SIGNOS DA VIDA: A LINGUAGEM E OS SIGNIFICADOS DO ADN1 José Geraldo W. Marques2 Se estiver correto o posicionamento epistemológico que sustenta, o funcionamento da ciência desempenhado principalmente por metáforas, o supermetafórico livro de Pollack, publicado originalmente nos Estados Unidos em 1984, é uma contribuição ímpar. Sob este aspecto, o exercício que perpassa todo o livro, qual seja o de comparar metaforicamente o DNA a um texto, situá-lo num contexto e antecipar-se à metáfora do palimpsesto genômico, é simplesmente genial. E quando se trata de metáfora & ciência, ninguém melhor no Brasil do que Rui Cerqueira (UFRJ) para ser escolhido assessor, como o fez acertadamente a editora que publicou entre nós a tradução portuguesa. O livro faz parte da "Coleção Ciência Atual", da Editora Rocco, uma coleção que se põe a meio caminho entre a divulgação e o tecnicismo científicos. Ele consegue preencher bem este requisito: não sendo destinado a especialistas em biologia molecular, trata do tema de forma rigorosa, porém indo em busca de um público mais amplo, quer dentre os acadêmicos interessados em tratamentos interdisciplinares, quer dentre leigos cientificamente cultos. É especialmente indicado para estudantes de nível universitário das áreas biológicas e biomédicas, embora deva frisar-se que não se trata de um livro para iniciantes, mas para iniciados. Estes, dentre os da geração mais jovem, são a grande esperança do autor para um ajuste de paradigma (no sentido Khuniano) no futuro desenvolvimento da biologia molecular, que, segundo ele, deverá abrir-se para a interdisciplinaridade, tanto para converter-se, pela via do diálogo com a lingüística, parcialmente em uma ciência do comportamento, quanto para tornar-se, pela via do diálogo com as Humanidades, uma disciplina histórica. Um dos pontos fortes do texto como um todo encontra-se exatamente na interdisciplinaridade exercitada pelo autor, uma prova inconteste de que um indivíduo pode tornar-se interdisciplinar, sim, e isto, inclusive, sem recorrer a arrogâncias exibicionistas de simples erudição. A lingüística, a história, a hermenêutica, a literatura e até a cultura judaica (pois o autor é judeu) são ferramentas complementares que servem de âncora para : A Linguagem da Ciência # 4, maio de 2005 seguros acostamentos genômicos e é isto que vai permitindo uma escalada metafórica progressiva, que por vezes avança para uma estética livre de poeta sem perda da rigorosa estética do cientista. Há metáforas, afirmações e analogias realmente poderosas, algumas delas capazes de gerar luminosos insights. A analogia com o processador de textos, tema do quarto capítulo, é um desses exemplos. Algumas metáforas e afirmações, pelo seu caráter exemplar e para não trair o autor, merecem transcrição. Veja-se esta afirmação, que se encontra à página 159: "(...) línguas mantêm grupos de pessoas geneticamente isolados (...). Nem mesmo as nações com todo o seu poderio para demarcar fronteiras e travar guerras, são tão eficientes em manter separadas pessoas". E esta (p. 160): "A capacidade humana para muitas línguas trouxe conseqüências para o próprio genoma que a proporcionou". E estas metáforas (p. 145 e p. 54, respectivamente): "O ADN e a proteína têm gramática e sintaxe, e já podemos encontrar (nelas) também erros tipográficos, duplos significados, sinônimos e outras sutilezas". "O genoma humano é um texto, mas não um texto sagrado". O texto (no caso, o do livro) é uma produção pré-mapeamento do genoma humano. Nele, portanto, considerando-se inclusive a velocidade com que genômicas e outras ômicas têm prosperado, há anacronismos. Duas das adesões do autor, comuns à época da escrita, sofreram abalos com o tempo. A primeira diz respeito à expectativa exagerada quanto ao número de genes que o genoma humano conteria, pois