CULTURA CULTURA CENTENÁRIOS As vidas para além do século Há cem anos, nasciam três dos maiores escritores portugueses: José Rodrigues Miguéis, José Régio e Vitorino Nemésio. É hora de recordar os seus percursos – e de garantir a imortalidade das suas obras SARA BELO LUÍS O tempo não perdoa. E, por isso, uma efeméride vale o que vale – pouco, se passa despercebida; alguma coisa, se for capaz de revelar memórias perdidas; muito, se se prolongar por longos anos. No caso da literatura, além de evocarem a vida, estes números redondinhos (terminados em zero ou cinco, como convém) recordam também a obra, os livros e as palavras escritas de uma época. Carregando-os até ao presente. José Rodrigues Miguéis, José Régio e Vitorino Nemésio. Escritores portugueses, nascidos há cem anos, em 1901, quando o século XX ainda mal tinha começado. Contemporâneos, portanto. Mas com caminhos – geográficos e literários – que pouco se cruzaram. Ocasionalmente, Vitorino Nemésio ainda colaborou na revista Presença, da qual José Régio foi fundador e director. Rodrigues Miguéis, observador à distância da vida cultural portuguesa, fez parte do movimento ligado à Seara Nova. Hoje, os seus livros quase que desapareceram das estantes das livrarias e os seus nomes encontram-se entre os habitualmente designados de «escritores esquecidos». Que estas efemérides estendam as vidas para além da morte e transportem as obras até ao futuro. Da Rua da Saudade a Manhattan Os livros acabam sempre por integrar elementos da memória do autor. Filho de pai galego, Rodrigues Miguéis nasceu no número 12 da Rua da Saudade, a rua, como escreverá em A Escola do Paraíso, romance de 1960, que «deve o nome à saudade que para sempre ficou flutuando no sítio: a saudade dos que ficam, e a dos que partem e querem prender-se à terra, de braços, olhos e almas alongadas». Amigo de infância de José Gomes Ferreira, Miguéis licencia-se em Direito, em 1924, pela Faculdade de Lisboa, e ainda estabelece contactos com elementos do grupo da Seara Nova, sob a direcção de António Sérgio. Antes de publicar a sua novela de estreia, Páscoa Feliz, em 1932, já colaborava com vários jornais e revistas. A par da sua actividade jornalística, desenvolveu especial interesse por temas pedagógicos, traduzindo obras sobre o assunto e trabalhando num projecto de Leituras Primárias, que, todavia, nunca viria a ser aprovado. Em 1933, termina o curso de Ciências Pedagógicas, na Universidade de Bruxelas. Essa vocação social foi sempre indissociável da sua literatura, como revelam obras como Léah e Outras Histórias, O Milagre Segundo Salomé ou Gente da Terceira Classe. Aos 34 anos, José Rodrigues Miguéis foi viver para os Estados Unidos. Exilou-se, é mesmo o verbo. Por não suportar o regime de Salazar, por o terem proibido de ensinar, para poder continuar a gostar da «sua» Lisboa, a do bairro antigo onde fica a Rua da Saudade e «a escola do paraíso». «Aqui, em Nova Iorque, vivo dentro de uma esfera planetária. Dentro é Portugal. O que está fora, não me interessa demasiado», contou a Maria Antónia Palla, um ano antes de morrer (a 27 de Outubro de 1980, em Nova Iorque). Falando de Rodrigues Miguéis, Eduardo Lourenço diz que «ninguém tem mais pátria que aquele que a perdeu e a vive como perdida». Em Abril de 1974, Miguéis ainda pensou no regresso: «Senti vontade de voltar. Mas sei que não resistia oito dias: o meu coração não aguenta tanta confusão. O problema é que, fora do meu trabalho de escritor, estou morto.» A história deve escrever-se de outra maneira: o escritor exilado voltou muitas vezes ao seu país, através das personagens dos seus livros. E também através das ruas de Lisboa, assinaladas no mapa pendurado na parede de sua casa, em Manhattan. 172 VISÃO 4 de Outubro de 2001 O mestre ‘que parecia não preparar as suas lições’ «Açoriano de treze gerações», como ele próprio se definiu, Vitorino Nemésio nasceu a 19 de Dezembro, na Praia da Vitória, na ilha Terceira. Poeta, romancista, ensaísta, jornalista, cronista e professor universitário, será através do programa Se Bem Me Lembro que Nemésio se tornará conhecido do ▲ ‘Mundanismo, camaradismo, literatice’ Nasceu (a 17 de Setembro, em Vila do Conde) José Maria dos Reis Pereira, mas a escrita fê-lo José Régio. O seu primeiro livro de poesia, Poemas de Deus e do Diabo, lançado em 1925, revela, desde logo, os traços gerais da sua poética. Manuel Antunes chama-lhe um «misticismo remoto» e Fernando Guimarães, um dos maiores investigadores da obra regiana, salienta um dos seus aspectos mais originais: «Um envolvimento temático que resulta da confrontação com problemas de ordem psicológica, moral ou religiosa através de uma polarização ou tensa oposição entre o Eu e o Outro, o Bem e o Mal, o Espírito e a Carne, o Sagrado e o Demoníaco, o Amor divino e o Amor humano.» Licencia-se em Filologia Românica, curso que termina em 1925, com uma tese que voltará a publicar, com alterações, sob o título Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa. Permanece em Coimbra até 1927, onde terá origem a revista Presença, cuja direcção Régio partilhará com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Dois anos