DISCUTINDO A DIVERSIDADE: TRABALHANDO COM LIVROS DE LITERATURA INFANTIL A presente dissertação teve como objetivo compreender os sentidos sobre a diversidade veiculados pelas professoras do 3º período da Educação Infantil, através do trabalho com livros de literatura em sala. O trabalho teve embasamento no referencial teórico sobre as concepções de infância e de educação infantil; na história da literatura infantil e no uso que se faz dela na escola e, por último, nos caminhos percorridos da exclusão à inclusão. Para tal análise, utilizamos como estratégia metodológica a Análise de Discurso (AD) na perspectiva francesa, cujo objetivo é compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto lingüístico-histórico. Após análise, compreendemos que, quando os sentidos dados à infância e à educação infantil foram futuristas, o uso da literatura e a prática pedagógica ficaram situados na formação discursiva didático-pedagógica. A questão da diversidade, que perpassou todas as demais, foi marcada por uma formação discursiva integracionista por estas professoras, no entanto, quando a concepção de infância e de educação infantil apresentou um movimento para uma formação discursiva históricocultural, o mesmo aconteceu com o uso da literatura e a prática pedagógica; sendo a questão da diversidade marcada por um processo de deslocamento para uma formação discursiva inclusivista. A formação ideológica excludente, ainda muito presente em nossas escolas e nossa sociedade, precisa que seus mecanismos sejam contados e recontados para que possam ser questionados e assim dar lugar à formação ideológica inclusiva. Palavras-chave: Diversidade; Prática Pedagógica; Educação Infantil; Educação Especial The aim of this dissertation was to understand the different meanings of diversity taught by 3rd grade Children Education teachers, through the work developed with literature books in class. The study was based in the theoretical reference on childhood and children education conceptions, on the history of children literature and on how it is used in school, and on the paths followed from exclusion to inclusion. For this analysis, the methodological strategy used was that of the Discourse Analysis, under the French perspective, whose objective is to understand how a text works and how it produces meanings once it is conceived as a linguistic and historic object. After analysis, we understood that, when the meanings given to childhood and to children education were futuristic, the use of literature and the pedagogical practice were found to be within the didactic-pedagogical discursive formation. The question of diversity, which permeated all others, was marred with a integrationalist discursive formation of these teachers. However, when the childhood and children education conception showed a movement towards a historic and cultural discursive formation, the same was noticed in the use of literature and the pedagogical practice. The question of diversity is therefore marred with a displacement process towards an inclusion-oriented discursive formation. The excluding ideological formation, still very common in our schools and society, needs its mechanisms to be assessed and questioned and thus bring forth the inclusionoriented ideological formation. Key words: Diversity; Pedagogical Practice; Children Education; Special Education DISCUTINDO A DIVERSIDADE: TRABALHANDO COM LIVROS DE LITERATURA INFANTIL Quando iniciamos a vida, cada um de nós recebe um bloco de mármore e as ferramentas necessárias para convertê-lo em escultura. Podemos arrastá-lo intacto a vida toda, podemos reduzi-lo a cascalho ou podemos dar-lhe uma forma gloriosa. (BACH, 2000, p. 75) O presente texto é fruto de uma Dissertação de Mestrado defendida em abril de 2005 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora que foi intitulada “Diversidade: Concepções e práticas na/da Educação Infantil desveladas através do trabalho com livros de literatura”. Tivemos como objetivo neste trabalho, compreender os sentidos sobre a diversidade veiculados nos discursos das professoras 3º período da Educação Infantil, através do trabalho com livros de literatura em sala, pois entendemos que os livros, em sua totalidade, englobando histórias, imagens e suas interpretações, são discursos. Como dispositivo para as análises, optamos pela utilização da abordagem de investigação qualitativa (BOGDAN e BIKLEN, 1994), utilizando como estratégia metodológica a Análise de Discurso (AD), orientada pela perspectiva francesa, que se iniciou, em 1970, com Michel Pêcheux, já que sabemos que a AD não se constitui como uma metodologia