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A idealização do objeto amado em um caso de paranoia e suas consequências para o
tratamento*
Tulíola Almeida de Souza Lima
Neste trabalho apresentamos o caso de Cláudia, mulher de quarenta e cinco anos que foi
encaminhada para nós, em um ambulatório de psiquiatria em Belo Horizonte, por um serviço de
psicologia ao qual ela havia procurado para começar uma terapia.
Quando começou o atendimento na psiquiatria, queixava-se de depressão e de ser vítima de uma
série de ações: telefonavam para sua casa sem parar, tentavam invadir sua casa, estragavam-lhe o
computador, falavam dela na rua, havia constatado que as pessoas a xingavam. Em relação aos
telefonemas, registrava todos os números, recuperados com o auxílio de um identificador de
chamadas, e tentava descobrir de onde lhe ligavam. Esta variedade a fez concluir que em
diversos cantos havia pessoas ligadas à esposa de um primo seu, que tinha contatos aqui para
importunar Cláudia, apesar de viverem em outro país. Tais números compunham um total de
duzentos e cinquenta, quantidade que ela associava com o problema “de pressão” que estava
vivendo. Já na primeira consulta ela afirmou: “eles querem me arrombar” – ao que, quando
questionada, não sabia dizer o que isto significava exatamente, mas lhe era evidente que queriam
“alguma coisa com ela”. Notamos já nesse momento como essas palavras tinham um peso
particular em suas concepções.
A perseguição começou depois que telefonou para este primo, no exterior, para uma conversa
fraterna, mas que provocou um ciúme em sua mulher, fazendo-a voltar-se contra Cláudia. Esta,
por sua vez, destacava sempre como não tinha nenhuma intenção amorosa naquele momento,
mas era perseguida por causa da má índole “daquela mulher”, como ela mesma se referia. Como
estava delirante, e talvez houvesse alucinado - o que não pudemos saber com certeza apresentava a fala acelerada e sem conseguir cumprir suas atividades; por isso optamos por
medicar-lhe com uma dosagem de cinco mg diários de Trifluoperazina, marcando um retorno ao
ambulatório após uma semana.
Foram necessários vários dias para que enfim ela decidisse usar a medicação, pelo que
argumentávamos que ajudaria a sentir-se mais tranqüila, enquanto passava por aqueles
momentos. O delírio foi se desenvolvendo cada vez mais organizado, sempre com a mesma
figura escolhida como a perseguidora. O que mudou, ao longo dos atendimentos, foi o
sentimento em relação ao primo. Depois de ter recebido mensagens, virtualmente, percebeu
como ele a tratava, as palavras que usava, de modo que para ela ficou evidente que ele gostava
mesmo dela. Aos poucos, portanto, foi desenvolvendo um amor – notadamente para responder a
uma iniciativa dele – do qual falava sempre, até assumir, tempos depois, que gostava dele e
deveria separar-se do marido, e esperar o dia em que tal primo voltaria ao Brasil para finalmente
ficar com ela. A temática persecutória foi cedendo cada vez mais espaço para a erotomaníaca.
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O tratamento seguiu-se por quase dois anos, com a mesma psicóloga de referência no
ambulatório. Como a interpretação delirante estabilizou-se, apesar de o delírio nunca extinguirse, a medicação foi mantida com a pequena dose diária de dois mg. O espaço do atendimento era
utilizado para essa elaboração delirante, para que se fizessem os planos do relacionamento que
um dia se concretizaria, do que ela tinha certeza pelos sinais – anônimos, mas que não a
enganavam quanto à sua origem – enviados pelo amado.
Quando o psicótico, após o surto, encontra-se em uma atividade delirante em ascensão, os sinais
que recebe desta realidade alterada representam um risco para que consiga sustentar sua
identidade. Por isso podemos conceber que idealização de um objeto que pertence ao delírio
acaba tendo uma função de fixar um certo modo de concepção do mundo, justamente para que o
sujeito não se perca no caos delirante. É da constituição psicótica, portanto, que uma dada figura
seja imantada de um investimento intenso, o que não é colocado em dúvida: o psicótico sabe o
que determinada pessoa quer dele. Por isso, se ele estiver a uma distância que o permita se
orientar, em relação a este ponto de investimento mesmo, o efeito é um apaziguamento do
delírio.
Desde o século XIX temos estabelecidos os parâmetros para reconhecer como a erotomania, tipo
de amor característico da paranoia, se manifesta. O caso de Cláudia demonstra como se dá esta
certeza de ser amada por alguém, como Benjamim Ball havia definido em 1883 (Berrios e
Kennedy, 2009). Também o aspecto da incurabilidade parece se aplicar ao caso, sendo por isso a
função do tratamento auxiliar à paciente como conviver com este sentimento. Do mesmo modo,
o seu sentimento pelo primo se assemelha à “loucura casta, verdadeiro tipo da erotomania”, que
inspira “sentimentos puros, pensamentos elevados, um culto exaltado por aquele que é seu
objeto” (Ball, 1888, apud Berlinck et Rios, p.161).
