O MEMORIAL DA EDUCAÇÃO PAULISTA Maria Aparecida Ceravolo Magnani Centro de Referência em Educação Mario Covas - CRE Fundação para o Desenvolvimento da Educação - FDE Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo – SEE “ A história , apesar de sua dor lancinante, jamais pode deixar de ser vivida: se enfrentada com coragem, dispensa ser revivida.” Maya Angelou. On the pulse of morning.1 A Fundação para o Desenvolvimento da Educação - FDE desenvolveu, no início de 2001, a pedido da Secretaria de Estado da Educação - SEE, um projeto para implantação de um Centro de Memória da Educação Paulista. A justificativa dessa proposta fundamentou-se na constatação de que o acervo histórico e documental das escolas da rede pública paulista vem, ao longo do tempo, se deteriorando e se perdendo devido: § à ação do tempo, à falta de cuidado na manipulação e à movimentação inadequada dos materiais durante as mudanças; § à inadequação dos espaços físicos em que se encontram localizados, ficando sujeitos à umidade, ao desenvolvimento de fungos, ao ataque de cupins, às traças etc; § à acidentes eventuais como: enchentes, goteiras, incêndios, roubos. Tais ocorrências, estão comprometendo a preservação dos "lugares de memória" (NORA:1995) da educação. 1 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo, Paz e Terra.Vol.2 p17 1 Prédios, mobiliários, objetos, livros e documentos históricos das escolas públicas correm sérios riscos de se perderem, tornando, assim, irrecuperável o registro de um importante processo de constituição da identidade de nossa sociedade. As escolas não dispõem de orientação técnica e de condições adequadas para organizar e preservar seu acervo histórico. A rede de escolas públicas estaduais, voltadas para o Ensino Fundamental e Médio do Estado de São Paulo, em desenvolvimento há cerca de 150 anos , tem sido freqüentada por expressiva parcela da população. De alguma forma, os alunos, professores e funcionários, vêem imprimindo suas marcas no tecido da história de suas escolas. Essa vivência e as relações ali estabelecidas, por sua vez, fazem parte importante do processo de construção de suas identidades. Todavia, ao se constatar o estado precário da preservação do acervo histórico escolar, bem como sua cultura material, pode-se supor a desconsideração com que a nossa sociedade trata a própria história. As conseqüências que têm para a sociedade o esfacelamento da memória cultural e das tradições, também, não têm sido objeto de preocupação da maioria dos governantes nas formulações das políticas públicas. A ruptura com o passado desvincula o homem de suas raízes, aliena-o da realidade objetiva, impossibilita-o de compreender o mundo à sua volta e de como se processam as transformações que afetam a sua vida, já que os elos que dão sentido aos acontecimentos ficam lhe faltando. Sem raízes para a construção de sua identidade, fica comprometida sua “leitura de mundo”2, no sentido de vir a ser um cidadão/sujeito - “ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência - .” (TOURAINE:1992). 3 O desenvolvimento do Projeto A partir de discussões e visitas a um grupo de escolas , uma proposta foi elaborada por uma pequena equipe das áreas de Educação, Ciências Sociais, História, Preservação, Arquitetura e Museologia. Inicialmente, a idéia era dispor de espaço suficiente para a instalação de um Museu do Ensino. 2 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. in CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo, Paz e Terra.Vol.2 p26 3 2 A proposta tinha como objetivos reunir um acervo permanente, representativo de todas as fases das práticas pedagógicas das escolas públicas paulistas. Além de realizar ações como exposições, oficinas, workshops, seminários, incentivo à pesquisa em áreas e temas voltados para uma política de recuperação e preservação da memória escolar. Todavia, por falta de espaço adequado que respondesse às necessidades preliminares de um Museu, a solução encontrada foi começar por um Memorial. O novo projeto tornou-se um programa da SEE e passou a integrar, junto com outros dois programas : um Sistema de Documentação multimídia e um Site Pedagógico, o Centro de Referência em Educação Mario Covas - CRE. Na reformulação da proposta inicial, os objetivos mais importantes foram preservados: - implementar uma política destinada a estimular a pesquisa e o registro da história das escolas por seus protagonistas; - orientar e dar apoio aos projetos voltados para a preservação do acervo e do patrimônio histórico escolar; - criar um Museu Virtual e formar um banco de dados virtual: documental e iconográfico, a partir do inventário dos acervos escolares. - disseminar informações que estimulem as reflexões e as práticas pedagógicas voltadas para a preservação da memória da educação. Com essa perspectiva e mudança de algumas estratégias que não demandassem muito espaço, o Memorial da Educação Paulista iniciou seu trabalho com as seguintes ações: A Exposição a Exposição: A escola e o Saber: Trajetória de uma Relação, instalada no CRE e apresentada virtualmente no site www.crmariocovas.sp.gov.br, a qual faz uma incursão por cerca de 200 anos na história da educação paulista. A referida exposição apresenta um panorama dos fatos relevantes que impulsionaram essa história. A narrativa se desenrola por meio de painéis compostos por imagens cuidadosamente pesquisadas e escolhidas em acervos escolares, acervos de obras de arte, em arquivos públicos, museus, universidades e coleções particulares. 