formal. Tomamos como referência o trabalho de Eni P. Orlandi publicado em suas diversas obras (1986, 1993, 1996, 1998, 2000), na qual a autora afirma que compreender é explicitar o modo como o discurso produz sentidos, quer dizer, considerar o funcionamento do discurso na produção de sentidos, explicitando o mecanismo ideológico que o sustenta. Em suas obras, Orlandi afirma que o discurso é heterogêneo, existindo várias formações discursivas num mesmo texto, que se caracterizam pelas diferentes relações estabelecidas com a ideologia. Sendo assim, uma formação discursiva divide o espaço discursivo com outras formações discursivas, numa constante interpenetração de sentidos oriundos de formações ideológicas diferentes. A formação discursiva representa, pois, o lugar de constituição do sentido e da identificação do sujeito. Já as formações ideológicas se referem ao conjunto de atitudes e representações das posições de classes em conflito umas com as outras. Neste sentido, cumpre ressaltar que o sujeito se apropria da linguagem no interior de um movimento social, no qual está refletida sua interpelação feita pela ideologia. Nosso procedimento foi o de compreender tudo o que compõe o nosso corpus discursivo, que foi constituído de: Teoria sobre infância, educação infantil, literatura infantil e diversidade; entrevistas semi-estruturadas com as três professoras1 do 3º período da educação infantil, pontuando questões sobre a formação profissional e suas concepções de educação infantil, literatura infantil, diversidade e o uso que se faz da literatura em sala de aula para discutir a diversidade; observações das duas aulas das professoras, nas quais foram trabalhados dois livros de literatura infantil previamente escolhidos por elas, com filmagens posteriormente transcritas e analisadas. Ressaltamos ainda, que entre todas as diversidades humanas, enfocamos mais a questão da deficiência, por esta ter maior visibilidade e assim se constituir numa das categorias de maior exclusão social e, por conseqüência, da escola. Para tal, realizamos nossa pesquisa com três professoras do 3º período da Educação Infantil, de diferentes escolas municipais da periferia de Juiz de Fora nas quais tinham dentre seus alunos, crianças com “Síndrome de Down”. A referida deficiência foi escolhida aleatoriamente, sendo decisivo o maior número de ocorrência na série pretendida do que outros tipos de deficiência. Como principal referencial teórico para nossa análise, trazemos a questão da diversidade humana que vem se configurando historicamente. Diversidade esta em que ser homem ou mulher, branco ou negro, magro ou gordo, ter deficiência ou não, ser homo ou heterossexual são apenas algumas das ínfimas probabilidades de sermos humanos. Hoje não podemos mais fechar os olhos para as constantes mudanças sofridas pela sociedade que seguindo o progresso das tecnologias e a rapidez das informações advindas dele, vem refletindo, nas relações sociais, mudanças de posturas e de entendimento de homem e de mundo. Como sabemos, historicamente o ser humano percorreu o caminho que vem da exclusão, constatada ainda na Antigüidade, no intuito de chegar à celebração da diversidade, o que podemos chamar de paradigma da inclusão, que contempla todas as formas de existência humana. A sociedade passou por três grandes momentos de mudanças: O Advento do Cristianismo, que tem como demarcação de tempo a passagem de Jesus Cristo, separando-o em antes (a.C) e depois (d.C); O Renascimento, na Idade Média, que deu início à Modernidade, trazendo a universalidade do sujeito como sua característica maior e, o terceiro, 1 Denomino o momento Atual por Atualidade e não Pós-modernidade, como muitos autores definem, por considerar o referido período como o de transição entre os pressupostos da Modernidade e uma nova era que ainda se encontra em construção. sendo o momento Atual2, onde se convivem pensamentos da era Moderna e da Atualidade, demarcando o movimento de ruptura e início do deslocamento de concepções que gera uma outra visão de mundo e de homem. A partir do Renascimento, mudanças significativas começaram a ser desencadeadas, tanto no aspecto científico e social, quanto no político, econômico e no filosófico, contrapondo-se à visão Teocêntrica. Tal visão tradicional e supersticiosa da Idade Média, foi substituída por uma visão científica, Antropocêntrica, baseada na razão, inaugurando a era Moderna. Isso causou no homem uma instabilidade não só filosófica, de conhecimento, mas, acima de tudo, psicológica, visto que, a partir de então, ele deixou de ser um ser passivo e foi forçado a se assumir como sujeito histórico, ontológico. A