Visconde de Cairu – Civilidade, Escravidão e Barbárie Andréia Firmino Alves Departamento de Pós-graduação em História Universidade de Brasília/UnB [email protected] No Brasil do início do século XIX, parte da elite ilustrada refletiu sobre questões relacionadas à idéia de civilização. Para os intelectuais que abordaram o assunto, a sociedade do Brasil pré-independente e pós-independente carecia dos critérios essenciais à formação de um conjunto social. Faltava ao Brasil, sobretudo, um modo de ser civilizado. O sentido que esses autores atribuíram ao conceito de civilização aproximava-se muito dos caracteres que Norbert Elias definiu como constitutivos da idéia de civilização na época moderna. Os hábitos da corte portuguesa, recém-chegada ao Brasil, estimularam as discussões sobre a noção de civilidade, que, na Europa, já havia sido definida e identificada a segmentos sociais específicos. No Brasil, as reflexões sobre civilização coincidiram com o momento em que, no âmbito da política internacional, discutiam-se os temas do tráfico negreiro e da escravidão e a Grã-Bretanha mobilizava-se para combater o comércio escravista.1 Nesse contexto social, a idéia de que os negros não eram seres civilizados foi um dos argumentos utilizados por parte da intelectualidade luso-brasileira que condenou a utilização de mão-de-obra escrava na agricultura. O texto Da liberdade do trabalho (1851), de José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, é uma obra importante para a compreensão dos sentidos que parte da intelectualidade lusobrasileira atribuiu aos conceitos de civilidade e de moralidade. Para a elaboração das suas idéias, Cairu se apoiou nas reflexões de Adam Smith sobre as paixões humanas. Como outros iluministas escoceses, Adam Smith refletiu sobre a filosofia moral, com o objetivo de identificar as leis específicas que regulavam as regras morais gerais. Em A teoria dos sentimentos morais, Smith estudou as paixões humanas através da observação de uma sociedade civilizada. Essas paixões eram diversas: as paixões originais do corpo humano, como a dor e a fome; as paixões anti-sociais, como o desafeto e o ódio; as paixões sociais, como a compaixão e a generosidade; e as paixões egoístas, que, não estando relacionadas aos aspectos reprováveis da conduta humana, eram consideradas virtuosas.2 1 2 Cf. Valentim (1993). Carvalho (1995, p. 40). Valendo-se dos conceitos de simpatia e de espectador imparcial, Smith procurou explicar os laços de sociabilidade entre os homens e a prática do discernimento nas questões morais. A simpatia era a origem e a causa dos sentimentos morais, porque facultava ao homem a possibilidade de se colocar no lugar do outro e, assim, aprovar, ou não, uma situação. O espectador imparcial era a capacidade do homem para julgar, através da imaginação, as suas próprias ações, avaliando, pelo uso da razão, o mérito dos seus atos.3 Smith discutia, portanto, a atividade do julgamento e o processo de formação das regras morais vigentes em uma sociedade. As paixões harmonizavam-se pelas regras que os homens criavam em suas interações, quando utilizavam as faculdades da simpatia e do expectador imparcial. As regras morais tendiam a estimular as paixões sociais e a desestimular as paixões anti-sociais. Em Uma Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, Adam Smith apropriou-se de conceitos formulados pelos fisiocratas, como os de trabalho produtivo e trabalho improdutivo, e das teorias de Newton, para construir uma reflexão sobre o capital e analisar a ordem e as regularidades dos movimentos econômicos.4 O princípio básico da natureza humana, pelo qual se podia compreender o mundo econômico, era o desejo dos homens de melhorar a sua condição material, do qual decorria a construção da civilização. O comércio, como instituição civilizadora, permitia aos homens, mesmo que de forma não planejada, criar e distribuir riquezas e, assim, harmonizar os interesses egoístas e satisfazer as necessidades de toda a sociedade.5 As trocas comerciais, baseadas em relações de interesses mútuos, favoreciam “a cultura da respeitabilidade, estimulando os homens a desenvolverem o auto-controle, a prudência e a se tratarem como mais decência, melhorando assim o nível moral da sociedade.”6 Smith criticou os monopólios comerciais e, principalmente, as relações baseadas na servidão e na escravidão, práticas que não se conformavam com o seu projeto civilizador. Leitor da obra filosófica de Adam Smith, Cairu empenhou-se em divulgá-la, apropriando, em seus textos, diversas idéias do iluminismo escocês, como a filosofia natural, as vantagens da civilização, e a prosperidade econômica e o desenvolvimento civilizacional, ambos decorrentes do crescimento do comércio e da indústria. 