[ Reportagem ] Até um relógio parado está certo duas vezes por dia. Fraca consolação para um país que tem desprezado o seu património relojoeiro de torre. O mais simbólico desses medidores do tempo, o relógio que encima o Arco da Rua Augusta, vai ser agora reparado, numa acção de mecenato que tem como pilar uma edição especial de um Jaeger-LeCoultre Reverso, o Squadra Augusta. texto de Fernando Correia de Oliveira* | fotos de Nuno Correia O mais importante espólio de relojoaria de Portugal, a Casa-Museu Fundação Medeiros e Almeida, em Lisboa, serviu de oportuno cenário para um curso de relojoaria patrocinado pela manufactura Jaeger-LeCoultre e pelo importador da marca, a Torres Distribuição. Durante três dias, grupos de dez pessoas – entre coleccionadores, jornalistas especializados e retalhistas – tiveram ocasião de tomar contacto com o Calibre JLC 875, que equipa o Reverso Grande Date, sob a orientação de um mestre relojoeiro vindo expressamente de Le Sentier, em Valée de Joux, onde se encontra, desde 1866, a manufactura, fundada 33 anos antes por Antoine-LeCoultre. Desmontagem e montagem do calibre, primeiro, no computa dor, e, depois, manuseando o próprio movimento, em bancadas individuais, proporcionaram aos 30 amantes da relojoaria apreciar a delicadeza da micromecânica empregue nos relógios de pulso. Este foi o aperitivo para a acção que a Torres Distribuição e a Jaeger-LeCoultre desenvolveram depois, em colaboração com Espiral do Tempo 25 Verão 2007 53 O tempo e o poder em Lisboa Quanto mais concentrado o poder, fosse ele religioso ou civil, mais unificado o tempo, através de marcadores simbólicos que regulavam os anos, os dias, as horas da comunidade, os ritmos de trabalho e de ócio, de reza e de divertimento. o IGESPAR (antigo IPPAR) na Baixa pombalina – uma visita ao Arco da Rua Augusta, para contac to com a relojoaria grossa – o termo técnico que se dá aos relógios de torre, em contraposição à chamada relojoaria fina ou de pulso. Quem passe este Verão pela Rua Augusta não deixará de notar que o monumento está co berto com várias faixas, de ambos os lados, fa zendo menção a uma iniciativa inédita no País – a Jaeger-LeCoultre e a Torres Distribuição vão patrocinar o restauro do relógio que lá se encontra, bem como de um outro, muito mais antigo, que ali está, ambos parados e a necessitar de cuidados urgentes. Subidas umas íngremes escadas em caracol, chega-se a uma ampla sala, com clarabóia, na curva do arco, onde foi dado a conhecer aos visitantes o modelo de relógio da Jaeger-LeCoultre que vai permitir toda esta acção de mecenato. Trata-se de um Reverso Squadra Hometime, em ouro rosa, numa edição especial, baptizada de Squadra Augusta. Limitado a 32 peças (tantos quantos os anos que separaram o primeiro projec 54 Espiral do Tempo 25 Verão 2007 to do arco e a colocação das últimas estátuas na Praça), com mostrador preto e ponteiros ver melhos, segundo fuso horário, ostentará na caixa uma gravação, representando o arco. «O Squadra, lançado em 2006, é a nova forma do mítico Reverso, e com isso queremos associar o passado de uma linha clássica, bem geométrica, como o traço da Baixa pombalina, com o futuro e o restauro dos relógios de torre que estão no Arco», disse Pedro Torres, da Torres Distribuição. Os lucros da venda do Squadra Augusta serão directamente destinados ao trabalho de restauro, e os compradores verão o gesto eternizado com o respectivo nome gravado numa placa em bronze que será colocada junto aos relógios restaurados. «Esta iniciativa marca a primeira colaboração tripartida entre a Torres Distribuição, a Manufac tura Jaeger-LeCoultre e o Instituto de Gestão do Património Arqueológico (IGESPAR , antigo IPPAR)», referiu Pedro Torres. «As