Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 ENTRE A CASA DE USHER E O GATO PRETO Mateus Fernando de Oliveira (GP Leitura e Ensino/CNPQ/UENP/CJ) Dra. Nerynei Meira Carneiro (Orientadora – CLCA - UENP/CJ) Edgar Allan Poe célebre escritor norte americano, famoso por sua vida libertina e suas obras fascinantes, é visto como um escritor que sempre explorou questões fantásticas em suas obras, usando de personalidades perturbadoras e inquietas em seus contos, explorando o insólito dentro de um espaço real. Por isso neste artigo Poe torna-se objeto de uma análise comparativa e demonstrativa, a fim de por meio de algumas das teorias do conto fantástico, analisar duas de suas obras clássicas, o conto A Queda da Casa de Usher e O Gato Preto, de forma que através dessa análise possam ser compreendidas algumas questões relativas ao fantástico em suas obras. Poe sempre abordou muito do fantástico em suas obras, sempre de uma forma fria, calculista e absolutamente mórbida. Dentre as principais obras do escritor são muitos os contos em que a narrativa apresenta um fato estranho, provavelmente um crime hediondo, um clima de grande tensão e constante inquietação dentro da narração, exemplos não faltam: “Assassinatos na Rua Morgue”, “Berenice”, “Nunca Aposte Sua Cabeça Com o Diabo”, “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa”, só pra citar algumas de suas Histórias Extraordinárias que poderiam exemplificar muito do que se fala sobre os traços do Fantástico nas obras do escritor. O que justamente chama a atenção para este estudo é a atmosfera fantástica das obras de Edgar Allan Poe, tendo em vista o uso constante dos elementos insólitos, levando o leitor ao encontro de uma leitura da sua própria realidade, já que um dos principais elementos dos textos fantásticos é a narrativa se situar dentro da realidade do leitor, numa estrutura real, mas imaginária: “El relato fantástico pone al lector frente a lo sobrenatural, pero no como evasión, muy al contrario, para interrogarlo y hacerle perder la seguridad frente al mundo real” (ROAS, 2001, p. 09). Além desta breve definição, David Roas, ao descrever o fantástico, sugere que o leitor funde-se a uma nova percepção da realidade quando prova o texto insólito, assim, analisamos que o texto fantástico nos apresenta uma dúvida quanto à percepção do real do leitor, como vemos nos textos de Poe, a presença do real e do incompreensível, sendo abordados numa mesma narrativa. 340 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Ainda que considerado o grande criador do gênero policial, situa-se entre as figuras mais relevantes do gênero gótico, sendo inclusive muito aclamado dentre os leitores deste período. Uma definição muito válida a essa literatura específica está nas palavras de Fred Botting no livro O Fantástico de Remo Ceserani: Gótico significa uma escritura do excesso. Ele surgiu na horrível obscuridade do século XVIII. Ele joga uma sombra sobre os êxtases desesperantes do idealismo e individualismo românticos e sobre as inquietantes duplicidades do realismo e decadentismo vitorianos. Atmosferas góticas – foscas e misteriosas – assinalaram repetidamente o retorno perturbador dos passados sobre o presente e evocaram sentimentos de terror e de humor. (...) Na narrativa gótica aparecem figuras e elementos estereotipados que encarnam e evocam as angústias de uma cultura. (CESERANI, 2006, p. 90). A abordagem do gênero gótico aqui é porque foi o que influenciou tanto a criação do fantástico como do gênero policial, pois a partir da difusão do pensamento iluminista e da presença da religião, naquele momento, no século XVIII, o homem passaria a ver o mundo de uma forma subjetiva, com um olhar mais voltado para si e focado no imaginário. A literatura passaria a explorar novos horizontes, sendo assim, explorado o sobrenatural na literatura desde então. O Conto Justamente num estudo sobre Edgar Allan Poe, Júlio Cortazar define o conto, em três acepções utilizadas da palavra conto, em que a primeira pode ser compreendida como simples relato de um acontecimento, o segundo como a narração, tanto oral quanto escrita de um acontecimento falso, além de uma terceira concepção que foge da percepção deste estudo, que diz que o conto é uma fábula que se conta para entreter crianças, sem desmentir este terceiro conceito, apenas tomando por referência as duas primeiras concepções, até porque, todas são narrativas e tem o intuito de Contar algo. Segundo a obra de Nadia Batella Gotlib, toda narrativa irá apresentar sempre algo a ser narrado numa sucessão de acontecimentos; Partindo da idéia de que se tratando de um projeto humano, é de interesse humano, são acontecimentos que só ganham sentido por estarem acerca do homem como ser, que por isso esses relatos são organizados numa série temporal fundamentada, isso tudo, numa só ação, ou em uma mesma narrativa. Desta forma, o que caracteriza mais o conto é que independente da história em si, seja qual for o relato, a sua definição é feita a partir da forma como ele é contado. 