioria de nós tem mais facilidade em umas áreas do que em outras,
e como não gostamos de falhar acabamos por fazer menos nas que temos dificuldade. Mas por isso
mesmo se queres terminar o 9.º ano, então temos que pedir ajuda nas áreas em que és menos forte.
Combinamos em estudarmos inicialmente juntas para história e vou falar com a Diretora de Turma
para teres apoio a inglês, concordas?
Maria: sim.
Em conselho de turma a aluna foi indicada para apoio a inglês e foi trabalhado os métodos de estudo
com a mediadora com a disciplina de história.
As participações disciplinares melhoraram mas a aluna continuava fechada com raiva da mãe e muitas
saudades do pai. Às vezes durante o atendimento a mediadora telefonava para o pai da aluna, para
que esta falasse com ele e nesses momentos a Maria chorava, chorava, chorava.
A mediadora chamou o pai e a mãe em separado para perceber melhor a situação.
O pai muçulmano tinha uma nova esposa, a mãe nunca aceitou esta situação e resolveu separar-se, o
pai não queria separar-se e tinham muitos conflitos. Até que o pai acabou por sair de casa.
Maria chorava agarrada a barriga
Amigas: fala com a mediadora, ela é fixe…
Mediadora: então Maria o que se passa?….
Maria: nada, tenho muitas dores deve ser do período e ninguém na escola me dá um comprimido
para as dores…
Mediadora: pois Maria, de acordo com a legislação só se o encarregado de educação autorizar,
senão não te podem dar nada. O melhor seria irmos ao médico, eu ligo à mãe e peço autorização para
27
ir contigo, estou a notar que estás com muitas dores.
Maria: não vale a pena chatear a minha mãe ela está a trabalhar eu tomo um chá e fico melhor.
A Maria tomou um chá e foi para as aulas.
À noite a mediadora ligou à Maria para saber como se estava a sentir, a Maria disse que estava
melhor.
No dia seguinte a Maria desmaiou nas aulas a ambulância levou-a para o hospital, o pai e a mãe
foram ter ao hospital e o diagnóstico foi: aborto.
O pai bateu na Maria e expulsou-a de casa, a Maria ligou à mediadora muito triste e a sofrer porque
o pai não gostava mais dela.
A mediadora chamou o pai e após uma leitura do livro sagrado do Corão, a mediadora tentou pedir
que o pai aceitasse a filha em casa novamente. A mãe da jovem aceitou a jovem e o pai acabou por
perdoar, embora não morasse na mesma casa ele continuava a ser o PAI.
A aluna ainda assim terminou o 9.º ano com sucesso e inscreveu-se numa escola profissional em curso
profissional numa área social.
Atualmente a mediadora sabe que a aluna está a ter sucesso no curso, a relação com a mãe está bem
e o pai continua a ser o seu herói…ah, a aluna tem um namorado e o pai conhece…o pai trabalha
atualmente na área da saúde…
28
O CAMINHO DA MUDANÇA
07.
Nome: Filipa
Idade: 14
Agregado familiar: mãe, irmã e avó
Motivo de Sinalização: indisciplina
Ano de Escolaridade: 7º ano
O telefone
tocou a solicitar a presença da mediadora na sala
da diretora da escola.
A mediadora entrou na sala e em cima da mesa estava um processo muito robusto, com um grande
monte de folhas amarelas...as famosas participações disciplinares! Juntamente ao processo estavam
as medidas do Tribunal às quais a aluna estaria sujeita ao longo de 18 meses! Enfim, o prognóstico não
era bom. A aluna estava com muitas negativas, muitos problemas disciplinares, péssimo relacionamento
com os professores e uma grande revolta com mundo.
A pouco e pouco a aluna foi comparecendo por iniciativa própria às sessões... ao fim de 2 meses já
tinha subido os resultados escolares a algumas disciplinas, mas a mãe ficou desempregada porque a
avó teve um AVC e dependia totalmente de cuidados a tempo inteiro e o dinheiro para uma instituição
que prestasse esses cuidados era impossível! A impotência da aluna face às dificuldades da família
levaram-na à manifestação diária da sua revolta e as participações voltaram! Após conseguirmos
os apoios da segurança social e de banco alimentar para esta família a aluna voltou a acreditar que
afinal o mundo não estava contra ela e lentamente não só as notas melhoraram, como a sua atitude
transformou-se e esta chegou a ser convidada para a grande honra de ser conselheira da direção!
