Publicação do Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC) Versão eletrônica da revista está disponível em www.iedc.org.br/reid 6 Quadrimestral v.3 - Fevereiro 2010 REID é uma publicação quadrimestral (junho, outubro, fevereiro) do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania (IEDC). Os artigos e resenhas enviados a REID são submetidos ao Conselho Editorial, que se reserva o direito de sugerir ao autor modificações de forma, com o objetivo de adequar o artigo às dimensões da revista ou ao seu padrão editorial e gráfico. A publicação de um artigo não exprime endosso do Conselho a todas as afirmações feitas pelo autor. No que se refere aos direitos autorais, a Revista REID utiliza a licença Creative Commons 2.5 para a publicação de seus artigos. Isso significa que os artigos podem ser copiados e distribuídos, contanto que atribuído crédito à Revista. COORDENAÇÃO Inês Virgínia Prado Soares Sandra Akemi Shimada Kishi CONSELHO EDITORIAL Adilson Paulo Prudente do Amaral Filho Adriana Zawada Mello Blanca Lozano Cutanda Bruno Campos Silva Carlos Alberto de Salles Christian Courtis Daniel Sarmento Evanson Chege Kamau Everson Paulo Fogolari Fabiana Saenz Flávia Moreira Guimarães Pessoa Flávia Piovesan Geisa de Assis Rodrigues Gerd Winter João Bosco Araújo Fontes Jr. João Luís Nogueira Matias José Adércio Leite Sampaio José Roberto Pimenta Oliveira John Bernhard Kleba Juliana Santilli Lília Maia de Morais Sales Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro Marcelo Buzaglo Dantas Marcus Orione Gonçalves Correia Nelson Nery Junior Oscar Vilhena Paulo Affonso Leme Machado Rebecca Purdom Renata Porto Adri Sérgio Salomão Shecaira Solange Teles da Silva Tullio Scovazzi Uendel Ugatti Virgílio Afonso da Silva Walber de Moura Agra Walter Claudius Rothenburg EDITORAÇÃO Danilo Cymrot Darcy Rudimar Varella Rafael Bresciani Marracini Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e Cidadania – v.3, n. 6, Fevereiro 2010. – Erechim, RS : Habilis, 2010. v. ; 18 x 26cm Quadrimestral ISSN 1983-1811 1. Direito 2. IEDC C.D.U.: 340 Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath CRB 10/1278 www.iedc.org.br 2 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 www.habiliseditora.com.br Sumário 5 COLABORADORES Sumário 7 O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES Aline Vieira de Carvalho Pedro Paulo A. Funari 17 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) Andrés Zarankinn Claudio Niro 33 CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFuSO Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz 47 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL Antonio Guimarães Marrey Anália Belisa Ribeiro 67 POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS Antonio Roberto Xavier 75 A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGuINDA E OuTROS AuTORES VERSuS TExACO: ANáLISE DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO Carol Manzoli Palma Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 3 Sumário 83 187 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS Clara Silveira Belato Eduardo Baker Valls Pereira A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO Rodrigo de Abreu Rodrigues 97 193 CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR? Fabio Marques Barbosa Lamartine Ribeiro José Manfroi ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? Rodrigo Gonçalves Oliveira 107 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF Grupo do Ativismo Judicial IBMEC-RJ, UFU e PUC-RIO 125 A EFICACIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇOES PRIVADAS ESPANHOLAS Jonathas Fortuna Gomes 133 A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 Jucélia Bispo dos Santos 207 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL Sandra Akemi Shimada Kishi 219 O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS Sylvia Helena F. Steiner 227 A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS Zélia Luiza Pierdoná 237 145 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA Kai Ambos NORMAS PARA PuBLICAÇÃO 173 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA Nilma de Castro Abe 4 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 Colaboradores CoLABorADorES CLARA SILVEIRA BELATO Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva ANDRÉS ZARANKIN Graduado em Antropologia com orientação em Arqueologia pela universidade de Buenos Aires,tem Especialização em Historia e Critica da Arquitetura pela universidade de Buenos Aires (1995-1997) e Doutorado em História pela unicamp (1998-2001). Pós-doutorado em Arqueologia no CONICET (2001-2003) e em História na uNICAMP (2004-2005). Desde 2006 é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da FAFICH-uFMG, onde ministra aulas na graduação e na pós-graduação. ANÁLIA BELISA RIBEIRO Psicóloga, Especialista em Direitos Humanos e Proteção a Testemunhas, Coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Governo de São Paulo. ANTONIO AUGUSTO MELLO DE CAMARGO FERRAZ Procurador de Justiça do Estado de São Paulo ANTONIO GUIMARÃES MARREY Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo ANTONIO ROBERTO XAVIER SGT da PMCE 5ª CIA/1ºBPM; Mestre em Políticas Públicas e Sociedade – uECE (2008), Mestre em Planejamento e Políticas Públicas – uECE (2007); Especialista em História e Sociologia – uRCA (2006) e Graduado em História – uECE (2002). CAROL MANZOLI PALMA Advogada, consultora ambiental e mestranda em Direito pela universidade Metodista de Piracicaba (uNIMEP). CLAUDIO NIRO Estudante do Curso de Ciências Antropológicas – universidade de Buenos Aires (uBA) e exdetido desaparecido. EDUARDO BAKER VALLS PEREIRA Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva. FABIO MARQUES BARBOSA Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Pós-graduado em Direito Criminal pela uCDB/ Campo Grande/MS (lato sensu) e mestrando bolsista (FUNDECT) em Estudos Fronteiriços pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. GRUPO DO ATIVISMO JUDICIAL IBMECRJ, UFU E PUC-RIO O Grupo do Ativismo Judicial é integrado pelo professor Alexandre Garrido da Silva, universidade Federal de uberlânida, Anna Federici Araujo, Bacharel em Direito pela PuC-Rio, Bernardo Medeiros, Mestre em Direito pela PuCRio, Daniella Peçanha, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Eduardo Pereira Vals, graduando em Direito do Ibmec-RJ, Fermando Gama, universidade Federal Fluminense, Havine Santos Muri Rodrigues, Bacharel em Direito pelo Ibmec-Rio, Jorge Chalub, Mestre em Direito pela PuC-Rio, José Ribas Vieira, Ibmec, PuC-Rio, Julliano Castro, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Karine Souza, graduanda de Direito do Ibmec-RJ. JONATHAS FORTUNA GOMES Advogado. Pós-Graduando em Direito Civil pela uFBA(universidade Federal da Bahia). Pós graduando em Direito Civil pela FACuLDADE BAHIANA DE DIREITO. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 5 Colaboradores JOSÉ MANFROI Graduado em filosofia (FuCMT/MS), Mestre em Educação (uFMS) e Doutor em Educação (uNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de Pós-graduação lato sensu da uCDB/Campo Grande/MS. JUCÉLIA BISPO DOS SANTOS Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia, professora de História do Ensino Médio da rede estadual da Bahia, e professora das disciplinas de Teorias Sociológicas I e II da Faculdade Nobre de Feira de Santana. KAI AMBOS Professor de Direito Penal, Procedimento Penal, Direito Comparado e Direito Penal Internacional na universidade Georg-August de Göttingen; Juiz do Tribunal Regional de Justiça (Landgericht) de Göttingen. LAMARTINE RIBEIRO Professor, especialista e advogado. Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da uCDB/ Campo Grande/MS. NILMA DE CASTRO ABE Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Católica de São Paulo (PuC-SP), Advogada da união em São Paulo. RODRIGO DE ABREU RODRIGUES Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da universidade Presbiteriana Mackenzie. Exerceu monitoria de Linguagem Jurídica e Direito Civil sob orientação da Professora Titular Regina Toledo Damião. 6 RODRIGO GONÇALVES OLIVEIRA Graduando da universidade Federal da Paraíba, Monitor Bolsista da Disciplina Direito do Trabalho. SANDRA AKEMI SHIMADA KISHI Procuradora Regional da República; mestre em direito ambiental, professora convidada nos cursos de pós-graduação lato sensu em direito ambiental na universidade Metodista de Piracicaba. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre águas do Ministério Público Federal e coordenadora adjunta do VI e VII Cursos de Ingresso e Vitaliciamento da Escola Superior do Ministério Público da união – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Pesquisadora no grupo de pesquisa DFG/Brasil-Alemanha em parceria com a universidade de Bremen-Alemanha, sobre acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios (2007-2009). SYLVIA HELENA F. STEINER Juíza brasileira junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI) desde 2003, presidente da Câmara Preliminar I. Foi Procuradora da República de 1982 a 1995 e Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da Terceira Região de 1995 a 2003. ZÉLIA LUIZA PIERDONÁ Procuradora da República em São Paulo; Mestre e Doutora pela PuC/SP; Professora da graduação e da pós-graduação da universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo; autora do livro “Contribuições para a seguridade social”, LTr, 2003, e de diversos artigos em revistas especializadas. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES Artigo o DirEito à DivErSiDADE: PAtrimônio E quiLomBo DE PALmArES1 Aline Vieira de Carvalho* Pedro Paulo A. Funari** rESumo: O presente texto tem como objetivo discutir a construção do conceito de Patrimônio e sua relação com a diversidade. O Quilombo de Palmares é apresentado como estudo de caso para elucidar a possibilidade de abordagem da própria diversidade como um patrimônio. Palavras-chave: Política patrimonial pluralista. Diversidade. Comunidade quilombola. ABStrACt: This paper aims to discuss the construction of the concept of heritage and its relationship to diversity. quilombo de Palmares is presented as a case study to elucidate the possibility of approach the diversity as a heritage. Keywords: Pluralistic patrimonial policy. Diversity. Quilombola community. Patrimônio como construção: do ideal nacional à questão da diversidade As discussões sobre o patrimônio não podem ser dissociadas de sua historicidade, dos contextos históricos em que se tratou tanto das questões tanto teóricas, como práticas, referentes aos usos do passado, à sua construção social (Bond & Gilliam 1994). A própria noção de patrimônio é histórica, como lembra Dominique Audrerie (1997: 15): On est passe d’un patrimoine familial, tranmis de génération en génératio, à un * Doutora em Ambiente e Sociedade pelo IFCH/ unicamp. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam/unicamo) e pósdoutoranda Fapesp (Departamento de História – unicamp). E-mail: [email protected] Professor Titular do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Professor e Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam – unicamp). E – mail: [email protected] ** Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 7 CARVALHO, A. V. - FuNARI, P. P. patrimoine collectif, témoin de l’histoire de la nation2. Como se fez essa passagem do patrimônio privado e aristocrático ao patrimônio público, subjetivo, da nação? Como chegamos ao patrimônio universal que transcende, por definição o quadro da nação? Convém, brevemente, retomarmos o próprio sentido das palavras que utilizamos para nos referirmos a isso. Assim, as línguas românicas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que, pelo mesmo processo de generalização que afetou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, implícitos na “herança” (Funari 2001). Ao lado destes termos subjetivos e afetivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais econômica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma “propriedade”. Como a própria definição de “propriedade” é política, “a propriedade cultural é sempre uma questão política, não teórica”, ressaltava Carandini (1979: 234). O patrimônio como bem privado a ser transmitido por herança esteve na base da criação do patrimônio público da nação e resulta da implantação do estado nacional, em fins do século xVIII e no decorrer do século xIx. A nação surgiu como um projeto político, baseado na invenção de tradições visando à criação de uma identidade compartilhada por todos os cidadãos. Os reinos de origem medieval eram formados por súditos que falavam diversas línguas, pertenciam 8 a comunidades locais e só eram iguais enquanto servidores do rei. O novo estado nacional, ao amputar o estado de sua cabeça, teve como primeira tarefa criar os novos cidadãos, um único povo, com uma única cultura, língua e território. Esse processo foi lento e continua em curso e é ele que justifica a noção abstrata de ‘patrimônio nacional’. quais os pressupostos epistemológicos desse projeto? O compartilhamento de valores, a homogeneidade social e o consenso fundam a ideologia nacionalista e viriam a encontrar fundamentação, no âmbito das Ciências Sociais. De fato, a Sociologia viria a propor modelos de funcionamento da sociedade, como um todo homogêneo, sem lugar para o conflito. Ou melhor, o conflito existe como anomia, exceção que confirma a regra e comportamento desviante. Durkheim3 e Weber serão os dois pilares do pensamento social sistêmico, formuladores de modelos duradouros sobre a sociedade como estável conjunto de relações, com grande influência nos estudos sobre o patrimônio durante o século xx. Os conflitos sociais, sinais de anomalia, 4 refletem o metus plebis (medo do povo) , cujas origens remontam ao início da industrialização, mas que adquirem contornos novos com a sociologia normativa. Se para os positivistas a História era um suceder-se de lutas e de mudanças, os modelos sociológicos viriam a enfatizar a reprodução das relações sociais de geração a geração, as permanências subterrâneas, a longa duração, a estabilidade. Neste contexto, o patrimônio é construído como a sensação de compartilhar valores, de pertencimento, em uma interpretação que minimiza a diversidade de interesses sociais e, ainda mais, os conflitos e contradições (e.g. Cohen 1982; Meneses 1987). A sociedade é vista como um conjunto harmônico de pessoas, uma koinonia, no sentido já proposto por Aristóteles (Politica 1252a7), a viver segundo normas sociais compartilhadas e aceitas. Neste modelo normativo, a dissensão, a variedade e a diferença aparecem como desvios da norma, exceções que confirmariam a regra. Essa concepção de sociedade cria o conceito de identidade partilhada, de características iguais (de onde se origina a própria palavra identidade, de idem, “o mesmo”, em la- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES tim), como se todos, portanto, pertencêssemos à confraria. Este o conceito normativo de pertença, belonging, tão caro aos modelos de sociedade sem conflitos, sem diversidade (Funari 2003). As críticas a essas concepções normativas não tardaram a afirmar-se, contudo. A sociedade, considerada como um conglomerado de grupos sociais, com características e interesses variados, caracteriza-se pelos conflitos. Estudiosos da sociedade, na esteira de Marx, insistiram na aplicabilidade do uso do conceito de classe para estudar as sociedades humanas, bem como na importância da bipolaridade5 entre apropriadores e apropriados, elite e povo, estes tão magnificamente chamados, por Walter Benjaumin, de geknechteten, “aqueles que servem, escravos”, termo usado para designar todos os explorados do passado, escravos, servos, operários6. De fato, à diferença dos modelos normativos de cultura7, que buscam a continuidade das relações sociais, a submissão dos grupos e dos indivíduos às regras sociais, os Marxismos ressaltam que os interesses e os conflitos são características inerentes à vida em sociedade. Mesmo estudiosos das sociedades arcaicas, como Randall McGuire e Dean J. Saitta, têm demonstrado como o conceito de classe é apropriado para o estudo de todas os tipos de sociedades, pois mesmo grupos pré-históricos, mal definidos como “simples”8, podem ser considerados como igualitários e estratificados a um só tempo e, pois, com relações de classe9. Além disso, os conflitos de classe atingiam, também, os dominantes, como destacado pela historiografia crítica (Funari 1996). Nas últimas décadas as críticas aos modelos normativos generalizaram-se, em particular no contexto do pós-modernismo, com sua valorização da diversidade, e passaram a considerar importantes não apenas os conflitos econômicos, como muitos outros, como os culturais, sociais, políticos, de gênero, de idade e muito mais. Diversidade implica identidades, no plural, fluidas e em mutação, pertencimentos múltiplos, parciais e contraditórios, conflitos e interesses em confronto. Como isto se reflete no patrimônio? Em termos internacionais, a UNESCO tem, desde a década de 1970, produzido literatura e propugnado a diversidade cultural como objetivo central, em ações que envolvam a participação das comunidades, em sua diversidade, na gestão pública dos bens culturais. A uNESCO reconhece que, talvez, nada defina melhor o momento em que vivemos, do que a luta pela preservação da diversidade, cultural, social, natural, ambiental. No Brasil, o cuidado com o patrimônio seguiu trajetória própria, no contexto de uma sociedade patriarcal e hierarquizada (Funari 1995). As preocupações com patrimônio, entre nós, deram-se no contexto oligárquico da República Velha e se concretizaram no período nacionalista autoritário, na década de 1930. A luta pela ampliação e diversificação do patrimônio, de maneira a incluir os vestígios indígenas, levada a cabo por Paulo Duarte e bem sucedida com a lei de 1961, foi bastante prejudicada pela ditadura militar e seu fortalecimento dos modelos normativos, homogeneizadores e de ‘pertença’ forçada à ‘pátria’ (Funari 1994). Como resultado, o conceito de patrimônio e as práticas de preservação patrimonial ficavam restritas as construções materiais das elites brancas e católicas de nosso país. Apesar de uma expressiva agitação internacional pelo reconhecimento e valorização da diversidade, levada a cabo por movimentos sociais e intelectuais (como o movimento dos direitos civis, feminismo, multiculturalismo, entre outros – cf. Semprini, 1999), no Brasil, essas forças vieram a ecoar nas questões patrimoniais e nas políticas nacionais a partir de meados da década de 1980; momento de redemocratização do país. Com a abertura política, temas relativos às identidades do “cidadão brasileiro” passaram a ser abertamente discutidas e problematizadas. Nesse contexto de debates, o quilombo de Palmares foi retomado como símbolo do que poderia ser o Brasil e o idealizado “povo brasileiro”. Palmares: que “País” é esse? ‘“Parece que Zumbi era casado, com uma branca, dona Maria, filha de um senhor de engenho de Pôrto Calvo. Esta Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 9 CARVALHO, A. V. - FuNARI, P. P. mulher branca talvez tenha sido raptada pelo Zumbi, mas sabe-se, por outro lado, que certa família de brancos se extraviou nas matas alagoanas e caiu nas mãos dos palmarinos, não sendo difícil que a companheira do Zumbi pertencesse a essa família. De qualquer modo, a esposa branca do chefe do quilombo pertence à tradição e à lenda, que, entretanto, encontram reforço na existência de uma rainha branca no folguedo popular do quilombo, que faz parte do folclore de Alagoas” (Carneiro, 1966: 36). “A criação de D. Maria, a rainha quilombola loura, é parte da estratégia dos que não abrem mão de decidir o que é história. De certo modo, a luta prossegue em Palmares, mesmo após tantos séculos. Uma disputa acirrada em que os adversários dos palmaristas buscam agora ofuscar distinções opressivas, negar identidades e impor homogeinidades. Tudo em nome de superiores “interesses nacionais”. Na verdade, tudo em nome dos interesses contrários às políticas de superação das desigualdades raciais” (Cardoso, Jornal írohín, 2008). As falas acima estão separadas no tempo por, pelo menos, 40 anos. A primeira foi produzida por Edison Carneiro; advogado soteropolitano, que dedicou-se ao estudo dos temas afro-brasileiros durantes os anos de 1930 até 1960. Inserido em contextos culturais próprios, salientou a questão da existência de “não negros” dentro do quilombo de Palmares: alguns destes habitantes seriam homens, mulheres, crianças, das mais diversas categorias “raciais” e religiosas (brancos, negros, índios, católicos e mouros) de poucas posses, de um Pernambuco extramentente empobrecido, que procuravam uma vida melhor, afastando-se das instituições coloniais oficiais. Alguns teriam escolhido a nova morada enquanto outros teriam sido raptados para fortalecer numerica e militarmente Palmares. A segunda fala é de Edson Lopes Cardoso, também natural de Salvador, mestre em Comunicação Social e editor do jornal Ìrohìn. 10 O trecho acima mencionado foi retirado de um artigo publicado no periódico eletrônico Ìrohìn intitulado “História: prepare-se para o embate ou engula o sapo”. Trata-se de uma crítica às publicações de Ruy Jobim Neto, destinadas ao público infanto-juvenil, nas quais a esposa de Zumbi é ilustrada como uma mulher branca. De acordo com Cardoso (2008), Neto teria construído esta Maria, “(...) de olho no presente das crianças que brincam alegres e felizes sem que nada as distinga, exceto o detalhe irrelevante da cor da pele (...). Assim, tudo teria começado em Palmares. Tanto as sementes do paraíso racial, quanto as primeiras germinações de enredos e personagens de novelas de televisão (...)”. Para o autor, trata-se de um confronto de discursos sobre a história, algo que vai além do universo acadêmico e liga-se à “defesa das legítimas reivindicações dos afro-brasileiros” (Cardoso, 2008). As duas posturas citadas ressaltam um não consenso entre os estudiosos sobre como teria sido a vida cotidiana no quilombo de Palmares. As disparidades dos discursos, bem como suas próprias estruturas, ressaltam como as interpretações sobre esse quilombo são eminentemente políticas. Palmares torna-se um espaço no passado para construir quem nós somos (ou gostaríamos de ser) no presente. Símbolo social, o Quilombo é constantemente alterado de acordo com contextos sociais específicos. Surgido no século xVII, em território que atualmente pertence ao Estado de Alagoas, o assentamento palmarino permeneceu silenciado por mais de 200 anos. O silêncio se dava, entre outros motivos, pelo temor que as elites coloniais sentiam da força simbólica de Palmares. um levante escravo já havia se provado perigoso aos grupos economicamente dominantes na colônia após a eclosão de rebeliões no Haiti, em 1794. O Haitianismo levou as autoridades coloniais do Brasil à se dedicaram ao desenvolvimento de medidas de segurança que evitassem o surgimento e a consolidação de novos Palmares (Lara: 2000:81). O silêncio foi rompido, no início do século xx, quando novas categorias sociais, ainda que estanques, passaram a serem celebradas, como Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES os bandeirantes ou os negros. O bibliotecário e arquivista Ernesto Ennes encabeçou, com Arthur Ramos e Edson Carneiro, uma valorização dos estudos do assentamento palmarino. O autor utilizou-se das fontes oficiais sobre Palmares para comprovar o heroísmo bandeirante paulista diante da barbárie quilombola. Ligado ao Museu Paulista (conhecido, popularmente, como Museu do Ipiranga) – seu livro As Guerras nos Palmares foi dedicado a Afonso E. Taunay, diretor da instituição – e às elites do sudeste brasileiro, Ennes organizou inúmeros documentos em uma narrativa épica com a intenção declarada de reconstruir “a verdadeira história de Palmares” e valorizar a figura de Domingos Jorge Velho, o bandeirante paulista que comandou a última expedição de ataque a Palmares e que representava o “espiríto” dos valentes paulistas. A resposta a Ennes surgiu na voz do antropólogo Arthur Ramos e do historiador e advogado Edison Carneiro (mencionado anteriormente). Ambos pesquisadores defenderam Palmares como um exemplo duradouro e, por isso, “mais expressivo” da persistência cultural africana. Em seus estudos, Ramos e Carneiro afirmaram que os negros escravos fugiam para o quilombo para preservar a cultura que traziam da áfrica, mantendo-a livre das ameaças culturais brancas (como a religião católica, as roupas, comidas, entre outras). No caso específico de Edison Carneiro, o autor destaca que os não negros, ao chegarem ao Quilombo, passavam a desfrutar de outra identificação cultural (não branca, colonial, européia). Assim, o quilombo seria uma alternativa para manter a identidade negra distante das deformações representadas pela cultura branca. Os primeiros enfoques das investigações sobre Palmares foram amplamente combatidos pelos estudiosos da década de 1960, em especial, por Clóvis Moura e Décio Freitas. Os autores discutem a rebeldia dos escravos e a existência do quilombo palmarino embasando-se em teorias marxistas. Dentro de um contexto analítico de luta de classes, Moura e Freitas defenderam o quilombo de Palmares como inerente à escravidão: o quilombo só existiu porque havia exploração de classes. Por outro lado, em uma relação de ambivalência, o surgimento de quilombos é percebido como responsável pela dinamização e, principalmente, pelo desgaste do sistema escravista. As revoltas escravas e, entre elas, os quilombos, passam, então, a ser consideradas como caminhos para o negro recuperar a dignidade humana (perdida na escravização). Zumbi torna-se o grande herói dessa história. No mesmo período, e em um caminho semelhante ao trilhado por Moura e Freitas, Abdias do Nascimento glorificou Palmares como um exemplo heróico da força negra no Novo Mundo. Intelectual afro-brasileiro – como ele próprio se definia –, pregava o pan-africanismo imediato (a união de todos os “filhos da áfrica” - descendentes de africanos nascidos em outros continentes), cujo modelo inspirador deveria ser o Quilombo de Palmares. Com um texto narrativo e caloroso, justificado pela sua experiência de ser negro no Brasil, Nascimento afirma a existência de uma exclusão social causada pela cor, atacando de forma direta o mito da democracia racial. Os seis autores expostos almejavam resgatar, “através da pesquisa empírica e exaustiva”, o quilombo de Palmares como ele “realmente” teria sido, (Azevedo 2000: 124). Apresentam, no entanto, um quilombo repleto de expectativas, dúvidas e respostas que são próprios do tempo vivenciado por cada pesquisador. O quilombo colonial deixa de representar apenas um acontecimento histórico para simbolizar lutas do nosso presente; de símbolo da “fraqueza e inferioridade negra” passa a ocupar o patamar de exemplo “concreto da riqueza e força africana”. Após a década de 1980, expande-se dentro das academias