CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMAGEM NO TELEJORNALISMO E A CONCEPÇÃO DA REALIDADE A PARTIR DO IMAGINÁRIO SOCIAL Fábio Cadorin RESUMO: Este artigo analisa a relação entre telejornalismo e expressão da realidade, sob a perspectiva do imaginário social. Questiona até que ponto a imagem televisiva consegue retratar a realidade. Leva em conta que realidade pode ser tão somente produto de percepção cultural, fruto do imaginário social. O marco teórico baseia-se, sobretudo, no trabalho de pesquisadores da Sociologia do Imaginário, como Michel Maffesoli e Juremir Machado da Silva. A análise revela que a imagem no telejornalismo não pode ser considerada mais do que a expressão de uma pretensa realidade, tanto porque a imagem está sujeita a percepções diversas, como pelo fato de que a realidade parece estar desprovida de uma condição objetiva e mais próxima de uma construção social. PALAVRAS-CHAVE: Imagem. Imaginário social. Realidade. Telejornalismo. É comum oporem-se as noções de realidade e imaginário. Tradicionalmente, vincula-se a realidade àquilo que é verdadeiro, e imaginário a uma construção mental sem compromisso ou correspondência com a verdade. Essa tendência, contudo, vem sendo enfraquecida pelo avanço dos estudos do imaginário, principalmente em sua dimensão social. Antes mesmo de a expressão “imaginário social” ser cunhada e tornar-se legítimo objeto de investigação científica, essa noção permeou o pensamento de inúmeros pesquisadores do universo social. Pode-se dizer que esteve na massa “imaginada” de Le Bon e Tarde, nas representações coletivas de Durkheim, no ideal social de Weber ou gravitando pelo imaginário do cotidiano em Simmel. Mas é no fim da década de 1920 que esse conceito começou a ser sistematizado e a desenvolver-se, a ponto de se firmar com o status de sociologia do imaginário. Mannheim, Mauss e integrantes do Colégio de Sociologia estão entre seus precursores. Bachelard e Durand aprofundaram essa investigação. Contemporaneamente, o imaginário social está no centro do trabalho de pensadores como Castoriadis, Morin, Baudrillard e Maffesoli. (LEGROS, MONNEYRON, RENARD, 2007). Não há um conceito único que dê conta do que seja o imaginário social. Há, sim, noções confluentes que lhe conferem sentido. Enfatiza-se, neste trabalho, o pensamento de Maffesoli. Para o autor, o imaginário social “é o estado de espírito que caracteriza um povo. Não se trata de algo simplesmente racional, sociológico ou psicológico, pois carrega também algo de imponderável, um certo mistério da criação ou da transfiguração” (MAFFESOLI, 2011, p. 75). Maffesoli também compreende o imaginário como aura. “Não vemos a aura, mas podemos senti-la. O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. Algo que envolve e ultrapassa a obra” (MAFFESOLI, 2011, p. 75). É pela força do imaginário que os membros de uma comunidade se unem. Ele se consolida como “laço social”, respeita uma certa autonomia do indivíduo, porém, sobrepõe-se a ele. “(...) o imaginário de um indivíduo é muito pouco individual, mas sobretudo grupal, comunitário, tribal, partilhado” (MAFFESOLI, 2011, p. 80). Juremir Machado da Silva concorda com essa noção quando diz que o imaginário “(...) só se atualiza pela força de valores partilhados, de imagens reverenciadas em conjunto e de sentimentos e afetos intensificados pela comunhão” (SILVA, 2006, p. 20). Esses valores e sentimentos partilhados, ideias comuns, essa aura, se difundem por meio das tecnologias do imaginário, “aquelas tecnologias de comunicação e informação 2 capazes de excitar os sentidos (especialmente a visão) e fomentar a atividade do imaginário” (FELINTO, 2005, p. 92). Maffesoli também defende que o imaginário é alimentado por tecnologias. A técnica é um fator de estimulação imaginal. Não é por acaso que o termo imaginário encontra tanta repercussão neste momento histórico de intenso desenvolvimento tecnológico, ainda mais nas tecnologias de comunicação, pois