3 Esses painéis colocam em evidência os marcos políticos, sociais, econômicos e culturais influentes nas múltiplas configurações e tendências assumidas pelas escolas públicas, ao longo da trajetória das políticas educacionais e de suas práticas pedagógicas. Além disso, ao reunir mobiliário, fotos e objetos do cotidiano escolar, a exposição contextualiza esse espaço destinado à formação de leitores, à aquisição e à produção do saber necessário em cada momento histórico. O saber e os valores relevantes para cada época encontram-se retratados numa mostra representativa de obras literárias, livros didáticos, cartilhas e revistas pedagógicas, dando se, assim, ênfase às práticas de leitura da escola pública no Estado de São Paulo . Inaugurada em 12 de março último, a Exposição: “A Escola e o Saber” já foi vista, até 30 de agosto, por 5.752 educadores, em visitas programadas. O Projeto: Nossa Escola tem História Organizado com os propósitos de: - sensibilizar educadores, alunos e comunidade para a importância do papel da memória na constituição de nossas identidades individuais e coletiva; - estimular e orientar as escolas a inventariar e preservar seus patrimônios históricos, a registrar depoimentos para formação de um banco de dados central; - estimular e oferecer subsídios às escolas para o desenvolvimento de projetos pedagógicos multidisciplinares, voltados para a reconstituição de suas histórias , fazendo desse trabalho uma experiência pedagógica destinada ao desenvolvimento das competências e habilidades que integram o exercício do pensamento formal e uma importante contribuição para a formação da cidadania . A sensibilização tem sido feita por meio de diferentes estratégias, proporcionando ao visitante uma aproximação com a história da evolução da educação, com os objetivos de revalorizar suas raízes e sua identidade. A visita à Exposição é uma delas. Ao se depararem com as cartilhas das primeiras letras e com os livros que lhes abriram as primeiras janelas para o mundo, os educadores se emocionam (“ entende-se por esse nome qualquer estado, movimento ou condição que 4 provoque no animal ou no homem a percepção do valor (alcance ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas necessidades, seus interesses.”4). Por exemplo, canetas de pena, canetas-tinteiro, as quais foram objeto de desejo de muitas crianças, os mata-borrões, as gravuras utilizadas nos Grupos Escolares como temas das descrições e composições, carteiras antigas, as fotos de professores e alunos, de diferentes épocas, as imagens das escolas imponentes, de arquitetura simétrica, para evitar a proximidade entre meninas e meninos, a trazem à tona lembranças significativas. Enfim, diante desse universo de elementos que fizeram parte do dia-a-dia da infância e adolescência de cada um, desse conjunto de objetos e documentos, os professores se identificam, ficam sensibilizados, ou seja, capazes de ”julgamento ou avaliação,”5 incitados por essa oportunidade que tem o efeito de lhes descortinar um tempo quase esquecido e desvalorizado, pela memória adormecida. Rapidamente, os comentários começam a surgir. “Eu tinha um estojo de latinha como esse!” “Olha essa malinha de couro!” “Nossa, como era difícil para os pais comprarem uma mala escolar! Tudo era muito caro. Fazia-se muita economia nos anos 50.” “E, na época dos meus pais, então! Eles contavam que tinha criança que fazia caderno de papel de pão. Hoje em dia, você tem que comprar mochila nova todo ano para as crianças.” “Vejam, essa foto! Ela foi minha professora. D. Dulce, estudei nessa classe, essa ao lado era a diretora.” À medida que as peças vão sendo vistas e analisadas, as lembranças vão se aflorando e os comentários vão se multiplicando. Lembram-se dos castigos, do caderno de caligrafia, das cópias infinitas. Comentam sobre métodos, comparam tecnologias, associam informações, criticam políticas. Instaura-se o processo de reflexão. A Exposição cumpre o seu papel. Torna-se um tempo reservado para professores, a fim de estimulá-los a voltar um olhar diferente para a escola. Vê-la como instituição de grande relevância na formação das identidades dos que por ela passam e, também, como uma importante fonte de informação para as pesquisas escolares e acadêmica. As escolas são convidadas a escrever sua história, por meio de uma ação pedagógica multi e/ou interdisciplinar . Inúmeros projetos podem ser propostos, com diferentes temas, linguagens, abordagens e níveis de complexidade. O importante é adequá-los aos objetivos do curso e ao perfil dos alunos. 