ARTIGO TÉCNICO Higienização e Segurança 113 Março/Abril 2013 Guia de referência do SETOR LÁCTEO Por João Luis dos Santos* Água e o padrão de qualidade do leite O ano de 2013 foi declarado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Ano Internacional para a Cooperação pela Água. E aqui, na Leite & Derivados, damos início a uma série de artigos sobre os cuidados com a água na produção de lácteos sxc.hu Água e legislação A Instrução Normativa (IN) 62, de 29 de dezembro de 2011, tem por objetivo fixar os requisitos mínimos que devem ser observados para a produção, a identidade e a qualidade do leite tipo A. Dentre os aspectos abordados na IN 62 encontra-se a qualidade da água, o tema que constava na IN 51 e 114 ARTIGO TÉCNICO Higienização e Segurança manteve-se na IN 62, chega a ser um paradoxo na produção agropecuária, pois embora seja tratado de forma tão clara na pecuária de leite, muito pouco avançou desde 2002, enquanto que na produção de aves e suínos, desde 2001 os processos estão muito avançados, inclusive no tratamento de águas residuárias, sendo que apenas em 2007 a IN 56 abordou o tema, quase que, como resposta às mudanças que ocorreram no manejo da água dentro da atividade. O Capítulo 3 da IN 62, Classificação e Características do Estabelecimento orienta: - 3.3.11. Abastecimento de água: a fonte de abastecimento deve assegurar um volume total disponível correspondente à soma de 100 L (cem litros) por animal a ordenhar e 6 L (seis litros) para cada litro de leite produzido. Deve ser de boa qualidade e apresentar, obrigatoriamente, as características de potabilidade fixadas no Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal - RIISPOA. Deve ser instalado equipamento automático de cloração, como medida de garantia de sua qualidade microbiológica, independentemente de sua procedência; 3.3.11.1. Nos casos em que for necessário, deve ser feito o tratamento completo (floculação, sedimentação, filtração, neutralização e outras fases); 3.3.11.2. Os reservatórios de água tratada devem ser situados com o necessário afastamento das instalações que lhes possam trazer prejuízos e mantidos permanentemente tampados e isolados através de cerca. Diariamente deve ser feito o controle da taxa de cloro; O Artigo 62 RIISPOA traz as seguintes orientações sobre a qualidade da água utilizada: a) não demonstrar, na conta- gem global, mais de 500 (quinhentos) germes por mililitro; b) não demonstrar no teste presuntivo para pesquisa de coliformes maior número de germes do que os fixados pelos padrões para 5 (cinco) tubos positivos na série de 10 ml (dez mililitros) e 5 (cinco) tubos negativos nas séries de 1 ml (um mililitro) e 0,1 (um décimo de mililitro) da amostra; c) a água deve ser límpida, incolor, sem cheiro e de sabor próprio agradável; m) cloro livre, máximo de 1 (uma) parte por milhão, quando se tratar de águas cloradas e cloro residual mínimo de 0,05 (cinco centésimo) partes por milhão. Embora haja certa flexibilidade nos valores, a água que tenha passado por um processo de desinfecção, adequadamente dimensionado, por meio de cloração e tenha um residual mínimo de 0,05mg/l (ou ppm - partes por milhão) raramente estará contaminada por coliformes ou qualquer outra bactéria. A produção de leite sofre forte impacto da qualidade da água não apenas quanto sua qualidade final, mas principalmente quanto à segurança alimentar do produto. Além disso, pessoas que trabalham nesta atividade tendem a fazer uso desta água e o padrão de potabilidade exigido para consumo humano é ausência total de coliformes na água. A Portaria 2.914 de 12 de dezembro de 2011 que trata sobre padrão de potabilidade para consumo humano é muito mais rigorosa e exige ausência total de coliformes na água. A presença ou ausência de coliformes na água têm valor sanitário limitado e sua aplicação restringe-se praticamente à avaliação da qualidade microbiológica da água tratada e distribuída. Embora tenha Março/Abril 2013 Guia de referência do SETOR LÁCTEO esta denominação, o grupo dos coliformes fecais inclui bactérias de origem não exclusivamente fecal. Entretanto, como em cerca de 106–108 coliformes fecais/100 mL que estão usualmente presentes nos esgotos sanitários predomina a Escherichia coli (esta sim, uma bactéria de origem exclusivamente fecal), esses organismos também são largamente utilizados como indicadores de poluição de águas naturais, ou seja, aquelas que não passaram pelo tratamento convencional