De 8 negativas conseguiu passar o ano com 1 negativa e 0 participações disciplinares nos últimos meses
29
escolares. Desenvolveu autoconfiança, credibilidade nos adultos e outros em geral, e passados 2 anos,
continuando assiduamente as suas sessões conquistou o 9º ano e eis que dá a novidade à mediadora
de que quer ser psicóloga e ajudar as pessoas a encontrar soluções para os seus problemas para que,
tal como ela, possam encontrar um rumo e um caminho que as realize!
Em 2013/2014 a aluna frequenta um curso profissional de área de intervenção social e convicta do seu
rumo profissional como futura psicóloga!
30
08.
O MENINO QUE NÃO
QUERIA APRENDER
Nome: João
Idade: 6 anos
Agregado Familiar: mãe
Sinalização: dificuldades de aprendizagem
Ano escolar: 2º ano
O João
é um menino que foi referenciado a um dos Gabinetes de Apoio
Psicológico por apresentar dificuldades de aprendizagem, no final
do ano letivo de 2012-2013, quando ainda frequentava o 1º ano.
Presentemente frequenta o 2º ano, no Concelho de Odivelas.
O João foi descrito pela sua professora do 1º ano como pouco produtivo, não revelando interesse por
nada nem ninguém. Segundo a mesma, o João não estabelecia relações com os seus pares, e parecia
viver “num mundo à parte”, “ficando largos minutos a olhar para o vazio”.
Após a primeira entrevista com a mãe, já quase no final do ano letivo, para além das dificuldades de
aprendizagem e de comportamento identificados no João, tornaram-se também evidentes problemas
emocionais graves, assim como patologia na dinâmica familiar, onde a negligência e o abuso
aconteciam com regularidade. O João é filho único, não foi uma criança desejada e muito menos
aceite pelo pai. A mãe sempre teve dificuldades em cuidar do João, fruto de uma depressão pós parto
grave. Quando o João entrou para o 1º ano o pai imigrou devido a dificuldades económicas. A mãe
está desempregada. As exigências da entrada para a escola, do filho, juntamente com a pressão de
ficar sozinha fizeram com que a mãe do João entrasse em desespero. A relação entre os dois, mãe e
31
filho, é diariamente um pesadelo. A mãe sente-se incapaz de lidar com todas as exigências a que é
obrigada.
Na escola as queixas de um menino que não quer aprender são constantes. Uma vez que o João não
faz nada é convidado ou “forçado ” a sentar-se numa das últimas mesas da sala de aula. Rapidamente,
nos dias em que não faz nada para chamar a atenção é esquecido basicamente todo o dia, e passa
todo o dia sem produzir literalmente nada de visível.
Apesar de se recusar a fazer qualquer registo escrito, oralmente o João consegue responder às
questões, nomeadamente quando está em contexto individual com a psicóloga. Cognitivamente, e
depois de avaliado pelo GAP, esta é uma criança que tem boas capacidades de aprendizagem.
O fim do ano avizinha-se e o João transita por força da lei para o 2º ano. Em reunião com a mãe é-lhe
pedido para ir ao médico de família, para que esta a possa encaminhar a ela e ao filho para consultas
de psicologia durante o período de férias. Foi feita a articulação por parte do GAP com a médica de
família que concordou.
No início do 2º ano o João mudou de professora e de encarregado de educação. Segundo informações
recolhidas, o João não teve acompanhamento, uma vez que a mãe se mostrou incapaz para o fazer.
Tendo em conta a incapacidade da mãe para acompanhar a vida escolar do seu filho, e tal como lhe
tinha sido proposto no final do ano transato o irmão (tio do João) assumiu no presente ano letivo o papel
de E.E.
Numa articulação muito estreita entre psicóloga, nova professora titular e tio, o João sente que este ano
vale a pena investir na escola. Foi criada uma relação de confiança e de exigência que leva aos poucos
a uma reorganização emocional do João. Progressivamente tem desbloqueado algumas das suas
dificuldades graves na estrutura do seu pensamento. O João passou a estar sentado num dos lugares
da frente. O seu trabalho é monitorizado regularmente, não só pela professora, como pela colega do
lado, que é uma das melhores alunas da turma e que funciona como sua tutora e ainda pela psicóloga
32
semanalmente.
