Novembro | 2010 Brasil: Oportunidades e Riscos em um Mundo de Recuperação Desigual e Liquidez Abundante A edição mais recente do World Economic Outlook, publicada em outubro pelo FMI, aponta projeção de crescimento de 4,8% para a economia mundial em 2010, desacelerando levemente para 4,2% em 2011. São números expressivos, que indicam uma tendência de recuperação relativamente vigorosa, na seqüência da mais profunda recessão do pós-guerra, em 2008 e 2009. Embora os dados agregados indiquem robustez, uma análise mais cuidadosa das projeções do FMI mostra uma recuperação bastante desigual nas diferentes regiões. Em particular, é notável o fato de a recuperação em curso ser claramente liderada pelas economias emergentes, que deverão apresentar em 2010 uma expansão de 7,1%, enquanto que para as economias avançadas se projeta um crescimento mais modesto, de 2,7%. Especialmente no caso dos Estados Unidos, o ritmo lento de recuperação fez com que a taxa de desemprego se mantivesse em níveis muito elevados, recuando levemente do pico de 10,1% em outubro de 2009 para 9,6% em setembro deste ano. Ao mesmo tempo, refletindo a persistência de elevada ociosidade, a inflação segue em tendência declinante, tendo a variação do núcleo do índice de preços ao consumidor recuado para 0,8% nos 12 meses terminados em setembro, abaixo da meta informal de 2% perseguida pelo Fed. O risco de que o ritmo de crescimento nos próximos anos não seja forte o suficiente para produzir redução da ociosidade e do desemprego deverá fazer com que, muito em breve, o Fed volte a implementar políticas de afrouxamento quantitativo. Tendo reduzido a taxa de juros dos Fed Funds virtualmente a zero no final de 2008, a instituição já utilizou esse tipo de estratégia em 2009 para tornar ainda mais acomodatícias as condições monetárias. Tais políticas consistem na compra de títulos públicos e privados pelo banco central, que dessa forma expande a base monetária e busca afetar as taxas de juros de prazo mais longo, em contraposição às ações convencionais, que têm como instrumento a taxa overnight. Em diversas economias emergentes, a recuperação cíclica tem sido muito mais rápida e, como conseqüência, várias delas já exibem níveis baixos de ociosidade e desemprego, ao mesmo tempo em que ressurgem as preocupações com a dinâmica da inflação. Esse é claramente o caso do Brasil, onde a taxa de desemprego já está nos menores níveis da série histórica e segue em trajetória decrescente, ao mesmo tempo em que a elevação de salários e preços mostra sinais eloqüentes de aceleração. Problemas semelhantes são observados na China, que já havia anunciado elevações de depósito compulsório na primeira metade do ano e, em outubro, implementou uma elevação das taxas de juros de depósitos e empréstimos. Dessa forma, a assimetria que marca a recuperação em curso na economia mundial faz com que as políticas econômicas tenham que se mover em direções opostas nas diferentes regiões. Como conseqüência, tem-se acentuação simultânea do diferencial de crescimento e de taxas de juros entre as economias centrais e as emergentes. Os dois fatores contribuem para que os fluxos de capitais se movam vigorosamente na direção das economias emergentes. O resultado disto é a tendência de enfraquecimento do Dólar americano, notadamente depois que as autoridades explicitaram sua inclinação pela retomada do afrouxamento quantitativo. Em um mundo em que taxas de câmbio pudessem se ajustar livremente, a tendência seria que uma parte relevante da contrapartida desse enfraquecimento do Dólar fosse uma valorização da moeda chinesa, o Yuan, como fruto da vigorosa geração de superávits em conta-corrente e do próprio dinamismo da atividade econômica naquele país, que claramente lidera a recuperação mundial. A valorização do Yuan, contudo, é limitada pelas intervenções das autoridades chinesas, que controlam a trajetória do câmbio nominal e, para tanto, tem acumulado reservas agressivamente. A rigidez dessa moeda aumenta as pressões na direção de valorização das demais e coloca os ajustes cambiais na ordem do dia dos gestores de política ao redor do mundo. No caso específico do Brasil, a tendência de valorização do Real é magnificada pela expressiva elevação dos termos de troca, definidos como a razão entre os preços das exportações e importações. A recuperação mundial heterogênea que descrevemos antes tem exercido pressão altista nos preços de matérias-primas, notadamente pelo papel da China, que é um grande importador líquido desses produtos. Adicionalmente, os preços de commodities tendem a ficar pressionados também pela abundância de liquidez na economia mundial, como fruto das políticas monetárias expansionistas nas economias centrais. O Brasil, grande exportador de commodities agrícolas e minerais, é um dos grandes beneficiários desse movimento. A