3 4 5 6 Carvalho (1995, p. 43). Carvalho (1995, p. 47). Carvalho (1995, p. 65). Cf. Kirschner (2002) Cairu compreendia o trabalho como um agente no processo de construção de uma determinada moralidade, concluindo que: [O trabalho] para ter os benéficos efeitos que a indústria humana pode racionalmente desejar e conseguir [... deve ser] livre, isto é, não só feito por pessoa isenta do domínio de outro, se não também por discreta escolha do mesmo trabalhador, e conseqüentemente análogo às suas inclinações, talento e circunstâncias.7 Na passagem citada, Cairu apresentou as características que, na sua interpretação, deviam conformar o trabalho humano. Primeiramente, o trabalho participava de uma ação humana, ou “indústria humana”, realizada de forma racional. A racionalidade significava o livre arbítrio do homem para realizar uma atividade que conviesse às suas necessidades. A segunda característica constitutiva do trabalho era a necessidade de que ele respeitasse as limitações do indivíduo envolvido na realização de uma determinada tarefa, porque a produtividade estava associada ao aproveitamento das melhores habilidades do trabalhador.8 Por fim, a garantia do acesso do trabalhador ao produto do seu trabalho era um estímulo ao trabalho livre. “Com a moral certeza do arbítrio próprio na disposição do respectivo produto, no que não ofende as regras essenciais da justiça”, o homem sentia-se estimulado a aumentar a sua produtividade para obter maiores ganhos.9 Ao destacar o valor do trabalho como agente construtor de uma moralidade, Adam Smith também havia refletido sobre a relação entre o acesso ao produto do trabalho e a produtividade do trabalhador.10 A questão tornava-se muito relevante quando se abordava o contexto escravista: A experiência de todas as épocas e nações demonstra que o trabalho executado por escravos, embora aparentemente custe apenas a própria manutenção dos escravos, ao final é o mais caro de todos. Uma pessoa incapaz de adquirir propriedade não pode ter outro interesse senão comer o máximo e trabalhar o mínimo possível.11 7 8 9 10 11 Lisboa (1997, p. 324). Lisboa (1997, p. 324). Lisboa (1997, p. 324). Para não se incorrer em anacronismo, é importante ressaltar que a produtividade significava um melhor aproveitamento do trabalho agrícola. Smith (1999). Como visto anteriormente, o trabalho e o universo comercial forneciam ao homem um refinamento para lidar com outros homens. Smith (1981, p. 328). O escravo, embora participasse ativamente da produção, não possuía controle algum sobre os bens gerados pelo seu trabalho e não se sentia, portanto, estimulado a produzir. O projeto civilizador, baseado nas trocas comerciais, encontrava-se comprometido pela produção dentro do sistema escravista. Outro tema importante que emergia da reflexão sobre trabalho e escravidão era a questão da propriedade. Citando Smith, Cairu afirmou que “sendo o escravo reduzido à máquina, não esperando melhoria de condição, nem podendo adquirir propriedade, as faculdades do corpo e do espírito ficam mutiladas e sem energia e, se se desenvolvem às vezes é com frenesi da desesperação”.12 A propriedade representava um estímulo ao indivíduo e uma valorização dos elementos morais que, conjugados a ela, promoviam o bem-estar. A impossibilidade de acesso à propriedade reduzia a capacidade do indivíduo para aumentar a produção e a produtividade,13 fontes importantes para a promoção do comércio, atividade impulsionadora da civilização. Ao discutir a moralidade e a barbárie, Cairu percebia os escravos como uma espécie inferior, quase desumana.14 Os escravos eram “bárbaros indolentes e desacostumados à obra regular e assídua, ou a constrangê-los ao trabalho e subordinação com dureza, que os aterre e domestique”.15 O escravo aparecia como uma criatura necessária devido às exigências da economia, mas como um ser inconveniente no campo da moralidade, porque engendrava terríveis prejuízos, que eram disseminados entre os outros membros da sociedade. A escravidão era uma instituição que comprometia toda a organização social, porque, por meio dela, favorecia-se a propagação dos seguintes males: [...] exalta-se o original barbarismo, e insolência do homem, que antes quer