ciência foi um dos principais instrumentos responsáveis por esta ruptura. A tomada de consciência, na Modernidade, de que o homem era capaz de agir e pensar por conta própria, fez com que ele se lançasse no mundo como sujeito e não mais como objeto. Daí, recorreu-se ao conhecimento científico, para garantir seu novo lugar perante o universo. Tendo, a partir de então, a falsa pretensão de que tudo poderia e deveria ser explicado apenas pelo saber científico. A transição da era medieval para a Modernidade se caracteriza pela construção, difusão e imposição de padrões e instrumentos de medidas, sendo o princípio do universal a característica maior da Modernidade. Esta, trazendo em si a idéia do absoluto, do ideal, veio, então, dar estatuto de legitimação à exclusão arrastada desde a Antigüidade, através do estabelecimento de padrões, deixando à margem do sistema social aqueles que não conseguiam os resultados esperados, ressaltando, desta forma, a homogeneização e a hierarquização que toma como referência o sujeito padrão. O estabelecimento de padrões e a demarcação das pessoas e seus comportamentos dentro ou fora deles retrata o poder que estava imposto nesta nova visão dicotômica de sociedade Moderna que, instaurando as dualidades nos aspectos ético, estético e econômico, demarca quem pode e quem não pode fazer parte dessa nova ordem social, através da concepção de corpo produtivo trazida pelo Capitalismo e da visão funcionalista do mesmo. 2 Denominamos o momento Atual por Atualidade e não Pós-modernidade, como muitos autores definem, por considerar o referido período como o de transição entre os pressupostos da Modernidade e uma nova era que ainda se encontra em construção. A tendência era considerar como normais os padrões da classe dominante. Assim, como herança temos, dentre muitas outras, as polaridades: melhor/pior, capaz/incapaz, bom/mau, válido/inválido, normal/anormal, sendo a última importante foco para fundamentação deste trabalho. O sentido de anormalidade é bem definido por CMarques (2001, p. 50), como “contraponto necessário para a construção do sentido de normalidade.” O homem moderno cria o conceito de normalidade para se sentir seguro e afirma-se psicologicamente como estando no caminho certo. Assim, a sociedade começou a se organizar e a se disciplinar para atender às necessidades dos indivíduos, com base em valores previamente estabelecidos como normais. Desta maneira, o anormal é considerado o inadaptado, aquele que não se ajusta aos padrões da sociedade, um desviante e, por sua vez, estigmatizado, estereotipado e marginalizado no processo. Sendo assim, as vítimas das patologias sociais, com desvios de normalidade, são, permanentemente, vigiadas e excluídas do convívio social para que não “contamine” o restante da sociedade. Conseqüentemente, estabelecidos os critérios de “pertencimento” ou não à faixa de normalidade, a sociedade passa a avaliar seus membros conforme parâmetros por ela mesma definidos. Na Atualidade, os diversos valores passaram a se entrecruzar, pondo em xeque concepções anteriormente existentes. Deparamos com um deslocamento de formação ideológica que deixa de ser excludente e segregativa para rumar em direção à formação ideológica inclusiva, onde os sujeitos deixam de ser percebidos como diferentes para serem concebidos em sua diversidade. De acordo com CMarques (2001) e CMarques e LMarques (2003), várias categorias estão sendo repensadas, dentre elas a de projeto social, a de ciência, a de espaço e a de tempo. Categorias que, durante séculos, sustentaram os paradigmas da Modernidade que hoje vem cedendo espaço aos paradigmas da Atualidade. Em relação ao projeto social, o princípio do universal vem dando lugar ao da diversidade, a idéia de sujeito padronizado desloca para a de sujeito múltiplo. O conceito de projeto social que era demarcado pelo pertencimento dos normais e isolamento dos anormais, hoje vem dando lugar à convivência de todos. Inevitavelmente, o poder que era centralizado nas mãos de poucos passa a ser difuso, não mais identificado num determinado lugar ou pessoa. Desta maneira, a escola, está tendo que repensar suas concepções para atender os objetivos de uma sociedade inclusiva, já que o conhecimento científico não é mais absoluto. Reconhece não existir um só conhecimento e sim vários, sendo que nenhum é mais importante do que o outro, apenas diferentes formas de se conhecer e de lidar com o conhecimento. Essa “relativização do conhecimento”, onde a ciência não é mais o único saber, é uma das importantes características da Atualidade. A nova concepção de tempo e de espaço, nos afetam diretamente. O