brasileiras uma variedade temática acerca de Palmares. As investigações descentram-se dos campos econômicos e passam a incorporar os estudos das famílias, mulheres, alimentações, sexualidade de Zumbi, entre outras possibilidades. E, em 1992, somam-se às várias abordagens acerca do quilombo de Palmares os trabalhos arqueológicos sobre o assentamento palmarino. A leitura dos artefatos, ou seja, dos objetos produzidos ou modificados pelas ações humanas (Funari 2003:13), pertencentes ao cotidiano quilombola, junto à leitura das fontes escritas, sustentam outras visões sobre o qui- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 11 CARVALHO, A. V. - FuNARI, P. P. lombo. O trabalho arqueológico realizado na Serra da Barriga, e financiado por instituições nacionais e internacionais, foi idealizado pelos pesquisadores Charles Orser Jr., Michel Rowlands, Pedro Paulo A. Funari. Cada um deles, apesar de investigar os mesmos vestígios materiais do assentamento quilombola, produziu um Quilombo de Palmares bastante diferenciado. O arqueólogo americano Charles Orser Jr (1996:41-53) afirma que o quilombo palmarino não formava uma unidade isolada para o combate de uma cultura pura, pois se inseria em uma complexa teia de relações diretas ou indiretas tanto com os colonos como com europeus. Os colonos, compartilhando de uma identidade mais próxima a dos palmarinos do que com a dos latifundiários ou outras elites locais, teriam mantido relações estreitas com Palmares, não apenas comerciais, mas também na esfera particular da vida cotidiana. A convivência entre as pessoas também é valorizada pelo arqueólogo brasileiro Pedro Paulo Abreu Funari (1999:37-66), que afirma o quilombo como local onde conviviam pessoas de diversas origens étnicas e culturais. Esse caráter multiétnico ter-se-ia originado da situação histórica e estratégica do quilombo. Os palmarinos estabeleceram-se em uma região onde havia nativos, moradores das vilas coloniais, fazendeiros, holandeses, e outros grupos, muitas vezes, marginalizados. Os quilombolas, deste modo, não estavam isolados; sobreviveram não apenas em confronto com esses grupos, mas necessariamente, em interação. Esses contatos transformaram Palmares não em um resumo modificado ou cópia fidedigna de experiências anteriores (exclusivamente africanas); ao contrário, consolidaram o quilombo como uma experiência singular. O não isolamento de Palmares também é advogado pelo arqueólogo britânico Michael Rowlands (1999: 330-340), que defende Palmares como uma estrutura plural, onde haveria, por exemplo, diferentes status sociais, que se refletiriam em variadas distribuições espaciais, entre os quilombolas. Nessa perspectiva, o quilombo se configuraria como uma sociedade muito próxima à existente no mundo colonial da 12 época. Haveria distinções entre a elite palmarina e os outros habitantes dos quilombos; em outras palavras, distinções de classe, e diferenciações determinadas por gênero e etnia. Outras escavações foram realizadas na Serra da Barriga no ano de 1996. O arqueólogo norte-americano Scott Joseph Allen (1998 141:177) afirmou Palmares como detentor de uma dinâmica bem específica: os quilombolas teriam criado, em um ambiente natural e social desconhecido, uma nova cultura e identidade. Suas roupas, nomes, utensílios, dentre outras expressões culturais (materiais ou não), eram compostos a partir da junção de elementos tradicionais (na maioria africanos) e novos. Essas articulações tinham como propósito a diferenciação entre os palmarinos e os diversos grupos pertencentes à sociedade escravocrata (holandeses, portugueses e colonos brasileiros). A identidade palmarina teria se consolidado através do contato entre muitas culturas, e originado, a partir de então, uma identidade própria, específica do quilombo. A pluralidade de identidades e os contatos entre os seres-humanos, dentro e fora do Quilombo de Palmares, são divulgados não apenas pelos discursos arqueológicos, nascido na década de 1990, como também por uma significativa parcela da historiografia sobre a escravidão. Essa postura é bastante interessante em nossa atualidade, já que com a divulgação da possibilidade de múltiplas identidades de Palmares, ou mesmo de outros objetos de pesquisa que não o quilombo, abre-se espaço para a liberdade: os leitores dos trabalhos arqueológicos podem construir suas próprias identidades sem se sentirem cerceados ou excluídos. O exemplo de Palmares demonstra como uma política patrimonial pluralista, que valorize a diversidade, pode produzir resultados que incluam segmentos sociais. O patrimônio de um grupo rebelde pode permitir, ainda, uma discussão social mais ampla sobre o sentido da preservação dos bens materiais do passado. Não se trata de preservar apenas o respeito à norma, aos valores dominantes, às dominações sociais, mas também a resistência, a diversidade. As diversas Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES interpretações da cultura material do quilombo devem ser explicitadas nas exposições, sejam em museus, livros ou outros meios de divulgação. uma política de patrimônio pluralista começa e termina com a diversidade, que inclui e liberta. 7 8 9 notas 1 O presente artigo é uma versão revisada e ampliada da publicação FuNARI, P. P. A. ; CARVALHO, A. V. . O patrimônio em uma perspectiva crítica: o caso do quilombo dos Palmares. Diálogos, Maringá, PR, v. 9, n. 1, p. 33-48, 2005. 2 “Passou-se de um patrimônio familiar, transmitido de geração em geração, a um patrimônio coletivo, testemunha da História da nação”. 3 Cf. Cf. JOHNSON, Terry; DANDEKER, Christopher; ASHWORTH, Clive. The structure of social theory. Londres: McMillan, 1984. p. 9-12 e 147-183. 4 Medo da plebe, em tradução literal. “Apenas a direção ordenada das massas por políticos responsáveis pode pôr fim ao irregular domínio da rua e o predomínio dos demagogos do momento”. WEBER, Max. Whalrecht und Demokratie in Deutschland, Gesammelte politische Schriften. Munique: Dreimasken, 1921. p. 322. Note-se o uso de “ordem” e “regra”, os dois termos da equação law and order: “In tutti i Paesi occidentali, ‘legge e ordine’ è un’espressione che fotografa la mentalità e il cuore (o almeno un aspetto decisivo) della destra politica. Non significa necessariamente una prospettiva forcaiola. No, vuol dire semplicimente che le regole – quelle dei codici come quelle non scritte che riguardanol’ambito informale della civile convivenza – devono essere rispettate in modo assoluto e che perciò con coloro che no le rispettano non si scherza, non deve esserci, non ci sarà, spazio per indulgenze di alcun tipo (a New York, come si ricorderà, è stato questo il programma del sindaco Giuliani)” (“em todos os países ocidentais, lei e ordem é uma expressão que representa a mentalidade e o centro (ou ao menos um aspecto decisivo) da direita política. Não significa, necessariamente, uma perspectiva estreita. Não, quer dizer simplesmente que as regras – dos códigos mas também as não escritas que se referem ao ambiente informal da convivência civil – devem ser respeitadas de forma absoluta e que, por isso, com aqueles que não as respeitam não se brinca, não deve haver, não haverá, espaço para indulgência de qualquer tipo”. GALLI DELLA LOGGIA, Ernesto, Le insegne di Babilônia. Corriere della Sera, p. 1, 30 out. 2001. Grifo nosso. 5 Carlo Ginsburg, Na Interview, Radical History Review, 35, 1986, p. 108: bipartition between popular and learned culture is more useful than a holistic model. 6 Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, em Gesammelte Schriften, vol.1, tomo 2, Frankfurt, Suhrkamp, 1974, tese xii; cf. Pedro Paulo A Funari, Considerações em torno das “Teses sobre a Filosofia da História”, de Walter Benjamin, Crítica Marxista, 1,3, 1996, pp. 45-53. Sobre o modelo normativo de cultura, uma crítica consistente encontra-se em Siân Jones, The Archaology of Ethnicity, Constructing identities in the past and present, Londres, Routledge, 1997. Randall McGuire, Why complexity is too simple, em Debating Complexity, organizado por P.C. Dawson e D.T. Hanna, Calgary, 1996, pp. 1-7. Randall McGuire e Dean J. Saitta, Although they have petty captains, they obey them badly: the dialectics of prehispanic Western Pueblo social organization, American Antiquity, 1996, 61, 2, pp. 197-216; Dean Saitta, Agency, class, and archaeological interpretation, Journal of Anthropological Archaeology, 13, 1994, pp. 201-227; Dean J. Saitta, Power, labor, and the dynamics of change in Chacoan political economy, American Antiquity, 62,1, 1997, pp. 7-26. Agradecimentos Agradecemos, em especial, a Inês Prado Soares e Sandra Akemi Kishi pela oportunidade de publicar o presente texto na REID. Aos colegas Siân Jones, Randal McGuire, Dean J. Saitta, Peter ucko. Devemos mencionar, ainda, o apoio institucional do CNPq, da FAPESP, da CAPES. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores. referências Allen, S. J. (1998) “A ‘Cultura Mosaic’ at Palmares? 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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010 15 16 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE Artigo DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) A mAtEriALizAção Do SADiSmo: ArquEoLogiA DA ArquitEturA DoS CEntroS CLAnDEStinoS DE DEtEnção DA DitADurA miLitAr ArgEntinA (1976-1983)1 Andrés Zarankin2 Claudio Niro3 rESumo: O artigo, a partir de um nível teórico e do relato de experiências reais sofridas por um dos autores, apresenta uma síntese da história das instituições punitivas na sociedade ocidental e um panorama geral do funcionamento da repressão durante a ditadura militar argentina, abordando, em seguida, a arquitetura e a organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção, mais precisamente o CCD Club Atlético, e seus efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos. Palavras-chaves: Ditadura. Tortura. Centros clandestinos de detenção. Arqueologia. Justiça de transição. ABStrACt: The article, from a theoretical level and reports of real experiences suffered by one of the authors, gives an overview of the history of punitive institutions in Western society and an overview of the operation of repression during the military dictatorship in Argentina, addressing then the architecture and spatial organization of clandestine detention centers, more precisely the CCD Athletic Club, and its effects on bodies and minds of the detainees. Keywords: Dictatorship. Torture. Clandestine detention centers. Archeology. Transitional justice. O presente artigo foi originalmente publicado em FuNARI; Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; REIS, José Alberioni dos (Org). Arquelogia da repressão e da resistência na América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980). Annablume/Fapesp, 2008. As figuras nele contidas foram retiradas para que o artigo fosse adaptado aos propósitos da REID. No texto original, os autores expressam agradececimentos, especialmente: a Comissão de Trabalho e Consenso do Club Atlético; a Melisa Salerno por sua ajuda com as figuras do artigo; e a María ximena Senatore por sua leitura crítica e sugestões. 2 Dipa-Imhicihu-Conicet e professor-visitante do NEE-uNICAMP (Fapesp). 3 Estudante do Curso de Ciências Antropológicas – universidade de Buenos Aires (uBA) e ex-detido desaparecido. 1 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 17 ZARANKIN, A. - NIRO, C. “Quem nunca esteve em um campo concentração, jamais poderá entrar ali, imaginar o que significa e, quem esteve, nunca poderá sair de todo”. Daniel M, sobrevivente do Clube Atlético (2002:10) um dia no El vesubio Em 9 de maio de 1978, em horas da madrugada, a bordo de um Ford Falcon, cheguei ao centro clandestino de detenção conhecido como El Vesubio. Estava localizado no Camino de Cintura, na Auto-estrada Richieri, bairro La Matanza. quatro indivíduos, sob as ordens de Suárez Mason, me tiraram do carro, encapuzado, com as mãos algemadas pelas costas, enquanto me insultavam e me golpeavam, conduzindo-me para uma casa. Dentro da mesma, me colocaram de pernas abertas, junto a uma parede. Enquanto isso, me obrigaram a apoiar a cabeça no muro. Vários torturadores me brindaram com patadas nos testículos e me insultaram. Dito procedimento chamaram de “el ablande”. Consistia em um método de acovardamento do prisioneiro, anterior ao ingresso na sala de tortura. Todos estes fatos aconteciam na casa 3, dado que o centro clandestino constava de três locais. Cada um destes estava destinado a distintas funções. Na casa 1 estava a chefatura, sede do comando e morada do encarregado de campo. Na casa 2 se encontravam os “quirófanos ou enfermarias”, isto é, as salas de torturas. A casa 3 era o lugar das celas de detenção ou “cuchas”. As “cuchas” eram uns cubículos, de um por dois metros, onde estávamos, umas quatro ou cinco pessoas encapuçadas, algemadas nos braços e nas pernas e, por sua vez, algemadas umas nas outras. quando recém chegávamos nas “cuchas” nos obrigavam a tirar as roupas e nos entregavam uns uniformes marrons que todos devíamos vestir. Através deste procedimento nos faziam perder, junto com a roupa, os últimos rastros de nossa vida exterior. 4 No princípio reinava um total desconcerto entre nós. Não sabíamos onde estávamos e nem o que ia suceder com nossas vidas. Na primeira semana não comi nada, em razão do asco que me dava ao que nos davam (guisados urinados pelos guardas) e pela forma em que nos faziam comer (devíamos comer de uma panela imensa, tomando o alimento com as mãos). Passada a primeira semana, a fome me fez comer tudo. Um companheiro, seqüestrado desde muito tempo, era quem nos subministrava a água e a quem chamávamos de “Hueso”. Este companheiro era a única pessoa a quem podíamos ver enquanto levantávamos os capuzes, no caso de não se encontrar nenhum guarda dando voltas. Isto acontecia em poucas ocasiões, dado que os guardas estavam vigiando constantemente. Dado que havia um pequeno furo no capuz (seguramente o mesmo capuz que havia sido usado por outros companheiros, em muitas oportunidades, devido ao cheiro que desprendia) pude observar através do mesmo e reconhecer a Auto-estrada Richieri e os coletivos da Linha 86, por meio de uma janela que se encontrava no que, provavelmente, havia sido um antigo refeitório na casa 2. A partir do tempo que suportamos nas ‘cuchas’ e da relação com “Hueso” começamos a conhecer o lugar, pelas descrições que ele nos fazia. Deste modo, nos inteiramos que a comida vinha do quartel de La Tablada, carregada em uma camionete, para logo ser deteriorada no El Vesubio. Também nos contou que os captores nos consideravam “perejiles”4, pois havíamos sido seqüestrados nos colégios Carlos Pellegrini e Juan José Paso. Explicou-nos que, na casa 2, estava a sala de tortura e os quirófanos. Algumas vezes nos conseguia comprimidos roubados para acalmar a dor dos golpes. Enquanto sucedia tudo isto, lá fora, era o Mundial de 78. Então, alguns verdugos viam os jogos por vários televisores e algumas companheiras os viam com eles. Igualmente, as mulheres estavam detidas em ‘cuchas’ separadas dos homens. Também sabíamos que as faziam Termo usado para referir-se a pessoas sem importância, que não tem poder. Neste texto, algumas palavras que estão em negrito são gírias oriundas de um contexto discursivo de repressão e de tortura, por isso, são mantidas na grafia original em espanhol. 18 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) realizar tarefas de ordem doméstica, no campo de detenção. Os guardas procediam de duas escolas do exército: Lemos e Cabral. Muitos deles eram do litoral e escutavam, seguidamente, chamamé. Estes costumavam nos insultar com consignas racistas, aos companheiros que identificavam como judeus e a todos em geral. Recordo-me que estava com duas pessoas que haviam caído, novas. Começamos a falar como podíamos e, claro,.... não falavam de comida nem nada. Falavam da Revolução Russa. Eu não podia acreditar. Emocionou-me estar falando de tais assuntos no meio deste lugar. Os tipos queriam me captar para o trotskismo. Depois me pus feliz, por um lado. Se os tipos estavam aí, e eu podia escutar a palavra Trotski e a palavra Lênin, ainda havia esperança. Todavia, eles não me puderam captar! A sala de tortura era uma habitação coberta com telgopor e, escrita com cigarros, havia uma frase que dizia: “se o sabe cante, senão agüente”. As paredes de telgopor estavam manchadas de sangue. Havia um balde com água e uma foto de Hitler pendurada, debaixo da qual dizia: Heil Hitler. A mesa era uma mesa de madeira com pranchas, recoberta com ferros e estava manchada de sangue. El Vesubio me traz certas recordações. Recordo-me da cidade de Pompéia, destruída no ano 79 d.C. As cinzas preservaram os edifícios e, inclusive, os cadáveres de suas vítimas. Este Vesúvio, ano 1975 a 1978 d.C., também arrasou com vidas e bens dos detidos, impondo uma lógica do terror. Do terrorismo de Estado. Antes foi a lava, agora os Ford Falcon, que se estenderam por toda a Argentina. Meu companheiro Leonardo, que era meu responsável no grupo em que militava, em um momento, antes da tortura, me disse que “hay que cortar la cadena”, não delatar a ninguém. Não reconhecer que éramos da União dos Estudantes Secun- dários (uES) e, tampouco, Montonero. Devíamos fingir que não sabíamos nada de nada. O problema foi que algum dos detidos haviam reconhecido sua militância na uES. Enquanto nós tratávamos de convencê-los que não tínhamos nada que ver, que havíamos deixado a militância antes da ditadura. Na sala de torturas me perguntavam pelo responsável do meu pelotão, porém, eu nunca dei nenhum nome. Os torturadores perguntavam com palavras próprias da militância, por isso, devíamos passar por ignorantes, para não pisarmos. Usavam palavras como “embute”, “pepas”, etc. Posteriormente, fomos transladados para a Villa Martelli, no Logístico 10. Meteramnos em umas celas, custodiados por três recrutas e um sargento ou cabo. Aí pudemos tirar os capuzes. Aí aparecia o major Teslaf que fazia o papel de bonzinho, porém, depois, me interei que era um dos chefes do El Vesubio. Através dos soldados, dado que havíamos feito certa amizade com eles, enviamos uma carta, clandestinamente, para nossos familiares, avisando que nos encontrávamos vivos. O recruta não podia dizer onde estávamos para evitar que sua vida corresse perigo e também a nossa. Seu nome era Horacio Sap. Três companheiros: Mauricio Westein, Juan Carlos Martire e Gabriela Juarez Celman, que caíram dias antes de nós, continuam desaparecidos. Mediante Horacio Sap, recebíamos notícias de nossas famílias. Certa vez, escutamos uma conversa entre militares de alta patente na qual mencionavam que nos haviam dividido em grupos de quatro, em distintos quartéis. Desta forma, pudemos avisar nossas famílias que não sabíamos onde, porém, que todos estávamos vivos. Na realidade, durante o cativeiro, por mais de 40 dias, não dormimos. Era impossível dormir. Esquecer o que sucedia. Ter sonhos. O capuz te isola por completo, do mundo exterior. Por sua Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 19 ZARANKIN, A. - NIRO, C. vez, há um outro detalhe sinistro, na raia com a maldade de outros seres humanos: os gritos, os uivos, os lamentos, os pedidos de piedade que gritam os torturados. Os insultos, as puteadas, “subversivo de merda ...”, “bolche (bolchevique) hijo de puta”, o Heil Hitler, la patota (grupo de pessoas violentas, multidão) que vem pisando-nos, las palizas com puños (ser agredido com socos), patadas, ferros, contra nós, agrilhoados os tornozelos, algemados e indefesos. Outra forma de resistir que tivemos, os companheiros: quando levaram o Leonardo à tortura (casa 2), o acostaron en “la parrilla” (o deitaram em uma cama para ser torturado com eletricidade) e o empezaron a dar picana (instrumento de tortura, fabricado na Argentina, para produzir descargas elétrica) para que “cante” a la hermana (para que confesse, delate). Em determinado momento, fizeram entrar Mauricio Westein e Juan Carlos Martire (estes companheiros continuam desaparecidos) e disseram que torturassem Leonardo. Como se negaram, os ataram no mesmo instrumento de tortura em que estava Leonardo e torturaram os três. Havia três ou mais guardas que duravam vinte e quatro horas. Uma das guardas era comandada por “Fierrito” e sua turma. Este “Fierrito” gostava de escutar rock nacional (por exemplo, “Plegaria para un niño dormido” de Spinetta). Nós pensávamos como um filho da puta como este pode escutar este tema. Também dizia que gostava dos filmes de Ingmar Bergman. De vez em quando, costumava falar para nós de sua família, de seus filhos. Outra guarda estava a cargo de “Pancho”. Às vezes nos dava pão. Um dia nos conseguiu um cobertor felpudo, pelo frio que fazia, por conseqüência do inverno. Certo dia em que estávamos ao seu encargo, não nos trouxe pão. Então, começamos a pedir. Pancho respondeu dizendo que haviam seqüestrado o padeiro. Certa vez, vieram os colaboradores (militantes de organizações políticas que, em seu momento, haviam sido seqüestrados e 20 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 que, durante a etapa do cativeiro, passaram para o bando dos militares). Dentre eles, havia um que se chamava “Lucho”. Este era médico. Nas operações de seqüestro ia com uma seringa que aplicava naqueles que tinham tomado comprimido de cianureto, para que o vomitasse. Os colaboradores habitavam o mesmo chupadero (Centro Clandestino de Detenção que ‘chupa”, abduz as pessoas), em uma dependência que chamavam de “Q” de Quebrados. O grupo que vimos no El Vesubio estava integrado por Lucho e por três mulheres. Uma delas, “La Negra”, também torturava com a picana. Os colaboradores, em certa oportunidade, chegaram à casa 3. Logo após fazer-nos tirar o capuz, para que pudéssemos olhálos, nos fizeram um tipo de averiguação. Queriam saber a classe social a que pertencíamos, a religião, a organização em que militávamos. Formuladas as perguntas, não as respondíamos, dado que não era mais do que um interrogatório, porém, sem picana. Ao poder olhá-los, constatamos que eles estavam bem vestidos e limpos. Além do mais, pediam que colaborássemos, enquanto falavam maldições sobre as conduções das organizações armadas. Diziam-nos que, em realidade, éramos idiotas úteis. Assim que se passaram uns vinte dias de cativeiro, começamos a notar versões da parte de “Hueso” acerca de que nos considerava “perejiles”. Outra versão era a de que iríamos para uma “granja de reeducação”. Isto me dava um medo horrível porque, segundo eles, nos iriam lavar o cérebro para converter-nos em outras pessoas. O fato de transformarmosnos em pessoas domesticadas por eles me despertava temor por alguma forma de escravidão mental, moral, física. Com o tempo, a novela “1984”, de Orwell, me recordou ditas sensações. Outro grupo da guarda eram os nazis. Quando vinham, o faziam ovacionando Hitler, cantando uma canção que diz: “Aí vem Adolfo pela rua, matando judeus para A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) fazer sabão”5. Estes verdugos punham gravações onde se escutava a voz de Hitler e quando vinham buscar-nos nos golpeavam com toda a fúria, produzindo a ruptura dos ossos de alguns dos detidos. O problema de estar encapuzado é de não saber de onde procedem os golpes e, portanto, permanecer em um estado de total indefesa. Estes tipos se entusiasmavam obrigando-nos a fazer ginástica militar (corpo ao solo, saltos de rã, etc.), mantendo-nos algemados na parede, durante horas. Gritavam contra nós, no meio dos ruídos das cadeias e ameaçavam-nos com a picana se não cumpríssemos com a consigna. Efetivamente, se alguém não resistisse, com este tratamento, era levado à casa 2, onde se encontrava o quirófano. Ali se torturava pelo simples prazer de torturar. Com um total sadismo. Enquanto tudo isto se passava, escutávamos na televisão o Mundial de 78. Cada vez que um rival fazia um gol na Argentina era muito triste para nós, porque os verdugos descontavam moendo-nos a pau. O banheiro da casa 3 não tinha porta, só uma cortina. Recordo que havia uma ducha que, em realidade, era um cano do qual saía a água gelada, e uma latrina para fazer nossas necessidades. Recordome que não havia papel higiênico, senão uma pilha de livros de Marx, de Lênin, da correspondência Perón-Cooke e de revistas como “El descamisado”, etc. Devido à pouca alimentação, havíamos baixado de peso de forma considerável. Além do mais, o mesmo estado de debilidade fazia com que padecêssemos de alucinações e entrássemos em algum momento em transe. Recordo que rezava e que me recordava dos quarenta dias de jejum de Cristo. Os rapazes judeus rezavam para Jeová. A debilidade permitia que nos torturassem com mais facilidade e, inclusive, que oferecêssemos menos resistência. Perdemos tanto peso ao longo desses dias que, quando nos transladaram ao quartel de Villa Martelli e me pude ver em um espelho, não me reconheci. Parecia outro, um cadáver vivente. Recordava-me dos prisioneiros de Auschwitz. “Sempre assustam os espectros” (frase de Jorge Semprún). Faz pouco tempo, voltei ao lugar onde estava o El Vesubio. Quando alguém chega, o primeiro que vê são as ruínas. O mesmo foi demolido, nos finais de 1978, pela ação da Comissão da OEA pelos Direitos Humanos. As ruínas do El Vesubio estão cercadas por arames farpados. O único problema é que não se pode ingressar adentro. Ali vive uma pessoa que impede o acesso ao lugar, ameaçando os organismos de direitos humanos e soltando uns cachorros de sua propriedade. Em uma oportunidade, pude entrar e reconheci uns ladrilhos vermelhos que pertenciam ao banheiro. Fecho os olhos e penso: restos do campo e do horror. Quando nos faz todos esperar, acorrentados, frente ao quirófano, escuto os gritos e os gemidos dos torturados, a música de chamamé, as vozes dos torturadores. Penso como será a tortura e se a vou agüentar. Quanto tempo passa. Impossível sabê-lo. O tremor de meu corpo e dos demais companheiros. O medo. Levam-me ao quirófano. Tiram-me o capuz. Luzes fortes que não me deixam ver. Uma voz potente. Reconheço que é a de “Vasco”. Pede-me que colabore. Agarram-me entre quatro pessoas. Tiramme a roupa. Molham-me com um trapo com água e me atam com um cabo, no dedão do pé. Com outro cabo começam a dar máquina. O vazio. Não sei quanto tempo dura, em realidade. Sinto que me tiram a alma. Tiram-me o desejo. Arrebentado. Levam-me às “cuchas”, junto com os demais companheiros. Certo dia, um companheiro que tomava um medicamento devido a um problema psicológico, padecia de delírios de perseguição, ao ficar sem o remédio e pedia, aos gritos, que o trouxesse. Nós pedíamos que ele se calasse para evitar reprimenda. No entanto, continuava gritando e solicitando o medicamento até que se escutava a 5 “Ahí viene Adolfo por el callejón, matando judíos para hacer jabón”. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 21 ZARANKIN, A. - NIRO, C. outra coisa que uma reescritura, isto é, na forma mantida da exterioridade, uma transformação pautada do que tem sido e do que tem escrito. Não é a volta ao segredo mesmo da origem. É a descrição sistemática de um discurso objeto. voz de um repressor que diz: “De que te queixas? De teu delírio de perseguição? Mas já te agarramos...”. Cláudio Niro, sobrevivente do CCD “El Vesubio” O relato revela claramente alguns dos dispositivos desenhados desde o sistema nos Centros Clandestinos de Detenção (CCD’s), utilizados pela ditadura militar Argentina, entre 1973 e 1983, para destruir a identidade, como pessoas, dos detidos. Privação de visão, limitação da mobilidade, aplicação de tormentos, falta de alimentos, condições climáticas extremas (frio ou calor), proibição de comunicação com outras pessoas, substituição do nome por um número, entre outras, são dispositivos que têm, principalmente, como foco de ação direta o corpo e a mente do detido. Estamos ante um novo modelo punitivo que utiliza elementos de sistemas repressivos anteriores. Por exemplo, a utilização de torturas físicas e a destruição do corpo são típicas da Idade Média. Enquanto que, a organização do tempo em rotinas que se repetem cotidianamente é característico das instituições disciplinares dos séculos xVIII e xIx. Este artigo se propõe discutir, a partir de um nível teórico e de um outro corporal – isto é, a partir de experiências reais, sofridas por um dos autores – a arquitetura e a organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção, na Argentina, e seus efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos. A arquitetura e a organização do espaço nos CCD’s estão pensadas como ferramentas para garantir o funcionamento do poder. São estas estratégias que nos interessa discutir neste artigo, desenvolvendo uma visão arqueológica do problema. Para isso, partimos de uma dupla idéia de “Arqueologia”. Por um lado, como o estudo das pessoas desde a cultura material e, ao mesmo tempo, seguindo Foucault (1970:235), como: A arqueologia não trata de restituir o que pôde ser pensado, querido, encarado, experimentado, desejado pelos homens no instante mesmo em que proferiram o discurso (...). Não é nada mais e nenhuma 22 Desta maneira, se pensamos que a arqueologia é, em realidade, uma construção cultural do passado, esta pode transformar-se em uma ferramenta de luta política, destinada a enfrentar as “master narratives” (Johnson 1966) e/ou a “história oficial”. O investigador pode, assim, de maneira explícita, assumir uma posição ativa no processo de interpretação de um passado que já não é o verdadeiro, senão apenas uma interpretação (Shanks e Tilley 1987; Funari 1988, 1999). Desde estas perspectivas, a cultura material está simbolicamente constituída (Hodder 1982). É produto e produtora de pessoas e de subjetividades (Andrade Lima 1999). Os objetos são considerados elementos ativos e dinâmicos e só podem ser interpretados dentro dos contextos históricos e sociais dos quais formam parte. Precisamente, no caso dos CCD’s, para se conseguir uma leitura de sua materialidade, necessitamos contextualizá-los. Desta maneira, dividimos o artigo em duas partes. Uma primeira, onde apresentamos uma síntese da história das instituições punitivas na sociedade ocidental e um panorama geral do funcionamento da repressão durante a ditadura Argentina. Na segunda parte, trabalhamos sobre um caso de análise específico, o CCD Club Atlético, a partir do qual discutimos a arquitetura e a organização espacial dos CCD’s. instituições punitivas Em “Vigiar e Punir” (1976), Foucault analisa o surgimento das instituições disciplinares entre os séculos xVI e xIx, estabelecendo uma relação direta entre as formas de repressão e o objeto punido. Este passa a estar centrado no corpo no século xVI, indo à alma e a mente, no século xIx. Nas palavras do autor, “a prisão resitua o patíbulo”. Esta mudança se reflete na aparição de toda uma série de dispositivos disciplinares dirigidos a gerar indivíduos dóceis, na mente e no-- corpo, através de instituições Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) de “ortopedia social”, tais como os colégios, as fábricas, os hospitais, os manicômios, os albergues para órfãos, as prisões, entre outras (Bentham 1786; Goffman 1974; Gaudemar 1981; Donzelot 1981). Paralelamente, a cidade também começa a ser organizada em função de uma série de parâmetros disciplinares – especialmente o vigiar, o controlar e o dominar – gerados desde o poder (King 1980; Markus 1993a, 1993b; Parker, Pearson e Richards 1996). No caso da prisão, sua função é privar da liberdade como forma de castigo. Através da clausura se busca, não só punir a pessoa, senão que, este tempo possa ser utilizado para que o detido seja reformado. Precisamente, esta situação é a de que se encarrega esta instituição, a mais civilizada e humana de todas as penas. Como assinala Foucault, a prisão ao corrigir, ao modificar, ao tornar dócil e disciplinado o indivíduo, não faz mais do que reproduzir, de maneira acentuada, todos os mecanismos que se encontram no corpo social. A arquitetura destes lugares cria limites artificiais onde os corpos são confinados e controlados (Grahame 195, 2000; Zarankin 1999, 2000, 2002). A partir de então e, ao longo do tempo, estas instituições têm se ampliado e se especializado. Escolas, segundo o tipo de educação e de classe de pessoas (crianças, adultos, atrasados, cegos, de classe baixa, de classe alta, etc.). Hospitais, para queimados, para crianças, para olhos, para problemas cardíacos, para o câncer, entre outros. No caso das prisões, durante os séculos xIx e xx, são criados institutos de detenção de menores, prisões de diversas seguranças (baixa, média e alta), campos de concentração, prisões psiquiátricas, cárceres em comissariados, entre outras. A Argentina fez uma macabra contribuição a esta extensa lista: os Centros Clandestinos de Detenção (CCD), desenvolvidos durante o processo militar, entre os anos 1976 e 1983. Trata-se de um dispositivo repressivo que, se bem pôde contar com alguns antecedentes na história, só foi gerado de maneira massiva e sistemática durante a década de 1970. Este combina e maximiza as piores categorias de todas as instituições punitivas criadas até então. Sua função já não é deter e corrigir, senão destruir e eliminar. o golpe militar Em 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou a presidenta Isabel Martínez de Perón (viúva do General J. D. Perón), sob a desculpa da incapacidade do Governo para controlar as ações dos chamados grupos “subversivos”, que intentavam impor, no país, uma ordem social oposta aos “costumes argentinos”. Assumiu o poder uma junta integrada pelo Tenente General Jorge Rafael Videla, pelo Almirante Emilio Masera e pelo Brigadeiro General Orlando Agosti. Iniciou-se, assim, o autodenominado “Processo de Reorganização Nacional”, um dos períodos mais obscuros e sinistros da história argentina. Políticas econômicas ultraliberais (Forrester 1995, 2000) foram instauradas sob a supervisão do ministro da economia José Martínez de Hoz, multiplicando exponencialmente a dívida pública e privada (esta última, posteriormente, estatizada). Para conseguir o êxito do novo plano econômico e a destruição de toda a resistência popular, o governo militar desenvolveu um projeto de aniquilamento físico de todas as instituições e/ou pessoas que se opunham a tal plano. Isto se realizou a partir de uma estrutura clandestina paralela, que incluía Centros Clandestinos de Detenção, pessoal Militar e Policial atuando como civil (sem identificação), seqüestros e assassinatos, entre outros. A repressão, baseada em um plano perfeitamente estruturado, tinha, além do mais, como objetivo, submeter a população através do terror, impondo assim uma “ordem” sem oposição. Este plano criminoso incluía a “desaparição” de pessoas, mediante o mecanismo dos Centros Clandestinos de Detenção, nos quais se torturava e se mantinham cativas as pessoas consideradas “dissidentes”, antes de assassiná-las. A “desaparição” de pessoas A “desaparição” foi a fórmula adotada pelos militares para eliminar opositores. Este procedimento, que incluía um léxico específico, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 23 ZARANKIN, A. - NIRO, C. consistia, em primeiro lugar, em marcar uma pessoa ou “objetivo”, que logo era seqüestrada – “chupada” – por um comando paramilitar – “grupo de tarefas” ou “patota”. Era transladada a um CCD ou “pozo”, onde, encapuzada – “tabicada” – era despojada de todos os seus pertences. Inclusive, o nome era suprimido e, em seu lugar, se lhe atribuía uma letra e um número que seriam a forma de identificá-la daí em diante. O detido, sem nenhuma garantia legal, ficava, assim, a mercê dos repressores. A “desaparição” das pessoas se completava com métodos que incluíam arrojá-las, ainda com vida, no Rio da Prata (com prévia aplicação de sedativos), desde aviões ou helicópteros militares ou mediante fuzilamentos e enterramentos em fossas comuns, sem nenhum tipo de identificação (Belleli e Tobon 1985; EAAF 1992; Doretti e Fondebrider 2001). Como assinala a Anistia Internacional, em seu informe sobre a desaparição de pessoas por motivos políticos: “Devido a sua natureza, uma desaparição encobre a identidade de seu autor. Se não há preso, nem cadáver, nem vítima, então, ninguém, presumivelmente, é acusado de nada”. Milhares de pessoas, de todas as idades e ocupações foram seqüestradas e continuam desaparecidas. uma comissão, constituída em 1983 – Conadep – constatou mais de 9.000 casos, enquanto que, por sua parte, os organismos de direitos humanos falam em mais de 30.000. É necessário esclarecer, sem dúvida, que a desaparição de pessoas não foi um método exclusivo da ditadura pós-1976, porém, sim, sua instauração como modelo massificado de destruição da dissidência. Já desde os princípios da década de 1970, os grupos paramilitares conhecidos como Tríplice A, liderados pelo assistente pessoal do general Perón e, depois, ministro do Bem-estar Social, José López Rega, a utilizava como ferramenta repressiva. os Centros Clandestinos de Detenção como “não-lugares” Talvez pelo horror que produz recordar sua existência ou pela necessidade de alguns de negar essa parte de nossa história recente, são poucos os estudos que discutem os centros clandestinos de detenção (Conadep 1984; Calveiro 2001; Barros 2001; Di Ciano et al 2001; Benítez et al 2002; Daleo 2002; Calvo 2002; Bozzuto, Diana, Di Vruno, Dolce e Vazquez 2004)6. Pilar Calveiro, em sua tese de doutorado (2001) analisa, desde sua condição de ex-detida desaparecida e também de cientista social, o fenômeno destes campos de concentração argentinos e os caracteriza como os “quirófanos”, onde se levaram a cabo as “cirurgias maiores”, consideradas necessárias, pelos militares, para a “salvação” da sociedade. Seguindo suas colocações, foi o ponto de partida para construir “uma nova sociedade, ordenada, controlada e aterrada” (2001:11). “O campo de concentração aparece como uma máquina que cobra vida própria. A impressão é que, já ninguém pode detêla. A sensação de impotência frente ao poder secreto, oculto, que se percebe como onipotente, joga um papel chave em sua aceitação e em uma atitude de submissão generalizada” (2001:12). Calveiro destaca que os primeiros campos de concentração, na Argentina, começam a funcionar, todavia, durante o governo democrático de Maria Isabel Martínez de Perón, no momento de firmar-se a “Ordem de Aniquilamento” da subversão de 1975. Sem dúvida, só depois do golpe militar de 24 de março de 1976 é que a desaparição de pessoas e os campos de concentração se convertem nas modalidades repressivas por excelência. Durante a ditadura, funcionaram no país mais de 340 CCD’s. Sua magnitude foi variada e se estima que passaram por eles entre 1.500 a 20.000 pessoas, das quais 90% foram assassinadas (Calveiro 2001:29). Um ponto interessante tem a ver com as fontes de inspiração dos CCD’s. Por acaso, seguem algum modelo? Calveiro não crê que os militares argentinos tenham se inspirado nos campos de concentração nazistas ou estalinistas. Simplesmente, reproduzem práticas de poderes totalizantes que incluem campos de concentração (2001:40). Cremos que uma fonte que deve ser 6 É interessante mencionar o fato de que, praticamente, a totalidade das publicações sobre os CCD’s foram geradas pelos próprios sobreviventes destes campos. 24 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) explorada são os modelos empregados pelos militares franceses, na luta armada na Argélia, que incluía centros de detenção clandestinos, onde as pessoas eram torturadas e assassinadas. Não devemos esquecer que um importante número de altos oficiais argentinos recebeu treinamento militar de luta contra a subversão neste país europeu. No CCD primam algumas das concepções iniciais de prisão do século xIx, isto é, o princípio do isolamento total do detido (tanto do mundo exterior como dos demais detidos). Como indica Foucault, “a solidão é a condição primeira da submissão total ... o isolamento assegura o colóquio a sós entre o detido e o poder que se exerce sobre ele” (1976:240)”. Em algum sentido, se assemelha a um campo de concentração, já que ali são reunidos, isolados e retidos os “inimigos”. Sem dúvida, a diferença é que, enquanto que um campo de concentração é “um lugar” que se rege por convenções (ao menos deve fazê-lo segundo uma série de convenções internacionais que garantem algum respeito aos prisioneiros), o CCD não possui nenhuma – ao menos oficialmente – porque simplesmente não existe – institucionalmente. Sua condição de clandestino o outorga a vantagem da invisibilidade e da impunidade. O converte em um “nãolugar” para aqueles que se encontram dentro de seu espaço. Este “não-lugar” transforma seus ocupantes em “desaparecidos”, precisamente por que não estão em nenhum “lugar”, ou, ao menos, não se conhece sua localização. Parte de sua invisibilidade se deve ao fato de que funciona dentro de outros edifícios. Em geral, não são construídos CCD’s. Se adapta parte ou totalidade de um edifício já existente para funcionar como tal (Conadep 1984:58). Precisamente, uma das coisas que mais estremeceu a sociedade argentina, assim que retornou a democracia, foi saber que, no edifício “vizinho”, ou “nesse que alguém passava todos os dias quando ia trabalhar”, havia funcionado um CCD. Ali haviam sido torturadas e assassinadas milhares de pessoas e grande parte das pessoas não se havia dado conta do que ocorria por detrás dessas paredes. o funcionamento dos CCD A organização e o manejo dos prisioneiros dentro de um CCD evidenciaram uma planificação sistemática. Torna inegável que se tratou de um plano criminoso, ideado para eliminar pessoas (Conadep 1984). Assim, existia uma seqüência de passos, relatada por Niro, na introdução, que começava com a chegada dos detidos. Eram desnudados e se lhes atribuía uma letra e um número que, a partir desse momento, se convertia em sua única identificação. Posteriormente, o “ablande”, que consistia em sessões de tortura sistemática, onde se encarregava de aprofundar este processo de destruição da identidade. Por que esta ênfase em despojar os detidos de seus nomes e, portanto, de suas identidades? Se não há nomes – uma das características básicas de qualquer ser humano – não existem pessoas. Simplesmente, corpos anônimos que estão sujeitos aos dispositivos punitivos e burocráticos dessa estrutura repressiva. Sem identidade, o sujeito perde os laços com sua própria história, com seu passado. Transforma-se em um ser quebrado. Esta situação favorece a possibilidade de delatar companheiros ou de obedecer às ordens impostas. Por sua parte, os repressores, se bem que tampouco utilizavam seus verdadeiros nomes dentro dos CCD’s, diferentemente dos detidos, tinham apelidos – Hueso, Angel, Gordo, Turco, Doctor K, Padre, Calculin, Raul, Karateca, entre outros. Essa transformação não só assegurava preservar sua verdadeira identidade diante dos detidos e, inclusive, em certos casos, de seus próprios colegas, senão transformá-los em pessoas diferentes. Ter múltiplas personalidades tais como bom pai e torturador sádico.7 De igual maneira, os CCD’s recebem nomes simbólicos, que permitem a existência destes “não-lugares”. El Olimpo, Club Atlético, Vesubio, Garage Azopardo, Talleres Orletti, entre outros.8 7 um bom exemplo disto é a obra de Eduardo Pavlovsky “O Senhor Galindez”. 8 Estes centros têm nomes, não são números como hoje os comissariados. Existem? Também são demolidos. Também desaparecem? Maria ximena Senatore (comunicação pessoal, 2005). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 25 ZARANKIN, A. - NIRO, C. Os detidos podiam passar dias, meses, ou, inclusive, anos em um CCD. Até que se decidia se os “transladavam” – gíria que significava assassiná-los – ou se os branqueavam e passavam a ser presos comuns do serviço penitenciário. Durante a maior parte desse tempo, como foi anteriormente mencionado, permaneciam “entupidos”, isto é, encapuzados ou vendados, o que era outra forma de tortura. “A tortura psicológica do capuz é tão mais terrível do que a física, ainda que sejam duas coisas que não se pode comparar, já que uma procura chegar aos umbrais da dor. O capuz procura o desespero, a angústia, a loucura. Encapuzado, tomo plena consciência de que o contato com o mundo exterior não existe. Nada te protege. A solidão é total. Essa sensação de desproteção, isolamento e medo é muito difícil de descrever. Só o fato de não poder ver, vai socavando a moral, diminuindo a resistência” (Lisandro Cubas, Conadep (1984:59). Benítez, Enríquez e Di Ciano (2001:11) definem de maneira clara os resultados buscados por esta maquinaria do horror: “A vida dentro do campo e as sessões de tortura estavam planejadas para chegar à destruição e denegrição do cativo”. Ao mesmo tempo, existiam mecanismos implementados para evitar o suicídio dos prisioneiros, assim como as tentativas de fuga. Tais mecanismos eram diálogos dos repressores com os detidos, sobre suas famílias ou perguntas sobre planos quando deixassem o CCD. “O responsável pelo Club Atlético era o Comissário Antonio Benito Firovanti, aliás, “Tordillo”, “Coronel” ou “De Luca”, que dedicava longas horas a falar com os seqüestrados. Os interrogava sobre suas famílias e, em torno dos planos que tinham se saíssem em liberdade. Esta política tinha um fim específico: criar falsas expectativas para reduzir as tentativas de suicídio e desalentar toda a idéia de fuga. Aqui se esboçou uma política que, em meados de 1978, se aperfeiçoou e se desenvolveu em outros campos” (Benítez, Enríquez e Di Ciano, 2001:11). 26 No CCD, apesar de sua clandestinidade, existia uma organização perfeitamente articulada que permitia o funcionamento desta máquina de desaparecimento, composta por diversos grupos: Patotas Grupos de tarefas, encarregados dos procedimentos orientados para seqüestrar pessoas. Grupos de inteligência Grupo que manejava a informação, selecionando as vítimas e orientando as torturas. As guardas Formavam o aparato de vigilância e de manutenção do CCD. Os desaparecedores de cadáveres Era o grupo que se encarregava do assassinato e da deposição final dos corpos. Para Calveiro, esta divisão de tarefas tinha como objetivo que ninguém se sentisse como único responsável. O dispositivo consistia, ao mesmo tempo, em despojar os detidos de sua condição de pessoas e gerar uma cadeia ou engrenagem que garantisse o funcionamento automático dessa maquinaria de destruição. Como uma cadeia de montagem fabril, “tudo adotava a aparência de um procedimento burocrático” (2001:39). o Club Atlético O caso do Club Atlético – CA – se apresenta como relevante para se discutir estas questões por sua história particular (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001). Sabemos que foi produto da dissolução e translado de outro CCD “Garage Azopardo”, que funcionou entre 1976 e 1977, a poucas quadras de distância, no mesmo bairro. Posteriormente, no momento de desativação do CA, em finais de 1977, sua infra-estrutura e os detidos que ali se encontravam foram relocados em um CCD chamado de “El Banco”, que foi criado para, especificamente, tal finalidade. Finalmente, foi instituído um novo CCD, um dos mais conhecidos, cujo triste e célebre nome foi “El Olimpo” (1978-1979). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) Nome do CCD Data de funcionamento Garage Azopardo Agosto de 1976 – Fevereiro de 1977 Club Atlético Fevereiro de 1977 – Dezembro de 1977 El Banco Dezembro de 1977– Agosto de 1978 üüüü Agosto de 1978 – Janeiro de 1979 O Club Atlético, cujo nome, em realidade, era “Centro Anti-subversivo” (Club Atlético foi uma derivação das iniciais CA), funcionava no sótão de um depósito de abastecimento da Polícia Federal, na cidade de Buenos Aires, entre as ruas Paseo Colón, Cochabamba, San Juan e Juan de Garay. Sabe-se que, por ele, passaram ao redor de 1500 pessoas, a maioria das quais permanece desaparecida. Tinha a capacidade para manter, ao mesmo tempo, 200 detidos. O edifício foi demolido em 1977, já que se encontrava no traçado da auto-estrada 25 de Mayo. o projeto arqueológico No ano de 2003 é tornado público, pelo Governo da Cidade de Buenos Aires, um concurso de projetos para escavar os restos deste lugar.9 Nossa proposta foi selecionada (Bianchi Villeli e Zarankin 2003a). O projeto se chamou “Arqueologia como memória: intervenções arqueológicas no Centro Clandestino de Detenção e de Tortura ‘Club Atlético’”. Os objetivos do projeto podem ser resumidos em dois pontos principais. Por um lado, buscamos entender a lógica do funcionamento e da organização espacial da arquitetura deste dispositivo desaparecedor de pessoas. Por outro, o segundo objetivo foi de contribuir com a construção de uma memória material. Isto é, transformá-la em algo físico, para assim poder ser percebida, de diferentes maneiras, a palavra (oral ou escrita). uma memória que pode ser tocada, ouvida, experimentada. Como exemplo, podemos mencionar como uma simples bolinha de ping-pong10, recuperada durante as escava- ções, pode se transformar em um símbolo do sofrimento daqueles que foram torturados neste lugar. Como assinala Delia Barrera (2002:4), sobrevivente do Club Atlético: O que pensariam os que jogavam pingpong, em frente à leonera11 enquanto que nós éramos torturados, desta bolinha que acabamos de encontrar debaixo do elevador de cargas? Devemos considerar que a história da repressão ilegal durante a ditadura militar tem sido ocultada ou contada através de uma “versão oficial”. A escavação do Club Atlético, então, é uma forma de recuperar a memória e, através dela, contrapor-se à história que nos foi transmitida. Tratou-se de um projeto que contemplou a participação de sobreviventes e de familiares dos detidos no próprio centro de detenção Club Atlético. Foi uma forma de reapropriação de sua própria história, que, de alguma maneira, é a de todos. A organização do espaço no Club Atlético Não foram localizadas plantas que possam dar conta de como era realmente a organização espacial deste CCD. Tampouco puderam ser confeccionadas a partir dos restos deste lugar. Mais de 80% de sua superfície encontra-se, todavia, sem ser escavada (e grande parte dificilmente poderá ser estudada, já que implica demolir a auto-estrada que passa por cima). Por tal motivo, trabalhamos tomando como base os relatos e uma planta gerada pelos próprios sobreviventes - em função de suas recordações12 (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001:10). Posteriormente, foi contrastada com os espaços do centro que foram escavados, mostrando que existe uma concordância importante entre ambos. Exemplos de relatos 9 Com anterioridade, aconteceram trabalhos de escavação coordenados pelo Lic. Marcelo Weissel (Weissel 2002; Barrera 2002). 10 Trata-se de uma bolinha de ping-pong com a qual os torturadores se entretinham enquanto os presos eram torturados. 11 Cela comum onde, em geral, eram colocadas as mulheres grávidas. 12 Este mesmo procedimento de reconstrução de CCD’s foi empregado em outros centos, como assinala o informe da Conadep (1984:60): “Foi de- terminante a memória corporal dos detidos. quantas escadas deviam subir-se ou descer-se para ir à sala de tortura. quantos passos devia-se contar para ir ao banheiro, quantos estalos, que giro ou qual velocidade produzia o veículo no qual eram transportados ao entrar ou sair do CCD, etc”. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 27 ZARANKIN, A. - NIRO, C. Delia Barrera (em Benítez et al. 2001:10) Descrição: “A dependência contava com dois níveis. Ao primeiro, se acedia por uma porta de vidro. Ali havia uma repartição, na qual, se podia observar 2 escritórios, máquinas de escrever e um telefone ... os repressores usavam. Ao fundo, uma salinha da guarda. Duas celas para incomunicáveis. uma sala de torturas e outras para enfermaria. Cozinha, lavadouro e duchas. Estas com uma abertura que dava a superfície externa por onde os guardas observavam o ânus das mulheres. Outro setor para depositar o botim de guerra. O subsolo carecia de ventilação e de luz natural. Era muito úmido e calorento. Ingressava-se por uma estreita escada que levava a uma sala munida de uma mesa de ping-pong que os repressores usavam para jogar. Ao fundo, uma sala da guarda, duas celas para incomunicáveis, uma peça de torturas e “la leonera”, um aposento com piso de cimento, dividido em boxes, com uma parede de um metro de altura. Cela chamada “la leonera”, com tabiques baixos, que separavam os boxes de 1,60m x 0,60m. Em um setor, 18 celas, em outro 23. Todas de 2m x 1,60m e uma altura entre 3m e 3,50m. Três salas de torturas, cada uma com uma pesada mesa metálica. Colchões pequenos de espuma, manchados de sangue e de transpiração”. Completava a estrutura, 41 celas pequenas, numeradas, com catres de cimento, munidos de um colchão fino de espuma e de um cobertor. As portas tinham uma pequena abertura. No piso, havia um frasco com lavandina (água sanitária), no qual deviam urinar os seqüestrados. Os automóveis entravam pelo Paseo Colón. Os vizinhos de então puderam observar que, detrás do portão de acesso, havia uma cortina escura que fechava depois que passavam os veículos. Assim que saiam dos carros, os prisioneiros eram empurrados para uma escada até o subsolo ...” Conadep (1984: 90) Descrição:”Primeiro nível: salão azulejado, portas de vidro, um escritório grande e outro pequeno. Neles se identificava e se atribuía um número para cada detento. Acesso dissimulado para o subsolo. Subsolo: sem ventilação e nem luz natural. Temperatura entre 40 a 45 graus no verão. Muito frio no inverno. Grande umidade. As paredes e o piso vertiam água continuamente. A escada levava a uma sala munida de uma mesa de ping-pong que Analise da planta do Club Atlético13 Para aprofundar nossa leitura da arquitetura e da organização do espaço do Club Atlético, utilizamos como ponto de partida a planta produzida pelos próprios detidos. É analisada a partir de uma série de modelos gerados desde a arquitetura e das ciências sociais14. Entre estes, o modelo Gamma de Hillier e Hanson (1984) e os índices de Blanton (1994). O modelo Gamma dos arquitetos ingleses Hillier e Hanson permite decompor o edifício em uma série de gráficos para entender a organização de seu espaço. Como resultado deste, obtivemos um gráfico de sua estrutura, composta por nodos (que representam espaços) e por conexões (que são as portas que conectam um nodo (ou espaço) com outro). Por sua parte, o arqueólogo Richard Blanton (1994), tomando por base o modelo Gamma, construiu uma série de índices que possibilitam afinar e aprofundar a análise da estrutura arquitetônica. Estes índices são denominados de “escala” (mede o tamanho da estrutura), de “integração” (estabelece o tipo de comunicação e de circulação dentro da estrutura) e de 13 As figuras contidas no artigo original (ver nota de rodapé n.1) foram retiradas por exigência das normas de publicação desta REID e a adaptação do texto, sem as figuras foi feita por Danilo Cymrot e Inês Soares. 