JUSTIÇA REDISTRIBUTIVA E JUSTIÇA COMO RECONHECIMENTO A temática referente à justiça redistributiva e a justiça como reconhecimento terá, como aporte teórico, as reflexões de Nancy Fraser, as quais, a partir da teoria normativa, ou seja, a construção de uma paridade participativa que procura reunir elementos distributivos e de reconhecimento, procura ser uma via para as concepções de John Rawls e Alex Honneth, a qual é explicitada em seu texto intitulado “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era ‘pós-socialista’”. Nessa perspectiva, John Rawls propõe um modelo de organização social e política liberal centrada na noção de justiça redistributiva. Para ele, uma sociedade ordenada é aquela na qual existem mecanismos compensatórios e regulatórios legais capazes de diminuir as desigualdades econômicas e igualar as oportunidades de emprego. No que tange a Alex Honneth, autor de “Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”, este traz a questão da justiça para o plano psicológico. Para ele, a questão central da justiça não é o da distribuição econômica, mas sim a do reconhecimento cujo cerne da questão é a noção de identidade. A identidade de cada um é construída pela aceitação/reconhecimento do outro. Se o grupo ou um indivíduo não tem sua identidade, seu modo de ser respeitado pelo grupo hegemônico, isso automaticamente configura uma situação de injustiça. Para Nancy Fraser, a luta pelo reconhecimento identitário, ainda que legítima e necessária, favorece a fragmentação e o enfraquecimento do movimento político mais amplo, que almeja combater as formas de exploração capitalista. Fraser propõe uma união das questões distributivas com as questões culturais. Para Fraser está claro que as injustiças possuem duas faces, ou duas dimensões: uma dimensão econômica e a outra cultural ou, em outras palavras, uma dimensão de classe e outra de status. Um exemplo disso é a da dona de casa: não remunerada (econômica) e inferiorizada pelos homens (status). Assim, o que fica latente é que a dimensionalidade das questões de injustiça perpassam todos as coisas. Em função do reconhecimento dessa bidimensionalidade intrínseca, Fraser propõe um modelo de paridade participativa. A questão do reconhecimento cultura de grupos minoritários não é uma questão ética, mas sim moral, uma vez que ela não diz respeito à busca pessoa pela felicidade e auto realização, mas sim ao desenho institucional justo, isto é, as normas e regras que organizam as instituições públicas, quaisquer que elas sejam. Assim, só será justo na medida em que todos os segmentos da sociedade tenham a possibilidade de participarem de maneira igualitária na formulação dessa regra. Para que seja possível criar um regime de paridade participativa é necessário tanto que certas condições objetivas, quanto certas condições intersubjetivas sejam satisfeitas. As condições objetivas são aquelas que excluem níveis de dependência econômica e desigualdade que impeçam a igualdade de participação, impedindo a possibilidade de algumas pessoas de interagirem com outras como iguais. Por sua vez, as questões subjetivas são aquelas que os padrões institucionalizados de valores culturais expressem igual respeito por todos os participantes e garanta a oportunidade igual para que cada qual alcance a estima social. É importante lembrar que para Fraser a satisfação de apenas uma das condições não é suficiente. A paridade participativa é universalista, seja porque inclui todos os parceiros na interação, seja por que pressupõe igual valor moral dos seres humanos. Segundo Fraser, a justiça hoje exige tanto redistribuição como reconhecimento. Contudo, diante de tais exigências, questões são impostas à nossa reflexão: qual a relação entre eles, uma vez que estamos diante de duas injustiças? Para ajudar a esclarecer essa situação e as perspectivas políticas que ela apresenta, Fraser propõe distinguir analiticamente duas maneiras muito genéricas de compreender a injustiça. A primeira delas é a injustiça econômica, que se radica na estrutura econômico-política da sociedade. Seus exemplos incluem a exploração, a marginalização econômica e a privação. A segunda maneira de compreender a injustiça é cultural ou simbólica. Aqui a injustiça se radica nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. Seus exemplos incluem a dominação cultura, o ocultamento e o desrespeito. Assim, Nancy Fraser insisti em distinguir analiticamente injustiça econômica e injustiça cultural, em que pese seus mútuo entrelaçamento. O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de restruturação político-econômica. Pode envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho. Já o remédio para a injustiça cultural é alguma espécie de mudança cultural ou simbólica. Pode envolver a revalorização das identidades desrespeitadas e dos produtos culturais dos grupos difamados. Pode envolver também a valorização da diversidade cultural. Mais radicalmente, pode envolver uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas. A política do reconhecimento e a política da redistribuição parecem ter com frequência objetivos mutualmente contraditórios. Enquanto a primeira tende a promover a diferenciação do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la. Desse modo, os dois tipos de luta estão em tensão; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra o outro. Assim, estamos diante do dilema da redistribuição-reconhecimento. As duas coisas são bem claras nas duas extremidades de nosso espectro conceitual. Quando lidamos com coletividade que se aproximam do tipo ideal de classe trabalhador explorada, encaramos injustiça distributivas que precisam se remédios redistributivos. Quando lidamos com coletividades que se aproximam do tipo ideal da sexualidade desprezada, em contraste, encaramos injustiça de discriminação negativa que precisam de remédios de reconhecimento. No primeiro caso, a lógica do