o imaginário, enquanto comunhão, é sempre comunicação (MAFFESOLI, 2011, p. 80). Com base nesses pressupostos, entende-se que a realidade, tal como se apresenta também pela imagem televisiva, resulta sempre de um processo de construção social. O conteúdo visual que chega ao telespectador, ainda que possa ser revestido de uma intenção objetiva, tende sempre a revelar olhares de sujeitos inseridos num contexto social e imaginal. Compreender o processo de construção da realidade a partir da imagem veiculada pelo jornalismo televisivo é uma tarefa complexa, como já se disse, a começar pelo entendimento do que seja a realidade. Como afirma Araújo (2006, p. 19), “estudos filosóficos questionam os diversos enfoques dados ao conceito, problematizando a própria idéia de ‘realidade’ e sugerindo que tudo é representação e subjetividade”. A ótica de que tudo é representação e subjetividade aproxima o conceito de realidade do campo da linguagem. Fiorin (2004) diz que a realidade só tem existência para os homens quando é nomeada. Os signos são, assim, uma forma de apreender a realidade. Só percebemos no mundo o que nossa língua nomeia. (...) A atividade linguística é uma atividade simbólica, o que significa que as palavras criam conceitos e esses conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo (Fiorin, 2004, p. 55-56). Um exemplo clássico no campo da linguagem, que ajuda a sustentar esse argumento, é a história de Kaspar Hauser. Criado em um sótão, sem contato humano até os 18 anos, ele aparece na cidade de Nurembergue, na Alemanha, por volta de 1828. O caso é examinado por Blikstein (1995) em “Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade”, que propõe questões como “até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade ‘extralinguística’? Como é possível conhecer a tal realidade por meio dos signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?” (BLIKSTEIN, 1995, p. 17). O autor relata a experiência do personagem ao mesmo tempo em que analisa a relação entre linguagem, percepção, conhecimento e realidade. Segundo ele, a enigmática história de Kaspar Hauser comprova que o que se julga ser verdade não passa de um produto de percepção cultural. Sabemos que, do nascimento à maturidade, Kaspar Hauser esteve isolado de qualquer contexto ou prática social; pois bem, o que podemos verificar de sua experiência é que, a despeito da ação da linguagem (adquirida na fase adulta) ou de uma eventual organização mental inata, Kaspar Hauser não consegue captar o mundo como o faz a sociedade que o cerca. Fica evidente então que o seu sistema perceptual está desaparelhado de uma prática social. E é nessa prática social ou práxis que residiria o mecanismo gerador do sistema perceptual que, a seu turno, vai fabricar o referente (BLIKSTEIN, 1995, p. 53). Decorre dessa perspectiva que a apreensão do conteúdo visual também é condicionada pela práxis, pela vivência em determinado contexto imaginário. Maffesoli (2011, p. 76) afirma que “a existência de um imaginário determina a existência de conjuntos de imagens. A imagem não é suporte, mas o resultado”. 3 Pinto (2002, p. 37) defende que “nas imagens, encontramos intertextualidadade, enunciadores e dialogismo, tal como nos texto verbais”. Ora, sob esse ponto de vista, então, é possível pensar a imagem como discurso que transcende uma suposta realidade objetiva. A relação entre imagem e realidade é abordada também por Santos (2008, p. 186), ao analisar a imagem como matriz histórica da nação moderna. Segundo ele, “todos parecem apontar nossa contemporaneidade como sendo regida por imagens, a ponto de se dizer que não há mais realidade, mas apenas imagens”. Joly (1996) credita à diversidade de significações da palavra imagem a dificuldade em conceituá-la. Ainda assim, aponta aspectos comuns entre as várias acepções do termo, o que torna possível apreendê-lo. Compreendemos que indica algo que, embora nem sempre remeta ao visível, toma alguns traços