Presentemente é notório um desejo imenso por agradar, a apatia, e o desinvestimento, foram
substituídos por “está bem” “já acabei”. O ar do João é mais saudável, não triste e deprimido como o
do ano passado.
Assim o João vai conquistando o seu terreno, já brinca com os outros, já tem amigos, e estes têm um
orgulho imenso em mostrar-me as conquistas que ele faz diariamente.
Têm sido trabalhadas estratégias entre a professora e a psicóloga de forma a garantir a sua motivação,
atenção e concentração. Grande parte das vezes a ligação e a relação que o João mantem com
as pessoas de referência diariamente tem sido o suficiente para manter os seus níveis de atenção
e concentração. Será importante referir que numa fase inicial, no ano transato, a mãe do João se
encontrava tão desesperada com o insucesso dele que via como única resposta a medicação.
A mãe está a ser acompanhada a nível psiquiátrico, psicológico e é monitorizada pelo irmão e cunhada.
Diariamente o João é acompanhado pelos tios, e aproximadamente de 3 em 3 semanas a professora,
tios e psicóloga reúnem-se para falarem dos progressos do aluno de forma a garantir o sucesso escolar
do mesmo.
O João consegue trabalhar como os outros, tem orgulho no que faz, já consegue ler, e escrever tem no
entanto um longo caminho pela frente, mas é bom saber que afinal o menino que não queria aprender
estava apenas adormecido.
33
09.
O MEU CÉREBRO JÁ NÃO FUNCIONA
Nome: João
Idade: 17 anos
Agregado Familiar: mãe e irmão e irmã
Sinalização: absentismo escolar
Ano escolar 8.º ano
João:
…o meu cérebro já não funciona!
Mediadora: porque é que dizes isso?
João: não consigo memorizar nada, não tenho paciência, não me apetece
ir às aulas, alem disso são todos umas crianças.
Mediadora: são todos umas crianças? hummmm, quantas vezes reprovaste e em que escola?
João: reprovei numa escola em Almada, depois os meus pais separaram-se e vim para Odivelas e
estou a repetir o 8.º pela terceira vez.
Mediadora: gostas de morar em Odivelas?
João: não, isto é tudo muito complicado.
Mediadora: não vais às aulas ok. Então onde estás no tempo das aulas?
João: por aí, com amigos!!!
Mediadora: amigos? e o que fazes?
João: nada de especial,
Mediadora: consomes bebida, fumas, ganzas...
João: sim, bebidas, cigarros e ganzas,
Mediadora: e a tua família o que diz?
João: a minha mãe sabe, e chateia-me a cabeça…
Mediadora: se consomes antes das aulas é normal que a noção de horários e responsabilidade não
se cumpra...
34
João: eu controlo, eu vou ser capaz eu quero terminar o 9.º ano e fazer um curso profissional.
A mediadora entrevistou várias vezes a mãe em conjunto definiram algumas estratégias para apoiar
o jovem.
Passado uns meses...
João: …eu estou maluco, tenho alucinações e oiço vozes e as vezes não sei o que faço e como chego
a casa…
Mediadora: João então não estás a conseguir controlar... aceitas ajuda?…
João: sim
Mediadora: Ok então vamos ao médico de família e vamos pedir consulta de psiquiatria.
A mediadora pediu à mãe para marcar consulta médica e no dia da consulta o João não dormiu em
casa e não apareceu. A mãe do João ligou à mediadora e a mesma acompanhou a mãe à consulta.
Depois de relatada a situação a médica de família marcou nova data para consulta com o João. A
mediadora falou com o João e este foi à consulta.
A médica encaminhou o João para consulta psiquiatria em hospital e acompanhamento no Centro de
Saúde de Odivelas em serviço de psicologia.
Após avaliação psiquiátrica o João foi medicado com um diagnóstico de comportamentos esquizoides
agravado pelo consumo de drogas e álcool. A psicóloga do Centro de Saúde encaminhou o jovem para
comunidade terapêutica para tratamento dos consumos e desenvolvimento de um projeto de vida.