remédio é acabar com esse negócio de grupos; no segundo caso, ao contrário, trata-se de valorizar o sentido de grupo do grupo, reconhecendo sua especificidade. Nessa perspectiva, podemos dizer que coletividades bivalentes podem sofrer de má distribuição socioeconômica e da desconsideração cultural de forma que nenhuma dessas injustiças seja um efeito indireto da outra, mas ambas primárias e cor-originais. Nesse caso, nem os remédios de redistribuição nem os de reconhecimento, por si sós, são suficientes. Coletividades bivalentes necessitam dos dois. Assim, gênero e raça são paradigmas de coletividades bivalentes. Para eliminar a exploração, marginalização e privação marcadas pelo gênero é preciso abolir a divisão do trabalho, acabando com a divisão do gênero. No que diz respeito à diferenciação de valoração cultural, como tal, ela também abarca elementos que se assemelham mais à sexualidade do que à classe, e isso permite enquadrá-lo na problemática do reconhecimento. Assim, uma característica central da injustiça de gênero é o endrocentrismo (privilégio masculino, ou seja, padrões culturais que privilegiam as características da masculinidade), acompanhado de sexismo cultural (desvalorização de coisas vistas como feministas). Enquanto a lógica da redistribuição é acabar com esse negócio de gênero, a lógica do reconhecimento é valorizar a especificidade do gênero. Como lutar nessas duas frentes? A raça, como o gênero, é um modo bivalente de coletividade. Por um lado, ela se assemelha à classe, sendo em princípio estrutural da economia política. Nesse sentido, a raça estrutura a divisão capitalista do trabalho, ou seja, trabalhos de baixo e alto status. Sob esse aspecto, a injustiça racial aparece como uma espécie de injustiça distributiva que clama por compensações redistributivas, que busca uma transformação da economia política, ao abolir a divisão racial do trabalho. Contudo, a raça também tem dimensões culturais-valorativas, que a inserem no universo do reconhecimento, como o eurocentrismo (privilégio com o ser branco). Assim, estamos diante da injustiça de reconhecimento, que deve ser superada ao se conceder reconhecimento positivo, que aparece como um remédio contra esse tipo de injustiça. As duas faces bivalentes de injustiça se entrelaçam para se reforçarem uma à outra, dialeticamente, o que aponta para a necessidade de dar remédios analiticamente distintos: redistribuição e reconhecimento que não são facilmente conciliáveis, uma vez que a lógica da redistribuição é acabar com esse negócio de raça, a lógica do reconhecimento é valorizar a especificidade do grupo. Diante dessas posições, é difícil ver como feministas e antirracistas podem buscar redistribuição e reconhecimento ao mesmo tempo. Duas grandes abordagens para corrigir as injustiças que atravessam o divisor da redistribuição-reconhecimento: afirmação e transformação. Por remédios afirmativos para a injustiça, Nancy Fraser entende os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a estrutura subjacente que os engendra. Por remédios transformativos, em contraste, ela entende os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente. O ponto crucial do contraste é efeitos terminais vs. processos que os produzem – e não mudança gradual vs. mudança apocalíptica. Já os remédios afirmativos para a injustiça cultura são os multiculturalismos, os quais propõem compensar o desrespeito por meio da valorização das identidades, deixando intactas as diferenciações grupais. Nesse sentido, os remédios transformativos, que estão associados à desconstrução. Eles compensariam o desrespeito por meio da transformação da estrutura cultural vigente, transformando o eu de todos. Um exemplo que Nancy Frase fomenta se refere ao objetivo transformativo, que não é consolidar uma identidade gay, mas desconstruir a dicotomia homo-hétero de modo a desestabilizar todas as identidades sexuais fixas, ou seja, manter um campo sexual de diferenças múltiplas, não-binário, fluídas, sempre em movimento. Enquanto os remédios de reconhecimento afirmativos tendem a promover as diferenciações de grupos existentes, os remédios de reconhecimento transformativos tendem, no longo prazo, a desestabilizá-las, a fim de abrir espaço para futuros agrupamentos. Distinções análogas valem para os remédios para a injustiça econômica. Os remédios afirmativos para essas injustiças estão associados historicamente ao Estado de bem-estar liberal. Eles buscam compensar a má distribuição terminal, enquanto deixam intactos a maior parte da estrutura econômico-política subjacente. Remédios transformativos, em contraste, são associados historicamente ao socialismo, que busca transformar as estruturas econômico-política existente. Nessa perspectiva, redistribuição afirmativa é marcar a classe mais desprivilegiada como inerentemente deficiente e insaciável, sempre necessitando de mais. Com o tempo, essa classe pode aparecer como privilegiada, recebedora de tratamento especial. Assim, uma abordagem voltada para compensar injustiças de distribuição pode acabar criando injustiças de reconhecimento. Contudo, remédios transformativos reduzem a desigualdade social, porém, sem criar classes estigmatizadas de pessoas vulneráveis vistas como privilegiadas. Portanto, as medidas afirmativas têm por objetivos a correção de resultados indesejáveis sem mexer na estrutura que os forma. Já os remédios transformativos têm por fim a correção dos resultados indesejados pela restruturação da estrutura que o produz. Diante do exposto, podemos dizer que o que preocupava Nancy Fraser é a desconexão entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a dimensão econômica e a cultural, que estão normalmente associadas. A separação entre as dimensões econômica e cultural é falsa, na visão dela. O desafio então é descobrir como conceitualizar reconhecimento cultural e igualdade social de modo que uma demanda não enfraqueça a outra.