espaço, antes limitado, rompe as fronteiras, tornando-se ilimitado e o tempo de linear passa a ser concebido como simultâneo. Diante de tantas mudanças a escola está sendo repensada em todas as suas dimensões, embora tardiamente, visto que, somente no final da década de 80 e início de 90 é que começaram a se descortinar as diferenças sob o enfoque da diversidade, voltando seu olhar para a multiplicidade da vida em sua essência. Isso rompeu com o esforço do homem moderno de apagar o discurso e ressaltar o sujeito padrão, universal. A verdade é que os dias Atuais imploram por uma nova identidade do homem, que não seja mais tão bem delimitada como antes e que acompanhe as constantes transformações do mundo, que através de seu estreitamento de fronteiras, confronta o tempo todo as identidades conservadas e a distinção entre o que julgamos normal e anormal. Todos os projetos da Modernidade tinham como princípio a universalidade, no entanto, estes vêm dando lugar ao princípio da diversidade como concepção de vida, uma das maiores transformações já vivenciadas até os dias de hoje. Dessa maneira, o maior desafio da Atualidade é reconhecer, respeitar e, principalmente, viver a diversidade. Para isso ainda temos um grande caminho a percorrer, mas este é um “inédito viável” (FREIRE, 2002), uma utopia possível e que se tornou inevitável. Todavia, não podemos esperar que a sociedade, assim como a escola, se prepare para lidar com tal diversidade, pois isso só acontecerá a partir do momento em que todos estiverem participando e convivendo socialmente, ou seja, quando todos tiverem que lidar com essa diversidade, ressignificando seus conceitos. Enfim, como bem sintetiza CMarques e LMarques (2003, p. 239), “não há um caminho a se trilhar, mas a se construir (...) Assumir a diversidade é, em suma, assumir a vida como ela é: rica e bela na sua forma plural de ser vida.” É construir um novo sentido ético e moral para viver e conviver socialmente. Levando em consideração que historicamente a escola foi uma das instituições sociais convocada pela burguesia a colaborar com sua ascensão e manutenção política e econômica, podemos afirmar que esta se valeu e ainda se vale da riqueza da literatura infantil 3 como auxílio pedagógico para transmitir os ensinamentos, manipular as crianças e inculcar ideologias conforme a visão adulta de mundo. Numa sociedade que se diz democrática, a literatura infantil está diretamente ligada à preocupação de formar sujeitos críticos e atuantes, ampliando seu horizonte cultural e servindo como instrumento de mudanças e contestações. Mas será que sua utilização na escola vem ao encontro deste objetivo? A literatura possui uma função formadora e emancipadora, podendo através de seus textos permitir os alunos refletirem criticamente sobre a realidade que os cercam, mas esta também pode ser utilizada para inculcar padrões de comportamento que se julgue correto. No início, a determinação pedagógica eximia dos textos a possibilidade de interpretações e interrogações sobre o que se lia, apenas se narravam as histórias, persuadindo o leitor ao não questionamento e à passividade diante do contexto social, o que Cademartori (1994) chama de “monólogo do narrador.” Um exemplo disso são algumas fábulas que, dentre outras características, tendo animais como personagens, narram sua história, trazendo, ao final, a conclusão que o autor (adulto) deseja que o leitor (criança) chegue, ou seja, o que se quer é transmitir um conceito moral e não discuti-lo. Tal característica condizia com o quadro social em que estávamos vivendo e com a estrutura da Modernidade de estabelecer padrões a serem seguidos. Com isso, durante muito tempo o texto infantil não mencionava as mazelas existentes na sociedade, velando discussões sobre racismo, sexualidade, segregação das mulheres, desrespeito à criança, ao idoso ou às pessoas com deficiências, dentre outras, que somente, nos dias de hoje, vêm sendo veiculadas nos livros que apontam e discutem cada um à sua maneira, sobre a diversidade humana. Sensível ao momento histórico Atual, a nova geração de escritores propõe então “uma linguagem que se pretende resgatar a voz dos oprimidos e silenciados, representados pela criança. Desse modo, propõe um outro modelo de educação infantil, que se contrapõe ao modelo conformista de criança obediente e reprimida vigente até então” (PONDÉ, 2003, p. 41). Modelo este que perpassa pelas várias concepções de educação infantil que norteiam o nosso fazer pedagógico. 