emprestados do visual e, de qualquer modo, depende da produção de um sujeito: imaginária ou concreta, a imagem passa por alguém que a produz ou reconhece (JOLY, 1996, p. 13). Aqui, chega-se ao ponto-chave dessa análise. Se toda imagem depende da produção de um sujeito, é lógico pensar que o conteúdo visual transmitido pela televisão não retrata a realidade, mas uma realidade possível, a partir de quem a produziu. Comprovar tal proposição é possível, quando se pensa, por exemplo, numa cobertura jornalística televisiva. Suponha-se que um fato ocorre numa determinada hora e lugar. As imagens desse acontecimento são captadas pelo repórter cinematográfico. Em última instância, por manipular da câmera, é ele quem acaba determinando que recortes, no tempo e espaço, serão capturados daquela situação. É preciso considerar, ainda, condições físicas do ambiente, tais como luminosidade e a possibilidade ou não de aproximação, o tempo de que se dispõe para a tarefa, e parâmetros legais aos quais está sujeita a veiculação de imagens pela televisão, etc. Por outro lado, pode-se pensar também que em virtude de haver um repórter e uma câmera no lugar da cobertura, outras realidades podem ser criadas, ou deixar de existir. Pode-se pensar, por exemplo, numa ação policial contra determinados manifestantes. Os policiais podem deixar de usar certas táticas pelo fato de sua ação estar sendo registrada. Em condições amplamente favoráveis, a intervenção subjetiva é ainda mais provável, uma vez que aumentam as possibilidades de escolha dos componentes do plano. Entende-se plano como “porção do filme impressionada pela câmera entre o início e o final de uma tomada; num filme acabado, o plano é limitado pelas colagens que o ligam ao plano anterior e ao seguinte” (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p. 37). Goliot-Lété e Vanoye (1994) apresentam oito componentes do plano. Embora aplicados à produção fílmica, sobretudo cinematográfica, não deixam de ter relação direta com as filmagens produzidas com fins à veiculação televisiva. São eles: 1. A duração (do ‘instantâneo fotográfico’ ao plano que esgota a capacidade total de carga do filme na câmera). 2. Ângulo de filmagem (tomada frontal / tomada lateral, plongée / contre-plongée, etc.). 3. Fixo ou em movimento (câmera fixa / câmera em movimento: travelling, panorâmica, movimento com a grua, câmera na mão, etc; objetiva fixa / zoom: movimento ótico). 4. Escala (lugar da câmera em relação ao objeto filmado): plano geral ou de grande conjunto; plano de conjunto, plano de meio conjunto; plano médio (homem de pé); plano americano (acima do joelho); plano próximo (cintura, busto); primeiríssimo plano (rosto); plano de detalhes (insert, pormenor). 5. Enquadramento: inclui o lugar da câmera, a objetiva escolhida, o ângulo de tomadas, a organização do espaço e dos objetos filmados no campo. 6. Profundidade de campo: de acordo com a objetiva escolhida, a iluminação, a disposição dos objetos no campo, o lugar da câmera, a parte de campo nítida, visível, será mais ou menos importante. 7. Situação do plano na montagem, no 4 conjunto do filme: Onde? Em que momento? Entre o que e o quê? etc. 8. Definição da imagem: cor / preto e branco, ‘grão’ da fotografia, iluminação, composição plástica, etc. (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p. 37). No momento em que são escolhidos os componentes do plano, busca-se de alguma forma enunciar algo, ainda que, em certos casos, a opção se dê mais por caráter estético. Logo, cada tomada pode conter um discurso próprio. Avançando um pouco no processo, o conteúdo capturado pelo repórter cinematográfico passará, no mínimo, por um editor de imagens, antes de ser veiculado. Assim, se recortes dessa suposta realidade já haviam sido efetuados no momento da obtenção das imagens, agora, a seleção delas estreita ainda mais a visão do fato. Por necessidade de delimitação de objeto de análise, aborda-se aqui apenas a relação entre