O aspecto de uma paixão platônica foi ressaltado também por Sollier (1893) e Krafft-Ebing
(1897). Importa para o sujeito mais a função imaginária que o objeto do delírio adquire do que
uma proximidade concreta, no sentido de que suas idéias se organizam justamente a partir desta
função idealizada.
Se nosso papel se manteve enquanto um interlocutor para o que Cláudia passara a viver,
enquanto mantínhamos o mínimo de intervenção – oferecendo a escuta e observando os efeitos
medicamentosos – podemos nos questionar, no entanto, como Cláudia alcançou um ponto de
elaboração que a manteve estável, apesar de tudo, que a permitiu depois de um tempo voltar às
atividades e suportar o jeito das pessoas com quem encontrava e que explicitavam ter relação
com a perseguidora. Qual o estatuto deste objeto - amado porque primeiramente mostrou-se
amante – para a paciente? Talvez o fato de ela ter viajado, certa ocasião, para outro país do
exterior, onde conheceu homens que “ficaram loucos por ela” - quando um, particularmente,
ficou procurando-lhe, chamando-lhe para viver com ele sem retornar ao Brasil - represente um
modo de relacionamento que a sensibiliza, justamente pela circunstância da barreira física e
cultural. A questão do idioma, por exemplo, sempre a intrigou: embora tendo viajado para o
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exterior, aprendeu só depois um idioma – o espanhol - que não era o oficial do país para onde
fora; e passou a receber, em espanhol, mensagens amorosas de seu primo. Juntava-se a este
contato pela outra língua o seu interesse no modo “como as pessoas falam”, o que sempre
observava, mesmo nas conversas virtuais.
Se na psicopatologia clássica os casos de erotomania elegiam figuras notavelmente ilustres como descrito por Sollier, (1893) - as quais não raramente acabavam provocando nos delirantes
passagens ao ato; no nosso caso, em um contexto social no qual as redes virtuais de comunicação
se consolidam cada vez mais, temos uma elevação do estatuto do objeto pelo fato de ele viver no
exterior, o que indicava para Cláudia que ele tinha uma situação financeira confortável, e de fato
uma boa condição social. Nossa hipótese é que a idealização de seu amado funcionou como um
norteador para suas ideias, de modo que o tratamento pôde ser direcionado a partir desta
indicação: nem o amado, tampouco a perseguidora da doente, estavam em uma proximidade que
pudesse lhe colocar em perigo, mas sim em uma justa distância. Parece-nos, assim, que a
condução do tratamento, priorizando que ela mesma pudesse inventar um modo de lidar com os
outros após o desencadeamento de sua psicose, possibilitou-lhe esta localização das figuras de
seu delírio a uma distância que não a afetava demais.
Acaso esta solução encontrada pela própria paciente não se parece com o que Freud descreveu,
em 1911, a respeito da solução assintótica de Schreber? Neste caso clássico de paranoia, o
sujeito passou a viver esperando o dia em que se tornaria a mulher de Deus, sendo esta
emasculação necessária para que pudesse gerar uma nova raça de homens, em consonância com
a Ordem das Coisas que se impunha em seus delírios. Nas suas memórias, Schreber mencionou
que no dia em que este fenômeno se completasse, provavelmente nenhum dos atuais seres estaria
ainda vivo para presenciar tal milagre (Schreber, 1984).
Cláudia é um exemplo de como as erotomanias atuais se desenvolvem, nos novos contextos de
relacionamentos e com o auxílio essencial da farmacologia - a qual permite uma contenção da
atividade delirante, sem, no entanto, impedir que o próprio sujeito elabore um modo de se
envolver com o objeto que lhe procura.
Referências Bibliográficas
BALL, Benjamin. A erotomania ou a loucura do amor casto. In: Erotomania. Berlinck, M. T;
Berrios, G. E. (Org.). São Paulo: Escuta, 2009. p. 153-168. (1888)
BERRIOS, German e KENNEDY, N. Erotomania: uma história conceitual. In: Erotomania.
Berlinck, M. T; Berrios, G. E. (Org.). São Paulo: Escuta, 2009. p. 21-49.
FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia
(dementia paranoides) [1911]. Obras psicológicas completas, edição standard brasileira. Rio de
Janeiro: Imago, 1996, p. 15-89.
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KRAFFT-EBING, Richard von. Paranoia Erótica (erotomania). In: Erotomania. Berlinck, M. T;
Berrios, G. E. (Org.). São Paulo: Escuta, 2009. p. 211-219. (1897)
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e organização: Marlene
Carone. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
SOLLIER, Paul. Ideias Eróticas. In: Erotomania. Berlinck, M. T; Berrios, G. E. (Org.). São
Paulo: Escuta, 2009. p. 203-209. (1893)
* Trabalho realizado sob a orientação do Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira.
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