14 Estes modelos já foram aplicados com êxito em outras estruturas arquitetônicas (Zarankin 1999, 2002). 28 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) “complexidade” (permite ver a distribuição e o isolamento dos espaços). Nota-se a existência de um alto grau de compartimentalização do espaço (índice da escala – 59 nodos ou espaços) demonstra que o mesmo é dividido de tal maneira que permite maximizar elementos de isolamento, tais como celas, salas de interrogatório e de tortura. Esta estrutura revela, ao mesmo tempo, a necessidade do centro de gerar um espaço celularizado e panóptico como eixo para seu funcionamento. Por sua parte, o índice de integração – em conjunto com os índices de complexidade 15 - evidenciam, de maneira indiscutível, que estamos ante espaços não distributivos e de alto grau de isolamento. Este tipo de estrutura é típico de instituições disciplinares e autoritárias, onde existe um espaço de circulação controlado e regulado. A aplicação destes modelos permite observar, como sendo elemento organizativo do espaço, um parâmetro de maximização e de operatividade dos procedimentos repressivos. Funciona como base desta estrutura uma circulação restringida e controlada, além de um profundo isolamento dos ambientes. Por outra parte, o espaço do “CA” pode ser dividido em dois eixos. Um setor superior (que ocupa aproximadamente uns 20% da superfície total), que podemos denominar de centro burocrático do CCD. Existe outro, posterior, que aloja os prisioneiros e onde se localizam as salas de tortura. Esta organização divide e classifica as pessoas dentro do mesmo, delimitando espaços de circulação e de permanência dos detidos. Cremos que a instalação de salas de tortura, em um espaço central, entre os calabouços, permite, por um lado, minimizar o translado dos detidos no espaço. Ao mesmo tempo, seus gritos podem ser ouvidos por aqueles que, nesse momento, estão nas celas. Existe também um elemento simbólico associado à organização do espaço. Assim, à medida que se avança para o interior do CCD, o nível de suplício vai aumentando. Imaginemos que o prisioneiro não pode ver, porém, sim, experimen- ta estes espaços através dos sentidos. Os cheiros de corpos e dos fluidos humanos, a umidade e a falta de ventilação no subsolo, o calor e o frio, os gritos e choros dos outros detidos, a dureza das paredes e do piso – onde eram colocados. Trata-se de uma estrutura para ser percebida de maneiras alternativas à visão, através de sentidos como o tato, a audição e o olfato. Seu centro, seu coração, é a sala de tortura. De alguma maneira, representa a materialização do sadismo com que foi projetado o CCD. Os corpos dos detidos, ao estarem imobilizados, atados ou algemados nas paredes e nos pisos, isolados e impedidos de comunicaramse com os demais, privados de seus nomes, transformam-se em parte da própria arquitetura dos CCD’s. Esta estrutura repressiva absorve a essência das pessoas, transformando-as em meros objetos sobre os quais atuam os dispositivos do poder. Pensemos que a existência “social” de qualquer pessoa está diretamente relacionada com a possibilidade de interatuar com outros, de reconhecer e ser reconhecida. O CCD, através destes elementos, busca destruir a identidade dos prisioneiros. Esta negação do social gera o que poderíamos denominar de um processo de construção de “não-pessoas” – a pessoa vai desaparecendo simbólica e fisicamente. Conclusões “Os monstros existem. Porém, são demasiado pouco numerosos para serem verdadeiramente perigosos. Os que são realmente perigosos são os homens comuns” (Primo Levy, La tregua, Barcelona, 1988). Nosso interesse pela arquitetura e pela organização espacial dos CCD’s se entende ao pensar que brindam a possibilidade de materializar uma ideologia. Precisamente, ao transformá-la em algo material, a torna “real”, para, dessa maneira, transmitir seus valores e seus significados por meio de discursos que podemos denominá- 15 Neste caso, 4.5 representa a média dos espaços necessários para aceder ao primeiro plano do edifício (que, por sua vez, tinha, provavelmente, outros 4 ou mais espaços que o distanciavam da rua). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010 29 ZARANKIN, A. - NIRO, C. los de não-verbais (Fletcher 1989; Monks 1992). Pensemos que, cotidianamente, nossos corpos decodificam, inconscientemente, discursos invisíveis, simplesmente, ao circularem dentro de qualquer estrutura arquitetônica (Markus 1993a, 1993b; Grahame 1995, 2000; Zarankin 1999, 2002). No caso dos CCD’s, a arquitetura e a organização espacial representam um tipo de linguagem alternativa para transmitir mensagens de outra forma, mais palpável do que a da palavra falada. A Arqueologia como disciplina especializada na cultura material brinda a possibilidade de discutir esses discursos, assim como as ideologias representadas nas paredes (Leone 1977, 1984; Funari 1988; Andrade Lima 1999). Os centros clandestinos de detenção são, ao mesmo tempo, dispositivos de poder destinados a destruir corpos e mentes. São metáforas materiais que codificam discursos autoritários. Sua análise revela o plano sistemático de aniquilação de toda a dissidência gerada desde o governo militar. O estudo da materialidade dos CCD’s se transforma, assim, em um instrumento de construção de uma história negligenciada, de materialização de um dispositivo central desaparecedor de pessoas. Como assinala George Bataille (1992:117), “Architecture is the expression of the very being of societies”. Assim, entendendo os CCD’s como “monumentos” que representam a ditadura militar, poderemos conhecer mais sobre a perversidade e o sadismo das pessoas e das ideologias que formaram parte deste sistema. Bibliografia ANDRADE LIMA, T. El huevo de la serpiente: una arqueología del capitalismo embrionario en el Rio de Janeiro del siglo xIx. In ZARANKIN, A. & ACuTO, F. (eds.) Sed Non Satiata: Teoría Social en la Arqueología Latinoamericana Contemporánea. Buenos Aires: Del Tridente, pp. 189-238, 1999. BARRERA, D. Desenterrando el horror…para hacerlo memoria. Revista de la Asociación de Ex-Detenidos Desaparecidos, Buenos Aires, n. 2, vol. 6, pp. 4-5, 2002. 30 BATAILLE, G. Against Architecture: Writings of George Bataille. Cambridge/Massachusetts/ Londres: MIT Press, 1992. BELLELLI, Cristina & TOBIN, Jeffrey. Archeology of the desaparecidos. SAA Bulletin 14 (2), 1985. BENíTEZ, M.; ENRíquEZ, Z. & DI CIANO, L. El club Atlético. 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A Constituição de 1988 procurou ser mais criteriosa no uso da expressão interesse público, até então mais largamente utilizada, valendo-se muitas vezes do termo interesse social – isso porque o primeiro vinha sendo identificado com o interesse do Estado-Administração. quanto aos conceitos de interesse social e interesse difuso, ambos estavam sendo empregados com o mesmo significado, o que mais se presta a confundir do que a esclarecer. Partindo da premissa de que interesse é uma relação entre sujeito e objeto, pode-se concluir que interesse difuso é espécie de interesse social, na medida em que possuem identidade de sujeitos, mas diversidade de objetos. Os sujeitos dos interesses social e difuso podem ser parcelas significativas da coletividade (não, necessariamente, toda ela), preservada, porém, a indeterminação das pessoas que as integram (pois do contrário ingressaríamos na órbita do interesse coletivo). quanto ao objeto, o interesse difuso, em suma, seria aquela espécie de interesse social que tem por objeto bens corpóreos, em contraposição aos demais interesses sociais (stricto sensu), que podem ter por objeto, além desses, bens imateriais, incorpóreos, que parece lícito identificar com os princípios, normas e valores essenciais para a vida social. A conseqüência mais visível, ainda assim de caráter teórico, doutrinário, estaria na necessidade de reconhecer que a tutela dos consumidores não se inclui no âmbito dos interesses difusos, mas, sim, no dos sociais. Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz é Procurador de Justiça do Estado de São Paulo. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 33 FERRAZ, A. A. M. C. Palavras-chave: Interesse: público, social e difuso. Bens corpóreos, materiais e valores sociais. Constituição Federal. Interesse do consumidor. ABStrACt: In the 80s, before the publication of the Federal Constitution of 1988, several concepts of interest, public interest, social interest and diffuse interest were employed, often inaccurately. The 1988 Constitution sought to be more judicious in the use of the term public interest, which was more widely used, often making use of the term social interest - this occurred because the first concept had been identified with the interests of the State-Adminstration. The terms social and diffuse interest were both being used with the same meaning, which confuses more than clarifies. Assuming that interest is a relationship between subject and object, one can conclude that a diffuse interest is a kind of social interest, as having the same subjects but different objects. The subjects of social and diffuse interests can be identified as significant portions of the community (not necessarily all of it), preserved, however, the indeterminacy of the people who belong to it (otherwise it would be the same as collective interest). Regarding the object, the diffuse interest would be the kind of social interest that encompasses only corporeal goods, while the other social interests (stricto sensu) comprise also immaterial, incorporeal goods. We can identify the object of social interests with the principles, norms and values that are essential to social life. The most tangible consequence, yet of a theoretical, doctrinal nature, is the need to recognize that the protection of consumers do not represent a diffuse interest but a social interest. Palavras-chave em inglês: Public, social and diffuse interest. Corporeal goods, material goods and social values. Federal Constitution. Consumer interest. 1. introdução Em artigo publicado na revista JUSTITIA, no ano de 1987 – dois anos após a edição da Lei da Ação Civil Pública e um antes da pro34 mulgação da nova Constituição da República –, teci despretensiosas considerações sobre certas imprecisões que me parecia haver nas definições então esboçadas sobre o interesse difuso. A comparação entre os conceitos de interesse público e de interesse difuso revelava que, embora com palavras eventualmente diferentes, neles se dizia a mesma coisa. Aquele estudo chamava-se Interesse público, interesse difuso e defesa do consumidor2. A Constituição Federal de 1988 procurou ser mais criteriosa no uso da expressão interesse público, até então mais largamente utilizada, valendo-se muitas vezes do termo interesse social – isso porque o primeiro vinha sendo identificado com o interesse do Estado-Administração3. O que se disse naquele ensaio acerca do interesse público, todavia, parece valer ainda hoje para o interesse social. qualquer instituto jurídico, para merecer esse status, deve ter identidade própria, ou seja, deve referir-se a fenômeno peculiar, distinto de todos os demais. Os conceitos de interesse social e de interesse difuso, dessa forma, somente poderão coexistir caso possuam pelo menos um traço característico, com base no qual seja possível distingui-los com clareza. Do contrário, um deles seria necessariamente supérfluo, e, ao menos sob o prisma doutrinário, seria também deletério, porque a subsistência de duas definições que pretendem ser diferentes, mas que no fundo cuidam da mesma coisa, mais se presta a confundir do que a esclarecer. É essencial estabelecer separação mais nítida entre as noções de interesse social e de interesse difuso – ambas com assento constitucional – como forma de conferir identidade própria a ambas e de assegurar a utilidade dos conceitos. Essa análise crítica pareceu importante, já em 1987, porque a defesa concreta de alguns dos interesses denominados difusos revelava, em seu nascedouro (a jurisdicionalização dos interesses difusos acentuou-se na metade da década de 80), Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO a necessidade de pleitear tutelas jurisdicionais bastante distintas segundo se tratasse de uma ou de outra categoria desses mesmos interesses – sugerindo que talvez não pertencessem necessariamente à mesma categoria jurídica. A proteção judicial do meio ambiente, por exemplo, logo se encaminhou, preponderantemente, para ações de natureza reparatória, indenizatória, ao contrário do que ocorreu com a tutela do consumidor, feita exclusivamente por meio de ações tendentes à imposição de obrigações de fazer ou não fazer. Por que é difícil imaginar, mesmo em sede doutrinária, a possibilidade de ajuizamento de uma ação indenizatória em defesa dos consumidores, ou de um bem de valor puramente cultural (como as manifestações folclóricas, por exemplo)? O que, afinal, distingue um interesse social de um interesse difuso? O artigo de 1987 não passava de uma tentativa de melhor particularizar a definição de interesse difuso, nela introduzindo, mediante aplicação do método indutivo, elementos novos, objetivos, extraídos da observação e experiências práticas. Volto ao tema com a esperança de que a tentativa ainda se justifique. 2. interesse O conceito de interesse é daqueles pilares básicos, fundamentais, sobre os quais se assenta o próprio Direito. Apesar disso, a doutrina jurídica parece não ter removido por completo o véu de mistério que ainda o recobre. O vocábulo possui, sem dúvida, acentuado caráter equívoco: “Le nozioni correnti di ‘interessi’ sono approssimative e imprecise: difetti, questi, che in generale hanno radice nella erronea impostazione del concetto in termine psicologici, anzichè in termini normativi”4. Francesco Carnelutti, como se sabe, desenvolveu enorme, mas infrutífero esforço no senti- do de identificar o substrato de fato do interesse. Teve Carnelutti o indiscutível mérito de ressaltar que o interesse deve ser entendido e considerado em seu sentido objetivo, e não subjetivo: o interesse não é uma aspiração (juízo subjetivo), mas uma posição (objetiva, de vantagem em relação a um bem) do homem, dizia o famoso processualista. Daí a formulação do conceito segundo o qual interesse é a posição favorável à satisfação de uma necessidade5. A palavra interesse tem origem latina: inter esse, estar entre, participar. O interesse é sempre uma relação – e relação de complementaridade – entre uma pessoa (sujeito) e um bem ou valor (objeto). Rodolfo de Camargo Mancuso concorda “que o interesse interliga uma pessoa a um bem da vida, em virtude de um determinado valor que esse bem possa representar para aquela pessoa”. Vale reproduzir por inteiro sua douta lição: “Por outras palavras, trata-se da busca de uma situação de vantagem, que faz exsurgir um interesse na posse ou fruição daquela situação. ... Essa interação ´pessoa-objeto´ deflui, já, da própria base terminológica – quod inter est: consoante os diversos enfoques doutrinários, ora se revela por seu aspecto objetivo (´rapporto tra un bisogno dell´uomo e un quid a soddifarlo´ - F. Carnelutti, Lezioni di Diritto Processuale Civile, vol. I, CEDAM, Padova, 1926, p. 3), ora sob o prisma subjetivo (´ciò che si chiama interesse no è altro che la valutazione di qualcosa come mezzo e strumento per realizzare um fine proprio o altrui´ - cf. C. Sforza, citado por V. Vigoriti, in Interessi collettivi e processo, 1979, p. 18, nota n. 1)”6. A relação que caracteriza o interesse, analisada sob a ótica do sujeito, traduz-se em necessidade e, quando enfocado sob o prisma do objeto, em utilidade. Trata-se, entretanto, é bom insistir, de uma única relação, vista sob perspectivas diferentes, como as duas faces de u’a mesma moeda7. Antes de superar este tópico, convém reafirmar que o objeto do interesse tanto pode ser um bem como um valor. Faço-o com a transcrição da seguinte passagem de Emilio Betti: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 35 FERRAZ, A. A. M. C. “Respinta la nozione psicologica che identifica l’interesse col bisogno o col desiderio, e affermata la nozione normativa di esso como esigenze di beni o valori da realizzare o da proteggere nel mondo sociale, diviene possibile e legittima la comparazione fra interessi e la ricerca de un rango di preferenza secondo un criterio dotato di rilevanza giuridica nell’orbita di un dato ordinamento”8. 3. interesse social e interesse difuso na Constituição A Constituição Federal de 1988 procura distinguir os conceitos de interesse público e de interesse social, uma vez que o primeiro “aparece ordinariamente evocando a figura do Estado”9. Segundo Mancuso, “quando se lê ou se ouve a expressão ´interesse público´, a presença do Estado se nos afigura em primeiro plano. É como se ao Estado coubesse não só a ordenação normativa do ´interesse público´, mas também a soberana indicação de seu conteúdo”10. Quando a Constituição prevê que “ a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”, o faz referindo-se ao interesse da administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 37, Ix). Nos arts. 19, I, 57, § 6º, II, ou 66, § 1º, refere-se a Constituição ao interesse público sob o prisma da Administração, ou seja, à forma como o Poder Público interpreta esse interesse. O art. 231, § 6º, menciona expressamente o “relevante interesse público da união”. O art. 51 das disposições transitórias cuida da revisão de doações, vendas e concessões de terras públicas no “interesse público” dos entes da Administração. A remoção, disponibilidade e aposentadoria de Juízes de Direito e Promotores de Justiça, “por interesse público” (arts. 93, VIII, 95, II, e 128, I, b), ocorrem por critérios e fundamentos próprios da Magistratura e do Ministério Público 36 (isto é, mediante avaliação que essas instituições fazem do interesse próprio e dos jurisdicionados no caso concreto). Nessas hipóteses, é como se a própria Constituição prestigiasse o modo pelo qual os órgãos da administração vêm o interesse público, caracterizando assim o “interesse público secundário” da lição de Renato Alessi. No art. 19, I, a vedação a que os entes administrativos se relacionem com entidades religiosas é excepcionada para os casos em que a lei identifique e aceite “colaboração de interesse público”, onde talvez se devesse ter falado em “interesse social”. O art. 93, Ix, pretende preservar, nos julgamentos perante o Poder Judiciário, o “interesse público” à informação, quando é evidente que se trata de um interesse tipicamente “social”, ou seja, em relação ao qual a interpretação (ou decisão) do que seja uma devida ou indevida restrição ao direito de informação não pode ser apropriada pelo Estado-Administração. Da mesma forma, quando o art. 114, § 3º, prevê que o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo “em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público”, melhor teria feito se falasse em lesão do interesse social – porque sem dúvida é a este e não àquele que pretende se referir. Mas, a Constituição Federal faz menção também ao interesse social, a meu ver sempre de modo adequado. A desapropriação disciplinada no art. 5º, xxIV, deve ser feita por interesse social típico, diferente daquela decretada “por necessidade ou utilidade pública” (interesse público, ou seja, mais diretamente da Administração). O mesmo se dá no caso da desapropriação para fins de reforma agrária, quando o imóvel rural não esteja cumprindo sua função social (art. 184 e § 2º). A tutela dos inventos, marcas e signos distintivos de empresas se faz “tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País” (art. 5º, xxIx). A publicidade dos atos processuais (objeto, sem dúvida, de um interesse social) somente Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO poderá ser restringida em homenagem à defesa da intimidade ou de outro interesse social (art. 5º, Lx). Ao Ministério Público incumbe a defesa precípua do interesse social (art. 127), coroando a Constituição Federal longa evolução no sentido de afastar a Instituição da defesa do Executivo (ao qual esteve por longo período juridicamente subordinada). O art. 79 do ato das disposições constitucionais transitórias menciona “programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida”. Quanto aos interesses difusos, são referidos no art. 129, III, da Constituição da República, que inclui a tutela dos mesmos dentre as funções institucionais do Ministério Público. Pois bem, o status constitucional dessas categorias de interesses – que a doutrina costuma agrupar sob a rubrica dos interesses metaindividuais (ou transidividuais), em contraposição aos interesses individuais – exige que sobre eles nos debrucemos com redobrado afinco, com vistas a uma classificação mais objetiva, lógica e clara. 4. interesse social Para Ada Pellegrini Grinover sociais são “interesses espalhados e informais à tutela de necessidades coletivas, sinteticamente referíveis à qualidade de vida. Interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias, classes de pessoas. Não mais se trata de um feixe de linhas paralelas, mas de um leque de linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os interesses dos consumidores, ao ambiente, dos usuários de serviços públicos, dos investidores, dos beneficiários da previdência social e de todos aqueles que integram uma comunidade compartilhando de suas necessidades e seus anseios”11. Rodolfo de Camargo Mancuso, sempre profundamente dedicado ao tema, identifica inúmeras semelhanças entre as expressões interesse social, interesse geral e interesse público, reconhecendo que elas “são praticamente equi- valentes, por isso que, salvo certas nuanças sutis, elas se confundem sob o denominador comum de ´interesses metaindividuais´” . E acrescenta: “Quer nos parecer que a tarefa de se tentar a separação rigorosa dessa trilogia não seria fadada a um bom termo: mesmo que seja possível, como visto, surpreender certos elementos identificadores de cada espécie, eles não são em número e intensidade tal que permita a autonomia conceitual dessas expressões entre si. Depois, de todo modo, as diferenças seriam tão sutis que, na prática, não haveria contribuição relevante para o exame da problemática dos interesses metaindividuais. Por fim, tomando-as, basicamente, como sinônimas, chega-se a uma desejável concreção evitando-se os inconvenientes de um excesso terminológico”12. Cuidando, especificamente, do interesse social, Mancuso o identifica com “o interesse que consulta à maioria da sociedade civil: o interesse que reflete o que esta sociedade entende por ´bem comum´; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes”13. Para aqueles que adotam a distinção, feita por Renato Alessi, entre interesse público primário e interesse público secundário, o segundo acaba sendo conceituado como o modo pelo qual os órgãos da Administração interpretam o interesse público, enquanto o primeiro é identificado como o bem geral, sendo sinônimo de interesse social. Assim faz Hugo Nigro Mazzilli, que define o interesse social (interesse público primário) como “o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo”14. Fazendo uso das noções gerais acerca do interesse, apresentadas no início deste estudo, em especial aquelas que o encaram como relação entre um sujeito e um objeto, observaremos que a doutrina tende a identificar o interesse social com o que tem por titular toda a coletividade, todo o grupo social, e, por objeto, bens ou valores essenciais para a vida em sociedade (o bem comum). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 37 FERRAZ, A. A. M. C. Em tese submetida ao II Seminário Jurídico dos Grupos de Estudo do Ministério Público do Estado de São Paulo, veio a lume conceito que, na época relativo ao interesse público (com certeza primário, ou seja, identificado com o interesse social), muito se aproxima do aqui tratado: “É o interesse à preservação permanente dos valores transcendentais dessa sociedade. Não é, assim, o interesse de um, de alguns, de um grupo ou de uma parcela da comunidade; nem mesmo é o interesse só do Estado, enquanto pessoa jurídica empenhada na consecução de seus fins. É o interesse de todos, abrangente e abstrato. E por ser de todos não é de ninguém”15. roubar ou exercer arbitrariamente as próprias razões, em que fosse legítimo auferir vantagem à custa da incapacidade de outrem, ou destruir o patrimônio ambiental, ou, ainda, em que fosse tolerável a fraude nas relações de comércio, ou a imposição de condições arbitrárias nas relações de consumo. Esses bens e valores, como tantos outros que constituem objetos de interesses sociais, são relevantes para um pacífico convívio, são vitais para a harmônica e ordenada vida em sociedade18. No mesmo sentido, a definição do Juiz Evaristo dos Santos, em acórdão publicado na RT 482/143, referido por Édis Milaré: “interesse público é sinônimo de interesse geral da sociedade, de interesse do Estado enquanto comunidade politicamente organizada, vale dizer, do Estado como expressão suprema da organização ético-jurídica da sociedade. Interesse público é, pois, o interesse geral – impessoal – que a todos concerne diretamente, e não imediatamente só ao Estado, como sujeito de direitos e obrigações voltado para o desempenho das atividades que lhe são peculiares”16 17. 