Artur Pastor A MULHER ALENTEJANA Por ARTUR PASTOR Portugal é, já o dissemos, um País de contrastes. Numa tão diminuta e estreita faixa atlântica desconcertante diversidade existe de paisagens, de tipos e de costumes. Na região ao sul do Tejo, deixados os touros e os campinos da província ribatejana, imprevistamente se nos depara uma região vasta e fértil, pobremente sulcada de relevos, ou percorrida por rios, uma região que não possui a alacridade nem o bulício da paisagem nortenha, e que, contudo, na sobriedade rústica dos seus filhos e no impressionismo dos seus panoramas, algo encerra de mais expressivo e de mais forte. Será, talvez, um testemunho ligeiramente velado, calmo e mudo, criado no silêncio monástico das suas planícies, mas é, todavia, uma expressão nítida e vincada, traçada sem esbatidos, que se nos impõe pela majestade fria dos seus campos ou a grandeza de alma dos seus nativos. É neste «mundo» transtagano, simples e rude como a urze seivada entre a renúncia e o sacrifício, que a figura inconfundível da companheira do Homem se nos impõe, sem dúvida um dos mais curiosos tipos da mulher portuguesa. O drama dos gados torturados, as árvores sedentas e revoltadas, o encantamento bíblico das penumbras outonais, ou a terra que, constantemente, contempla o céu, tão cinzento e parado como as suas rochas e os seus «montados», deficientemente ofuscam, na sua estranha galeria de aspectos, a mulher alentejana, desusadamente cônscia do seu dever e da sua presença. Por si só, ela é este Alentejo antagónico do Norte, que emigra, da praia, «que é um convite a fugir da terra», este Alentejo sem o qual – no parecer de Afrânio Peixoto – Portugal ter-se-ia ido embora. Vetusta, possui séculos de história, com milhares de exemplos arrastados nas clausuras conventuais, orações perdidas nos trifórios das catedrais, ou singelamente debruçadas na argila fecunda que a subjuga e a prende. A mulher é, como a paisagem, sombria e triste, mas imensamente grande na simplicidade sem afectação, na timidez sem retraimento, estática mas firme dos campos onde existe. O recolhimento é-lhe dado pela solidão que a domina. O seu labor, consciente da necessidade progenitora que o motiva, sob um clima traiçoeiro, vivendo numa terra isolada e arcaica, roubou-lhe o sorriso e a ansia da diversão, tornando-a pouco emocional e expansiva. A mulher alentejana pouco fala, comendo e trabalhando, amiudadas vezes, em silêncio; e, mesmo quando canta, fá-lo duma forma triste e saudosa, repleta de dúvidas e de esperanças, forma arrastada como as suas penas, e mole como a fadiga, ou oscilando, levemente, para a ironia, como as espigas batidas, à tardinha, pela nortada. É como ser a quem o Destino tivesse apontado estrada íngreme, mas a que fizesse primeiro compreender o sentido a necessidade de a trilhar. Nos descansos, em grupos, tal como os homens, repousam mudas e quietas, confundem-se com a paisagem imóvel, entregam-se-lhe, fundem-se nela, como se filhas fossem da terra imensa que as cerca. Nos descampados, onde se diz que só existe sombra na que vem do céu, Deus não está http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/fundos-colecoes/colecoes-de-fotografia/artur-pastor-2/ 1 Artur Pastor longe, e a mulher é a sua mais reconfortante expressão. De volta das fainas, regressam às casas; perdidas na planície, isoladas e esquecidas do mundo, estas mostram-se alvas e limpas, de raras janelas, sempre fechadas. Pouco ou nada ornamentadas, as casas são refúgios do calor e do frio, lugar sagrado religiosamente procurado e querido. Ao redor, muros secos, de argila, grandes cães pesados e felpudos, raras flores, que o clima permitiu, dispostas duma forma ingénua e simples. É no ambiente rústico deste abandonado casario, que a mulher regressa, de estoicamente trabalhadora, à sua simples e natural condição de mulher. Esta, se é pouco comunicativa, entusiasta e folgazã, sem os acessos de sensualismo que lhe têm atribuído, que, aliás, o clima e a promiscuidade explicariam é, todavia, hospitaleira e sociável, embora fatalista e algo desdenhosa, e altiva. Levemente motejadora, por vezes, é no entanto dada à caridade e ao auxílio. Não obstante pobre e filha de pobres, a mulher alentejana reparte, leal e prontamente, o seu parco quinhão. Certa severidade, mesmo essa indiferença que parece misantropia, traduz apenas orgulho e nobreza, orgulho da terra que pisam e do pululamento das suas espigas, nobreza pelo sangue que os mortos de antanho lhe deixaram. O alentejano é integralmente português, e – como afirmou Mendes Correia – dos melhores. A maneira franca, cumpridora, leal, que