341 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 O Fantástico Em O Fantástico de Remo Ceserani, o autor procura explicá-lo por meio de uma definição de Tzvtan Todorov, quando este, em 1970, buscava definir o Fantástico, assim como Ceserani explica, Todorov se apoiava numa definição dada pelo filósofo e místico russo Vladimir Sergeevic Solov’ëu. Uma citação deste no prefácio de Aleksej Tolstoj, O Vampiro, parte da antologia do formalista russo Boris Tomasevskij, Théorie de la littérature. A citação de Solov’ëu, como lembra Ceserani “tinha a forma de conselhos de escrita para quem quisesse experimentar o fantástico” (CESERANI, 2006, p. 45). A definição dada por Solov’ëu, presente no livro de Ceserani: O autenticamente fantástico (...) não deve nunca se apresentar, por assim dizer, de forma descoberta. As manifestações não devem impor a fé no sentido místico dos eventos humanos, mas apenas acenar, aludir a isso. Dentro do autenticamente fantástico resta sempre uma possibilidade formal, exterior, de uma explicação simples, baseada em relações normais e habituais entre fenômenos (...) Todos os particulares devem ter um caráter familiar e só a conexão do todo deve acenar para uma causalidade de outra espécie. (CESERANI, 2006, p. 45). O fantástico, ainda que possa ser visto como um círculo aberto, por sua grande abrangência, deve ser visto como um modo literário definido. Tzvtan Todorov em Introdução à Literatura Fantástica o define precisamente, expondo suas principais características como a presença da inquietação ou do medo na narrativa, a verossimilhança com a realidade do leitor, a presença do desconhecido, a possibilidade de ocorrência de fatos improváveis, o desfecho incomum, entre outras características específicas do fantástico. Da mesma forma, Todorov também delimita obras e escritores pertinentes ao insólito, assim como o faz com Poe, quando Todorov exclui Poe e suas obras de sua definição do fantástico puro. A Queda da Casa de Usher A análise de dois dos mais conhecidos contos de Poe tem o intuito de explicar o porquê das obras do escritor não caberem à definição de Todorov, pois logo que se especula 342 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 sobre o fantástico, ao compreendermos superficialmente que se trata de um texto estruturado no mundo real do leitor, mas que utiliza de um plano imaginário, um dos primeiros escritores que vem a mente do leitor é Edgar Allan Poe, sendo assim, analisando duas de suas maiores obras, conseguimos compreender as definições de Todorov. Em A Queda da Casa de Usher, logo no início da narrativa percebemos um clima de tensão na apresentação do narrador, quando ele descreve sua visita à casa de seu velho amigo Roderick Usher. O narrador mostra uma atmosfera nebulosa junto à um clima sombrio, logo, quando descreve sua chegada frente à casa do companheiro: “quando as sombras da noite se estendiam, finalmente me encontrei diante da melancólica casa de Usher” (POE, 1978, p. 7). Dando sequência à narração, após descrever esse profundo sentimento que sua alma recebe diante da casa do amigo, a partir deste momento, Poe torna explícitos os sentimentos provados pelo narrador: “atenuado por essa emoção meio agradável, meio poética, com que o nosso espírito recebe, em geral, mesmo as imagens naturais mais severas da desolação e do terrível” (POE, 1978, p. 7). Até então o que se observa é o início do que vira a ser um texto narrativo profundamente inquietante, uma forte característica fantástica. O narrador explica que fora uma carta de Roderick que o levara até lá naquele momento, tendo em vista Usher ser uma pessoa muito solitária e sensível, a carta dizia que este sentia muita falta de seu amigo e suplicava uma visita dele, já que além de tudo, Usher e sua irmã Lady Madeline, encontravam-se enfermos. O tempo todo o narrador apresenta alguma de suas impressões da casa, fazendo disso algo inusitado, instigando o leitor a questionar-se porquê de tanto mistério à cerca da casa de Usher. Algum tempo depois de sua estadia na casa, Lady Madeline morre, “sua morte – disse ele – fará de mim (o desesperançado, o fraco) o último representante da antiga raça dos Usher” (POE, 1978, p. 14). Desse momento em diante, o conto se torna ainda mais inquietante, pois ao invés de enterrarem o corpo de Lady Madeline num devido lugar, resolvem guardar seu corpo num dos porões da casa. Eis que uma determinada noite, enquanto tenta entreter seu amigo contando-lhe histórias de cavalarias, de repente, os ruídos da sala se assemelham com a descrição da história, gritos perturbadores e barulhos estrondosos, sem saber o que está acontecendo Usher vai até a porta da entrada, quando assustado sussurra a si mesmo: “Enterramo-lo viva” (POE, 1978, p. 26), eis que o corpo de sua irmã aparece na sua frente, debruçando-se sobre ele, então num abraço ambos caem mortos ao chão. O narrador foge desesperado, ao deixar a casa olha para trás e vê a casa se 343 