e são utilizadas no meio rural. Aliado a isso está o fato de que a E. Coli é a bactéria mais resistente ao processo de desinfecção via cloração. Por este motivo, este microrganismo é um indicador de padrão e procedimentos de higiene. A E. Coli é reconhecidamente o indicador mais preciso de contaminação fecal, sendo a sua presença indicativa da provável ocorrência de outros microrganismos patogênicos. Resumindo, a presença de coliformes na água indica falta de procedimentos adequados de higiene básica e ausência ou deficiência no tratamento e desinfecção da água. Água e toxinfecção alimentar via leite A ocorrência de grandes surtos humanos de salmonelose, listeriose e iersiniose associados ao consumo de leite líquido contaminado pós-pasteurização, leite em pó ou queijo, enfatiza a vulnerabilidade de produtos lácteos nos surtos por fonte única de contaminação (SHARP, 1987). Nos últimos anos, o aparecimento e a tendência crescente de surtos mundiais de micro-organismos passíveis de serem veiculados pelo leite, como as salmoneloses, as colibaciloses, as listerioses, as campilobacterioses, as micobacterioses e as iersinioses, têm despertado a atenção e preocupação de estudiosos em todo o mundo. 116 ARTIGO TÉCNICO Higienização e Segurança Ilustração 1, uso errado da água Ilustração 2, uso correto da água Recentemente, a Coordenadoria de Controle de Doenças de São Paulo divulgou nota do Centro de Vigilância Epidemiológica dando conta que a Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar divulgou nota relatando cinco casos de pessoas, residentes em municípios do estado de São Paulo, com doenças semelhantes à ocorrida em Monte Santo de Minas, sendo que em dois deles foi isolado o Streptococcus do sorogrupo C. Todos os casos consumiram alimentos suspeitos produzidos em Monte Santo. As análises laboratoriais realizadas em alimentos pelo laboratório em Minas Gerais mostraram a presença de vários tipos de Streptococcus e outros patógenos indicando práticas inadequadas de preparação dos mesmos. Entre os alimentos analisados estão: leite in natura, sorvete, queijo e milk-shake. No final de dezembro de 2012 e janeiro de 2013, 150 casos de faringite seguida de síndrome nefrítica foram registrados em Monte Santo de Minas (MG), associados ao consumo de leite e derivados não pasteurizados de produção caseira ou artesanal e à carne crua ou mal cozida, configurando-se um surto inicialmente restrito àquela cidade. Os Streptococcus dos grupos C frequentemente são transportados por animais, mas também crescem na orofaringe, no intestino, na vagina e no tecido cutâneo do ser humano. Esses Streptococcus podem causar infecções graves, como a faringite estreptocócica, pneumonia, infecções cutâneas, sépsis pós-parto e neonatal, endocardite e artrite séptica. Após uma infecção por uma dessas bactérias, pode ocorrer inflamação dos rins. Streptococcus são destruídos por processos simples de higienização como detergentes e sabão. Além disso, um processo de desinfecção da água e higienização de ordenha podem controlar a infecção por esta bactéria. Água, desinfecção e higienização O cuidado com a água na produção de leite deve começar com a conservação dos recursos hídricos disponíveis na propriedade. Conservar a qualidade da água disponível não apenas contribuirá com a qualidade da água utilizada como reduzirá os custos de tratamento e mitigará os impactos sobre a mesma, e consequentemente no meio ambiente. Animais que ingerem água em açudes, rios e nascentes defecam e urinam na mesma, contaminando a própria água ingerida e muitas vezes utilizada na sala de ordenha. O processo de desinfecção da água é muito simples, desde que conte com uma estrutura mínima apropriada para tal. Esta estrutura deve ser composta de reservatórios de água para onde esta deve ser bombeada e tratada, cada uma de acordo com sua finalidade de uso. Na Ilustração 1, as atividades no entorno dos recursos hídricos impactam diretamente na sua qualidade. Considere que todas fontes de água estão de alguma forma conectadas e interferem na qualidade uma da outra por transferência. Os recursos hídricos disponíveis no meio estão protegidos e sofrem mínimo impacto das atividades produtivas na Ilustração 2. Um sistema de abastecimento devidamente dimensionado, com reservatórios que armazenem água suficiente para no mínimo 24 horas de consumo, composto de uma caixa principal e outras caixas menores para usos específicos, permitirá