ATAS DO COLÓQUIO INTELECTUAIS, CULTURA E
POLÍTICA NO MUNDO IBERO-AMERICANO.
Rio de Janeiro. 17 -18 de maio de 2006.
Intellèctus
Ano 05 Vol.II
Revista Eletrônica ISSN 1676- 7640
Grpesq Intelectuais, Idéias e Instituições.
A Gazeta: Intelectuais e Espaço Público na Restauração.
Daniel Magalhães Porto Saraiva
Graduando em História. UFRJ
A “Gazeta” foi o primeiro jornal português, publicado em fins de 1641,
aproximadamente um ano após o fim da União Ibérica. Além da descrição detida do
periódico propriamente dito, o presente trabalho se ocupará da apresentação de um
perfil, mesmo que sucinto, de João Pinto Ribeiro, seu fundador. A intenção é que por
meio do estudo atento da Gazeta se possa ter uma noção geral de como agiram os
intelectuais portugueses – ou pelo menos parte deles – envolvidos no projeto da
Restauração, e se compreenda como suas ações repercutiram no cenário político
lusitano. É só através do entendimento desta dinâmica política que poderemos atribuir à
Gazeta um significado que faça jus às suas particularidades.
João Pinto Ribeiro, nascido em 1590, exerceu uma intensa atividade política ao
longo de sua vida, tanto antes quanto depois do golpe da Restauração, e continuou
trazendo a público seus escritos até o ano de sua morte, em 11 de agosto de 1649.
Durante a dominação filipina, ocupou os cargos de Juiz de Fora da Vila de
Pinhel, e, posteriormente, de Ponte de Lima, mas foi em 1632 que ganhou notabilidade,
com a obra Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses não militarem em
conquistas alheias desta Coroa. Neste texto, João Pinto expunha sua oposição à
intitulada “União de Armas”, projeto apresentado pelo Conde-Duque de Olivares,
valido de Filipe IV, propondo a formação de uma liga de assistência recíproca dos
Reinos que compunham a monarquia católica de Espanha. Em termos mais práticos,
este projeto consistia na formação de um exército permanente, reunindo contingente das
mais diversas coroas constituintes da monarquia católica, às quais caberiam os custos de
manutenção do seu quinhão de homens. Em seu Memorial, Olivares defendia, por meio
da correspondência das armas, que, no lugar de se verem como estranhos, castelhanos,
portugueses, catalães etc, se reconhecessem entre si como iguais, e estivessem dispostos
a oferecer seu sangue em nome do rei católico.
Em contrapartida ao projeto castelhano de centralização, João Pinto protestava
contra o envio de tropas portuguesas a batalhas que não diziam respeito à Coroa de
Portugal. Em seguida, ressaltava a importância de se proteger os domínios lusitanos no
ultramar, os quais teriam ficado vulneráveis após a dita União Ibérica. Em sua
explanação, João Pinto sustentava que o pilar da grandiosidade de um Reino era o
comércio. Desse modo, atribuía aos fidalgos a incumbência de protegê-lo, (...) porque
as armas defendendo os comércios, a si mesmas se sustentam, não havendo soldados
sem pagas, armas sem soldados, nem defesa e amparo. E os comércios por elas
defendidos fazem essas armas lustrosas e gloriosas1.
Após a conspiração, da qual foi partícipe, ocupou funções de destaque no
governo, como Contador-Mor da Fazenda, Desembargador do Paço, e Guarda-Mor da
Torre do Tombo. Defensor da liberdade do Reino, foi autor de vários escritos de
controvérsia jurídico-política, participando ativamente da organização da monarquia
brigantina, da justificação da insurreição e de sua difusão dentro e fora das fronteiras
lusitanas.
1
RIBEIRO, João Pinto. Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses não militarem em
conquistas alheias desta Coroa. Lisboa: Pedro Craesbeck, 1632. p.4.
O surgimento da Gazeta remonta, portanto, ao clima de profunda tensão
instaurado em Portugal pelo conflito com a maior monarquia européia. A fidalguia lusa
estava dividida: parte a favor de Castela e parte pelos restauradores.
Assim, é exatamente nesta conturbada atmosfera, um ano após o golpe da
Restauração, que a Gazeta veio a lume. A data não é arbitrária: em julho de 1641 uma
conspiração contra a monarquia brigantina havia sido controlada, reduzindo-se parte de
uma fidalguia que estava longe de ser unificada. Para que se tenha uma idéia da situação
da fidalguia portuguesa naquele momento, havia no Reino apenas um duque – o duque
de Bragança, o próprio rei.
A primeira década do governo dos Bragança assistiu, contudo, não apenas ao
surgimento da Gazeta, mas à impressão continuada e abundante de numerosas relações
de guerra, textos de grande agilidade contendo as notícias do front de batalha. A
narrativa das vitórias lusitanas, presentes tanto nas relações quanto nas gazetas, exibia
como grande estandarte da guerra a defesa da independência do reino.