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 desmoronando. Até então constatamos muitos dos elementos fantásticos no conto, como a presença do inexplicável, a verossimilhança, o medo e a inquietação, a ocorrência de fatos inconcebíveis, além do desfecho incomum entre outros detalhes, ainda assim, segundo Tzvetan Todorov, “A Queda da Casa de Usher ilustra o estranho próximo ao fantástico” (TODOROV, 1981, p. 27). Assim se explica definitivamente: O estranho aqui tem duas fontes. A primeira está constituída por coincidências (tantas como em uma história em que intervém o sobrenatural explicado). A ressurreição da irmã e a queda da casa depois da morte de seus habitantes poderia parecer sobrenatural; mas Poe não deixa de explicar racionalmente ambas as circunstâncias. (TODOROV, 1981, p. 27). O que se analisa em seguida é que a explicação sobrenatural para tudo o que ocorreu só está sugerida, não sendo tão relevada, pois Poe apresenta uma explicação comum à queda da casa quando destaca uma fenda observada antes, mas somente próximo da queda é que a levou em consideração, numa rachadura “desde o telhado do edifício até sua base. Enquanto a olhava a fenda alargou-se rapidamente” (POE, 1978, p. 27), como também justifica a morte de Lady Madeline como mostra Todorov em sua análise, assim como na maior parte de seus contos, Poe sempre sugere uma explicação aos fatos, o que impossibilita de suas obras serem classificadas fantásticas, pois uma das ferramentas essenciais do fantástico é justamente o inexplicável. O Gato Preto Em O Gato Preto de Edgar Allan Poe, observamos a presença da maioria das características do texto insólito, trata-se de uma narração em 1ª pessoa, em que o narrador relata que ao voltar para casa muito embriagado. Sentindo que seu gato o evitava, com muita violência toma o gato nos braços, o animal assustado fere-o com um arranhão, o que desperta nele uma ira incontrolável que o faz apanhar o canivete e arrancar um dos olhos de seu gato Pluton. A partir de então Pluton evita seu dono, até chegado mais um dia de ira que leva o pobre animal a morte. Um dia encontra um novo gato, parecido com Pluton, resolve então levá-lo para casa como forma de amenizar sua culpa pelo que fez com o animal anterior. Sua esposa passa a ter um grande apreço pelo felino. Num determinado dia, atormentado pelas lembranças do velho animal resolve por fim a vida do novo gato, sua esposa interfere, ele então a mata. Esconde o corpo da mulher entre as paredes do porão. Enquanto a polícia 344 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 investiga a casa ouve ecoar-se um grito: “primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno” (POE, 1978, p. 51). Eis que então aparece coberto de sangue coagulado e em estado de decomposição o corpo de sua mulher, com um “único olho chamejante”, junto ao seu corpo estava também um astuto gato preto. Uma narrativa absolutamente fantástica. Além de possuir praticamente todos os elementos do texto insólito, ainda carece de uma explicação, já que neste conto Poe não sugere nenhuma além da concepção sobrenatural, para tanto, Todorov destaca O Gato Preto como uma narrativa fantástica. “Em termos gerais, não há, na obra de Poe contos fantásticos em sentido estrito, excetuando talvez As Lembranças do Mr. Bedloe e O Gato Preto” (TODOROV, 1981, p. 27). Sendo assim, podemos concluir que “tanto pelos temas quanto pelas técnicas que elaborou, Poe está muito perto dos autores do fantástico” (TODOROV, 1981, p. 27). Uma sugestão de seqüência didática que poderia ser aplicada no ensino do conceito da literatura fantástica é a comparação entre estes dois textos do autor e apontar nas obras de Poe, os elementos e as falhas no texto em sua relação com o fantástico, destacando a diferenciação nos contos em geral, pois: O que faz o conto – seja ele de acontecimento ou de atmosfera, de moral ou se terror – é modo pelo qual a estória é contada. E que torna cada elemento seu importante no papel que desempenha neste modo de o Conto ser. Como bem formulou o contista Horacio Quiroga, ao alertar para alguns “truques” do contista: Em literatura a ordem dos fatores altera profundamente o produto. (GOTLIB, 2006). Referências CESERANI, Remo. O Fantástico. Trad. TRIDAPALLI, Nilton Cezar. Londrina, Curitiba: EDUEL, Editora UFPR, 2006. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 2006. POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. Trad. Breno Silveira e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ROAS, David. Teorías de lo Fantástico. Madrid: Arco/Libros, S. L. 2001. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Digital Fource. São Paulo. Perspectiva, 1981. 345 Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Para citar este artigo: OLIVEIRA, Mateus Fernando de. Entre a casa de Usher e o Gato Preto. In: VII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos Linguísticos e Literários. 2011. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2011. ISSN – 18089216. p. 340 – 346. 346