4 5 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2000:311 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2000:872 5 Grupo Piloto Como o projeto encontra-se em processo de implementação, optou-se em começar as ações com um pequeno grupo de escolas da capital e do interior, com o intuito de desenvolver uma sistemática de trabalho para o Projeto. Inicialmente, foram realizados dois encontros na tentativa de se estabelecer um cronograma de trabalho. A despeito do interesse manifestado em integrar o Projeto, tantos foram os depoimentos registrados, por várias escolas, sobre as condições precárias de armazenamento físico do acervo, como exposição à goteiras, enchentes, umidade etc. que, antes de dar continuidade às ações técnico-pedagógicas, foi necessário realizar um encontro do grupo de diretores e professores dessas escolas com a Diretoria de Obras e Serviços da FDE, responsável pelas reformas e manutenção dos prédios escolares . Nessa reunião, o diretor e o engenheiro ouviram cada representante das escolas presentes. Informaram quais escolas tinham previsão de reforma para este ano, bem como, o valor do orçamento aprovado para cada obra. Com relação às escolas que estavam sem previsão, programaram visitas técnicas para levantamento dos problemas concernentes a cada uma, para inclusão no plano de 2003. Uma vez estabelecidos os acordos entre as partes, o Projeto ganhou maior credibilidade por parte das escolas e tem encontrado boa receptividade com referência ao trabalho de inventariar o acervo. Embora, pareça que essas informações fujam ao foco de nosso tema, é necessário salientar que também deve fazer parte da preocupação dos gestores de projetos pedagógicos as intervenções e articulações junto às áreas que tenham interface, ou assegurem condições para o desenvolvimento do projeto. Museu virtual Proposta: - organizar e catalogar o acervo histórico de um grupo de escolas antigas e dispor os dados no site; - hospedar exposições; - publicar a história da educação paulista; - publicar a história das escolas elaboradas por seus protagonistas; 6 - formar banco de imagens do cotidiano escolar ( mobiliário, objetos, livros, materiais didáticos etc); - organizar e hospedar álbuns de retratos temáticos; - divulgar orientações para preservação de acervos e para desenvolvimento de trabalhos pedagógicos sobre memória; - hospedar depoimentos de memória oral; O relatório do servidor, no qual o site do Memorial está hospedado, registrou acesso de 2.854 visitas nos primeiros 15 dias de funcionamento. O emprego de tecnologias contemporâneas, como o computador, seus inputs e outputs, e a web, viabilizam trocas de informações em tempo real, diminuem a distância entre as escolas e os órgãos centrais, beneficiando consideravelmente a gestão administrativa e pedagógica e potencializando as ações dos projetos que delas fizerem uso. O Memorial pretende abranger todas as escolas da Rede Pública que tiverem conexão com a Internet. O desenvolvimento de um Museu Virtual, alimentado no sistema web, poderá conter os inventários dos acervos de cada escola da Rede Pública e publicar a história de uma delas. Essas escolas e toda a comunidade web poderão usufruir de maneira interativa com o referido museu. Em síntese , acreditamos que a organização do Memorial, a partir dessas vertentes de trabalho: instalação de exposições a fim de educação para a dar visibilidade e sensibilizar os atores da preservação dos acervos e valorização da memória; apoio técnico para a identificação, higienização, catalogação e acondicionamento do acervo histórico das escolas e formação de um banco de dados disponível na Internet; orientação, por vários meios, destinada a dar condições aos professores de elaborarem projetos pedagógicos voltados para o exercício de diferentes níveis de pesquisa sobre temas relativos à história da escola ; a contínua divulgação de fontes de informação, das orientações metodológicas, dos produtos ( banco de dados, história das escolas, exposições etc.) no site, nos conduzirá a resultados promissores com referência à tomada de consciência e à uma nova postura das comunidades escolares em relação ao patrimônio histórico e à memória da educação , sobretudo, ao fortalecimento de suas identidades individuais e coletivas e d.o exercício da cidadania. 7 Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2000:311 BARBOSA, Ana Mae T. Bastos. A imagem no ensino da arte. São Paulo:Perspectiva; Porto Alegre:Fundação Iochppe, 1991. _________________________.Tópicos e Utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo, Paz e Terra, 2000. vII. FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido. Rio Janeiro: Paz e Terra, 1998. LE GOFF, Jacques e NORA Pierre. História Novos Problemas. Rio de Janeiro, 1995. LÈVY, Pierre . As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: 34,1993. __________. O que é virtual?Rio de Janeiro:34,1996. PILLAR, Analice Dutra.(org.) A educação do olhar no ensino das arte:Mediação,1999 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1989. v II nº 3: 6. 8