ele chega a falar em um mínimo de : A Linguagem da Ciência # 4, maio de 2005 400.000 (p. 90), quando a realidade revelou menos de 25.000! A segunda diz respeito à necessidade da procura de diversidade biológica intra-específica, sendo ele enfático quanto a se buscar o mapeamento de genomas humanos, uma tarefa que seria plural e não se restringiria à singular busca do que ele chama de apenas uma versão genômica. No caso, prevaleceu a singularidade, uma vez que a tentativa de Cavalli-Sforza e equipe do "Projeto da Diversidade do Genoma Humana", infelizmente, não conseguiu lograr êxito. O capítulo final do livro, que tem por título "Entre a Física e a História: o Novo Paradigma da Biologia", trata exatamente, de forma apaixonada e apaixonante, da diversidade humana, não se restringindo aos aspectos biológicos, mas também aos aspectos culturais e às interrelações entre ambos, sobretudo no que diz respeito aos aspectos lingüísticos. Sua defesa da importância da pluralidade representada pelos povos indígenas é brilhante. À página 163 encontra-se o seguinte: "Quando os biólogos moleculares aceitarem a importância central de se preservar e estudar a diversidade dos genomas (...) perceberão a necessidade de se evitar a destruição de povos e línguas indígenas. (...) Um povo indígena que se perca significa que uma porção da biblioteca completa de esboços de genomas (...) nunca mais poderá ser recuperada". O autor tem autoridade para falar sobre o tema a que se propõe, pois foi colaborador de James Watson no Cold Spring Harbor Laboratory durante vários anos. Não obstante essa autoridade, porém, alguns temas parecem ter sido tratados com alguma falta de precisão. Tal parece ser o caso das comparações entre Síndrome de Down e Mal de Alzheimer e da afirmação sobre daltonismo, tratando-o no singular. Outros aparentam refletir mais uma opinião pessoal do autor, a exemplo do trato que ele dá à relação entre genoma e homossexualidade: ao faze-lo, parece ignorar as polêmicas em torno do assunto. Mas ele fala (escreve!) com autoridade inconteste, principalmente quando o seu texto reflete e convida o leitor (na realidade, intima-o!) à reflexão, não apenas sobre questões técnicas, mas principalmente sobre questões éticas. Os transgênicos não saem inocentados, muito pelo contrário. Algumas experiências reais e possíveis com o genoma humano são por vezes apresentadas em preto-e-branco: aterrorizantes como na verdade elas : A Linguagem da Ciência # 4, maio de 2005 o são. A mercantilização da vida decorrente desses experimentos e de outras descobertas relacionadas com as ômicas recebe o tratamento crítico que bem merece. O livro é pois importante, um texto necessário ao contexto científico e social que ainda persiste – e que por certo persistirá por bastante tempo - mesmo após as surpresas subseqüentes ao mapeamento do genoma humano. Na forma, porém, em que ele se apresenta aos leitores brasileiros, há vários poréns. A tradução perceptivelmente trai o pensamento do autor em várias passagens, além de pecar por imprecisões terminológicas e de gerar passagens absolutamente nonsense. Há erros que escaparam à revisão: alguns de concordância gramatical dificultam a compreensão de certas passagens; outros, até mesmo de data (como é o caso do que situa Lewontin em 1892! p. 150), contribuem para uma aparente descontextualização. A apresentação gráfica, por sua vez, não é das melhores. Considerada, porém, a sua importância e o seu potencial para tornar-se um referencial clássico, bem que valeria a pena uma edição que superasse esses empecilhos atuais. NOTAS (1) Robert Pollack. Rocco, Rio de Janeiro, 1997. 190 pp. (2) José Geraldo W. Marques – Laboratório de Etnobiologia – Depto. de Ciências Biológicas – Universidade Estadual de Feira de Santana. : A Linguagem da Ciência # 4, maio de 2005