caracteriza a mulher transtagana, é indiscutível, de intensa repercussão espiritual, exteriorização de clareza e de encantamento que existe, que sentimos, mas que as palavras nunca poderão traduzir sem deturpar. É tão penetrante a sua beleza, a sua grandiosidade, o valor inestimável como trabalhadora e como mãe, que a mulher alentejana, quase de uma simplicidade mística, nos seduz como a contemplação da expressão artística, ou comove como a renúncia ou a oração. A mulher rural, mesmo quando não desdenha de «festas pacatas», conserva o seu fundo de gravidade triste. Não é viva nem exuberante, mas sente e compreende com profunda emoção. Quando entristecida, desiludida ou doente, retrai-se, quase que se esconde, pois ela conhece que a árvore ferida cicatriza de novo, que a terra vivifica depois de lavrada. A mulher é a companheira solícita, inseparável, do homem. Ela dá-lhe os filhos, amanha a terra, vigia a casa, e, quando nada mais tem a fazer, – recorda-o Manuel Ribeiro – ei-la a branquear o «monte», no seu grande, tradicional, amor pelo asseio. Tudo então é alvo, luzidio, revestido de cal. Nas ceifas, nas mondas, na apanha da azeitona, a mulher, com o seu trajo típico, um os mais lindos do mundo é um hino de beleza, de sacrifício, de honesta afabilidade, que orgulha e enaltece Portugal. Fé inquebrantável e esforço insano, são expressões que se lhe aplicam com todo o rigor, e que nós, portugueses, deveríamos idolatrar. Passionalmente, as mulheres alentejanas não são excessivamente sensuais. Ao ardente prazer efémero oferecem antes a persistência e a dedicação. Contudo, de modo algum encerram passividade, amam com alma e entregam-se com respeito, o respeito que as suas canções, mesmo irónicas, é incapaz de perturbar. A mulher, católica, não raro peregrina até aos seus santuários, para suplicar ou agradecer à Virgem. Às ermidas e igrejas, antigos lugares de culto, vão por vezes famílias inteiras, embora essas peregrinações se impregnem sempre de uma indestrutível tristeza. Pouco se assemelham às ruidosas romarias do Minho ou da Beira. http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/fundos-colecoes/colecoes-de-fotografia/artur-pastor-2/ 2 Artur Pastor Contudo, a generalidade é crente. Sabe que a fé representa força, e que sem ela seria «desdenhada» por Deus, que trás a água e faz crescer os trigais, Deus que a mulher admira e invoca nas suas canseiras e nas suas vigílias. A religiosidade que une a mulher à terra é no Alentejo assaz forte, e em absoluto indemolível, como toda a que brota do convívio com a Natureza. presença dá a todas as coisas, não pode ser atingido pelos que se limitam a ver sem esmiuçar, ao de leve pousando os olhos. É mister ficar no Alentejo, conviver com ela para que ao partir uma incessante saudade faça desfilar atitudes rostos de mulheres, fainas, rugas ou lábios rubros, fantasmas alegres que são, inspiração e forma, camaradas dos nossos olhos húmidos. A mulher alentejana, e refiro-me à campesina, por a citadina se encontrar divorciada do ambiente e das tradições, é simples e é humilde, mas é briosa e digna, um exemplo a apontar pelo seu carinho e a vontade tenaz com que a sua bondade acolhe os desamparados, roga a Deus, cria os filhos extremosos, moureja nos descampados, ou oferece ao «seu Homem» a pujança da sua juventude e a ardência da sua dedicação sem par. É preciso que sintamos a imperecível beleza dessa mulher, que desafia o homem na rudeza da labuta quotidiana, para que formemos dela um documentário real e profundamente humano. Ao evocá-la, prematuramente envelhecida, mãos gretadas pelo trabalho, rostos secos, enrugados pelos ventos e tisnados pelos sois de muitos verões passados, o meu coração de enamorado alvora-se em comoção, para subsistir, depois o respeito e o orgulho que devo a esta terra, onde nasceu minha mãe. Indelevelmente, sou levado a apaixonar-me pela sua figura, como se o seu encanto me tivesse subjugado no mesmo véu de carinho com que meus olhos a vêm. Talvez mesmo para além do Homem, do húmus, das árvores e do céu, esteja a Mulher alentejana, capaz de arrostar a Natureza, essa mulher do campo, rude e simples, humilde e pobre, que apareceu na planície e criou a sua própria grandeza. Esta é, de facto, a mulher que nos rodeia, a mulher com quem vivemos. O estudo da mulher alentejana é um exame fácil, como a leitura dum livro aberto. Todavia, o seu sabor sorridente, a humanização que a sua Boletim da Casa do Alentejo, Janeiro de 1949, nº 141 http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/fundos-colecoes/colecoes-de-fotografia/artur-pastor-2/ 3