3 De acordo com Amaral (1992, p. 132), “O termo literatura infantil, engloba diferentes modalidades de texto: dos contos-de-fada, fábulas, contos maravilhosos, lendas, as histórias do cotidiano, as biografias ou momentos históricos romanceados, aos documentários e textos informativos.” Compreender os suportes teóricos que permeiam tais concepções é de extrema importância para se refletir sobre a prática pedagógica e fazer um trabalho reflexivo nesta e em todas as etapas da educação. As considerações finais Após todas as coletas de fatos, pautados na estratégia metodológica de Análise de Discurso (AD) e tomando como ponto de partida as condições de produção de cada sujeito observado, buscamos desvelar os sentidos que as mesmas trazem e que, através de suas práticas em sala de aula, deixam falar por si. Assim, estando consciente de que toda prática está fundamentada numa determinada concepção de homem e de mundo, mesmo que, às vezes, não nos demos conta disso, procuramos compreender os sentidos produzidos a partir dos discursos de tais professoras no que se refere à discussão da diversidade humana em sala de aula através do trabalho com livros de literatura infantil, compreendendo as formações discursivas e ideológicas que sustentavam tais discursos. Vale ressaltar de antemão, que tais considerações chegadas aqui não evidenciam uma conclusão final das discussões e sim, uma das possíveis interpretações que meus dispositivos de análises me permitiram traçar. Inicialmente traçamos o perfil histórico da infância que se deu desde sua negação até a valorização desta fase como importante etapa da vida humana, a qual nos permitiu elencar as várias visões de reconhecimento desta etapa, bem como seu desdobramento em diferentes formações discursivas. No que se refere à Educação Infantil, educação esta direcionada para as crianças até 6 anos de idade, discorremos sobre a sua evolução histórica e suas abordagens psicológicas. Dessa maneira, o sentido dado à infância nos discursos das professoras Graciele e Jerusa se refere à concepção futurista. A criança é vista como um ser do futuro e não do presente, no que chamamos aqui de formação discursiva futurista, todavia, esta, para romper com posturas pré-concebidas, necessita ser vista como atuante no mundo, como um ser social do agora, que possa utilizar suas aprendizagens para viver o presente, sendo que o futuro ainda estar por vir, como nos dá algumas pistas a Professora Marcela, cujo discurso denominamos estar localizado numa formação discursiva histórico-cultural. A Educação Infantil é considerada por Graciele e Jerusa como preparatória para as etapas seguintes, ou, em outras palavras, o hoje é vivenciado como suporte do amanhã, visando à aplicação do que foi aprendido anteriormente. Já Marcela avança em seu discurso, considerando a socialização e a vivência do hoje, situando-se numa formação discursiva histórico-cultural. A evolução histórica da literatura, bem como sua estreita vinculação com a escola foi outro dado referencial de relevância para se atingir o objetivo desta dissertação. Refazer este caminho nos permitiu desvendar a apropriação que a escola fez e faz da literatura infantil. No que se refere, teoricamente, à literatura infantil, somente a Professora Graciele mencionou o prazer como uma outra característica da literatura, embora essa não seja a centralidade em seu discurso. Todas as professoras deixaram claro que a literatura é vista teoricamente como mais uma estratégia didática de aprendizagem. É utilizada para fins definidos a priori, por ser interessante, por adaptar-se à linguagem e ao entendimento dos alunos, enfim, por abordar de forma criativa o objetivo maior da Educação Infantil que, para as professoras é o de preparar para o ensino da leitura e da escrita, ou melhor, preparar para alfabetização futura. Dessa forma, tais discursos sobre literatura mostram que a mesma concepção dada à Educação Infantil e à infância, como etapas preparatórias para o futuro que ainda estar por vir, é vista no uso da literatura, o que nos permite concluir que os discursos das professoras se filiaram ao que se denomina formação discursiva didático-pedagógica da literatura. A prática pedagógica exercida no trabalho com a literatura evidencia essa mesma formação discursiva didático-pedagógico com um objetivo pré-definido a se atingir, porém, a professora Marcela vai mais além no uso da literatura e em sua prática, evidenciando um deslocamento de concepção em direção a uma prática pedagógica histórico-cultural, cuja realidade, interesse e criatividade do aluno são levados em consideração, desdobrando-se em maneiras variadas de trabalhar com os livros de literatura como estratégia de reflexão imediata de suas vivências e possibilitando maiores