Devido ao custo do internamento foi solicitado apoio económico à segurança social. Após 6 meses o
pedido foi diferido e o jovem foi internado em comunidade terapêutica. Decorridos 15 dias o jovem quis
regressar a casa e atualmente é acompanhado no hospital e medicado, simultaneamente inscreveuse no Centro de Emprego para formação profissional.
A mãe diz que o jovem já toma a medicação, dorme melhor e está mais empenhado em terminar o 9º
Ano.
35
10.
APRENDER A VIVER DE ACORDO
COM AS POSSIBILIDADES…
Nome: Andreia
Idade: 10
Agregado Familiar: mãe e irmã
Sinalização: resultados escolares
Ano de escolaridade: 5º Ano
Certa
manhã, a meio do 2º período, estava eu sentada na sala dos professores,
quando um diretor de turma do 5º ano me chamou em surdina. De imediato
percebi que algo se passava com um dos seus alunos. Foi então que me
pediu que o acompanhasse à sala de receção aos pais, uma vez que lá se encontrava uma mãe,
encarregada de educação de uma das suas alunas.
Sem me explicar o que se passava, entramos na pequena sala, gelada e lá estava a mãe da Andreia
Silva, acompanhada pela filha mais nova, que corria em volta da mesa. Antes de a mãe dizer alguma
coisa, o diretor de turma apressou-se em fazer as apresentações e explicar o motivo da minha
presença.
Em jeito de repetição, pelo diálogo que a mãe da Andreia ia referindo, compreendi que já tinha havido
um desabafo anterior, antes mesmo de eu entrar naquela sala. A mãe demonstrava um ar bastante
preocupado e angustiado, foi então que me olhou nos olhos e me contou a sua história. O marido, pai
da Andreia e da pequena irmã mais nova tinha fugido para o seu país de origem, no imenso continente
africano. Pela descrição da mãe foram várias as dívidas acumuladas, ao longo dos tempos em que
estiveram em Portugal e via-se agora sozinha, com o ordenado penhorado e duas crianças menores
a seu cargo.
36
Pediu-me ajuda em jeito de desespero, pois a Andreia era uma boa menina, nunca tinha chumbado
e feito o 1º ciclo com boas notas, no entanto esta situação do pai veio em tudo alterar a rotina familiar
daquela família. A mãe mencionou por diversas vezes que o seu ordenado se encontrava penhorado e
que teve de arranjar mais um emprego para ir pagando as dívidas que o seu marido lhe deixara, mas
também para conseguir alimentar as duas filhas.
Mencionou a preocupação com o comportamento da Andreia, pois tornara-se mais “refilona” e
“respondona” e com falta de reconhecimento de autoridade da mãe. Questionei a mãe no sentido
de tentar perceber se tinha conversado com a Andreia a explicar-lhe a situação. A mãe acenou que
sim, afirmando que não tinham dinheiro para pagar a ama da filha mais nova, nem para a maior das
alegrias das suas filhas: ir uma vez por mês ao MacDonald´s e ao cinema.
No decorrer daquela conversa falou ainda do aproveitamento da Andreia, que no 1º período tinha sido
bom, mas que, com toda esta situação a Andreia tinha tido uma grande quebra no seu aproveitamento
escolar, tendo tido negativa em quase todos os testes do 2º período.
Em jeito de término da conversa, tranquilizei a mãe, dando-lhe algumas palavras de conforto e que a
Andreia passaria a ser acompanhada pelo projeto Sei. A mãe ficou mais calma e pediu-me por tudo
que falasse com a filha.
O primeiro encontro que tive com a Andreia foi bastante gratificante, de pele escura e a cabeça repleta
de trancinhas, tinha um ar genuíno e uma voz muito calma, percebi de imediato que era uma menina
doce e meiga.
A Andreia tinha 10 anos e frequentava o 5º Ano, em tempos e com alguma tristeza segredou-me que
“eu andava na patinagem, mas a mãe agora já não tem dinheiro”.
Após algumas sessões individuais, a Andreia deixou de culpar a mãe e recuperou o seu rendimento
escolar. Elaboramos planos de estudo e definimos estratégias e metas para recuperar as notas dos
primeiros testes do 2º período. Não foi difícil trazer a Andreia à razão, percebi que o deixar de ir uma
vez por mês ao MacDonald´s, que ela e a irmã tanto gostavam ainda continuava a ser um dilema,
37
mas após várias conversas a Andreia foi percebendo que a mãe não tinha como satisfazer aquele seu
desejo.