constranger, mandar e oprimir, do que ajustar, persuadir e bem fazer; estabelece-se interminável hostilidade entre o poderoso e o desvalido, o inerte e o industrioso, o adulador e o homem do honra; fiando-se aqueles no prestígio da força, riqueza e fraude, não tendo estes outro regresso, que a intriga, lisonja, ou aviltado sofrimento, que paralisa e amortece todas as virtudes; habitua-se a obrar pelo cego impulso do medo e violência, e 12 13 14 15 Lisboa (1997, p. 326). As moralidades cortesã e burguesa, dos séculos XVIII e XIX, enfatizavam e defendiam a importância da propriedade como meio de promoção social. A inferioridade do escravo não estava fundamentada na biologia, mas na moralidade e na civilização. A discussão sobre a inferioridade racial articulou-se somente ao final do século XIX. Para mais informações, cf. Rodrigues (2000) e Schwarcz (1993). Lisboa (1997, p. 326). não pela ilustrada coragem, e legítimo império da razão; onde se autoriza o cativeiro, as mais baixas e vis paixões animais tomam o seu terrível ascendente. O que tem escravos, vive sempre enfezado, e tem de ordinário o espírito em cegueira e turbação. Faz-se duro, e intratável entre os iguais, vingativo e cruel com os inferiores, e inexorável com os objetos do seu furor e ignorância; o homem livre jamais se opõe a par do escravo, e a infinita distância dos estados os repulsa de toda a racionável aliança e parceria.16 O tema do barbarismo, citado acima, situa-se no contexto de oposição entre valores e hábitos civilizados e valores e hábitos bárbaros ou selvagens.17 A oposição entre civilização e barbárie, interpretada por Norbert Elias como uma forma de diferenciação social, surgiu como temática no início da modernidade, momento de aceleração do processo civilizador.18 Entre as características do barbarismo estavam a insolência, a hostilidade, o uso da força física, o constrangimento, o medo, a violência, a desrazão e o uso exacerbado dos instintos (reputados como animalescos). Esses elementos talvez conformassem aquilo que alguns intelectuais, no Brasil do início do século XIX, entendiam pela idéia de barbárie.19 A convivência com um indivíduo considerado bárbaro, como o escravo, contaminava o homem civilizado. Para Cairu, a escravidão corrompia a civilização: As desordens, que em geral prevalecem na economia do rico, naturalmente se introduzem no manejo de quem tem escravos; a estreita frugalidade, e constante parcimônia naturalmente se estabelecem na do homem livre e não abastado. [...] Podia-se acrescentar que o caráter geral dos ricaços nos países de escravos se distingue pela mais sórdida avareza e mesquinharia; sendo, como se diz em bom português, unhas de fome e pobretões enfatuados, maiormente com os escravos.20 O egoísmo, a avareza e a mesquinharia eram características negativas, relacionadas ao mundo do trabalho, no qual a utilização de mão-de-obra escrava estimulava a degeneração moral dos senhores. Na passagem citada, Cairu apresentava justamente os caracteres que Adam Smith 16 17 18 19 20 Lisboa (1997, p. 329). Lisboa (1997, p. 329). Elias (1994, p. 55). Rodrigues (2000). Lisboa (1997, p. 326-327). enfatizou em seus textos, quando refletiu sobre as virtudes necessárias ao bom empreendedor e sobre os vícios que corrompiam o indivíduo e comprometiam os seus bens. Bibliografia CARVALHO, Maria Gabriela Carneiro de. 1995 Lei natural e natureza humana em Adam Smith. Rio de Janeiro. 103 f. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. ELIAS, Nobert. 1994 O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2 v. LISBOA, José da Silva. 1997 [1851] Da liberdade do trabalho. In: ROCHA, Antônio Penalves (Org.). Visconde de Cairu. São Paulo: 34. p. 323-333. KIRSCHNER, Tereza. 2002 Ecos do Iluminismo escocês no Brasil. In: BOTELHO, Cléria (Org.). Um passeio com Clio. Brasília: Paralelo 15. RODRIGUES, Jaime. 2000 O infame comércio. Campinas. Unicamp, Cecult. SCHWARCZ, Lilia Moritz 1993 O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras. SMITH, Adam. 1981 [1776] An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. Indianapolis, Liberty Fund. 2 v. 1999 [1759] Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes. VALENTIM, Eduardo. 1993 Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamentos. Dados da Autora Nome: Andréia Firmino Alves Endereço: QR 202 Conjunto 9 Casa 36 Cidade: Samambaia - Distrito Federal Fone: 61 9440860 E-mail: [email protected] Universidade de Brasília – UnB Forma de Apresentação: Seminário