interações. Nossa intenção não foi julgar e analisar o trabalho com livros de literatura pelo simples propósito de analisar como as professoras trabalham com eles e, sim, analisar sua prática, enfocando a discussão sobre diversidade. Assim sendo, o capítulo teórico elaborado sobre o referido assunto nos serviu de referencial para tal análise. Neste capítulo descrevemos historicamente a desconstrução do paradigma da Igualdade, dado da Modernidade em direção à construção do paradigma da Diversidade num momento em que se denomina Atualidade, cujo sua maior característica é o deslocamento da concepção de homem, que deixa de ser visto como universal para ser concebido em sua diversidade, como um sujeito múltiplo, com características únicas e individuais. Hoje, como o assunto está em voga, fala-se de diversidade, de diferenças, mas a prática ainda se pauta no apontamento e na identificação do diferente, reforçando os préconceitos existentes na sociedade. Neste sentido, em se tratando da diversidade, o discurso das professoras trouxe sentidos diferenciados. As professoras Graciele e Jerusa não propiciaram a reflexão das diferenças como um dado constitutivo do ser humano e, sim, marcaram o diferente como desviante do padrão, vinculando seus discursos na formação discursiva integracionista. Já Marcela, apesar de utilizar com freqüência o termo “diferente”, situa seu discurso no sentido da diversidade, onde as diferenças vistas como constitutivas do indivíduo dão sentido à formação discursiva inclusivista, denotando um processo de deslocamento em tal direção. No que se refere ao aluno com deficiência, novamente apenas a professora Marcela demonstra fazer um movimento de aceitação e conscientização sobre suas potencialidades. As demais, em seus discursos, produzem o sentido de negação, desconsiderando a capacidade de aprendizagem de seus alunos sindrômicos. Assim, as crianças com deficiência são, freqüentemente, rotuladas como incapazes de aprender e comumente não são mediadas e, sim, toleradas. A prática exercida com os livros de literatura infantil para discutir sobre a diversidade está diretamente relacionada com a concepção que as professoras têm de infância e educação infantil, bem como de literatura infantil; tudo isso perpassado pelo seu entendimento e compreensão sobre a diversidade humana. Após análise, compreendemos que, quando os sentidos dados à infância e à educação infantil foram futuristas, o uso da literatura e a prática pedagógica ficaram situados na formação discursiva didático-pedagógica. A questão da diversidade que perpassou todas as demais foi marcada por uma formação discursiva integracionista por estas professoras. Quando a concepção de infância e educação infantil apresentou um movimento para uma formação discursiva histórico-cultural, o mesmo aconteceu com o uso da literatura e a prática pedagógica; sendo a questão da diversidade marcada por um processo de deslocamento para uma formação discursiva inclusivista. Os sujeitos desta pesquisa, usaram a literatura infantil que trata da questão da diversidade em sala de aula, reforçando a concepção integracionista ainda presente na sociedade, embora uma delas já esteja num processo de deslocamento para a formação discursiva inclusivista. Todas as temáticas que se entrecruzam neste trabalho: infância, educação infantil, literatura infantil e diversidade precisam ser focos de estudos e pesquisas de todos nós, educadores, para que possamos caminhar além do que aqui está posto. A formação ideológica excludente, ainda muito presente em nossas escolas e nossa sociedade, precisa que seus mecanismos sejam contados e recontados para que possam ser questionados e, assim, darem lugar à formação ideológica inclusiva. Se já caminhamos para uma identificação do diferente, superando sua total exclusão, cabe-nos agora avançar na aceitação das diferenças como uma condição humana. Se assim for, nosso “Era uma vez...” iniciará outras histórias e nosso “bloco de mármore” (BACH, 2000) ao invés de seguir intacto ou ser reduzido a cascalhos, receberá formas diversas, mas isto é um outro texto. Referências Bibliográficas AMARAL, Lígia Assumpção. Espelho convexo: o corpo desviante no imaginário coletivo pela voz da literatura infanto-juvenil. São Paulo: 1992. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1992. BACH, Richard. Mensagens para sempre. São Paulo: VR, 2000. BOGDAN, Robert C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto editora, 1994. CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. MARQUES, Carlos Alberto. A imagem da alteridade na mídia. 2001. 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