ao produtor tratar a água de acordo com sua necessidade em cada aplicação. Uma proposta viável é que a água de uso geral deva manter um mínimo de 0,5mg/litro de cloro no reservatório principal. A manutenção do cloro dentro do cocho de bebida dos animais, entre 0,5 e 1,0 mg/litro, além de evitar a contaminação cruzada da água reduzirá o tempo de limpeza dos mesmos. Para a sala de ordenha, onde haverá higienização dos equipamentos sugere-se manter até 5mg/litro de cloro na água. Para consumo humano a exigência é de no mínimo 0,2mg/litro. Para adequação do processo de desinfecção neste caso o uso de cloradores será muito simples. Existem inúmeros tipos de dosadores adequados a cada tipo de aplicação, de fácil manejo e operação simples. Os produtos não terão dificuldades em se adaptar. Logo, atender a IN 62 no quesito: “Deve ser instalado equipamento automático de cloração, como medida de garantia de sua qualidade microbiológica, independentemen- 117 Março/Abril 2013 Guia de referência do SETOR 6,7 6,65 CBT leite (log10) 6,6 6,55 6,5 6,45 6,4 6,35 6,3 6,25 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 5,5 CPP água (log10) Figura 1 - Contagem de bactérias total (CBT log10) no leite em função da contageme padrão em placas da água (CBT log10) LÁCTEO te de sua procedência” não é o maior problema, mas sim adequar os sistemas de abastecimento com reservatórios e bebedouros, para que possam haver estes dosadores instalados, atendendo o padrão de qualidade da água exigido na norma. Um produtor de 500 litros de leite por dia, que tenha um sistema de armazenamento e distribuição de água adequado, deverá investir no primeiro mês entre R$ 0,04 e R$ 0,10/litro de leite para adquirir um sistema de cloração e filtração se necessário. A variação ocorre em função da qualidade da água disponível, quanto melhor for, menor será o investimento em tratamento. Depois de implantado o sistema, os custos dos insumos ARTIGO TÉCNICO Higienização e Segurança stockvault 118 necessários devem ficar em R$ 0,006/litro de leite. Muitas empresas que já pagam por qualidade remuneram pela redução de CBT no leite quando atingem o padrão da IN 62, ou padrões próprios, em até R$ 0,14/litro de leite produzido. O produto melhor indicado nos processos de desinfecção são as pastilhas de cloro, principalmente o Tricloro, que por sua dissolução controlada associada aos dosadores permite um preciso controle da dosagem desejada. Mas deve-se observar que não é qualquer Tricloro que pode ser utilizado. Produtos destinados à piscinas, por exemplo, não são indicados para consumo humano. Deve-se exigir registro do produto no Ministério da Saúde/ ANVISA para consumo humano, ou no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) dependendo da finalidade de uso. Jucimara H. João, graduando em Medicina Veterinária - CAV/ UDESC, apontou uma estreita re- 119 119 Março/Abril 2013 Guia de referência do SETOR lação entre a qualidade da água e a CBT. Em seu trabalho destaca: A água utilizada tanto para consumo, como limpeza e higienização dos equipamentos, pode veicular doenças aos animais e homem, além de comprometer a qualidade do leite. Na opinião da maioria dos produtores de leite, a água utilizada em sua propriedade é de boa qualidade. Entretanto, estudos como de Picinin(2003) e Amaral (2003) revelaram que, em geral, a qualidade microbiológica da água não LÁCTEO tratada é inferior à expectativa dos produtores de leite. O trabalho ainda destaca que a qualidade microbiológica da água (CPP) utilizada no processo de higienização de equipamentos de ordenha afetou linearmente (P=0,10) a contagem bacteriana total do leite (CBT), com aumento na CBT em função de valores mais elevados de CPP (Figura 1), sem afetar a contagem de células somáticas (CCS). Conforme tabela apresentada a seguir. Observa-se que quanto mais contaminada a água (CPP) maior a ARTIGO TÉCNICO Higienização e Segurança stockvault 120 contaminação detectada no leite (CBT) numa mesma localidade. Caso a água disponível necessite de técnicas mais avançadas como decantação e filtração, como prevê a IN 62, esse caso deverá então ser estudado à parte por um especialista que indique a melhor forma de fazer isso. Havendo possibilidade de outra fonte de água limpa como num poço, o custo será menor no longo prazo que tratar água em estruturas mais complexas. A higienização distingue-se da desinfecção pela concentração de cloro dosado e o tempo de contato exigido. Enquanto