imagens e fabricação da realidade. Mas não há como desconsiderar o fato de que a maioria do conteúdo visual transmitido pelo jornalismo de televisão é acompanhada por texto verbal. E que essas imagens precisam estar de acordo com esse conteúdo. Logo, a necessidade de relacionar palavras e imagens é também mais um relevante fator que reduz a amplitude do fato, ou acontecimento em questão. Retomando, então, o que disse Pinto (2002), sobre o fato de imagens conterem intertextualidadade, enunciadores e dialogismo, depreende-se que, no caso da televisão, o que se apresentará como realidade é tão-somente um pequeno recorte do que ela pode ser. Ao analisar cerca de 135 pesquisas sobre televisão, entre teses e dissertações, efetuadas na década de 90 nos 11 programas de Pós-Graduação em Comunicação existentes no Brasil, Jacks (2006) constatou que, em relação ao estudo do emissor, a imagem foi entendida com potencial de significação superior ao verbal, “porque toca mais os sentimentos e não precisa de aprendizado para sua leitura, ao contrário do texto. A imagem, mais do que outros códigos, é fonte de dúvidas sobre sua apreensão devido a sua atuação mais direta no imaginário do receptor” (JACKS apud DUARTE E. B.; CASTRO M. L. D (Orgs.), 2006, p.33). As pesquisas analisadas por Jacks (2006) apresentam ainda mais um fator relevante, no que tange a relação entre televisão e realidade. Outro aspecto levantado é sua capacidade de gerar representações e produzir a realidade, competindo com outras instituições sociais, ou de reprodução da realidade, espelhando a sociedade, o que para alguns autores, como qualquer forma de representação, o faz com distorção (JACKS apud DUARTE E. B.; CASTRO M. L. D (Orgs.), 2006, p.33). Outra conclusão desse estudo – e que de certa forma já se apontou desde o início, nas reflexões acerca do imaginário social – vai ao encontro da ideia de que a realidade é produto de uma prática social. Evidencia-se que a imagem televisiva não apenas se reveste de intenção enunciativa como, em via de mão dupla, reproduz o que de alguma forma é esperado pelo telespectador. As realidades televisuais são todas fruto de uma construção discursiva fragmentada, parcial, instituída a partir de diferentes fontes e referências e da proposição de diferentes regimes de crença: são concebidas como uma sucessão de itens, de forma a satisfazer interesses e curiosidades do telespectador (DUARTE, 2006, p. 23). Falar de realidade é sempre falar de perspectivas limitadas. Refletida em imagens ou em qualquer outra forma de linguagem, ela parece não caber num conceito objetivo, essencial. Não pode sequer associar-se à verdade. Fabricada ou apreendida, tende sempre a estar vinculada à subjetividade que, por sua vez, constrói-se a partir de um imaginário social. 5 Concorda-se, assim, com Silva (2006), quando este diz que no imaginário não há nem verdadeiro nem falso. O imaginário não é a vida, mas uma forma de vida, um espírito de época, uma atmosfera existencial, uma impressão no mundo, uma marca registrada pelo existente no corpo do universo, um rastro, efêmero e intenso, na pele da existência (SILVA, 2006, p. 50) Esta análise, portanto, revela que a imagem no telejornalismo não pode ser considerada mais do que a expressão de uma realidade possível, tanto porque a imagem está sujeita a percepções diversas, como pelo fato de que a realidade parece estar desprovida de uma condição objetiva e mais próxima de uma construção social. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Denize Correa (Org.). Imagem (ir) realidade: comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Sulina, 2006. BLIKSTEIN, Izidoro. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. DUARTE, Bastos Duarte. Reflexões sobre os gêneros e formatos televisivos. In: CASTRO, M. L. D.; DUARTE, E. B. (Orgs.). Televisão: entre o mercado e a academia. Porto Alegre: Sulina, 2006. FELINTO, Erick. 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