Desse modo, postos lado a lado, o que nos revelam estes escritos é que, afora a
convencional reunião de armas, fundos e combatentes, os restauradores lançaram mão
de um novo instrumento: promoveu-se uma campanha pública de divulgação dos feitos
bélicos lusos em seus enfrentamentos com Castela. A partir de 1641, portanto, o conflito
transfigurava-se. O exclusivo uso das armas dava lugar a um confronto de nova
natureza. À força das espadas, somava-se a das penas; os beligerantes não eram apenas
os homens de armas, mas os de letras.
O JORNAL
O primeiro número da Gazeta foi impresso em dezembro de 1641, e sua
publicação seguiu, via de regra mensalmente (havia meses em que duas gazetas foram
impressas e outros em que nenhuma saiu), até setembro de 1647.
Seus exemplares eram em média taxados em seis réis, e tinham em torno de 12
páginas. A princípio, no que tange ao acesso, os jornais estavam à mão dos citadinos
que soubessem ler e pudessem custear sua aquisição. Seu formato e seu preço parecem
sugerir a intenção de se promover uma circulação ampla e ligeira desses textos. Sua
impressão era feita em Lisboa, ora na oficina de Lourenço de Anveres, ora na oficina de
Domingos Lopez Rosa. Note-se que nenhum de seus exemplares foi publicado pelo
impressor oficial do reino – Antônio Álvares –, o que sugere um certo grau de
independência na execução deste projeto.
O corpo do texto era dividido em duas sessões, uma destinada à narrativa dos
eventos políticos do reino, e outra às novas de fora dele. Na primeira, eram relatadas
vitórias contra Castela, concessões de mercês, nomeações de cargos, perseguições a
traidores e mesmo notas do comércio. Na segunda, eram descritas as expedições
diplomáticas portuguesas e as transformações na configuração geopolítica européia e
ultramarina, desde o andamento dos conflitos espanhóis em suas mais diversas frentes
de combate até menções sobre o domínio holandês no Brasil.
OS INTELECTUAIS E O ESPAÇO PÚBLICO
Nas etapas de qualquer disputa política, os diversos grupos combatentes lançam
mão de seus instrumentos e realizam suas manobras, cuja eficácia decidirá, entre outras
coisas, os rumos do poder. Nesse enfrentamento, no esforço de renovação de seus
artifícios de contenda, alguns grupos conseguem, por vezes, formular vias de
intervenção radicalmente diferentes das convencionais.
Assim foi para os restauradores. A necessidade de manter o poder conquistado
após o golpe da Restauração, levou os conspiradores, agora dirigentes do governo, a
criar novos recursos de ação política, dos quais a Gazeta é amostra exemplar. Acossados
pela divisão da fidalguia portuguesa, que, em grande parte, filiou-se a Castela, e recémsaídos da tensão de um processo conspiratório cuja contenção acabava de ser alcançada,
os restauradores buscaram a composição de uma aliança mais ampla que as
tradicionalmente efetuadas, considerando no cenário político outras forças sociais. Para
isso era necessário ampliar os meios de cooptação: buscava-se alcançar a opinião dos
portugueses.
Em seu discurso, tais impressos não se reportam em nenhum momento a um
grupo de fidalgos ou de eclesiásticos: o que se nota é a preocupação de trazer as notícias
concernentes à saúde da República aos portugueses, e apresentar as medidas do grupo
político no poder para garanti-la.
Seu universo de recepção eram as cidades; seus possíveis leitores, os habitantes
do burgo capazes de ler e dispostos a despender alguns poucos dos réis que escaparam
às suas expensas fundamentais na aquisição de um periódico informativo.
Construía-se, por conseguinte, um novo espaço de prática política no reino. As
notícias circulavam com considerável destreza, por via de um veículo de divulgação que
estendia à esfera pública o debate político; não apenas corriam os tratados filosóficos,
jurídicos e políticos habituais, mas se discutiam abertamente as próprias medidas do
governo.
Não está aqui em pauta, decerto, a defesa do pioneirismo lusitano na construção
do espaço público europeu: essa experiência se repetia em diversos lugares da Europa,
da Polônia à Inglaterra. Mais importante que isso é, em primeiro lugar, a inserção de
Portugal neste movimento geral, relacionado à construção dos modelos e instituições
que seriam marcos fundamentais da modernidade; e, em segundo lugar, a ação de um
grupo singular no jogo político português no século XVII, vinculado a um projeto que,
se terminou por não se consolidar em toda sua extensão, possuiu uma coerência
satisfatoriamente identificável e foi capaz de construir armas de atuação inéditas,
redimensionando a esfera política de Portugal.
Atribuir a esta vasta gama de impressos a classificação de meros relatos
desconexos e relacionar seu sentido com a autopromoção de fidalgos ávidos por
prestígio é, sem sombra de dúvida, subestimar a um só tempo a atuação destes
intelectuais e a complexidade da dinâmica política portuguesa no séc.XVII.
BIBLIOGRAFIA
. HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003.
. CURTO, Diogo Ramada. O discurso político em Portugal (1600-1650).
Lisboa: Universidade Aberta, 1988.
. NEVES, João Alves das. História breve da imprensa de língua portuguesa no
mundo. Lisboa: Direcção-Geral da Comunicação Social, 1989.
. MARTINS, Rocha. Pequena história da imprensa portuguesa. Lisboa:
Inquérito, 1941.
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Daniel Saraiva