A Andreia conseguiu recuperar algumas notas no final do 2º período, tendo apenas duas negativas, a
matemática e inglês. Dizia sempre que queria ir para a faculdade e que o seu sonho era ser cantora.
No decorrer do 3º período via a Andreia mais bem-disposta, confiante e entusiasmada, sempre
bastante cumpridora dos nossos planos de estudo, acabando por me confidenciar que se aproximava
o grande dia.
“Sabe professora está a chegar o dia da minha primeira comunhão”. (Professora, era assim que a
Andreia me chamava). Foi assim que no final do 3º período a Andreia me veio mostrar as fotografias
da sua primeira comunhão e que tinha passado de ano, apenas com uma negativa, a matemática.
Apesar da relação mediadora – aluna, a relação de amizade que se estabeleceu foi fulcral para o
sucesso desta aluna.
38
REFLEXÕES
Antes de finalizarmos deixamos-vos com algumas reflexões e testemunhos da nossa equipa perante
o trabalho no terreno, com alunos, famílias e comunidade educativa.
Esperamos que com este trabalho tenhamos conseguido transmitir que aquilo que nos move também
são as emoções.
São exemplos de
histórias de vida, vida como
todas as outras com um caminho,
Este trabalho é mais
um processo de aprendizagem e com
que um trabalho, não dá para ser
desafios constantes. Este trabalho de sucesso
um trabalho das 9.00h às 17.30h, ele mexe
escolar e bem-estar psicossocial é um trabalho
com vida humana, com pessoas onde todos os
essencialmente em rede. Numa escola sem rede
dias tentas dar o melhor de ti como ser humano.
não se consegue mudar comportamentos. Os
Um processo sofrido, com dores, frustrações e muitas
professores têm que ser nossos aliados
vezes sem saber por onde ir, querer desistir...acordar
assim como a família, só assim o
e querer fazer melhor, mas acima de tudo um trabalho
resultado poderá ser efetivo.
que nos ajuda a crescer e evoluir como seres humanos,
um desafio constante, um nunca saber como termina,
mas também alegrias e uma sensação de “ dever
cumprido”. Aqui neste concelho, nas nossas
escolas aprendemos também
a ser mais pessoa.
40
Em cada caso em
que os Gabinetes de Apoio
Psicológico (GAP) atuam, podem surgir
intervenções diferentes de acordo com as
possibilidades que nos são dadas. Por vezes não
temos o sucesso que desejaríamos. Temos e vamos
sempre ajustando a nossa intervenção de acordo
com as hipóteses e os problemas que vão surgindo.
Por vezes os alunos são sinalizados aos GAP por
uma determinada queixa, mas depois, com o
desenrolar do caso vêm ao de cima muitas
outras situações e complicações.
Trabalhar com
adolescentes é um desafio
constante, pois leva-nos a
confrontarmo-nos com as partes
adolescentes que existem dentro de
nós, a procurar compreendermos
outras perspetivas, a partir do olhar
do outro e só assim podemos
progredir.
Senão
por outros motivos,
pela compensação profissional
e emocional de presenciar e intervir
no processo de crescimento destes
jovens. É um honra poder lutar
e trabalhar por estes objetivos.
Enquanto
mediadora escolar deste projeto
posso assegurar que é impossível ficar
indiferente à história de vida pessoal, familiar
e escolar destes alunos. Contudo, a atenção a
alguns casos e iniciativas leva-me a ser otimista e
a reconhecer que há um manancial de experiências
positivas e de saberes de carácter pedagógico que
é possível divulgar e pôr em prática no sentido de
atender à especificidade destas crianças. Leva-me,
ainda, a pensar que, num plano mais geral, a
ação desenvolvida pelo projeto Sei contribui,
sem dúvida, para a construção de
um mundo melhor.
41
Projeto SEI! Odivelas
Rua Fernão Lopes
(Junto aos Paços do Concelho - Quinta da Memória)
2675-348 Odivelas
T. 219 320 359
Download

PDF - Câmara Municipal de Odivelas