C8 Cidades/Metrópole
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O ESTADO DE S. PAULO
DOMINGO, 24 DE FEVEREIRO DE 2013
HUMBERTO
WERNECK
O Pedrão, a Leo e a Melinha
D
ona Alzira está passada
desde que leu no jornal essa história da exumação
de Dom Pedro I (furo de
reportagem, lembro a ela, do Edison
Veiga e do Vitor Hugo Brandalise
aqui no Estadão). Não só de Dom
Pedro mas também de Dona Leopoldina e Dona Amélia, com as quais,
sabemos todos, ele subiu ao altar,
uma de cada vez, é claro. Só faltou
sacarem da cova uma terceira Dona,
Domitília de Castro, a Marquesa de
Santos, com a qual o imperador andousubindo, nãoao altar, mas aonirvana carnal.
O que mais injuriou minha amiga
foi, nas suas palavras, o desrespeito à
figura de Pedro I. Entre outras grosserias, a exibição de sua imperial caveira,
ainda que aparentemente os dentes estejam todos no lugar. Ah, diz ela, não
precisavam ter exposto à galhofa republicana as mandíbulas hoje descarnadas por entre as quais transitou o famoso grito, às margens então plácidas do
Ipiranga. Dona Alzira tampouco gostou de ver alardeada a notícia de que o
imperador fraturou quatro costelas ao
literalmente cair do cavalo, logo ele,
um ás da equitação. E daí? Se ele jazia
não em um, mas em três caixões, argumenta, um dentro do outro, qual boneca russa, era para que o deixassem em
paz.
Ainda que inteiro, o esqueleto de
Dom Pedro estava lastimavelmente bagunçado – segundo leu Dona Alzira, de
tanto que o chacoalharam, coitado,
quando o trouxeram de Lisboa, em
1972. A embalagem com os despojos teria sofrido rudes sacolejos no trajeto
pelas sucessivas capitais por onde passou triunfalmente. É dessa época a paixão (um pouco mais do que cívica, chego a desconfiar) de Dona Alzira pelo
imperador. Ela se lembra de ter lido no
Jornal da Tarde, dias a fio, o diário de
bordo de um repórter que veio junto
com os ossos de Dom Pedro num navio
chamado Funchal. Fernando Portela,
identifico eu. Isso, diz ela, e observa:
meioirreverente, omoço, além deaudacioso:em plenaditadura Medici,o danado conseguiu contar nas entrelinhas
que a esposa de um ministro graúdo
abandonou às pressas a mesa do almoço para lançar no oceano o conteúdo de
seu estômago mareado.
Quase um século e meio depois de
falecer, Dom Pedro I fazia então o que
se julgava ser sua última viagem – que
acabaria sendo a penúltima, pois agora
o sacaram de sua cripta, no Ipiranga, e
namoitao levaram,noitealta,atéo Hospital dasClínicas, onde cientistaso submeteram a exames, como se fosse, preconceito à parte, um paciente do SUS.
Tais exames, que no parecer de Dona
Alzira raiam ao vilipêndio, revelaram
coisas que ninguém precisava saber –
como o fato de que Pedro I, tão grande
no imaginário popular, media 1,70 metro, por aí. Mais: com exceção das abotoaduras, de ouro, os adornos de seu
cadáver são de metais plebeus. Falaram
atédos botões deossodacuecado imperador!
Soube-se também que os derradeiros
brincos de Dona Leopoldina têm, em
vez de pedras preciosas, gemas feitas
de resina. Em compensação, ressalta
Dona Alzira, a ausência de fraturas
veio aniquilar aleivosias segundo as
quais o imperador teria jogado a mulher escada a baixo na Quinta da Boa
Vista, quebrando-lhe um fêmur. Já a
discreta Dona Amélia, revelou-se
uma múmia: 137 anos depois de baixar àcova, seu corpo,embora enegrecido, está espantosamente bem conservado.
Mas precisava mostrar coisas assim? – revolta-se minha amiga. Para
completar,nas Clínicas botaramapelidosnos defuntos: apretexto desigilo,permitiram-se odesplante de chamá-los de “Pedrão, “Leo” e “Melinha”, e ao grupo, “Trio Parada Dura”. Pelo menos providenciaram, a
pedido da família imperial, um padre
para rezar durante a exumação. Em
latim. Poucas vezes uma língua morta terá sido tão adequada à circunstância.
Acabou-se a sem-cerimônia? Nada, desalenta-se Dona Alzira: agora
estão dizendo que talvez seja possível reconstituir os rostos e até as vozes dos falecidos. Tento consolar a
boa senhora: quem sabe a gente vai
poder ouvir Dom Pedro gritando Independência ou Morte?
Mais informações.
Veja artigo de Isabel Lustosa
PAULISTÂNIA
UMA CIDADE E SUA GENTE
aliás,
HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO
A JUNTA
MÉDICA DA
FAMÍLIA
IMPERIAL
O quarteto da USP que examinou Dom
Pedro I e suas duas mulheres no HC
Faculdade de Medicina da USP. Conhecido pelos colegas como Pepino, ele assume o apelido, a ponto de utilizá-lo até
em seu endereço de e-mail. “Ele tem
mesmo essa característica. Adora contar histórias, criar apelidos para as pessoas.Ao mesmotempo,criaumambiente de cordialidade e respeito”, conta o
médico radiologista Edson Amaro Jr.,
43 anos, coordenador de neuroimagem
funcional da instituição – batizado de
Homem-Objeto por Saldiva. “O Pepino
é um dos cientistas de maior produtividade do País e nos ensina que uma boa
forma de trabalhar é construindo relações e cativando as pessoas.”
