A escola pública de qualidade é mais importante que a data
de um exame
11.06. 2013, Público, por José Vítor Malheiros
Quando alguém diz "Eu sou a favor das greves..." segue-se, em geral, uma adversativa que
precede a explicação por que, desta vez, nesta data, neste sector e nestas circunstâncias, a greve
é socialmente injusta, moralmente ilegítima, tacticamente errada ou políticamente
contraproducente. As razões por que não se deve fazer greve desta vez variam em género, em
grau e em combinatória, mas o resultado é sempre o mesmo: a greve é um direito inalienável
dos trabalhadores consagrado na Constituição da República Portuguesa, mas, na opinião das
pessoas que assim falam, deve ser usada apenas quando não possui absolutamente
inconveniente nenhum para ninguém.
Ora a greve não pretende ser uma arma inócua. A greve é uma arma de último recurso, que se
usa quando os trabalhadores consideram que está em causa a defesa de direitos importantes seus ou da sociedade em geral - e quando já falharam as negociações. Se as negociações são o
momento da racionalidade e da discussão, de pesar ganhos e perdas, de avaliar vantagens e
inconvenientes de um lado e de outro, a greve é o momento da força. A greve não é um recurso
retórico. A greve é uma arma que se usa numa situação de conflito e visa prejudicar o
adversário, enfraquecer a sua posição e, acima de tudo, mostrar a força que o lado em greve
possui, para regressar de novo à mesa das negociações e para conseguir chegar a um acordo que
satisfaça as partes. A greve pretende sempre ser uma chamada à realidade do outro lado - que,
frequentemente, pensa que pode dispensar os trabalhadores e impor unilateralmente as
condições que lhe convêm. Há uma razão prática que limita o recurso à greve e que a torna, de
facto, uma arma de uso excepcional: os trabalhadores que fazem greve perdem o salário
correspondente, o que, principalmente em época de crise, não é algo que se aceite levianamente.
O argumento de que a greve dos professores vai prejudicar os alunos e, por isso, não deve ser
feita, é tão pueril como dizer que as greves de transportes não devem ser feitas porque
prejudicam os passageiros e as greves de recolha do lixo não devem ser feitas porque
prejudicam os moradores. As greves prejudicam sempre alguém.
É evidente que os grevistas têm de pesar os prejuízos que causam em relação às causas que
defendem e aos benefícios que esperam. Não é aceitável que uma greve de trabalhadores da
saúde se salde por uma única morte que seja. Mas considera-se que um certo grau de
desconforto momentâneo da população é um preço aceitável a pagar pelo direito a defender os
nossos direitos. E são "os nossos direitos" porque a greve não é algo que apenas os outros
façam. A greve é uma ferramenta que todos temos na mão.
É evidente que podemos ter opiniões diferentes sobre a justeza de uma dada greve, mas são
raros os que acham que os professores não têm, no caso vertente, razão suficiente de protesto,
perante a tentativa de industrializar uma escola pública de baixo nível para os pobres e
proletarizar os professores. O prejuízo dos alunos? Essa é a arma da greve. Nenhum professor
deseja ou aceita que um aluno seja seriamente prejudicado pela greve - além do incómodo
decorrente de, eventualmente, repetir o exame - mas essa é uma preocupação que, agora, o
Governo deve assumir. Havendo greve, tem de ser dada possibilidade aos alunos de realizar
exames noutras ocasiões, de forma a não os prejudicar. Vai ser uma grande confusão?
Provavelmente. Mas essa é, mais uma vez, a arma da greve. Essa é a pressão da greve e, se não
aceitarmos que uma greve possa dar origem a estas formas de pressão, isso significa que não
aceitamos o direito à greve. Nem o dos outros, nem o nosso. Significa que, sejam quais forem as
condições que nos imponham no nosso trabalho, achamos que não devemos ter o direito de
parar de trabalhar.
É evidente que existem nas greves em geral, e também nesta, coisas irritantes. Além de alguma
imaginação nos protestos, teria gostado de ver no centro das intervenções dos professores a
defesa da escola pública, a defesa da qualidade do ensino e a defesa dos direitos dos jovens
(incluindo daqueles que deviam ser alunos e não o são) em vez de quase exclusivamente os
direitos dos professores - por muito que estes sejam de prezar. Não é apenas um erro retórico: é
um erro político de consequências sérias. Seria importante aproveitar este momento para
explicar de que forma todas as medidas deste Governo põem em causa a escola pública
inclusiva e de qualidade que tem sido construída nas últimas décadas. Mas os sindicatos dos
professores estão demasiado centrados numa defesa estreita dos direitos dos seus associados. É
um erro político porque facilita à direita o uso da retórica dos "privilégios" e da "resistência à
mudança". É um erro político quando a greve e o "prejuízo dos alunos" tornam fácil a acusação
de "egoísmo" àqueles que são o principal esteio da escola pública e os principais autores dos
seus êxitos - que existem e seria bom lembrar nestes dias de greve.
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