para desinfecção trabalha-se com baixas dosagens e alto tempo de contato, por isso a necessidade insistente de reservatórios de água, na higienização a dosagem é alta e baixo tempo de contato necessário para a ação biocida. Isto ocorre, por exemplo, no pré-dipping onde alguns produtos recomendam dosagens de 1% a 2% de cloro na higienização dos tetos, teteiras e dos equipamentos pós-ordenha. Dever ser observado GALIZONI, Flavia Maria. Águas da BRASIL - Instrução Normativa Nº 62, de Referências Bibliográficas BLOCH, Saymour S. Disinfection, steril- 29 de Dezembro de 2011 - Ministério ization and preservation, 4.ed. Philadel- Vida: população rural, cultura e água fia: Lea & Febiger, 1991. Cap 7 – Chlo- em Minas Gerais. Tese de Doutorado rine and Chlorine Compounds. em Ciências Sociais apresentada ao de Produção, Identidade e Qualidade Departamento de Ciências Sociais do do Leite tipo A, o Regulamento Técnico Instituto de Filosofia e Ciências Humanas de Identidade e Qualidade de Leite Cru REBOUÇAS, Aldo C.; BRAGA, Benedito; TUNDISI, José G. Águas Doces do Brasil: capital ecológico, uso e conservação. 3ª da Universidade Estadual de Campinas. Ed. São Paulo. Escrituras, 2006. Fevereiro, 2005. da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Aprova o Regulamento Técnico Refrigerado, o Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade de Leite Pasteurizado e o Regulamento Técnico da 121 Março/Abril 2013 Guia de referência do SETOR dos equipamentos e instalações como detergentes alcalinos, ácidos, clorados e etc, são fundamentais para obtenção de um leite de boa qualidade. Entretanto, por melhor que seja o produto utilizado, por mais que as técnicas de limpeza e desinfecção da ordenha estejam corretas, o uso de uma água tratada e de qualidade é fundamental para o sucesso dos procedimentos. LÁCTEO na propriedade reduzirá ainda as doenças transmissíveis pela água tanto ao homem quanto aos animais. Fazer uso correto dos produtos de higiene de ordenha sem uma água tratada e de qualidade comprometerá todo o trabalho inicial colocando em risco a qualidade do leite produzido. Conclusão o fato de que desinfetantes à base de hipoclorito de sódio são altamente alcalinos e por isso agressivos à pele e corrosivos. Por outro lado o Dicloro, um sal orgânico e de pH neutro, é muito mais eficiente e menos agressivo. Outro aspecto que deve ser ressaltado é que a higienização por meio do uso de produtos destinados ao procedimento de limpeza A água é um nutriente essencial para o manejo saudável dos animais e para boa produtividade de leite dada sua importância em toda fisiologia do animal. A produção pecuária de leite é esta entre as mais impactantes sobre os recursos hídricos disponíveis. Os dejetos gerados na pecuária são 30 vezes mais poluentes que dos humanos. A obtenção da qualidade da água via desinfecção (e filtração se for o caso), exigida pela IN 62 é factível, necessária e urgente, pois garantirá a qualidade final do leite, reduzindo os riscos de toxinfecções alimentares. Com um leite de melhor qualidade, o produtor deverá receber mais pelo produto como incentivo dos laticínios. Água tratada e de qualidade para todos os usos *João Luis dos Santos (joao.luis@ especializo.com.br) é especialista em qualidade da água na produção agropecuária. Atua como consultor na empresa Especializo Soluções em Gestão da Água. Atualmente é mestrando na Unicamp/Feagri onde desenvolve projeto de pesquisa acadêmico (mestrado) sobre técnicas de tratamento de águas para comunidades rurais. Coleta de Leite Cru Refrigerado e seu para consumo humano e seu padrão de CCD/SES-SP - Divisão de Doenças de Transporte a Granel, em conformi- potabilidade. Transmissão Hídrica e Alimentar – Nota dade com os Anexos desta Instrução Normativa. Jucimara H. João. Mestranda em Ciência Animal – Centro de Ciências Agroveter- BRASIL - Portaria MS Nº 2914, 12 inárias (CAV/UDESC) - Lages/S. Influên- de dezembro de 2011 – Ministério cia da qualidade da água e manejo de da Saúde – ANVISA - Dispõe sobre ordenha sobre a qualidade do leite. 2010. os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água Centro de Vigilância Epidemiológica/ Técnica: Surto de faringite estreptocócica e síndrome nefrítica em Monte Santo de Minas, MG, de provável causa alimentar – Recomendações e cuidados de prevenção. São Paulo, 05 de fevereiro de 2013. http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/hidrica/NT2013_Surto_Monte_Santo.pdf