próximas acções terão o objectivo comum de restaurar ou tras peças do património relojoeiro do País, ao ritmo de uma intervenção por ano», disse. Não se sabe ao certo quando é que os relógios mecânicos foram introduzidos em Portugal, embora seja provável que tenham vindo com as ordens religiosas que ajudaram a dar forma ao território no tempo da Reconquista. De qualquer modo, em 1377, a Sé de Lisboa tinha uma torre de relógio, batendo sinos, um mecanismo financiado em partes iguais pelo rei, D. Fernando, pelo Cabido e pelos homens bons da urbe. Terá sido o primeiro relógio mecânico na Capital, feito e mantido por um certo ‘mestre João, francês’, e sintomaticamente erigido pelos três poderes – nobreza, clero e povo. Como seria normal na altura, esse relógio não teria mostrador – servia para ‘bater’ horas e não para as mostrar. Regulava mais a vida religiosa do burgo do que outra coisa, mas servia também para indicar a hora de recolher a casa, o fechar de portas dos bairros onde viviam as várias minorias – judeus e mouros – através do toque do chamado sino da colhença. Com D. Manuel I e a construção do Paço da Ribeira das Naus, o tempo de Lisboa passou a ser mais regulado, pela torre do relógio que aí passou a existir, e a função de relojoeiro do Paço passou a constar das listas de funcionários. O tempo torna-se cada vez menos sagrado, cada vez mais profano. A primeira imagem deste relógio do Paço data de 1520, já com mostrador, mas apenas com um ponteiro, pois os mecanismos da época eram pouco exactos e o ponteiro dos minutos não fazia grande sentido quando os desvios diários eram enormes. Com o dinheiro do ouro do Brasil, D. João V mandou reformular o Paço da Ribeira e encomendou uma torre do relógio ao arquitecto italiano Canevari. O edifício ficou rapidamente célebre não só em Lisboa como em todo o País, pela respectiva opulência e pela qualidade do mecanismo do relógio ali instalado (possivelmente de origem flamenga, como os dois extraordinários exemplares que o rei encomendou para o Convento de Mafra). Forasteiros vindos de toda a Europa também faziam notar o esplendor barroco desta torre. Mas o terramoto de 1755 faz desaparecer parte de Lisboa, incluindo a torre de Canevari e o que resta desse tempo é um painel, hoje no Museu do Azulejo, onde o Paço e o efémero re lógio aparecem. A reconstrução da capital, sob Reportagem Relógio do Arco da Rua Augusta 55 A reconstrução da capital, sob a direcção de Pombal, previa uma praça esplendorosa em redor do que havia sido o Paço e um projecto de Carlos Mardel contemplava um enorme arco triunfal com relógio. Isso não passou do papel e o que é hoje o Terreiro do Paço é bem diferente e demorou mais de um século a ser feito. a direcção de Pombal, previa uma praça esplen dorosa em redor do que havia sido o Paço e um projecto de Carlos Mardel contemplava um enorme arco triunfal com relógio. Isso não passou do papel e o que é hoje o Terreiro do Paço é bem diferente e demorou mais de um século a ser feito. De qualquer modo, e com forte carga maçónica (o próprio Pombal teria sido iniciado como pe dreiro livre quando andou como embaixador por Londres e Viena), o Arco de Triunfo da Rua Au gusta é inaugurado em 1873 com estatuária sim bólica do escultor e maçom francês Camels. Augusto Justiniano de Araújo O Arco da Rua Augusta, tal como hoje o vemos, terá recebido, em finais do século XIX, um mecanismo vindo do Convento de Jesus, que «não estava preparado para indicar as horas para o lado da rua», segundo relato da época. Ou seja, era um relógio apenas para ‘bater’ horas. Foi Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, quem o adaptou, substituindo o escape de folliot por um de âncora, e o relógio passou a dar e a ‘bater’ as horas aos alfacinhas a partir de 4 de Dezembro de 1883. «No dia quatro, às sete da noite, ficou com pleto o assentamento do relógio do Arco da Rua Augusta. Este relógio é de construção nacional e do estilo do século XVIII. Era do antigo convento de Jesus e não estava organizado para indicar as horas para o lado da rua.» «As modificações para este fim foram feitas pelo Sr. Araújo, relojoeiro estabelecido na Rua da Boa Vista, n.