EM TORNO DA ESPECIALIDADE MÉDICA: DESVIO DE COMPORTAMENTO?
Sonia Maria Costa Barbosa*
Algumas palavras necessitam ser ditas a respeito da postura do
profissional da Medicina. Há muitos anos esse profissional tem nas mãos a saúde e o
destino de tantas pessoas, uma vez que é ele que cuida da saúde e da doença de seus
pacientes.
Na Idade
mesinhas e
técnicas que
entanto, muitos
esse sistema.
Média, eram os alquimistas e os autodidatas que, com suas
experiências promoviam o tratamento do doente, utilizando
se hoje fossem colocadas em prática, seriam absurdas. No
pacientes se recuperavam ou morriam de algumas patologias sob a ótica
Foi a partir do final do século XIX que o reconhecimento dessas
práticas foi sendo instituído de modo a legitimar a práxis médica. Data
dessa época, a construção de dispositivos que interferiam na vida dos
cidadãos,
possibilitando
assim,
maior
controle
social
sobre
seus
comportamentos. M.Foucault (1984) em sua obra se refere aos dispositivos da
sexualidade onde apareceram vários aspectos relacionados às doenças que
mais tarde, viriam a ser tratadas como perversões.
A partir daquele momento, o especialista em saúde, visto como
sanitarista (hoje em pleno século XXI tão em voga!), viria a interferir
dentro do espaço doméstico dos cidadãos, qualquer que fosse o desequilíbrio
da saúde. Ele ditava como deveria ser a higiene, as práticas sexuais, a
educação dos filhos, as relações sociais entre marido e mulher, enfim, sua
ação era legitimada pelo Estado.
Muitos foram os casos de doenças que, mesmo não conhecendo a sua
etiologia, eram tratados como se fossem distúrbios psicossomáticos que
requeriam internação em manicômios, onde se administravam drogas que até
então, eram desconhecidos os seus efeitos. Desse modo, foram criados centros de
recuperação da saúde queproliferaram em toda a Europa, como hospitais de doentes
mentais.O cidadão ao ingressar em seus pavilhões, não tinha a idéia de que sairia vivo de
lá, tantas eram as drogas que o mesmo teria que ingerir.
Uma vez internado, o mesmo ingressava num mundo sem volta e sem contato
com o exterior, de modo que sua família o esquecia como ente partícipe
dela. No entanto, nem só a família tinha esse comportamento, mas a própria equipe
de profissionais tentava muitas vezes utilizá-lo como experimento para
novas drogas e tratamentos alternativos. Ao que parece, desde essa época, o
especialista da medicina era o senhor de todos os conhecimentos referentes
ao indivíduo, não recebendo de modo algum críticas à sua ação.
Datam daí, os casos estudados e mais escabrosos da história da medicina
que não se referiam ao indivíduo como tal e sim, a mais um caso de doença a
tratar. Era considerado mais um número na enciclopédia médica.
Hoje, a prática médica tem a mesma linha de comportamento quando se
apresenta uma doença a tratar. É necessário que o indivíduo fale e fale
muito, sobre os sintomas com os quais convive, para se transformar num
futuro paciente. A partir daí, o mesmo passa a ser tratado como mais um
caso na estatística médica e seus incômodos, que dificultam o seu cotidiano,
passam a não interessar muito ao especialista, uma vez que este os conhece
bem e que fazem parte do quadro de diagnóstico e prognóstico. Se se
observar melhor a prática médica em hospitais públicos, verificar-se – à
incontinente, esse comportamento.
No entanto, se o cidadão ora visto como paciente, possuir uma volumosa
conta bancária, o mesmo terá um tratamento menos discriminado, ou seja, o
especialista terá mais complacência com suas perguntas e a atenção ao
mesmo, será mais efetiva. Entretanto, o conhecimento do especialista não será
compartilhado em sua totalidade com o paciente nem com seus familiares, uma
vez que os termos técnicos se tornam impossíveis de serem esclarecidos ou
mesmo,
repassados
à
população
que
não
possui
acesso
a
eles.
É a eterna questão do poder emanado do conhecimento.