Umdosmaisreconhecidosespecialistas em doenças decorrentes de poluição no País, Saldiva é modesto ao explicar seu papel no trabalho de Valdirene.
“Eles (os outros três) é que são os motores desse projeto e devem dar continuidade aos estudos. Sou apenas uma enzima, um catalisador.”
A proposta para utilizar a tecnologia
do maior complexo hospitalar do País –
o Hospital das Clínicas, por onde passam 2 milhões de pacientes por ano –
para analisar a família imperial foi recebidacom entusiasmo pelo quarteto. E, a
princípio,tambémcomalgumaincredulidade. “Imagina em um ambiente bem
humoradoassim,poderia ser umapegadinha...”, lembra o médico patologista
Luiz Fernando Ferraz da Silva, de 35
anos, o mais novo da equipe. “Mas, logo
Edison Veiga
Vitor Hugo Brandalise
les são cientistas brasileiros de primeira linha e estiveram diretamente envolvidos no
trabalho – revelado
com exclusividade pelo Estado no início da semana passada – de exumação de Dom Pedro I
e de suas duas mulheres, Leopoldina e Amélia, que reescreveu detalhes da história do País. Mas, entre
eles, os títulos de doutor, o jaleco
branco e o vocabulário técnico dão
lugar a piadas e a um tratamento todo especial: um é Pepino, o outro é
Pasqua. Há ainda Burns e o HomemObjeto.
Quando a historiadora e arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel bateu na porta da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP), anos atrás, em busca de especialistas que topassem examinar os
restos mortais de Dom Pedro I, DonaLeopoldinaeDonaAmélia, encontrou um quarteto empolgado e bemhumorado.
O responsável por esse clima agradável – garantia de boas risadas em
meio à tensão de uma pesquisa tão
complexa quanto essa – é o médico
PauloHilárioSaldiva,de 58anos,chefe do Departamento de Patologia da
E
Bom humor. Saldiva, Pasqualucci (de pé), Amaro Jr. e Ferraz da Silva: risadas em meio à tensão da pesquisa
no primeiro encontro com Valdirene,
vimos que a pesquisa era séria e estava
bem encaminhada. Percebemos a importância daquele momento, o privilégio de aparelhos de tomografia serem
usados para adicionar dados à História
do Brasil”, afirma Ferraz da Silva, o
Burns – apelido que faz referência à semelhança física com o vilão do seriado
Os Simpsons.
Processo. Dom Pedro I, Dona Leopol-
dina e Dona Amélia – os pacientes mais
velhos que já passaram pelo Hospital
das Clínicas – foram levados à instituição em três madrugadas diferentes – 20
de março, 20 de abril e 10 de agosto de
2012 –, sempre em total sigilo. “A partir
da chegada dos personagens históricos,
pelosportõesdenossoServiçodeVerificação de Óbito (SVO), já sabíamos que
seriaum trabalhoemocionante”, relembraomédicoCarlosAugustoPasqualucci, de 60 anos, diretor do SVO e professor da Faculdade de Medicina – chamado pela turma de Pasqua. “Para mim, o
grandemomentoveioaoanalisaraossada deDona Leopoldina.Já eramadrugada alta e eu estava indo embora, quando
me chamaram, com um livro de história
nas mãos. No livro, havia um retrato de
Leopoldina, com um belo vestido.
Olhei a imagem do tomógrafo e o que vi
me emocionou: todos os detalhes, os
ornamentosdo vestido, estavam ali. Foi
como unir ciência e história, algo que
não acontece todo dia.”
Amarotambém guarda umsentimentoespecial por todo o processo. “Noinício, admito que tinha receio de que não
houvesse possibilidades técnicas para
conseguirmos realizar esse trabalho”,
diz. “Depois, quando percebemos
que seria possível, fiquei emocionado por ver tanta gente boa reunida
com o mesmo propósito.”
Engana-sequem pensaqueo trabalho do quarteto se encerrou com a
conclusãodo mestrado de Valdirene.
Todos os médicos ressaltam que os
resultados são parciais. As imagens
captadas pelos aparelhos do hospital
ainda seguem sendo analisadas por
eles e suas equipes. E o estudo serviu
de “piloto” a projeto de “autópsias
virtuais” da Faculdade de Medicina.
“A ideia é tornar constantes esses tipos de exame”, afirma Pasqualucci,
explicando que, dessa forma, o trabalho do SVO pode se tornar menos
agressivo. “E quem sabe não analisaremos outros personagens históricos?”, vislumbra Saldiva.
FOTOS: VICTOR
HUG
O MUNIZ
Ossos.
Estudo
provou
que Dom
Pedro I
não foi
cremado
Fato.
Dom
Pedro I
sofreu
fratura
em 4
costelas
VALTER DIOG
Desde 2010, o ‘Estado’ acompanha
o trabalho acadêmico sigiloso da
historiadora e arqueóloga Valdirene
do Carmo Ambiel. Com autorização
dos descendentes da família imperial, ela exumou os restos mortais
de Dom Pedro I, Dona Leopoldina e
Dona Amélia. A análise do material
envolveu 16 instituições, no mais
abrangente estudo arqueológico já
realizado no Brasil – conforme definiu o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Confira ao lado as revelações da pesquisa.
O MORI
REVELAÇÕES HISTÓRICAS
Exame. Tomografias
foram feitas nos restos
mortais
Preservação. Corpo
de Dona Amélia está
mumificado
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A JUNTA MÉDICA DA FAMÍLIA IMPERIAL