5. interesse difuso De modo menos utópico, diríamos que sujeitos do interesse social podem ser parcelas significativas da coletividade (não, necessariamente, toda ela), preservada, porém, a indeterminação das pessoas que as integram (pois do contrário ingressaríamos na órbita do interesse coletivo). Quanto ao objeto, serão bens, valores, princípios relevantes para a qualidade de vida em sociedade. Há interesse social, por exemplo, em que se tutele a vida e a liberdade das pessoas, como também a família e os incapazes, em que se garanta o respeito às disposições de última vontade e a exatidão dos registros públicos, em que se assegure a preservação dos recursos naturais e a proteção do consumidor. Ao contrário do que ocorria em 1987, quando escrito o artigo ao qual este se reporta, temos hoje uma definição legal de interesse difuso, constante do Código de Defesa do Consumidor: “Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transidividuais de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”19. Na doutrina, encontram-se conceitos que não discrepam dessa definição. Rodolfo de Camargo Mancuso propõe uma descrição analítica do instituto: “São interesses metaindividuais, que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessários à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo (v.g., o interesse à pureza do ar atmosférico), podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g. os consumidores)”20. Hugo Nigro Mazzilli assim os conceitua: Realmente, jamais seria harmônico, ou mesmo possível, o convívio no seio de uma coletividade em que fosse admissível matar, 38 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 “Os interesses difusos compreendem grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático preciso. São como um feixe ou conjunto de interesses individuais de pessoas indetermináveis, unidas por pontos conexos”21. CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO Tampouco parece haver maiores divergências acerca das características marcantes dos interesses difusos, a saber: a) indeterminação dos sujeitos, estes ligados entre si normalmente por circunstâncias de fato; b) indivisibilidade do objeto; c) intensa litigiosidade interna (“conflituosidade”); d) tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço22. 6. Cotejo entre as definições de interesse social e interesse difuso Seria possível, com base nas definições até aqui analisadas, estabelecer distinção nítida entre o interesse social e o interesse difuso? O primeiro, tanto quanto o segundo, não teria a característica da transindividualidade, com titulares indetermináveis, ligados entre si, muitas vezes, por vínculos de fato, e objeto indivisível? Não seriam ambos marcados pela nota da conflituosidade e pela tendência de transição no tempo e no espaço? A dificuldade em apartar as definições em tela transparece nas mais eruditas obras dedicadas ao tema. Hugo Nigro Mazzilli observa que “há interesses difusos tão abrangentes que chegam a coincidir com o interesse público (como o do meio ambiente)”23. Rodolfo de Camargo Mancuso, por sua vez, reconhece a dificuldade de “enquadrar” os interesses difusos em contornos precisos, em virtude da extensão do seu objeto e da indeterminação dos sujeitos a eles afetos, mencionando, como exemplo, hipóteses claras de interesses sociais, como a “garantia de emprego” ou, mais genericamente, a “defesa da qualidade de vida”. E prossegue: “Essa notável extensão do objeto, aliada à indeterminação dos sujeitos, não permite que se espere ou que se exija um elevado grau de coesão, nos interesses difusos. E isso, por duas razões: o campo próprio dos interesses difusos é justamente aquele plano subjacente à massa normativa já estabelecida; eles são ideais, são sentimentos coletivos ligados a valores parajurídicos (o ‘justo’, o ‘eqüitativo’, o ‘natural’), insuscetíveis de se apresentarem de forma coesa, uniforme para cada qual daqueles valores. Assim, haverá sempre posturas conflitantes, todas merecedoras de conhecimento, já que todas pretendem, em princípio, representar o sentimento médio da coletividade em certo tempo e lugar”24. Essas palavras não poderiam ter sido dedicadas, sem nenhum retoque, ao interesse social? Péricles Prade, para evitar a superposição dos conceitos de interesse difuso e interesse público, alarga demasiadamente o primeiro e restringe sobremodo o segundo, que passa, então, a ser identificado com o interesse da Administração: “interesses públicos, na ordem jurídica brasileira, são aqueles voltados para a consecução de fins gerais e pertinentes à união, aos Estados, aos Municípios e às respectivas entidades de administração indireta ou descentralizada, sujeitos ao regime jurídico de direito público”25. Quanto aos interesses difusos, “são os titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situação, passíveis de lesões disseminadas entre todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade”26. A definição, no entanto, é inaplicável até mesmo a alguns dos interesses difusos apontados pelo mesmo autor, como “o interesse à privacidade”, ou o “interesse quanto à veracidade e à inteireza das informações”27, na verdade hipóteses de interesses sociais: que “vínculos fáticos” prendem os membros da coletividade, em relação ao “interesse à privacidade”; que “lesões disseminadas” podem ocorrer no tocante a esse interesse? Ada Pellegrini Grinover, ao tratar dos interesses sociais, em seu rol inclui interesses que são igualmente difusos, como o de tutela do meio ambiente, como visto acima, em passagem transcrita na abertura do tópico “4”28. Em verdade, a questão mereceria maior aprofundamento. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 39 FERRAZ, A. A. M. C. Poucos autores a enfrentam de modo aberto, embora denotem perceber as dificuldades a ela inerentes. Luís Felipe Colaço Antunes, citado por Mancuso, admite que “o interesse difuso não deixa de ser a forma concreta, plural e heterógena do interesse público, enquanto o interesse coletivo é um interesse privado, fundamentalmente de natureza socioprofissional, um interesse corporativo”29. O próprio Mancuso não evita abordar o tema, usando o termo interesse público no significado de interesse público primário (ou interesse social), sem, entretanto, alcançar nítida separação entre eles: “Parece-nos, todavia, conveniente salientar que o interesse público é um interesse metaindividual (à saúde, à segurança) atomizado e compartilhado por toda a sociedade civil, restando pensável um conflito ‘indivíduo-estado’, a respeito da forma de gestão desse interesse. Já o interesse difuso, por não contar com uma base normativa própria, exsurgindo de circunstâncias de fato, conjunturais (consumir produto, habitar certa região) enseja o confronto entre interesses de massa, sustentados por grupos contrários (a conflittualità massima), referida pela doutrina italiana”30. Na tentativa de distinguir os conceitos de interesse público (no sentido de interesse social) e interesse difuso, Antonio Herman V. Benjamin, atribui ao primeiro a característica de “unanimidade social”, de modo que o seu objeto seria constituído de valores insuscetíveis de contraposição “em termos de supraindividualidade”: “O interesse público, como singularidade conceitual, exigindo conflituosidade coletiva mínima, vê, de fato, seu campo de existência profundamente reduzido, no mundo atual de embates supraindividuais; limita-se àqueles setores de interesses e valores onde há uma inegável manifestação social homogênea a exigir seu reconhecimento e tutela; uma certa unanimidade social (= consenso coletivo) seria sua marca primeira e mais relevante. Seu império, em estado 40 de contração (convulsão?), abrange as garantias individuais e sociais fundamentais, a segurança pública, a moralidade administrativa, a qualidade de vida, a harmonia da família, o pleno emprego, a educação, a paz. É a unanimidade social, pois, que dá ao interesse público uma de suas mais marcantes características: a sua rejeição à idéia de contra-princípios ou contra-interesses, tão comuns no campo dos outros interesses tipicamente supraindividuais (difusos e coletivos stricto sensu)”31. Nesse sentido peculiar, porém, como o próprio autor chega a admitir, o interesse público (social) “seria uma abstração” de escassa utilidade jurídica e prática, quase se reduzindo a postulados morais ou aspirações ideais. Por outro lado, em meio ao processo de democratização do Brasil, que reclama, acima de tudo, a superação de desigualdades sociais imemoriais e profundas (entre as maiores do planeta), seria imperdoável tratar de modo superficial e genérico a categoria jurídica do interesse social. Sim, porque se existem desigualdades sociais a serem vencidas, entre nós – e quanto a isso parece não haver dúvida –, é indeclinável imaginar a existência de inúmeros interesses sociais vivos, palpitantes e, também, freqüentemente conflitantes. Como imaginar uma sociedade – e sociedade complexa como a atual, em ebulição, que procura se aprimorar – sem que em seu seio haja uma profusão de interesses em busca de afirmação? O déficit social brasileiro será, por muito tempo, o grande desafio a ser vencido. Assim, exigir a nota de “unanimidade” para o interesse social (interesse público primário) representa abstração equivalente à de considerar a própria sociedade como um bloco coeso e monolítico, com reivindicações necessariamente idênticas ou, mesmo, homogêneas. Há, por exemplo, expressivos grupos sociais a defender proteção mais rígida da propriedade rural, em confronto com outros grupos (como o dos “sem terras”) que pregam a supremacia – hoje com assento constitucional – da função social da propriedade. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO Interesses econômicos (de conteúdo sem dúvida social) freqüentemente se chocam com interesses ambientais, ou de proteção ao trabalhador e ao consumidor. Atualmente, aliás, há muita controvérsia acerca da conveniência de “flexibilização” de consagrados direitos trabalhistas. O Código de Defesa do Consumidor representou, sob esse aspecto, a formalização de um novo pacto político-social, amadurecido ao longo do tempo, fruto da evolução da nossa sociedade e que estabeleceu diferente maneira de arbitrar esses antagônicos interesses sociais (protagonizados pelo setor produtivo e de serviços, de um lado, e pelos consumidores, de outro) – o que também comprova que todos os interesses sociais (e não apenas os difusos) são marcados pela “tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço”32. Também são extremamente comuns os embates entre interesses sociais voltados à tutela da publicidade e da transparência, de um lado, e à proteção à privacidade e intimidade, de outro. Mesmo em áreas como da educação, saúde ou segurança, lembradas por Benjamin, somente é possível entrever unanimidade quando se pense no objeto desses interesses de forma por demais ampla e genérica. Na realidade, também nesses setores da vida social são extremamente comuns os conflitos, porque se todos, em tese, almejam esses valores em níveis máximos de plenitude, resta sempre a questão pragmática sobre como alcançar tal desiderato! Os candentes debates sobre a conveniência de adoção da pena de morte, ou da redução da idade penal, mostram que elevar a proteção do interesse social à segurança não se fará sem alguma redução nos patamares de tutela de outros valores sociais importantes, como a vida e a proteção de pessoas hipossuficientes. Na área da saúde, o embate entre interesses sociais igualmente relevantes pode ser percebido na atual discussão acerca da clonagem de embriões humanos, ou da utilização de células-tronco. Na educação, poder-se-ia mencionar a discussão, bastante contemporânea, sobre o sistema de cotas para grupos socialmente desfavorecidos. 7. tentativa de compatibilização dos conceitos Se o interesse traduz relação entre um sujeito e um objeto – relação que sob a ótica do primeiro revela necessidade e sob o prisma do segundo denota utilidade – cabe investigar, sob esses dois aspectos, as semelhanças e eventuais diferenças entre o interesse social e o interesse difuso. Assim propôs José Carlos Barbosa Moreira, depois de observar que a expressão interesses difusos não adquiriu até agora sentido preciso na linguagem jurídica33. As semelhanças entre os interesses sociais e difusos, como sublinhado ao longo deste estudo, existem à profusão. No que diz respeito ao sujeito, trata-se, mesmo, de identidade absoluta. Nos dois casos, temos grupos sociais cujos integrantes são indeterminados (ou seja, são indetermináveis com precisão)34. As pessoas que integram esses grupos não estão entre si ligadas necessariamente por vínculos jurídicos, mas, sim, normalmente, por circunstâncias de fato. A indeterminação dos sujeitos, considerada por alguns autores35 e por conhecido acórdão do Colendo Supremo Tribunal Federal36 como a nota característica dos interesses difusos, se é suficiente para apartá-lo do interesse coletivo, não o é para distingui-lo do interesse social. No que respeita ao objeto, sempre será indivisível e, normalmente, marcado por intensa litigiosidade interna (conflituosidade), sendo que ambos tendem a sofrer mudanças de um País para outro, por exemplo, ou ao longo do tempo. São, também, bens e valores sensíveis, relevantes para a vida social (qualidade de vida). A indivisibilidade do objeto, nos interesses difusos, foi analisada com maestria por Pedro da Silva Dinamarco, mas suas lições, a seguir reproduzidas, parecem inteiramente aplicáveis ao interesse social: “Nos interesses difusos, o objeto (ou o bem jurídico) é indivisível, na medida em que não é possível proteger um indivíduo Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 41 FERRAZ, A. A. M. C. sem que essa tutela não atinja automaticamente os demais membros da comunidade que se encontram na mesma situação. Ou atinge todos ou não atinge ninguém37. Ela não é, portanto, mera soma de uma pluralidade de pretensões individuais38. Essa indivisibilidade, na verdade, está no bem da vida a que se visa e não na causa de pedir. Assim, como diz KAZuO WATANABE, por sua própria natureza a tutela deve ser concedida molecularmente e não ao átomo individualizado39”. E prossegue: “ORLANDO GOMES afirma categoricamente que as obrigações indivisíveis deixariam de sê-lo no momento em que forem convertidas em perdas-e-danos40. Certamente essa é uma verdade da realidade do direito civil tradicional. Mas quando se fala em interesses difusos, eles não perdem aquela qualidade, pois deverão ser revertidos para o fundo de que trata o art. 13 da Lei da Ação Civil Pública, onde serão aplicados na reparação de bens lesados, também de natureza metaindividual41”42. qual seria, afinal, a forma de compatibilizar os dois conceitos examinados? É preciso sublinhar que em sede de definições e classificações nem sempre há verdades absolutas, uma vez que os resultados poderão comportar diferenças, de modo logicamente aceitável, dependendo do critério inicial adotado (criterium divisionis). Na tentativa de formular um quadro sistemático da matéria, penso razoável considerar o interesse difuso uma espécie do gênero interesse social, tendo em vista os aspectos comuns existentes entre eles e acima destacados. O caráter diferenciador residiria na natureza dos bens que constituem seu objeto. Investigação das hipóteses reveladas pela experiência prática e pelos estudos doutrinários demonstra que os interesses difusos tendem a recair sobre bens materiais, corpóreos, dos quais o meio ambiente é exemplo característico. 42 Esses bens, de regra, são públicos, de uso comum do povo, como o ar, os rios, o mar, a fauna e a flora, as paisagens, os bens de valor estético, histórico, artístico, arqueológico, mas podem ser também particulares, como um bem tombado. O interesse difuso, em suma, seria aquela espécie de interesse social que tem por objeto bens corpóreos, em contraposição aos demais interesses sociais (stricto sensu), que podem ter por objeto, além desses, bens imateriais, incorpóreos, que parece lícito identificar com os princípios, normas e valores essenciais para a vida social. Objeto do interesse difuso é um bem que, essencial para a boa qualidade de vida em sociedade, é passível de fruição física, concreta, por todos os membros do grupo social. A tutela jurisdicional dos interesses difusos tem por escopo, precisamente, assegurar o gozo desses bens, em proveito da qualidade de vida da população. Essa classificação, cumpre reconhecer, busca apenas compatibilizar as noções de interesse social e de interesse difuso, sem maiores repercussões práticas, por exemplo, quanto ao sistema de tutela dos mesmos. A conseqüência mais visível, ainda assim de caráter teórico, doutrinário, estaria na necessidade de reconhecer que a tutela dos consumidores não se inclui no âmbito dos interesses difusos, mas, sim, no dos sociais43. 8. interesse do consumidor Tem sido unânime, em doutrina, o entendimento de que a proteção do consumidor deve ser incluída no rol dos interesses difusos44. Ao observador atento, porém, não passará despercebido que a proteção dos consumidores difere substancialmente da defesa do meio ambiente, ou dos bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A experiência prática da tutela dos interesses difusos, intensificada extraordinariamente após o advento da Lei n. 7.347, de 24 de julho Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO de 1985, em especial no âmbito do Ministério Público, veio confirmar serem ontologicamente diversas as duas situações. Poucos se animam a sustentar, por exemplo, a possibilidade de pleitear, em Juízo, indenização para a reparação de prejuízo causado a número indeterminado de consumidores. Ada Pellegrini Grinover afirma que “o prejuízo individualmente sofrido por cada consumidor não poderá ser coberto pela nova lei (a Lei n. 7.347, de 1985), devendo este valer-se das vias comuns – ou dos Juizados de Pequenas Causas – para o ressarcimento pessoal”. Segundo ela, “a defesa dos consumidores, coletivamente considerada, ficará portanto naturalmente limitada, pela nova lei, às ações preventivas, que visem à tutela inibitória, mediante a condenação a uma obrigação de fazer ou não fazer”45. José Geraldo Brito Filomeno, quando Procurador de Justiça Coordenador das Curadorias de Proteção ao Consumidor no Estado de São Paulo, reconhecia a existência de “dificuldades no que concerne à própria caracterização do interesse difuso na área de defesa do consumidor”. Acrescentava que, “ao menos no que diz respeito à defesa do consumidor, o grande objeto da ação civil pública será o preceito cominatório de obrigação de fazer ou não fazer alguma coisa em benefício daquele, difusamente considerado”. Embora não a descartasse de todo, considerava difícil a hipótese de reparação, pela ação civil pública, de danos causados aos consumidores46. Se um determinado produto é vendido em quantidade inferior àquela apregoada na embalagem, por exemplo, o dano daí decorrente atinge diretamente o patrimônio pessoal de cada adquirente. Poder-se-ia dizer, então, que, no caso dos consumidores, há um número indeterminado de direitos – e não apenas interesses – lesados. Na hipótese do meio ambiente, ao contrário, o que importa é assegurar o gozo coletivo de bens que, ou por sua própria natureza são públicos, de uso comum do povo, ou, sendo particulares (um bem tombado, ou um imóvel recoberto por floresta nativa, por exemplo), re- cebem especial proteção da lei, exatamente para que seja possível essa fruição comum. O interesse individual de cada membro da coletividade, nesse caso, é apenas reflexamente tutelado47. Na verdade, a defesa do interesse difuso do consumidor não se faz pela proteção de uma determinada coisa, material ou corpórea, mas de princípios, ou valores, necessários para preservar o equilíbrio nas relações de consumo, compensando-se a situação de inferioridade em que se encontra o consumidor isolado frente às grandes empresas e ao próprio Estado, inferioridade essa que se acentuou dramaticamente com a produção em massa, com a velocidade e intensidade da publicidade, com as práticas de monopólio, com os contratos de adesão. É por essa razão que, como vimos, as medidas judiciais normalmente alvitradas para a defesa difusa do consumidor têm caráter cautelar, cominatório, ou objetivam a condenação de alguém à obrigação de fazer ou não fazer. Assim, as ações “visando à cessação de práticas comerciais abusivas, à introdução de normas de segurança nos produtos de consumo particular, ou mesmo à retirada de produtos do mercado”48. As medidas judiciais de caráter geral, tomadas em defesa do consumidor, assim como em defesa de qualquer outro interesse social, não têm em mira reparar um dano material, mas, sim, em última análise, assegurar a observância de um princípio, norma ou valor de ordem pública, essencial para o harmônico convívio social, daí não terem natureza indenizatória, mas cautelar, quando não tendentes a condenação ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. A Lei n. 7.347, de 1985, como se vê, incluiu sob o manto protetor da ação civil pública inúmeros interesses sociais, sendo um deles não difuso, mas social stricto sensu (exatamente o de defesa dos consumidores). Fê-lo em boa hora, porque esse relevante interesse – de assegurar equilíbrio e justiça nas relações de consumo –, à mingua de expressa autorização legal, não podia, até então, ser tutelado de forma mais ampla no âmbito da jurisdição civil. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 43 FERRAZ, A. A. M. C. notas FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo. Interesse público, interesse difuso e defesa do consumidor. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1987, v. 137, p. 49 3 “Poderia, aparentemente, causar espécie que o interesse público, visto pelos órgãos da Administração, possa não coincidir com o efetivo interesse da comunidade. Seria, entretanto, mera ficção supor que o contrário sempre ocorresse. A construção de uma hidrelétrica, de uma usina atômica ou de um aeroporto em lugar menos propício; um conjunto de medidas de natureza econômica; a declaração de guerra entre países – nem sempre tais decisões significarão, necessariamente, o melhor para a comunidade, até mesmo quando aja de boa fé o administrador. Tanto assim que, não raro, os governantes que se sucedem reconsideram decisões, revêem planos, abandonam projetos encetados; o próprio povo freqüentemente rejeita na urnas as linhas de recente atuação governamental” (MAZZILLI, Hugo Nigro. Interesses coletivos e difusos. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1992, v. 157, p. 41/42). 4 BETTI, Emilio. Interesse (Teoria Generale). Novissimo Digesto Italiano. Milão : utet, 1962. 5 CARNELuTTI, Francesco. Sistema di Diritto Processuale Civile. Pádua : CEDAM, 1936, p. 7. 6 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e colocação no quadro geral dos “interesses”. Revista de Processo, n. 55, julho-setembro de 1989, p. 165/166. 7 Cf. sobre o tema, SANTOS, J. M. de Carvalho. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro : Borsoi, v. 28, verbete interesse. 8 BETTI, Emilio, op. cit., p. 839. 9 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e colocação no quadro geral dos “interesses”, op. cit., p. 167. 10 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 29. 11 GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. Revista de Processo, n. 97, janeiro-março de 2000, p. 9. 12 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 33. 13 Idem, p. 27 – ver também, do mesmo autor, Interesses difusos: conceito e colocação no quadro geral dos interesses, op. cit., p. 165 e seguintes. 14 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo, 15. ed. São Paulo : Editora Saraiva, 2002, p. 43. 15 SALVADOR, Antonio Raphael Silva. OLIVEIRA, José Prézia de. SANSEVERINO, Milton e THEODóSIO, Walter. O Ministério Público no processo civil. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1973, v. 82, p. 281. 16 MILARÉ, Édis. O Ministério Público e a insolvência civil. Separata da Revista Forense, v. 275. 17 quanto à matéria, ver também FERRAZ, Antonio Celso de Camargo. A intervenção do Ministério Público em favor do interesse público (art. 82, III, do Código de Processo 2 44 Civil). In: Reuniões de estudo de direito processual civil, publicação do SIP – Serviço de Informação e Pesquisa do Ministério Público de São Paulo, 1974, ID ficha 0006. 18 O conceito proposto parece de utilidade também para o tormentoso problema da intervenção do Ministério Público nos termos do disposto no art. 82, III, do Código de Processo Civil: intervirá o Promotor de Justiça no feito em que, pela qualidade da parte ou pela natureza da matéria nele debatida, identificar a existência de um princípio sensível, de um valor fundamental para a vida em sociedade. 19 Art. 81, I, da Lei n. 8.078“1990. 20 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 136. 21 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 46. Essa definição é acolhida por VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 4. ed. São Paulo : Editora Atlas, 1999, p. 45. 22 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 136/137. 23 A defesa dos interesses difusos em juízo, op. cit., p. 46. 24 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 133. 25 PRADE, Péricles. Conceito de interesses difusos. 2. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 33. 26 Idem, p. 57/58. 27 Ibidem, p. 48. 28 GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos, op. cit., p. 9. 29 ANTuNES, Luís Felipe Colaço. A tutela dos interesses difusos em Direito Administrativo: para uma legitimação procedimental. Coimbra, Almedina, 1989, apud MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 137. 30 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 137/138. 31 BENJAMIN, Antonio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico: apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. In: Ação civil pública. Lei 7.347/85. Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. MILARÉ, Édis (Coord.). São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 90/91. 32 MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 137. 33 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a defesa dos “interesses difusos” no direito brasileiro. In: Temas de direito processual. 3ª série, São Paulo : Editora Saraiva, 1984, p. 183/184. Para o autor, no que tange ao sujeito, o interesse difuso não pertence a pessoa determinada ou a grupo nitidamente delimitado; do ângulo do objeto, não se refere a um bem individual, de tal sorte que a satisfação de um elemento do grupo implicaria a satisfação dos demais. 34 Ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os interesses coletivos. 35 DELGADO, José Augusto. Interesses difusos e coletivos: evolução conceitual. Doutrina e jurisprudência do STF. Revista de Processo, n. 98, abril/junho de 2000, p. 81. 36 STF, Recurso Extraordinário n. 163.231-3, São Paulo, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Correia. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA é preciso na observação de que os titulares desses interesses “se põem numa espécie de comunhão tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica por força a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui, ipso facto, a lesão da inteira comunidade” (A legitimação para a defesa dos interesses difusos no direito brasileiro, p. 184). 38 Nesse sentido, o Min. SIDNEY SANCHES lembra que para confirmar tal afirmação “basta considerar a ilegitimidade do particular para provocá-la, ou a eficácia erga omnes da sentença, ou ainda a destinação a que for condenado o réu” (RTJ, 130/490). 