Esse comportamento médico pode ser observado quando se olha para um
indivíduo infectado pelo HIV, vírus da imunodeficiência adquirida. Como a
incidência maior de casos se encontra no veículo de transmissão sexual, há
como uma invasão de privacidade na vida do paciente quando o mesmo, é
instado a falar o máximo que puder sobre seu comportamento e atividade
sexual. Muito já se falou em trabalhos científicos sobre esse aspecto
relacionado à AIDS/SIDA. Como também, muito é denunciado nos conselhos
regionais profissionais sobre atitudes de discriminação por parte do
profissional em relação ao paciente, algumas vezes até sendo utilizado o
diagnóstico para apoiar a ação de empresários inescrupulosos que vêem nele,
uma justificativa para a demissão do funcionário.
Por
outro
lado,
verifica-se,
em
se
tratando
de
outras
patologias, o mesmo comportamento do profissional, no que se refere à
prepotência que o mesmo apresenta em termos do seu saber médico. Seu
relacionamento com paciente é de um distanciamento abissal quando é chamado
para explicar a doença e suas conseqüências. Quase sempre tem uma postura
de empáfia no alto do seu saber, dificultando na maioria das vezes, a
recuperação do paciente. O paciente por sua vez, sente-se como um estorvo
nas mãos do médico, se omitindo quase sempre de confessar suas reações,
para não dificultar ainda mais a relação.
No entanto, seja qual for a origem sócio – econômica do indivíduo
doente que necessita de tratamento, ele requer a atenção e carinho do
profissional, já que seu estado inspira cuidados,
situação excepcional – sua saúde está debilitada.
uma
vez
que
é
uma
Algumas questões devem ser levantadas aqui no que se relaciona à
postura do profissional de medicina a fim de possibilitar uma maior
reflexão sobre o problema. Pode o Brasil ser considerado um país doente, quando
existe um índice muito alto de doenças na população? Qual é a relação
existente entre doença, pobreza e educação? Quais os mecanismos mais
eficientes para a construção de um sistema de saúde pública que atenda
verdadeiramente à população e porque não são aplicados? De maneira esse
sistema promoveria uma mudança de postura dentre os profissionais médicos?
O que seria necessário para que houvesse uma humanização no atendimento às
pessoas? Pelos números do Ministério da Saúde, 1.017.775 de internações
hospitalares foram realizadas no período de novembro de 2000 e 977.334
casos de morbidades hospitalares no mesmo período, relacionados a todas as
regiões do país (SUS/MS), o que significa a utilização da rede pública apenas, no
mês acima referido. Esse índice é muito alto em se tratando de um país
jovem e, eternamente em desenvolvimento. Isto posto, é necessário que se destaque
quais as doenças mais evidenciadas na estatística, ou sejam, aquelas
endêmicas, e as crônicas. No entanto, é mister que se diga que esses
números não representam a totalidade da realidade das doenças, uma vez que existe
uma sub notificação dos casos devido a vários fatores. Dentre esses,
pode-se identificar o tamanho da população brasileira e o número de profissionais
da saúde numa relação de 1/500 (índice da OMS) e o número de hospitais
públicos e hospitais conveniados ao SUS.
Entretanto, vale salientar que o acesso mais democrático aos serviços
de saúde pela população não irá depender apenas desses fatores ressaltados,
mas, da melhoria das condições sócio-econômicas da mesma e de
infraestruturas sociais e econômicas que tem importantes reflexos sobre as
condições sanitárias de uma sociedade. Importante observar a leitura
realizada por autor engajado no estudo sobre o sistema de saúde no
Brasil.”Saúde é o resultado da conjunção de uma série de fatores
sociais, culturais, econômicos e ambientais”.Continuando, “o
estudo das condições de saúde da população tem mostrado, repetidamente, que
a melhoria do quadro sanitário – revelado pela diminuição da
mortalidade, aumento da expectativa de vida e diminuição acentuada da
incidência das doenças transmissíveis e carência – resulta muito mais
na melhoria das condições de trabalho e maior salário, aumento do nível
educacional, melhores habitações, alimentação e condições gerais de vida
– do que de ações específicas no setor de saúde. Em verdade, o médico
trata os efeitos sem remover, no mais das vezes, as causas das doenças. O
custo de tratar, por sua vez, é significantemente maior que o de promover a
saúde e prevenir a doença”.(Lobo/1996.222)
Desse
modo
saúde/pobreza/educação,
responde-se
uma vez que
a
sem
questão
de
relação
uma infra-estrutura básica
de
de
educação que realmente atinja toda a população promovendo acesso à
informação, a fim de se prevenir contra doenças e o acesso contínuo ao
mercado de trabalho que ofereça salário digno para a satisfação das
necessidades básicas, a saúde da população estará sempre crítica e
debilitada.