alta desses preços faz com que, para um dado volume de exportações, o país tenha mais receitas. Adicionalmente, para um dado nível de taxa de câmbio, a rentabilidade do setor exportador se eleva, e, portanto, há incentivo para que os exportadores expandam os volumes exportados. Esses dois efeitos somados fazem com que, naturalmente, as exportações medidas em dólares aumentem para um dado nível de taxa de câmbio. Sob um regime de câmbio flutuante, choques desse tipo geram pressões na direção de valorização da moeda. Em adição à questão dos termos de troca há, como dissemos antes, as pressões geradas pelos fluxos de capitais. A ampliação do diferencial de juros e o otimismo em relação às perspectivas de crescimento estimulam ingressos de capitais expressivos, acentuando a tendência de valorização do Real. As autoridades brasileiras têm demonstrado uma preocupação, que até certo ponto é justificável, com os efeitos dessa apreciação sobre a competitividade dos setores produtores de bens comercializáveis internacionalmente, notadamente com a indústria, que em geral não se beneficia da elevação dos preços das matérias-primas. Acreditamos, porém, que a acumulação de reservas e a elevação do IOF sobre fluxos de renda fixa tenham eficácia limitada. O instrumento mais poderoso para conter a valorização seria certamente a política fiscal. Após um forte encolhimento do superávit primário em 2009, então justificado como uma política anticíclica, a expansão dos gastos públicos tem se mantido em ritmo extremamente vigoroso neste ano. Em que pese a maior opacidade das contas públicas pela crescente utilização de subterfúgios contábeis para se alcançar as metas de superávit primário, é inequívoco que a política fiscal siga em postura fortemente expansionista, embora a adoção de um viés anticíclico recomendasse o contrário. Nesse contexto, cabe à política monetária evitar que o superaquecimento da economia exacerbe a aceleração inflacionária. Claramente, as taxas de juros requeridas são mais altas do que seriam caso houvesse maior prudência no campo fiscal. As taxas de juros mais altas, por sua vez, acentuam a tendência de apreciação do Real. Novembro | 2010 Em outros termos, as pressões no sentido da valorização do Real refletem uma combinação de condições globais excepcionalmente favoráveis e a política fiscal fortemente expansionista no Brasil, que impulsionam um crescimento da absorção doméstica em velocidade superior ao produto. Isto significa ampliação do déficit em conta-corrente, ainda que a melhora nos termos de troca reduza a velocidade de sua piora. A ampliação das importações também contribui para atenuar as pressões inflacionárias, mas é insuficiente para eliminá-las. Após fechar 2009 em 4,3%, o IPCA tem se acelerado e deve atingir algo como 5,5% no final deste ano, a despeito da elevação de 2,0 p.p. da taxa Selic promovida pelo Banco Central. Com isso, acreditamos que provavelmente será necessário retomar a trajetória de alta dos juros em 2011. Claramente, portanto, o expansionismo fiscal impõe um equilíbrio com taxas de juros mais altas, de forma a reduzir o dispêndio do setor privado e evitar um superaquecimento da economia. Essa redução do dispêndio privado inclui os investimentos, que são desestimulados pela elevação dos juros. Nesse sentido, deve ficar claro que a combinação de uma postura fiscal muito expansionista com juros mais altos gera um ambiente menos favorável ao crescimento econômico de longo prazo, pela diminuição da velocidade de acumulação de capital. Em resumo, as condições externas tão benignas poderiam permitir que o Brasil avançasse na consolidação de um crescimento mais acelerado pelas próximas décadas, e não apenas pelos próximos meses. Isto exigiria que se usasse o bônus da melhora dos termos de troca e das condições favoráveis de financiamento externo para reduzir as taxas de juros e a dívida pública, abrindo espaço para a ampliação sustentável do investimento privado. O expansionismo fiscal, com ênfase em políticas de estímulo ao consumo privado, porém, impede a materialização desses ganhos de longo prazo, embora permita um aumento da percepção de bem-estar econômico no curto prazo. Enquanto persistirem condições externas tão favoráveis, essa combinação de políticas deve se mostrar sustentável. É importante ter presente, porém, que as economias centrais não poderão manter suas taxas de juros ao redor de zero indefinidamente. Embora haja ainda muita incerteza em relação a quando terá início a normalização das condições monetárias, pode-se dizer que o Brasil elevará sua vulnerabilidade a uma mudança dos ventos se prosseguir em trajetória de expansionismo fiscal, implicando juros mais altos, valorização do câmbio e ampliação do déficit em conta-corrente. Alexandre Bassoli Economista-chefe do Opportunity e Mestre em Economia pela USP.