39 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto, art. 81, n. 4, p. 626. Em razão dessa necessidade de se dar um tratamento molecular é que a sentença, nesses casos, não obedecerá à regra tradicional do art. 472 do Código de Processo Civil e terá efeitos erga omnes (CDC, art. 103, inc. I). KAZuO WATANABE critica ainda a fragmentação que o legislador e os operadores do direito vêm tentando impor à tutela difusa e coletiva, atribuindo-a apenas a um segmento da sociedade (como os moradores de um Estado – v. medida provisória n. 2.10229, de 27 de março de 2001, art. 5º, que altera o art. 2º-A da lei n. 9.494, de 10-12-1997). 40 Obrigações, n. 57, p. 75. 41 Se uma obrigação já for originariamente de natureza pecuniária, não poderá ser caracterizada como relativa a um interesse difuso (ou coletivo). 42 DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo : Editora Saraiva, 2001, p. 53. As notas do texto reproduzido são do original. 43 Obviamente, sendo o interesse difuso uma espécie do gênero interesse social, essa conseqüência não representa nenhuma redução no status dos interesses dos consumidores! 44 CAPPELETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos, conferência proferida no Plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 27 de novembro de 1984; REALE JúNIOR, Miguel. Concorrência desleal e interesse difuso no Direito brasileiro, in: Revista de Direito Mercantil, Industrial e Financeiro, 1983, v. 22, p. 5; FILOMENO, José Geraldo Brito e BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção ao consumidor e o Ministério Público. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1985, v. 131-A, p. 58. 45 GRINOVER, Ada Pellegrini. Proteção ao meio ambiente e ao consumidor, artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 1º de dezembro de 1985, p. 71. 46 FILOMENO, José Geraldo Brito. Curadoria de proteção ao consumidor. Cadernos Informativos da Associação Paulista do Ministério Público, julho de 1987, p. 71 a 73. 47 Sobre a distinção entre “direito” e “interesse”, de extrema utilidade para a análise que agora desenvolvemos, cabe reproduzir a seguinte passagem do grande processualista LIEBMAN, Enrico Tullio: “Bisogna a questo proposito distinguere appunto tra diritti ed interessi. La figura giuridica soggettiva che trova nella legge la protezione più piena è quella del diritto soggettivo, che ricorre quando l’interesse del soggetto è riconosciuto come esclusivamente proprio del suo titolare ed è come tale direttamente garantito dalla norma giuridica. Si há invece un interesse 37 legittimo quando l’interesse di un soggetto determinato trova portezione nella legge solo indirettamente perchè si trova a coincidere con un interesse generale che la legge intende tutelare, disciplinando l’esercizio del potere dell’organo amministrativo; è chiaro che in questo caso l’osservanza della norma che tutela l’interesse generale viene a soddisfare di riflesso l’interesse del singolo soggetto“ (Manuale di Diritto Processuale Civile. Milão : Dott. A. Giuffrè, 1968, v. I, p. 101). 48 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor: importante capítulo do Direito Econômico. In: Ensaios e pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro : Forense, 1978, p. 499. Bibliografia ANTuNES, Luís Felipe Colaço. A tutela dos interesses difusos em Direito Administrativo: para uma legitimação procedimental. Coimbra : Almedina, 1989. BENJAMIN, Antonio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico: apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. In Ação civil pública. Lei 7.347/85. Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. MILARÉ, Édis (Coord.). São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1995. BETTI, Emilio. Interesse (Teoria Generale). Novissimo Digesto Italiano. Milão : utet, 1962. CAPPELETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos, conferência proferida no Plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 27 de novembro de 1984. CARNELuTTI, Francesco. Sistema di Diritto Processuale Civile. Pádua : CEDAM, 1936. COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor: importante capítulo do Direito Econômico. In: Ensaios e pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro : Forense, 1978. DELGADO, José Augusto. Interesses difusos e coletivos: evolução conceitual. Doutrina e jurisprudência do STF. Revista de Processo, n. 98, abril/junho de 2000. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo : Editora Saraiva, 2001. FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo. Interesse público, interesse difuso e defesa Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 45 FERRAZ, A. A. M. C. do consumidor. In: JUSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1987, v. 137. FERRAZ, Antonio Celso de Camargo. A intervenção do Ministério Público em favor do interesse público (art. 82, III, do Código de Processo Civil). In: Reuniões de estudo de direito processual civil, publicação do SIP – Serviço de Informação e Pesquisa do Ministério Público de São Paulo, 1974, ID ficha 0006. FILOMENO, José Geraldo Brito e BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção ao consumidor e o Ministério Público. In: JUSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1985, v. 131-A. FILOMENO, José Geraldo Brito. Curadoria de proteção ao consumidor. Cadernos Informativos da Associação Paulista do Ministério Público, julho de 1987. GRINOVER, Ada Pellegrini. Proteção ao meio ambiente e ao consumidor. Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 1º de dezembro de 1985, p. 71. MAZZILLI, Hugo Nigro. Interesses coletivos e difusos. In: JUSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo, 1992, v. 157. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. 15. ed. São Paulo : Editora Saraiva, 2002. MILARÉ, Édis. O Ministério Público e a insolvência civil. Separata da Revista Forense, v. 275. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a defesa dos “interesses difusos” no direito brasileiro. In: Temas de direito processual. 3ª série, São Paulo : Editora Saraiva, 1984. PRADE, Péricles. Conceito de interesses difusos. 2. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1987. REALE JúNIOR, Miguel. Concorrência desleal e interesse difuso no Direito brasileiro. 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Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2000. 46 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL Artigo o EnfrEntAmEnto Ao tráfiCo DE PESSoAS no BrASiL Antonio Guimarães Marrey1 Anália Belisa Ribeiro2 rESumo: O artigo analisa os aspectos essenciais da implementação da Política e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil no sentido de se garantir a eficácia das ações planejadas e a estruturação de políticas públicas e de direitos humanos a serem desenvolvidas em parceria entre a sociedade civil e o poder público. Demonstra que fatores históricos, geográficos, culturais, econômicos determinam a realidade brasileira concernente ao tráfico de pessoas, seja com vistas a prostituição ou seja em relação ao trabalho escravo e práticas análogas. Reafirma a difícil tarefa de proteção dos direitos humanos prevenindo e enfrentando o tráfico de seres humanos, uma vez que não é suficiente declará-los, mas necessário promovê-los, ensinálos e protegê-los. Palavras-chave: Tráfico de pessoas. Direitos humanos. Prevenção e repressão. ABStrACt: The article analyzes the key aspects of the implementation of the Policy and National Plan to Combat the Traffic of People in Brazil in order to ensure the effectiveness of planned actions and the structuring of public policy and human rights to be developed in partnership between civil society and government. It shows that historical, geographical, cultural and economic factors determine the situation in Brazil regarding to the traffic of people, whether with the purpose of prostitution or for forced labor and for similar practices. It reaffirms the difficult task of protecting human rights by preventing and addressing the traffic of human beings, once it is not enough to declare them, 1 2 Antonio Guimarães Marrey é Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo Anália Belisa Ribeiro é psicóloga/ especialista em Direitos Humanos e Proteção a Testemunhas/ coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Governo de São Paulo. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 47 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. but also it is necessary to promote, teach and protect them. Keywords: Traffic of people. Human rights. Prevention and repression. 1. introdução Contexto e Desafios para o Desenvolvimento no Brasil quinto maior país do mundo, com a quinta maior população, o Brasil é a principal potência econômica e política da América do Sul. Milhões de brasileiros, porém, vivem à margem dos benefícios derivados da força econômica e política do país. O Brasil é um país de renda média com consideráveis recursos naturais, humanos e tecnológicos. Muito embora tenha progredido enormemente nos últimos 50 anos, suas populações marginalizadas não estão colhendo os benefícios de tal progresso, Indicadores agregados mascaram uma série de iniqüidades baseadas em fatores como situação econômica, região, etnia, gênero e linhas divisórias entre áreas urbanas e rurais. Os dados de instituições internacionais relativos a 2004 indicam que aproximadamente 52,3 milhões, ou 32% dos brasileiros, vivem com menos de US$ 2/dia, enquanto que a pobreza extrema (menos de US$1/dia) afeta por volta de 10% da população total. Os brasileiros mais pobres são encontrados na Região Nordeste e nas periferias dos principais centros urbanos do país. Ao lado dessa pobreza, existe enorme riqueza. O índice Gini do Brasil é 0,6, o que coloca o país entre os de maior desigualdade no mundo. Tão lamentável panorama reflete uma realidade ainda mais desoladora: o descrito contexto de desigualdades acaba dando margem a praticas criminosas como as que descreveremos a seguir e diante das quais não podemos nos conformar. A triste realidade do Tráfico de Pessoas no Brasil O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser 48 assegurado a todas as pessoas por sua própria existência no mundo. Como o crime organizado do Tráfico de Seres Humanos simplesmente ignora a máxima da dignidade humana, resta à sociedade e ao poder público prevenir e enfrentar esse tipo de prática criminosa, pautando suas condutas e decisões pela concretização do princípio da dignidade humana, verdadeiro progênie de todos os princípios – desde o momento da persecução investigatória, no contato com as vítimas, até o momento da aplicação da pena aos infratores. O tráfico de pessoas é uma das formas mais explícitas de escravidão moderna. Embora tenha sido abolida oficialmente, a escravidão nunca foi realmente erradicada. Tratados internacionais, leis nacionais e resoluções compulsórias podem ser capazes de proibir esse tipo de tráfico, no entanto, colocar um ponto final a esta prática depende também da realização de um trabalho em rede, onde as políticas públicas estejam pautadas pela lógica do compromisso e da dignidade conferida à pessoa humana. Breve Recorte Histórico A segunda metade do século xIx e o início do século xx foram marcados por duas fortes características, a saber: o crescimento das grandes cidades da América do Sul, que buscavam incessantemente atingir a modernidade européia, e a intensa migração do norte para o sul. Na Argentina e no Brasil, países de destaque do cone sul, cidades como Buenos Aires, Rio de Janeiro e São Paulo viviam a explosão de crescimento e seguiam os exemplos de Londres e Paris, considerados ícones de modernidade. Fábricas foram inauguradas, dando origem á criação de postos de trabalho, cidades eram urbanizadas, tornando-se mais belas, higiênicas e ordeiras. O Rio de Janeiro, por exemplo, capital do império brasileiro e, em seguida, da Nova República, viveu momentos de enormes transformações urbanas. O progresso foi tão intenso nesse estado e se traduziu na importação não apenas de técnicas e produtos, mas também de homens, comportamentos, valores e idéias diversas. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL Paralelo a esse surto de modernidade que pretendia civilizar a capital brasileira e outras cidades estimulou-se a vinda de estrangeiros para o Brasil, em especial moradores de continente europeu. O final do século xIx e início do século xx foram também marcados por intensos movimentos migratórios internacionais e o Brasil fez parte dessa rota, tendo em vista a crise e posterior fim da escravidão bem como as propostas civilizatórias da elite nacional. O período migratório foi marcado pela intensa movimentação de trabalhadores europeus em face das dificuldades enfrentadas em seus países de origem, ocasionadas pelo capitalismo, por um crescimento demográfico sem precedentes e com grande concorrência no mercado de trabalho nas grandes cidades. As propostas de modernização e excelentes oportunidades dos países que pretendiam receber os fluxos de trabalhadores também foram um estímulo a mais, uma vez que esses imigrantes que juntos alcançaram cifras de milhões, buscavam em terras novas condições de vida melhor. O Brasil tornou-se o terceiro pólo de atração de migrantes, só perdendo para os Estados unidos e a Argentina. Quando o Brasil declarou independência de Portugal, em 1822, seu maior parceiro comercial era Inglaterra. Enquanto os britânicos ofereciam várias formas de apoio e amizade em troca do acesso aos portos brasileiros e o direito ao comércio no Brasil, a Inglaterra já havia declarado ser ilegal a importação de escravos africanos em suas colônias e encorajava outros países a fazer o mesmo. Além de argumentos morais, o Brasil – altamente dependente economicamente do barato trabalho escravo nas plantações de açúcar, café e algodão – foi também considerado um competidor desigual pelos britânicos e suas colônias, que produziam os mesmos produtos e aboliram a escravidão por volta dos anos 1830. Como resultado, sob pressão britânica, uma série de leis brasileiras foram aprovadas visando oficialmente à abolição do comércio de escravos, embora o resultado tenha sido pequeno ou de impacto inexistente. Uma dessas leis, a Lei Euzébio de queiroz, que proibia o tráfico de escravos em 1831, não teve efeito algum – após a proibição, o comércio ilegal de escravos até mesmo aumentou significativamente (Bethell, 1989, 40, 62, 95; Militão, 2005). Dito isto, vale informar que as demais etapas do presente texto apresentarão as recentes iniciativas de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, destacando como estas foram impulsionadas (de forma sutil ou nem tanto) por pressões internacionais. Ao mesmo tempo, as atenções serão voltadas para as mais importantes dimensões do tráfico de pessoas no Brasil, país de origem e destino de pessoas traficadas. Finalmente, as iniciativas governamentais e não governamentais serão brevemente analisadas. O ano de 2006 foi provavelmente o divisor de águas na história brasileira no que tange aos esforços contra o tráfico. Até recentemente, o tráfico internacional de mulheres para a prostituição era considerado a única forma contemporânea de tráfico humano no Brasil, enquanto o trabalho escravo e formas similares à escravidão regularmente encontrados em grande e isoladas plantações de soja e cana-de-açúcar eram considerados algo completamente diferente. Essa separação parece estar intimamente relacionada aos debates acerca de prostituição voluntária e forçada, bem como á feminização dos fluxos de emigração do Brasil, por um lado, e da migração interna e o tradicional sistema patrão-cliente, por outro. Em 26 de Outubro de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto 5.948/06, promulgando a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, e organizou diversas iniciativas no âmbito do governo federal em torno desse tema. Embora sem caráter de lei, pela primeira vez na história brasileira, todas as diferentes formas de tráfico humano mencionadas no Protocolo Antitráfico Adicional à Convenção das Nações unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (conhecido por Protocolo de Palermo, ou melhor, Protocolo Humano), incluindo o trabalho escravo e formas similares à escravidão, bem como a remoção de órgãos, são oficialmente consideradas como constituintes do tráfico de pessoas (apesar de a legislação brasileira ainda não refletir esta interpretação). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 49 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. O Decreto n° 5.948/06 pretende traduzir os esforços antitráfico que serão colocados em prática com o devido suporte político efetivo das autoridades locais, estadual e federal, para sustentar um modelo compartilhado de investimento no nível nacional, envolvendo a cooperação internacional e de Organizações Não-Governamentais (ONGs). Embora a legislação brasileira de tráfico de pessoas necessite de melhoramentos, a preocupação maior é que as leis brasileiras, em geral, tenham efetividade. O Código Penal Brasileiro, que se referia apenas ao tráfico internacional de mulheres para fins de prostituição, criminaliza, desde março 2005, explicitamente o tráfico interno de pessoas, aplicando-se também para homens e crianças. Essas mudanças foram bem vindas, porém os novos artigos (Artigos 231 e 231-A do Código Penal) ainda restringem suas definições a casos envolvendo prostituição e não se aplicam a outras formas de tráfico humano. Embora não intitulado como tráfico de pessoas, muitas dessas outras formas são, em parte, ofensas segundo outros artigos do Código Penal ou estão em outras leis especiais, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, adotado em 1990, já faz indiretamente referência, em alguns artigos, ao tráfico de crianças. As mudanças introduzidas pela Lei n° 11.106 (adotada em 28 de março de 2005) foram feitas um ano depois de o Brasil ratificar o Protocolo Antitráfico Humano (29 de janeiro de 2004). A ratificação deu ao Protocolo (que entrou em vigor no Brasil em 28 de fevereiro de 2004) o mesmo status legal que uma lei ordinária infraconstitucional. Consequentemente existem dois instrumentos legais sobre (parcialmente) o mesmo tema, mas não sincronizados entre eles. Essa é uma clara evidência que os envolvidos na construção de políticas não trabalham de forma coordenada ou trocam informações suficientes, ou, por dedução, não dão atenção suficiente às questões ligadas ao tráfico de pessoas. Claramente, as mudanças da Lei 11.106 não levaram em conta o amplo contexto internacional do Protocolo Antitráfico Humano, apesar de abolir, entre outras mudanças, o questionável e discriminatório uso do termo mulher honesta 50 (como utilizado anteriormente nos Artigos 215 e 216 do Código Penal), que era usado para indicar que apenas mulheres que não eram prostitutas e, portanto, sexualmente “honestas” poderiam ser vítimas de algum assédio sexual. Desta forma, apesar das recentes modificações no Código Penal, o entendimento do conceito de tráfico de pessoas no Brasil continua bastante limitado e altamente controvertido. Enfatiza-se ainda o tráfico de pessoas para a finalidade de prostituição, sem o foco utilizado pelo Protocolo Antitráfico Humano da “exploração da prostituição de outrem”. ( Conforme Lei 2000,11) “O Código Penal Brasileiro, datado de 1940, considera a prostituição como crime, não para a prostituta, que não se insere em nenhum crime, mas para os chamados agentes (hotel, cabaré, donos de bordéis), assim como, para qualquer outra pessoa inserida na indústria do sexo”. De fato, a legislação brasileira já penaliza a exploração da prostituição por meio dos Artigos 228 a 230 do Código Penal., o Artigo 231-A, que define o tráfico interno de pessoas, é redundante. Além disso, esse artigo não criminaliza a ofensa de “exploração da prostituição”, mas refere-se à “promoção e facilitação da prostituição”. Os Artigos 231 e 231-A não levam em conta a diferença fundamental entre prostituição forçada e voluntária, e, portanto, em nome da política de enfrentamento do tráfico de pessoas, é possível que eventualmente o resultado seja o fechamento de bordéis, tornando impossível para os profissionais do sexo ganharem seu sustento. Fazer a legislação sobre tráfico de pessoas para a finalidade de prostituição (não sendo esta proibida no Brasil) mais severa afeta diretamente e indiretamente os profissionais do sexo. Considerando a existência da corrupção entre os oficiais da lei, estes podem exigir subornos maiores dos profissionais do sexo para protegê-los especialmente quando os policiais são os donos dos locais acima referidos. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, define o “tráfico de pessoas” no seu Artigo 2º, fazendo referência direta à definição no Protocolo contra o tráfico de Seres Humanos. No entanto, o Parágrafo 7º do mesmo artigo introduz uma diferença significante, uma vez que a Política Nacional não considera em nenhum momento o “consentimento” da vítima como relevante. Ao evitar esse tema, deixa de interagir com o Artigo 3º, alínea b, do Protocolo Antitráfico Humano, que declara: “O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a do presente artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a”. A solução brasileira em evitar qualquer discussão sobre o consentimento de fato também ignora a questão do recrutamento através de formas abusivas, que é uma parte essencial da definição de tráfico de pessoas no Protocolo Antitráfico Humano. No entanto, esses meios ainda estão todos mencionados na definição da Política Nacional referente ao que consiste o tráfico de pessoas (“(...)à ameaça ou uso da força, ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, ou à situação de vulnerabilidade, ou à entrega, ou aceitação de pagamentos, ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”). Em outras palavras, por ignorar a possibilidade da vítima (inicialmente) consentir pelo recrutamento, e assim ignorar qualquer análise sobre o uso (ou não) de qualquer meio para conseguir o consentimento induzido ou viciado, o Brasil parece ter adotado uma definição simplificada, com a intenção de evitar discussões interpretativas e o mau uso da definição nos tribunais. Antes e durante a Consulta Pública sobre a Política Nacional, que aconteceu no dia 28 de junho de 2006 na Capital brasileira, Brasília, alguns participantes governamentais e não governamentais expressaram suas apreensões sobre a possibilidade de casos de tráfico de profissionais do sexo precipitarem longas discussões no tribunal, geradas por juízes conservadores ou advogados espertos, em relação ao tráfico de ‘mulheres desonestas’, considerando que automaticamente essas mulheres consentiram com sua exploração, porque se sustentam com o trabalho sexual. Aqueles em favor de evitar qualquer discussão sobre o consentimento querem de fato focar na questão da ‘exploração’ como o elemento chave constituinte da definição do tráfico de pessoas. A eliminação da questão do consentimento da definição de tráfico de pessoas significa que a Política Nacional brasileira de fato considera o tráfico de pessoas como o recrutamento, o transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas para fins de exploração. A exploração é ainda interpretada conforme o Protocolo: “A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”. Exploração associadas ao Tráfico de Pessoas: Diversas Modalidades Os Artigos Antitráfico 231 e 231-A do Código Penal não definem o tráfico de seres humanos como nenhuma outra forma de exploração mencionada no Protocolo Antitráfico Humano, como o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravidão, a servidão ou a remoção de órgãos ou até qualquer outra forma de exploração sexual. Algumas dessas práticas são, no entanto, consideradas crimes, parcialmente ou completamente, por outros artigos do Código Penal, ou leis específicas. O Artigo 149 do Código Penal (reduzir alguém à condição análoga ao trabalho escravo) merece uma atenção extra, considerando sua modificação pela Lei 10.803 de 11 de dezembro de 2003). Anteriormente, o Artigo 149 era capaz de cobrir diferentes tipos de exploração, porém, seu escopo foi limitado de “reduzir a pessoa à condição análoga à escravidão” (que poderia incluir o casamento forçado) para condição análoga ao trabalho escravo. O Artigo 206 do Código Penal trata do recrutamento fraudulento de trabalhadores para o fim de emigração. Da mesma forma, o Artigo 207 refere-se ao alicia- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 51 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. mento e recrutamento fraudulento de trabalhadores para levá-los de uma para outra localidade no território nacional. O Artigo 14 da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, alterada pela Lei 10.211, de 23 de março de 2001, proíbe a remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa viva ou cadáver, em desacordo com as disposições desta lei. O Artigo 9º, no entanto, declara que, de acordo com esta lei e sob condições estritas, é permitido à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes, se isso não implicar em qualquer risco para sua saúde ou integridade física do doador. Em contraste com o Protocolo Antitráfico Humano, nenhuma dessas várias ofensas mencionadas acima entende a exploração como elemento chave constitutivo do crime. Consequentemente, o seu escopo prático para casos de tráfico de pessoas será limitado. Além disso, nenhuma dessas ofensas é considerada tráfico de pessoas, significando que as pessoas definidas como vítimas do tráfico humano sob a lei internacional com a qual o Brasil está comprometido poderão não receber a proteção e assistência a que têm direito. Políticas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Do século xVI ao século xIx, o comércio de escravos resultou em milhões de africanos exportados para vários países para exploração, incluindo o Brasil, o último país na América a abolir a escravidão (1888). Esse fenômeno que atualmente envolve redes organizadas e informais de fornecimento de mão de obra de trabalho barata e outras formas de exploração, tais como a remoção ilegal de órgãos para transplante, começou a ser estudado e enfrentado no Brasil apenas na década de 1990. O presente texto visa a retratar algumas das iniciativas governamentais e não-governamentais para enfrentar o tráfico de pessoas, focando-se em leis específicas e políticas, assim como no apoio internacional que o Brasil tem recebido neste tema. 52 A questão do enfrentamento do tráfico de pessoas entrou na agenda política apenas no início do novo milênio, quando a primeira Pesquisa Nacional sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil, também conhecida por PESTRAF (2002), foi conduzida por meio de uma articulação de ONGS brasileiras e universidades com substancial apoio internacional e do governo federal, por intermédio da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ). Em dezembro de 2001, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso – por meio da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça – assinou um acordo com o Escritório das Nações unidas contra Drogas e Crimes (uNODC) para a implementação do Programa Global contra Tráfico de Seres Humanos (GPAT), financiado pelos governos do Brasil e Portugal para enfrentar o tráfico internacional de mulheres para exploração sexual. Em 2002, o Governo Federal, influenciado plenamente pela PESTRAF, estabeleceu Comitês Estaduais para a Prevenção e Combate do Tráfico de Seres Humanos em cinco estados brasileiros (Bahia, Ceará, Pará, Pernambuco e Rio de Janeiro), basicamente dentro da estrutura do Programa Federal de Proteção a testemunhas, PROVITA. Vale salientar que o referido programa se constitui como uma política pública desenvolvida em parceria por sociedade civil e poder público especialistas o classificam como o programa de proteção mais democrático do mundo. Assim, o governo federal, espelhando-se nessa experiência exitosa, passa a inaugurar uma política publica inovadora com vistas à criação do Sistema Nacional de Prevenção e Enfrentamento ao TSH. A Construção do Sistema Brasileiro de Prevenção e enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Em 1999, o Brasil torna-se signatário do Protocolo de Palermo com o compromisso de enfrentar o crime organizado transcontinental, quando por meio do Ministério da Justiça, concebeu o Programa Global de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos (GPAT). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL O programa apresentado pela Secretaria Nacional de Justiça/MJ, naquela ocasião, se configurou no Brasil e na América Latina como um tratamento-piloto ao crime organizado transnacional. Nos anos de sua vigência, o programa desenvolveu diversas ações, produziu diversos relatórios e, sob o caráter de livre adesão dos países traçou os seguintes objetivos: analisar a situação do tráfico de pessoas do país; capacitar agentes da sociedade civil organizada e do Estado para lidar com esta situação-problema, acompanhar inquéritos e processos, promover campanhas educativas/preventivas sobre o tema, bem como propor revisão legislativa. Ressaltamos que o programa supra citado teve pontos relevantes na formatação de um sistema descentralizado para integrações de ações, formação de comitês interinstitucionais e implantação de cinco centros de referências, seguindo a rota do tráfico de seres humanos mapeada pela Interpol (DF, RJ, PER, BA, MS). Outros dois centros estão em fase de implantação (SP e PA) Tal iniciativa teve como indicador de êxito o Departamento de Desenvolvimento da Mulher das Nações unidas/NY que, na época, avaliou o GPAT como sendo uma das melhores práticas do mundo, destacando a organização dos comitês interinstitucionais e a formação da rede político-social. Porém, em abril de 2003, a Secretaria Nacional de Justiça/MJ resolveu não dar continuidade ao Programa Global nos moldes que anteriormente estava sendo desenvolvido. Em junho do mesmo ano, entretanto, representantes dos comitês interinstitucionais, em parceria com diversas instituições, promoveram a continuidade do programa concebido. E solicitaram ao Instituto Latino Americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos – ILADH, assumir a coordenação do processo. A primeira iniciativa do ILADH foi apresentar ao Governo do Estado de Pernambuco proposta de institucionalização de uma Política Pública para a Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos, observando diretrizes próprias. Ao lançar mão da proposta, o já referido Governo, por meio da Secretaria de Defesa Social, instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos por meio do Decreto 25.594, de 01 de julho de 2003. No ano seguinte, alguns cooperadores internacionais, como ICLEI, GTZ, Fundo Canadá, OIM, WINROCK, embaixadas e consulados, passam a ser parceiros fundamentais na implementação dessa política pública. Em 2005, o ILADH iniciou o fortalecimento dos comitês nos Estados da BA, MS, SP e RJ, nos quais se inserem o redirecionamento de diretrizes para a avaliação e realização de mobilizações sócio-educativas, buscas ativas, pesquisas. Na mesma época, são feitas parcerias com a PuC/RJ e uSP/SP, para organizar e promover cursos para formação de agentes multiplicadores, oficinas de capacitação, encontros nacionais e internacionais, bem como o intercâmbio de experiências, além da formatação de uma rede sócio-política com vistas ao atendimento integral às vítimas do Tráfico de Seres Humanos. Ainda em 2005, o ICLEI monitora e avalia o programa e garante a sua replicabilidade na América Latina como prioridade da Agenda Local 21, para combate à pobreza. O ILADH, por compreender a necessidade da existência de um projeto de lei para o Brasil, no ano de 2003, assessorou os deputados Nelson Pellegrino (PT/BA) e Orlando Fantasini (PT/SP) na elaboração de um projeto de lei que tipifica o crime e cria um sistema de ações integradas para atendimento às vítimas do TSH. Atualmente, esse projeto Nº. 2845/2003 encontra-se para análise na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal. Por oportuno, vale informar que o ILADH, no ano de 2004, atuou, por intermédio do Comitê Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento ao TSH do Estado de Pernambuco, no único caso do mundo de vendas de rins concluso em julgado desbaratando uma máfia internacional que aliciava vítimas do Estado de Pernambuco/ Brasil para áfrica do Sul e Israel. Porém, governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolve não validar as ações acima referidas, decidindo dar ênfase apenas a uma das modalidades do Tráfico de Pessoas, qual seja: o enfrentamento à exploração sexual. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 53 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. Inicialmente o Governo Federal selecionou quatro estados prioritários – Ceará, Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro.Tais localidades foram escolhidas por apresentar intensa atividade de recrutamento para o tráfico de seres humanos, enquanto São Paulo e Rio de Janeiro têm os dois maiores aeroportos internacionais de onde saem muitas pessoas que são traficadas para o exterior. É importante ressaltar que uma notória rota de tráfico de pessoas é de Belém do Pará para Suriname e seguindo para a Europa. Outras rotas no Brasil, como a região entre as fronteiras da Argentina, Brasil e Paraguai (Sanchis, 2005, citando a Organização Internacional de Migrações – OIM), infelizmente não foram pautadas nesses cinco anos do primeiro Programa Global de Combate ao TSH. O programa supra-referido propôs ações específicas voltadas para a pesquisa e prevenção ao tráfico de pessoas para a exploração sexual nos quatros Estados envolvidos. As outras modalidades de tráfico humano não foram cobertas nesta primeira fase. Em particular, o trabalho escravo no Brasil foi retratado de forma separada, recebendo atenção internacional por parte da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As ações do Governo Federal voltaram-se para o treinamento e capacitação de policiais (especialmente a Polícia Federal), campanhas, pesquisas e diagnósticos e a construção de um banco de dados com estatísticas de casos de tráfico humano, que não foi inteiramente concluído. Além disso, conjuntamente com os governos dos quatros Estados envolvidos, o Ministério da Justiça e a Unidade Contra Drogas e Crimes – uNODCP promoveram a criação de Escritórios de Atendimento à Vítima de Tráfico de Pessoas. Esses Escritórios deveriam, supostamente, promover a assistência jurídica, social e psicológica com vista à inclusão das pessoas traficadas. Serviços de saúde, educação e social seriam oferecidos por meio de rede de serviços locais. Apesar de inovador e, até certo sentido, demonstrando o comprometimento governamental, alguns desses escritórios, a exemplo do existente no Estado de Goiás, contraditoriamente, não conseguiram sobreviver devido à falta de apoio do próprio governo federal e do governo estadual. 54 A primeira fase do Programa Global de Combate ao TSH terminou em 2005. Durante o ano de 2006, o governo brasileiro negociou com o uNODCP para assegurar o seu apoio financeiro destinado a uma segunda fase, iniciada em 2007, que estendeu as ações de enfrentamento ao tráfico para demais Estados brasileiros interessados. os Escritórios Brasileiros de Atendimento às Vítimas de Tráfico de Pessoas: uma breve análise O Escritório de Atendimento as Vítimas de Tráfico de Seres Humanos em São Paulo O escritório em São Paulo foi inaugurado em maio de 2003, na sede da Secretaria de Estado de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo. O Governo do Estado de São Paulo disponibilizou uma equipe e um espaço físico, enquanto que o Ministério da Justiça ficou responsável pela realização de treinamentos e oficinas sobre o tema. Em 2007, após um período de avaliação, o já referido escritório passou a se denominar Escritório de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos e vem sendo integralmente apoiado apenas e tão somente pelo governo acima referido. Atualmente, também exerce a função de secretaria-executiva do Comitê Paulista de Prevenção e Enfrentamento ao TSH. Esse comitê é composto por 32 instituições. Dentre as ações do Escritório, vale destacar que o mesmo oferece suporte às iniciativas da ASBRAD, ONG que, no final de 2006, iniciou seu projeto piloto no Aeroporto Internacional de São Paulo em Guarulhos para assistir brasileiros deportados ou não admitidos, visando à identificação e atendimento de pessoas traficadas e/ ou que tiveram seus direitos violados durante o processo. O Escritório de Atendimento à Vítimas de Tráfico de Seres Humanos em Goiás O escritório localizado na capital Goiânia também foi instalado por meio da cooperação com o governo estadual, dentro do Ministério Público do Estado de Goiás. Assim como os demais escritórios, a demanda também não foi Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL significativa do ponto de vista dos atendimentos realizados, embora tenha atendido algumas mulheres traficadas retornando do exterior. Como resultado, o escritório em Goiás começou a focar seu trabalho na prevenção e conscientização, com atividades em escolas, visando à mobilização e ao “empoderamento” de modo não-discriminatório. O escritório também estabeleceu bons contatos com a rede de assistência social, uma vez que a coordenadora era líder da Rede Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual, o que ajudou a fornecer assistência prática às pessoas traficadas. De fato, existe em Goiás um Centro de Referência para o Aborto Legal, bem como Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Como resultado dessas iniciativas, a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres escolheu Goiás para sediar o Centro de Assistência à Vítimas de Violência, também com o objetivo de identificar pessoas traficadas. Porém, atualmente, o escritório encontra-se desativado por falta de apoios dos governos federal e estadual. O Escritório de Atendimento as Vítimas de Tráfico de Seres Humanos em Ceará Em contraste com outros escritórios, o de Fortaleza colabora com o Ministério Público na questão do tráfico interno, especialmente envolvendo crianças e adolescentes. Uma delegada da Polícia Civil, sem um mandado para investigação de tráfico internacional de pessoas, foi designada para conduzir as investigações e atuar em conjunto com o escritório. Vale dizer, também, que esse escritório vem desenvolvendo suas atividades sem nenhum tipo de suporte do governo federal. O Escritório de Atendimento as Vítimas de tráfico de Seres Humanos no Rio de Janeiro O Estado do Rio de Janeiro foi o único que teve seu projeto adiado. O Ministério da Justiça levou certo tempo para identificar um parceiro estadual que seria responsável pelo projeto regional. Em 2005, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) tornou-se um parceiro relevante do Ministério da Justiça tendo uma sensibilidade natural para as questões de gênero. O CEDIM vem desenvolvendo diversas estratégias para a implementação do mandato do escritório, convidando diversas ONGS relevantes para participar. No entanto, no âmbito do tráfico para fins de exploração sexual, o Rio de Janeiro – sendo descrito como o maior fornecedor para o mercado internacional e importante rota de tráfico (Leal e Leal, 2002) – ainda não tem políticas de assistência a pessoas traficadas, uma vez que o escritório não foi implementado e o governo estadual ainda não tomou nenhuma medida substancial para tratar do assunto. A uNIFEM, entretanto, designou uma especialista no tema para trabalhar no escritório do CEDIM, localizado no centro do já referido Estado. Segundo informações do CEDIM, esse escritório, tanto quanto os demais, não vem recebendo nenhum tipo de apoio do governo federal. uma breve avaliação se faz necessária uma vez que a iniciativa do governo federal ao abrir Escritórios de Atendimento às Vítimas de Tráfico de Pessoas, mesmo oferecendo diversos serviços, não garante a efetividade de uma política pública bem delineada. Percebe-se um equívoco na escolha do nome dos Escritórios pelo governo federal, uma vez que pessoas que sofrem violações de direitos humanos, especialmente as traficadas, não se reconhecem automaticamente como “vítimas de tráfico de seres humanos”. Pessoas traficadas podem apenas querer esquecer o que aconteceu com elas, como se isso fosse um pesadelo, uma escolha sem sorte mediante a qual elas carregam toda a responsabilidade ou apenas registram mais uma etapa de vida repleta de violência e exploração. Elas podem não perceber isso como uma violação dos seus direitos humanos que necessita ser confrontada. Neste sentido, vale um destaque para o escritório de São Paulo, que recebeu o nome de Escritório de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos e vem desenvolvendo ações integradas em conjunto com o Comitê Paulista. Finalizando, convém informar que a implantação de Escritórios como centros de referência certamente delineava as bases de uma política pública de Estados e não de gover- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 55 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. nos. Porém, o governo federal não cumpriu o compromisso com a efetivação desta iniciativa, inclusive, provocando um enorme desperdício de recursos humanos e financeiros, uma vez que não ofereceu acompanhamento político, financeiro e técnico qualificado com vistas à formatação de uma rede sistêmica e integrada de ações voltadas à prevenção e ao enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos no Brasil. A Política e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas O ano de 2006 constituiu-se como um marco histórico para o Brasil, no que se refere à construção de uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O PNETIP reconhece o tráfico humano como um problema multidimensional que necessita de ações articuladas, e envolve pela primeira vez todos os diferentes atores e agências governamentais que deveriam estar envolvidos. Numa análise mais ampla, pode-se dizer que a política antitráfico brasileira se baseia nos princípios de direitos humanos (Artigos 1º. e 3º.), uma vez que, por exemplo, declara que nenhum direito da vítima é condicionado a sua cooperação com a justiça (Artigo 3º., III). Contudo, ainda existe um grande trabalho pela frente para a efetiva implantação da política. O desenvolvimento e a implementação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, conforme previsto na Política Nacional, deverá estabelecer metas específicas a longo, médio e curto prazo, um cronograma, responsáveis governamentais e necessariamente um orçamento detalhado. A sociedade civil, sem dúvida, tem um papel importante no monitoramento da implementação da Política e do Plano Nacional. A partir do ano de 2009, pode se observar um incremento frente à implantação da Política e do Plano suprareferido. O Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, passou a priorizar essa temática assumindo o desfio na implementação do Sistema Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Desta maneira, tomou para si o papel de organizar um GT legislativo com vistas à formatação do 56 Projeto de Lei que tipifica o comércio de vidas como crime e institui o sistema acima referido. Políticas Migratórias e o Tráfico de Pessoas Implementar políticas públicas voltadas a solucionar o problema da migração é um dos grandes e importantes desafios a ser enfrentado pela sociedade brasileira. Maior país da América do Sul, o Brasil foi inicialmente um típico país de destino para migrantes internacionais durante o período de colonização (e exploração econômica), a partir de 1500 pelos franceses, holandeses e (especialmente) portugueses. Mais tarde, o comércio de escravos da áfrica para o Brasil causou um crescimento significante da população no Brasil. Após a abolição oficial da escravatura em 1888, “a imigração de italianos, entre o século xIx e no início do século xx, consistia em mais de 800.000 imigrantes. O fluxo de japoneses para o Brasil foi de 200.000 imigrantes na primeira metade do século xx” (CNDP, 2005). A partir de 1970, a migração interna no Brasil foi bastante significativa, quando um grande número de pessoas provenientes das regiões menos desenvolvidas do norte e do nordeste migrou para o sudeste brasileiro, especialmente para metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Consequentemente, as favelas se multiplicaram, assim como a desigualdade econômica e social, uma vez que as cidades não estavam preparadas para receber milhões de migrantes (MacDonald, 1991). O mesmo aconteceu com a migração na Amazônia, incentivada pela ditadura militar (1964-1985) e pela construção da rodovia Transamazônica. Emigração do Brasil O Brasil teve, durante a década de 80, um significativo acréscimo no número de pessoas deixando o país. Estimativas oficiais do Ministério das Relações Exteriores apontam que o número de brasileiros emigrantes em 2001 foi de aproximadamente 1.887.895, em torno de 1,5% do total da população na época. O número de brasileiros vivendo no exterior aumentou para Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL aproximadamente dois milhões em 2005 (CNPD, 2005), como consequência, pelo menos em parte, das sucessivas crises econômicas. De acordo com estimativas do Ministério das Relações Exteriores, atualmente de três a quatro milhões de brasileiros vivem no exterior de forma regular e irregular (Chagas, 2006). Em maio de 2005, o Congresso Brasileiro instaurou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar ofensas criminais e civis relacionadas à emigração ilegal de brasileiros para os Estados Unidos, assim como para verificar a situação da cidadania de brasileiros no exterior. uma das muitas recomendações da CPMI chamava pela ratificação da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (CPMI Emigração Ilegal, 2006, 532). O extenso relatório (577 páginas), de 12 de julho de 2006, examinou diversos temas importantes, como emigração, contrabando de pessoas – especialmente via México para os Estados Unidos – bem como a precariedade dos direitos dos brasileiros (indocumentados) que vivem no exterior. É importante ressaltar que os “migrantes da América Latina e Caribe demonstram relativamente altos níveis de educação e significante feminização; de fato, mais da metade dos migrantes latinos são mulheres” (tradução não oficial, Pellegrino, 2004,6). De acordo com o censo populacional de 2001, publicado pelo Instituto Nacional de Estatísticas da Espanha, 54% de todos os migrantes da América do Sul na Espanha são mulheres, enquanto que a porcentagem que representa o grupo feminino evolui para 69,5%, quando se considera apenas migrantes brasileiros (Pellegrino, 2004,30). Também salta aos olhos o fato de que a maioria dos brasileiros que emigram oficialmente é proveniente do sudeste do país (CNPD, 2005,2), o que parece confirmar a idéia de que a emigração não é causada pela pobreza absoluta, mas pela pobreza relativa. Isto é, as desigualdades que pessoas sentem em relação às oportunidades sociais, econômicas e educacionais, são fatores que impulsionam mais a migração internacional, do que somente a pobreza. Finalmente, deve-se destacar que a maior parte dos brasileiros trabalhadores migrantes entra na Europa como turista, sem permissão para trabalhar, especialmente aqueles que já se encontravam no setor informal brasileiro. Buscando ganhar mais dinheiro longe de casa, às vezes, mesmo sem nenhuma proposta de trabalho, esses brasileiros acabam normalmente desenvolvendo trabalhos informais, onde não necessitam qualificações específicas, como babá, doméstico e trabalho sexual. Esses migrantes geralmente experienciam alguma forma de exploração, estando vulneráveis para a deportação imediata se, e quando, seu status irregular for descoberto, ou, em outras palavras: “..com o fluxo migratório, o número de migrantes irregular também aumentou e o tráfico de pessoas entre a América Latina e Caribe e a União Européia resultando num problema sério. O tráfico de mulheres e crianças para exploração sexual é particularmente sério e uma preocupação séria e crescente” (tradução não oficial, Pellegrino, 2004). Migração Interna: Exploração Sexual x Práticas Análogas à Escravidão O Brasil considera ser de extrema importância o tema migração. Assim sendo, faz-se necessário estabelecer uma distinção entre o fluxo migratório da região rural (especialmente do norte e nordeste) para as grandes metrópoles urbanas, de um lado, e para as grandes zonas de desenvolvimento de agricultura, onde o desmatamento, a pecuária e a plantação em escala industrial têm sido muito lucrativas, do outro. O tráfico interno para áreas urbanas de desenvolvimento possui modalidades diferentes, a saber: Tráfico interno de pessoas para a prostituição (Artigo 231-A do Código Penal);-Tráfico interno de trabalhadores (Artigos 207 e 149 do Código Penal, considerando o trabalho escravo ou práticas análogas à escravidão). A legislação brasileira atual sobre tráfico de pessoas aborda essas duas questões como crimes distintos, formalmente apenas identificando o primeiro como tráfico humano. Ainda, o governo, até a promulgação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em 2006, também não considerava o confinamento Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 57 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. de trabalhadores em grandes fazendas no norte, nordeste e centro-oeste do país uma das modalidades do tráfico interno de seres humanos, mas o identificava como trabalho escravo ou práticas análogas á escravidão. Tanto a legislação e as políticas governamentais fizeram (e ainda fazem) tal distinção como também organizações internacionais, estruturas governamentais, pesquisadores e a sociedade civil organizada separavam (e ainda separam) questões como trabalho forçado e exploração sexual. Tal distinção nem sempre é útil, considerando que por meio do intercâmbio de informações de boas-práticas obtidas no enfrentamento desses diferentes tipos de exploração, medidas antitráfico mais efetivas poderiam ser utilizadas em vários outros contextos. O Relatório sobre Tráfico de Pessoas do Departamento de Estado dos Estados Unidos (TIP Report 2006) colocou o Brasil na Lista 2 (Tier 2 Watch Lista), enfatizando o “fracasso em aplicar penas criminais efetivas contra traficantes que exploram o trabalho forçado” (tradução não oficial, uS Department of State, 2006, 76), considerando que “havia apenas uma persecução reportada no Brasil que resultou na condenação, em nível nacional, de um crime relacionado ao tráfico de pessoas durante o período reportado [sendo 2005 e início de 2006] – uma redução de três condenações obtidas em 2004” (tradução não oficial, uS Departamento f State, 2006, 77). O Departamento de Estado dos Estados Unidos tipifica corretamente o escravo e as práticas análogas à escravidão como tráfico interno de pessoas, entretanto, quando se refere às condenações criminais no Brasil, o relatório americano considera apenas o trabalho escravo e práticas análogas à escravidão no nível internacional, ignorando possíveis condenações criminais de outras formas de tráfico de pessoas, como para exploração sexual. O relatório em questão também não destaca as repressões e condenações não-criminais, como as indenizações e pagamentos de multas por ofensas à legislação trabalhista. Por sua vez, a OIT já destacou que as iniciativas das autoridades brasileiras para erradicar as práticas análogas à escravidão são vistas como modelo para outros países. um exemplo 58 importante é a chamada “lista suja” publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Em outubro de 2006, a lista suja continha os nomes de 178 empregadores que exploravam trabalhadores nas suas propriedades rurais. Como resultado dessa tática, os empresários e companhias mencionadas na lista suja não recebem empréstimos de bancos públicos (e alguns privados). A OIT confirma que no Brasil ninguém cumpriu pena de prisão por explorar mão-deobra escrava, enquanto que a CPT estima que pelo menos 25.000 brasileiros são vítimas anualmente. Em 2004, autoridades brasileiras aparentemente concordavam com tais estimativas nos seus contatos com a ONU (ILO, 2005). No entanto, de acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT/MTE), seus grupos móveis de fiscalização (GEFM, instalados em 2002) conseguiram libertar um total de 17.983 trabalhadores escravos entre 1995 e 2005 (OIT, 2005). Verifica-se também que são propostas mudanças mais estruturais e profundas, como as propostas de emendas constitucionais (PEC 4382001, antiga PEC 232-1995), que prevêm, entre outras medias, a expropriação (sem compensação) da terra onde são detectados trabalhadores escravos. No entanto, ambas estão em discussão há 11 anos, indicando uma completa falta de interesse político. Por outro lado, o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em 2003, define uma série de ações concretas para abordar as causas estruturais do trabalho escravo no Brasil. Esse Plano Nacional também impulsionou a criação do Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), com a participação de organismos governamentais e organizações não-governamentais. Apesar de estar baseado em acordos com a OIT, esse Plano Nacional, infelizmente, não leva em consideração ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, bem como não faz nenhuma referência às definições contidas no Protocolo de Palermo de Antitráfico Humano. Segundo o Ministério do Trabalho e o CONATRAE, trabalhadores escravos resgatados já conseguiram pagamento de seguro desemprego (pago pelo Estado), bem como indenizações Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL trabalhistas (multas pagas pelos antigos