depois, é destacado como professor para dar aulas no liceu de Portalegre, onde viverá até se reformar, nos anos 60 (é, de resto, onde se situa a sua casa-museu). Coleccionador de arte sacra (sobretudo de Cristos), Régio refugiou-se, assim, no Alentejo, afastando-se dos meios culturais da capital. E não hesitou em, palavras do próprio, «mandar passear esse mundanismocamaradismo-literatice para que não nasci». Poeta e romancista (Jogo da Cabra Cega, Davam Grandes Passeios aos Domingos ou O Príncipe com Orelhas de Burro), Régio foi também um homem do teatro. Considerava, aliás, ser essa a forma mais original de toda a sua bibliografia. «E consequentemente a mais incompreendida», acrescentava. Escreveu seis peças (entre elas, Benilde ou a Virgem-Mãe e El-Rei D. Sebastião) e revelou igualmente profundo interesse pela estética, questão que desenvolverá em obras como Em Torno da Expressão Estética (1940) e Três Ensaios sobre Arte (1980). No número 1 da Presença, defende que «em Arte, é vivo tudo o que é original». Ou não fosse ele, como já lhe chamaram, a figura literária mais completa do século XX. 173 CULTURA RÉGIO EM FAMÍLIA Para recordar… O autor de Poemas de Deus e do Diabo com o seu pai e seus irmãos, João Maria e Júlio D.R. Vitorino Nemésio, «açoriano de treze gerações», num «retrato equestre» COLECÇÃO CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA ‘SAUDADES PARA DONA GENCIANA’ O filme de Eduardo Geada, baseado no conto de Miguéis 174 NOS AÇORES ▲ l D.R. Depois do Colóquio Internacional sobre José Régio (que ontem, dia 3, terminou em Vila do Conde), na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, prossegue o ciclo dedicado ao autor de Poemas de Deus e do Diabo, com filmes inspirados em obras suas e outros comentados por si. No Palácio Foz, serão ainda exibidos A Multidão, de King Vidor (hoje, 4, às 18 e 30), A Canção da Terra, de Jorge Brum do Canto (6, às 15 e 30), Um João Ninguém, de Frank Capra (8, às 18 e 30), Bonnie e Clyde, de Arthur Penn (8, às 21 e 30) e A Palavra, de Carl T. Dreyer (9, às 18 e 30). Por sua vez, a Câmara Municipal de Lisboa promove, de 8 a 10, no Padrão dos Descobrimentos, um colóquio sobre a obra de José Rodrigues Miguéis, com a participação de A.H. Oliveira Marques, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, José George Monteiro, João Medina, José Saramago, Paula Morão, Raul Hestnes Ferreira, Onésimo Teotónio de Almeida, entre outros. O programa inclui uma exposição bíblio-iconográfica (de 8 a 28, no Padrão dos Descobrimentos), uma mostra sobre a presença do autor na imprensa (de 8 de Outubro a 30 de Novembro, na Hemeroteca) e duas sessões de cinema, com a exibição de um documentário sobre o escritor, da autoria de Diana Andringa (dia 8) e de Saudades para Dona Genciana, de Eduardo Geada (9). Está também em elaboração, por Luísa Ducla Soares, um conjunto de itinerários sobre a vida, a obra. A obra do autor de Mau Tempo no Canal será comentada num encontro, organizado pelo Seminário Internacional de Estudos Nemesianos, a decorrer de 10 a 12 de Dezembro. A Estampa, que publica toda a obra de Miguéis, vai reeditar Lisboa em Manhattan. Quanto às obras de José Régio, a Imprensa Nacional lançará, ainda este mês, Confissão de Um Homem Religioso e O Príncipe das Orelhas de Burro. AS VIDAS PARA ALÉM DO SÉCULO grande público. As suas crónicas televisivas, transmitidas entre 1969 e 1974, farão dele o «grande comunicador» – sem assunto predefinido, o escritor contava histórias atrás de histórias, com um à-vontade e uma agilidade intelectual invejáveis, aliciando várias gerações de telespectadores. Em jeito de balanço de vida, dirá um dia: «Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois, ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no Inverno e cantei sempre.» Aos 15 anos, com Canto Matinal, Vitorino Nemésio havia de se estrear como poeta. Entre outros títulos, seguir-se-lhe-iam Eu, Comovido a Oeste; Nem Toda a Noite a Vida; O Pão e a Culpa; Festa Redonda; Limite de Idade; vários volumes de ensaios; e o livros de contos O Paço do Milhafre, além do romance Varanda de Pilatos e da sua obra-prima, considerado um dos maiores romances portugueses do século XX, Mau Tempo no Canal. Em Coimbra, matricula-se em Direito, mas acaba por optar pelo curso de Filologia Românica, em Lisboa. Na década de 20, trabalha nos jornais (nas gazetas, como ele preferia dizer) como repórter e, em 1933, inicia a sua carreira como professor universitário. Quando proferiu a sua última aula, a 9 de Dezembro de 1971, teve o Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras de Lisboa apinhado de gente para ouvir o mestre «que parecia não preparar as suas lições». O jornalista Afonso Praça deixou, num artigo publicado em 1998 no Jornal de Letras, as suas impressões do tempo em que fora aluno de Nemésio: «O melhor era estar muito atento durante as aulas, tomar nota dos temas abordados e dos autores citados a propósito, para depois, através da leitura e da reflexão, chegar tão longe quanto possível, mesmo que o caminho seguido fosse diferente do do mestre.» Afinal, era essa a primeira lição de Vitorino Nemésio. ■ VISÃO 4 de Outubro de 2001