º 164, 1.º, assim como o escape que o mesmo artista inventou e que denominou ‘escape Araújo’.» 56 Espiral do Tempo 25 Verão 2007 Augusto Justiniano de Araújo nasceu em Valença do Minho, em 1843, e faleceu em Lis boa, em 1908. Relojoeiro-construtor (fabrica relógios de torre, parede e precisão), foi agraciado com a medalha de prata e cobre, na Exposição Industrial de 1888. Estabeleceu-se em Lisboa, na Rua Nova do Almada, 81; na Rua da Boavista, 164, 1.º, Fábrica de Relógios de Torre; e na Rua São João da Mata, algumas vezes em sociedade com o seu amigo Veríssimos Alves Pereira, um outro relojoeiro famoso do século XIX português. Exerceu gratuitamente o cargo de director técnico da Empresa Fabril de Relojoaria. Na Exposição Industrial Portuguesa de 1888, apresentou um cosmocronómetro de sua invenção (1886) e construção que desde logo foi distinguido com várias medalhas (existe um exemplar do cos mocronómetro, um relógio de hora universal, na Sociedade de Geografia de Lisboa). Nessa oca sião, já tinha construído 23 relógios de torre, não só para o interior do País como para os Açores, S. Tomé, Angola e Brasil. Foi o fundador, em 1895, da Escola de Relojoaria da Casa Pia. É reconhecido como o mais importante e sábio construtor português de relógios de parede e torre dos séculos XIX e XX. Foi director e fundador da revista ‘O Cosmochronometro’, provavelmente a primeira do género que houve em Portugal. Manuel Francisco Cousinha Várias peripécias, avarias, levaram à substituição do relógio já no século XX por uma máquina da autoria de Manuel Francisco Cousinha, um dos grandes construtores nacionais de relojoaria grossa, férrea, de torre ou monumental. Manuel Francisco Cousinha nasceu em 1894, em Palheiro às Pontes, Sobral Magro, Po mares, Arganil. Foi um dos mais importantes construtores de relógios de torre do seu tempo. Fez parte do Corpo Expedicionário Português (CEP), em França, onde terá aprofundado conhecimentos relojoeiros que já demonstrara intuitivamente ainda criança. Fundou, em 1930, A Boa Construtora, Fábrica Nacional de Relógios Monumentais, a funcionar num barracão em Al mada, posteriormente remodelado. A fábrica de Almada produziu os mais diversificados e com plicados relógios que vendeu para todo o País, para as ilhas, colónias e para o Brasil. Falecido Manuel Cousinha, em 1961, con tinuou a fábrica entregue aos familiares, tendo falido em 1974, vítima das dificuldades laborais surgidas com o 25 de Abril. Um neto de Cousinha, que se tem dedicado à reparação, restauro e manutenção da relojoaria grossa nacional, vai agora proceder ao restauro estético do velho relógio vindo do Convento de Jesus e que foi adaptado e colocado por Augusto Justiniano de Araújo no final do século XIX nesse local, e que se encontra muito degradado. E vai voltar a colocar em funcionamento o relógio que o avô Cousinha fabricou e instalou nos anos 30 do século passado no Arco da Rua Augusta. O restauro deverá estar terminado em Setem bro e, com os seus ministérios e funcionalismo público, símbolo da centralidade e do poder até aos nossos dias, o ‘Paço’ alfacinha voltará assim a ter um relógio que marcará o tempo da co munidade. ET * Jornalista e investigador do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades Reportagem Relógio do Arco da Rua Augusta 57