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado a partir da Constituição
Brasileira de 1988 mas, apenas foi implantado a partir de 1996 (NOB-SUS/96Portaria no. 2203 de 06/11/96 publicada no Diário Oficial da União) e mesmo
assim, engatinha em relação ao atendimento e acesso da população.
Infelizmente, a corrupção que atinge aos outros ministérios no Brasil, fez
com que esse sistema não passasse incólume a ela, de modo que, apesar de o
sistema ser excelente nas ações de prevenção, de distribuição de recursos,
de atendimento à população, a nível de proposta para ser aplicada, o mesmo
ainda
está
aquém
do
esperado.
No item relativo aos profissionais de saúde que prestam atendimento
dentro do sistema há falhas no que se refere ao montante de recursos para
pagamento de salários dos mesmos, visto que é ínfimo o valor para cada
classe de função desempenhada. Isto é comprovado devido à saída dos mesmos
para exercer sua atividade profissional em clínicas e hospitais privados,
fazendo com que dêem o mínimo de seus esforços ao sistema, ou seja, a carga
horária que despendem para o mesmo é de apenas 4 (quatro) horas p/dia. O
que significa muito pouco tempo dedicado à população que acorre ao sistema SUS
de saúde, dificultando assim a construção de uma relação mais humanizada de
ambas as partes.
Geralmente os profissionais de saúde alegam que essa saída para o setor
privado é devida aos baixos salários pagos pela rede pública, como também
pelo seu esforço de desenvolvimento de status social no contexto da
sociedade. Quer dizer, é na rede privada que os mesmos são reconhecidos em
suas especialidades, o que não ocorre se ficam apenas na rede pública.
(Barbosa, 1996/pág.12).
Qual seria então, a melhor forma de resolver essa questão? Apenas pagar
melhor pelos seus serviços na rede pública? Ou aumentar a carga horária de
sua atividade, para que o mesmo se estabeleça como profissional da saúde
pública? Ou mesmo, em sua formação universitária, estimular em sua grade
curricular o interesse para a dedicação à saúde coletiva?
Muitas são as questões que se impõem para auxiliar no fornecimento de
sugestões para a melhoria da relação médico/paciente da rede pública que em
última instância, promoverá a melhoria do estado de saúde do paciente.
Finalizando estas reflexões, pode-se aventar ainda o posicionamento de
alguns médicos quanto à sua expectativa de melhoria do padrão sócio –
econômico quando os mesmos, influenciados pela nova ideologia de mercado de
custo/benefício, têm uma visão mercantilista da saúde contrariando no mais
das vezes, o seu compromisso primeiro quando do juramento de tratar o
doente em qualquer situação crítica.
* Professora de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de PE
BIBLIOGRAFIA
ALVES, P.C e MINAYO, M.C. (orgs.) (1994). Saúde e Doença – um olhar
Antropológico. Rio de Janeiro, FIOCRUZ.
BARBOSA, S.M. (1992). AIDS – Sexualidade e Família. Pesquisa realizada com
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COHN, Amélia, NUNES, Édison e outros (1991). A saúde como Direito e como
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FIOCRUZ/ENSP (1994).” O Impacto da Violência Social sobre Saúde”. In
Cadernos de Saúde Pública, Vol.10, Suplemento 1, R. de Janeiro.
FOUCAULT, Michel (1984). Microfísica do Poder. R. de Janeiro, Ed. Graal,
4°. Edição.
MINAYO, M.C.(1988). “Saúde e Doença / uma concepção popular da
etiologia”. R.J., In Cadernos de Saúde Pública, 4(4). 356-36
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