empregadores abusivos). Vítimas de outras formas de tráfico de pessoas – onde nenhuma forma regular de trabalho pode ser detectada, no caso do trabalho forçado de profissionais do sexo – são tradicionalmente consideradas desprotegidas pelas progressistas leis trabalhistas brasileiras. Contudo, as profissionais do sexo podem pedir indenizações por danos morais ou materiais, como qualquer outros, por meio das longas e custosas ações civis, baseadas ou não em uma condenação penal. Embora o agenciamento da prostituição seja ilegal, as profissionais do sexo, no entanto, deveria de alguma forma buscar a indenização trabalhista em casos de violação, considerando que a atual jurisprudência aparentemente também honra reclamações trabalhistas daqueles empregados em outro setor ilegal, como no jogo do bicho. Migração: Brasil e o MERCOSUL O Mercado Comum do Sul – MERCOSuL, era formado inicialmente pelos seguintes países: Brasil, Argentina, Paraguai e uruguai. Porém, logo em seguida, outros países ingressaram: Chile (1996), Bolívia (1997), Peru (2003), Colômbia (2004), Equador (2004) e Venezuela (2004). Apesar do tratado de Assunção, que cria o MERCOSuL em 1991, voltar-se principalmente para o livre movimento de capital, produção e produtos, a migração é significativa dentro da região. Dois acordos foram assinados durante o mês de dezembro de 2002, os quatros Estados membros iniciais do MERCOSuL, juntamente com Bolívia e Chile, assinaram dois acordos – Residência para Nacionais e Regulamentação da Migração dos Cidadãos do MERCOSuL. “Segundo o Acordo de Residência para Nacionais dos Países Membros do MERCOSuL, imigrantes de um país que recebem um visto de residência temporário ou permanente em outro país do MERCOSuL receberão o mesmo tratamento que os nacionais deste país, incluindo no campo do trabalho” (tradução não oficial INTAL, 2004). Os dois acordos só entrarão em vigor após a ratificação pelos seis países signatários. “O fato da situação dos mercados de trabalho dos países do MERCOSuL permanecer difícil e, de certa forma, um obstáculo significativo de tal ratificação em curto prazo” (tradução não oficial, INTAL, 2004). No ano de 2005, os países do MERCOSuL, juntamente com Chile, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador, assinaram a Declaração de Montevidéu contra o Tráfico de Pessoas, prevendo a cooperação policial e o intercâmbio de informações sobre o tráfico humano, especialmente o tráfico ligado à prostituição (CPMI Emigração Ilegal, 2006, 333). Em 2006, a Declaração de Montevidéu ganhou um significado prático com a adoção do Plano de Ação para a Luta contra o Tráfico de Pessoas do MERCOSuL. Desenvolvido em Buenos Aires, o Plano de Ação do MERCOSuL identifica pontos focais dentro de cada governo responsável pela sua implementação, além de prever campanhas informativas, troca de informações, capacitação de atores governamentais e não-governamentais e assistência às vítimas do tráfico de pessoas. O Brasil é o principal país de destino do tráfico humano em relação aos países vizinhos. Imigrantes da América Latina, especialmente bolivianos, paraguaios, peruanos e chilenos – além de coreanos – enfrentam condições precárias de trabalho ou até mesmo trabalho forçado e práticas análogas à escravidão nos maiores centros urbanos do Brasil, especialmente nas pequenas fábricas de São Paulo (uS TIP Report, 2005). Imigrantes, a maioria sem documentados, são atraídos pelas áreas mais produtivas do MERCOSuL, tentando obter uma parte dos benefícios materiais. Há aproximadamente 150.000 bolivianos na cidade de São Paulo. A maioria não possui permissão de residência, e muitas vezes essas pessoas são exploradas em condições injustas de trabalho. De acordo com o Serviço Pastoral de Migrantes (SPM) – uma das poucas organizações brasileiras que trabalham diretamente com migrantes – em torno de 10% dos bolivianos em São Paulo são sujeitos a práticas análogas à escravidão e servidão (Castro, 2005). Alguns migrantes “indocumentados” em situação de vulnerabilidade se envolvem no tráfico de drogas como uma forma de pagar suas dívidas, porém Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 59 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. acabam na prisão. A coordenadora da organização não-governamental ASBRAD já encontrou um número considerável de mulheres latinoamericanas de diferentes países nas prisões de São Paulo por tráfico internacional de drogas. Elas, na verdade, declaram que foram forçadas a levar drogas como “mulas”. Em setembro de 2005, o Ministério da Justiça lançou em consulta pública a proposta do novo Estatuto de Estrangeiro. O atual Estatuto do Estrangeiro (Lei no. 6.815, de 19 de agosto de 1980) é resultado do período quando o governo (militar) estava preocupado com a segurança nacional, restringindo inclusive os direitos dos imigrantes. A nova proposta do Estatuto do Estrangeiro pretende ser mais progressista. Além de facilitar a obtenção do status de residente temporário em busca de atrair imigrantes, a proposta visa à mudança do Conselho Nacional de Imigração para Conselho Nacional de Migração, consequentemente estendendo seu escopo. Contudo, organizações de migrantes e agências como SPM acreditam que o novo Estatuto proposto não é tão inovador na questão da livre mobilidade dentro da região do MERCOSuL e quanto à proteção dos direitos humanos dos migrantes (Bassegio, 2005). Além disso, o SPM acredita que a proposta é extremamente seletiva, atendendo escassamente aos interesses dos migrantes que não têm qualificação ou têm pouca educação, porém podendo ser produtivos na economia brasileira. Em 2006, o governo federal tornou possível aos bolivianos em situação irregular no Brasil a obtenção de permissão de residência sem precisar retornar à Bolívia, implicando um tipo de anistia. Considerando que os acordos do MERCOSuL não foram ratificados, o Brasil e a Bolívia adotaram uma medida temporária para resolver o problema de uma grande parcela de bolivianos indocumentados no Brasil. No dia 15 de agosto de 2005, Brasil e Bolívia concluíram o Acordo de Regularização Migratória Brasil/ Bolívia, com o objetivo de promover a integração sócio-econômica dos imigrantes indocumentados dos dois países em seus territórios. A única preocupação aqui se refere ao pagamento da multa pela residência irregular, considerando 60 que esses migrantes possivelmente não podem pagar essas taxas para registrar e assegurar sua residência. Impacto das Ações de Enfrentamento aos casos envolvendo as Profissionais do Sexo (Existem dois grupos de brasileiras (os) que migram para ganhar dinheiro com comércio sexual – 1) as profissionais do sexo, que migram internamente ou para outros países, visando a aumentar seu lucro, e 2) brasileiras sem histórico na indústria do sexo que consideram a prostituição como uma oportunidade temporária para ganhar (mais) dinheiro. Em ambos os casos, as pessoas optam principalmente pela migração irregular (deixar o Brasil sem a documentação necessária, como uma permissão de trabalho ou sem seguir os procedimentos regulares), ou aceitam ser contrabandeados para outro país. O tráfico de pessoas pode (eventualmente) ser uma conseqüência dessas escolhas. Os dois grupos de profissionais do sexo migrantes podem sofrer algum tipo de exploração e violação dos seus direitos, da mesma forma que experienciam no Brasil, por encontrar dificuldades sociais e econômicas. Profissionais do sexo experientes, contudo, parecem estar relativamente mais conscientes dos riscos da migração do que outros migrantes, calculando-os e avaliando-os da mesma forma que fazem no seu trabalho diário no Brasil. O Brasil possui um salário mínimo federal de R$ 465 por mês. A pobreza é uma realidade e, portanto, a busca de melhores condições de vida faz parte do cotidiano das pessoas submetidas a tal realidade. Na maioria dos casos, apenas uma promessa de emprego é suficiente para gestar no imaginário dos grupos vulneráveis perspectivas de futuro e melhoria da qualidade de vida. Os Artigos 231 e 231-A do Código Penal focam apenas no tráfico para fins de prostituição. Esses artigos não consideram o consentimento das pessoas como fator relevante na avaliação se um crime foi cometido. às vezes, a polícia brasileira conduz batida em saunas, casas de massagem, termas e bordéis para reprimir a prostituição. A legislação brasileira não diferencia a Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL prostituição forçada da voluntária e, consequentemente, criminaliza todos que ganham dinheiro com a prostituição de outrem, apesar da prostituição em si não ser proibida no Brasil. Logo, auxiliar alguém a migrar (internamente ou para o exterior), sabendo que a pessoa tem a intenção de praticar a prostituição, pode, de acordo com a lei atual, ser considerado a prática do crime de tráfico de pessoas (Piscitelli, 2006, 65). Em contraste, o Protocolo Antitráfico Humano não considera a pessoa que decide voluntariamente em migrar e receber dinheiro pelo comércio sexual como uma vítima de tráfico humano, ou alguém que a ajude como traficante, ao menos que algum elemento de coerção ou força seja usado, ou o migrante seja menor de 18 anos. O Impacto das Ações de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas envolvendo Migrantes um verdadeiro arsenal jurídico é utilizado por países, avaliados como sendo rota do tráfico de pessoas, para enfrentar a atuação do crime organizado transnacional. Especialmente os países de destino implementam políticas que são contrárias aos interesses das pessoas traficadas e dos migrantes em geral como estratégias de defesa para o enfrentamento desse tipo de prática criminosa. Não por acaso, muitos desses países endureceram suas legislações numa tentativa de conter e controlar a migração, até mesmo adotando métodos repressivos para lidar com a questão. A pesquisa conduzida no Aeroporto Internacional de São Paulo em relação aos brasileiros deportados ou não admitidos em outros países e repatriados confirma quem em sua maioria, as mulheres brasileiras cuja entrada nos países da União Européia foi recusada não eram, na verdade, profissionais do sexo (Piscitelli, 2006). “Há uma imagem cristalizada sobre as brasileiras de certas camadas sociais, cores e estilos corporais que as constrói como prostitutas” (Piscitelli, 2006, 65). Esse estereótipo parece ser nutrido pelos departamentos de imigração em vários países. Muitas mulheres brasileiras deportadas ou não admitidas mencionaram as humilhações e péssimos tratamentos que sofreram na Europa. “É importante considerar que as prostitutas são mais visíveis e vulneráveis que outras trabalhadoras em situação irregular e é possível que este aspecto incida em uma maior representação de trabalhadoras do sexo no grupo de deportadas” (Piscitelli, 2006, 65). A pesquisa revela que os países europeus tratam as brasileiras de forma humilhante e desrespeitosa: “O estudo sugere que nesses países há uma forte preocupação pela migração irregular, que, se tratando de brasileiras, é altamente vinculada ao estigma da prostituição” (Piscitelli, 2006. 67). E conclui que os aparelhos de repressão ainda não conseguem lidar de maneira satisfatória com as supostas vítimas de tráfico humano chegando em alguns momentos a vulnerábilizá-las. O Impacto das Ações de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas envolvendo Crianças e Adolescentes A Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial (PESTRAF) identificou o fluxo de crianças e adolescentes traficados para fins de exploração sexual comercial. Nas 110 rotas de tráfico interno, intermunicipais e interestaduais, identificou-se um número de adolescentes maior do que o número total de crianças (até 12 anos) e mulheres adultas juntas (Leal e Leal, 2002). Durante o ano de 2006, foi lançado o programa de capacitação, financiado pela uSAID (cooperante americana), para desenvolver uma metodologia de referência nas redes de serviço em 11 cidades, com o foco nos abrigos para crianças e adolescentes até 18 anos vítimas de tráfico interno para fins de exploração sexual. A escolha pela assistência às crianças e adolescentes foi feita para evitar qualquer dilema em relação aos fundos da uSAID – considerando que os fundos para iniciativas de prevenção a HIV/AIDS e antitráfico são condicionadas aos parceiros locais que devem se opor ao trabalho sexual comercial. O Programa de Assistência a Criança e Adolescente Vítima de Tráfico para Exploração Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 61 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. Sexual da Partners of the Américas reconhece que: “o programa foca em criança até 18 anos que são vítimas de tráfico para fins de exploração sexual. No caso de uma criança ou adolescente você não precisa debater a questão da prostituição voluntária, pois existem parâmetros legais para proteção contra o que é considerado crime. No caso de adultos, essa é uma questão mais complexa, que envolve outros pontos”. O programa da uSAID assiste apenas as crianças e adolescentes traficadas dentro do Brasil para a exploração sexual. Vale destacar que foi observado um novo fenômeno acerca do tráfico de crianças, especialmente relevante no país do futebol. O Relatório do Parlamento Europeu, de 2007, sugere que “serão necessárias disposições adicionais com vista a assegurar que a iniciativa relativa aos jogadores formados nas próprias escolas dos clubes nos conduza ao tráfico de adolescentes, com alguns clubes a proporem contratos a jogadores muito jovens (menos de 16 anos de idade)”, (Belet, 2007, 10). Finalmente, considerando os procedimentos criminais em geral, a justiça brasileira garante automaticamente algum sigilo em casos envolvendo crianças e adolescentes, apesar desse tipo de estratégia também poder ser requisitado em determinadas circunstâncias em processos civis e criminais. Para adultos, contudo, esse não é um procedimento padrão e as vítimas e testemunhas normalmente têm sua identidade exposta durante o processo legal, não recebendo nenhum suporte especial, sentindo-se, portanto, inseguras e apreensivas. O Impacto das Iniciativas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas nas Comunidades Indígenas O Brasil é um país cujas dimensões territoriais do Brasil causam preocupação no que diz respeito ao tráfico de seres humanos, especialmente considerando as remotas comunidades indígenas. Apesar da falta de informações específicas sobre tráfico envolvendo pessoas de comunidades indígenas brasileiras, algumas questões têm recebido certa atenção. A exploração sexual 62 e prostituição de jovens mulheres e adolescentes indígenas, por exemplo, têm provocado algumas poucas reações por parte de instituições oficiais como a FuNAI (Fundação Nacional do índio) e FuNASA (Fundação Nacional de Saúde). O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) destaca casos de exploração sexual em diferentes Estados, como Paraíba, Mato Grosso do Sul e Paraná. “Na Paraíba, o crescimento desordenado do turismo no território indígena favorece a infiltração do crime organizado e o aliciamento de meninas para a exploração sexual” (CIMI, 2006). De acordo com o Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos/ MS, o problema é particularmente sério na região Centro-Oeste do Mato Grosso do Sul, onde mulheres e adolescentes indígenas estão se prostituindo e sendo usadas para o tráfico internacional de drogas. Constituí-se em uma enorme preocupação o recrutamento de crianças indígenas pelos traficantes de drogas e outras organizações criminosas. “Em Dourados (MS), uma jovem de 15 anos foi aliciada por traficantes e obrigada a se prostituir para pagar pelas drogas que usa” (CIMI, 2006). Recente reportagem publicada em um dos mais importantes jornais do Brasil denuncia o recrutamento de crianças brasileiras da fronteira da Amazônia com Colômbia. Pelo menos 03 (três) municípios (Santo Antônio de Iça, Atalaia do Norte e São Gabriel da Cachoeira), reportaram o recrutamento de adolescentes brasileiros para as guerrilhas colombianas. O Coordenador de Operações Especiais de fronteira da Polícia Federal (COESF) declarou inadequadamente que “os adolescentes não foram forçados a se juntar às FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), mas sim seduzidos pelo dinheiro oferecido pela organização, pelo que sabemos, as FARC não pagam o que prometem” (Coordenador da COESF in Gripp, 19 de dezembro, 2006) Diante do acima exposto pode-se concluir que o tráfico e a exploração de pessoas de comunidades indígenas continuam sem merecer a devida atenção do poder público – e muito menos da comunidade acadêmica por se tratar de uma questão tão marginalizada quanto às próprias comunidades indígenas no Brasil. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL Conclusão “Não é suficiente declarar solenemente os direitos”. humanos, é necessário promovê-los, ensiná-los e protegê-los...” Proteger os direitos humanos, prevenindo e enfrentando o tráfico de seres humanos é uma tarefa extremamente difícil e ambiciosa. Principalmente no que diz respeito ao tráfico de mulheres, por ensejar lucros altíssimos, superados somente – em termos de atividade criminosa – pelo tráfico de armas e de drogas (dados da uNODCP). Além disso, as pessoas traficadas na maioria dos casos não se consideram vítima, quer por não possuir a verdadeira noção de que estão praticando contra elas um crime, ou, ainda, por sentir-se francamente seguras de que foi livre sua opção de aceitar as sedutoras propostas. Por oportuno, vale salientar que dada à situação de ilegalidade das vítimas no país de destino, não tem elas condições de reivindicar seus direitos. Os seres humanos vítimas do Tráfico de Pessoas, ao chegar ao país de destino, têm os documentos confiscados e são forçados a trabalhar em condições miseráveis, mediante pagamento irrisório a pretexto de que devem quitar uma dívida pretensamente contraída com passagens, roupas entre outros objetos. Em breve espaço de tempo, percebem que jamais irão conseguir pagar tais dívidas, transformando-se em verdadeiras escravas dos aliciadores, inclusive impedidas de sair do local em que se encontram confinadas, bem como proibidas de manter qualquer tipo de comunicação com amigos e/ou familiares. O incremento na prática desses tipos de crime revela que não há limites à violência contra pessoas frágeis e indefesas do poderio das organizações criminosas globalizadas. “O drástico nível de desigualdades social no Brasil e a falta de oportunidade de emprego são fatores que impulsionam brasileiros a deixar suas casas e seu país” (tradução não oficial, Almeida; Leite e Nederstigt, 2006,34). Essa causa natural deveria ser a primeira e central observação de qualquer conclusão sobre tráfico interno e internacional de pessoas. Não somente por ser uma questão óbvia, mas por nos lembrar que os esforços antitráfico poderão, na verdade, não ter nenhum efeito real, mas apenas um efeito paliativo, promovendo pouca assistência, sem nenhuma providência tomada contra a contínua exploração do ser humano. Estes são os resultados, em grande parte, das atuais políticas macroeconômicas e sociais que se aglutinam ao crescimento ilimitado do capitalismo e da globalização, baseada no princípio do mercado livre e de políticas de nãointervenção pelo Estado. Sugere-se, portanto, que o foco na discussão sobre a efetividade das medidas de enfrentamento ao tráfico de pessoas esteja voltado para as contradições entre os esforços antitráfico, por um lado, e as macro-políticas que fertilizam as causas do tráfico humano, por outro – causas que podem diluir as ações de enfrentamento ao tráfico em meros simbolismos. Pessoas sem acesso a educação, saúde e especialmente emprego ou segurança social naturalmente procuram soluções práticas. Elas podem optar corajosamente pela migração com forma legítima de procurar melhores condições de vida, necessariamente aceitando os riscos, incluindo aqueles relacionados à migração irregular, à contratação de contrabandistas e possivelmente acabando no tráfico de pessoas. Prevenir pessoas de migrar, além de ser iniciativa um tanto ingênua no mundo globalizado, viola os direitos de liberdade de locomoção e o direito de deixar qualquer país (artigo13 da Declaração Universal de Direitos Humanos). um dos maiores desafios para o governo brasileiro será a implementação da Política e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no sentido de garantir a eficácia das ações planejadas com vistas à estruturação de uma política pública e de direitos humanos a ser desenvolvida em parceria entre sociedade civil e poder público. Os esforços governamentais e não-governamentais no enfrentamento ao tráfico de pessoas estão diretamente ou indiretamente financiados e programados por organismos governamentais internacionais, governos estrangeiros ou por organizações não-governamentais. O interesse internacional frente aos esforços antitráfico no Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 63 MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B. Brasil se tornou evidente apenas há alguns anos, e pode ser bem-vindo quando envolve o intercâmbio de informações, boas práticas, acordos bilaterais, capacitações e recursos financeiros, a serem gastos de acordo com as prioridades brasileiras. um grande desafio a ser enfrentado é o fato de algumas instituições brasileiras, bem como a mídia, ignorarem a diferença entre prostituição forçada e exploração sexual de um lado, e a prostituição voluntária de outro. Essa questão torna-se mais complicada se misturada com o turismo sexual e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Além disso, conceitos associados, porém diferentes, como contrabando de pessoas e a imigração irregular permeiam a discussão, nem sempre contribuindo para um debate produtivo. Essas confusões têm um impacto negativo no desenho e implementação de estratégias adequadas e pertinentes no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Isto é, deve-se ter em mente que medidas de proteção para crianças e adolescentes explorados sexualmente ou traficados, como as iniciativas da uSAID, não podem ser aplicadas automaticamente a adultos traficados, uma vez que adultos devem ser assistidos de forma diferenciada. Certamente, deve-se reconhecer e apreciar que o tráfico internacional de pessoas e o contrabando de pessoas foram retratados recentemente na televisão brasileira, pela primeira vez, pelas populares e influentes telenovelas. No entanto, a diferença existente entre essas duas questões ainda não está clara para o público geral. Destaca-se também, como uma excelente prática a ser replicada a atuação do Instituto Latino-americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos – ILADH na implantação de Comitês interinstitucionais formados pela sociedade civil e pelo poder público nos estados indicados pela Interpol como sendo rota do tráfico de seres humanos no Brasil, além da formação de uma rede de suporte psicosocial as vítimas desse tipo de modalidade criminosa. O ILADH vem evidenciando esforços no sentido de fortalecer a base social e política desse Sistema, objetivando a consolidação de uma política pública de Estado, e não de governos. 64 Trata-se, portanto, de uma construção coletiva, edificada com consagração de uma política pública que vem propiciando a preservação da integridade física e psicológica das vítimas que exercem a sua cidadania, ajudando a elucidar ações do crime organizado transcontinental, considerados relevantes para a história mundial dos Direitos Humanos. Finalizando, vale destacar uma conclusão significativa, no tocante às questões migratórias, o fato de que quando há poucas oportunidades de migração regular e um excesso de fatores que impulsionam a migração, pessoas em situação de vulnerabilidade serão mais facilmente rendidas por redes de tráfico humano e contrabando. Portanto, o Brasil como um país de origem e de destino, ao promulgar o novo Estatuto do Estrangeiro baseado na afirmação dos direitos humanos, a livre locomoção dentro da região do MERCOSuL e a rápida ratificação da Convenção Internacional sobre a proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias, deu um grande passo no enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Desafios/Perspectivas O atual cenário político brasileiro vem investindo na construção de políticas voltadas à prevenção e ao enfrentamento ao tráfico de seres humanos. E a sociedade civil tem um papel de destaque nesse cenário. O tráfico de pessoas voltou à agenda política pelo Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O aspecto multidimensional do tráfico de pessoas é reconhecido, bem como ministérios são convidados a participar da elaboração das iniciativas acima referidas. Todas as formas de exploração ao tráfico de pessoas e mencionadas no Protocolo Antitráfico Humano, incluindo o trabalho forçado e práticas similares à escravidão, e a remoção de órgão, são oficialmente consideradas tráfico de pessoas. É importante destacar, também, que o Brasil vem se tornando uma referência internacional, de acordo com a OIT, no combate ao trabalho escravo, o que poderá facilitar a implementação de boas práticas (assim com a prevenção de más Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010 O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL práticas). O conhecimento brasileiro acerca da erradicação do trabalho escravo, apesar das críticas plausíveis, é um grande trunfo no desenvolvimento de ações conjuntas para o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. A prostituição forçada e o trabalho escravo são problemas distintos, porém, com muitos elementos em comum; portanto, as estratégias de enfrentamento poderão também ter pontos em comum, evitando, entretanto, a fragmentação e superposição de ações. O Protocolo Antitráfico Humano claramente considera os dois tipos de exploração de pessoas. A existência de dados indiscutíveis acerca de que tais problemas se desenvolvem em terreno de atuação de redes criminosas transnacionalmente organizadas leva à constatação de que a responsabilidade pelo seu enfrentamento deve ser assumida em nível global, com a colaboração de toda a comunidade com maior ênfase para os países diretamente envolvidos, quer na condição de exportadores, quer na de destinatários. Vale destacar a relevância para o Brasil de um projeto de lei que tipifique o tráfico de pessoas como crime, além da criação de um Sistema Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 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Num segundo momento, demonstro a realidade das prisões no Brasil com relação ao contingente e os tipos sociais que mais são pegos pela lei penal. Por último, alerto sobre a possibilidade constante de rebeliões nas prisões em todo País. Palavras-chave: Política criminal. Prisões. Lei penal ABStrACt: In this article, at a first moment, I argue on the main existing problems in the Brazilian prisons in relation to the inhuman and degraded treatment excused the imposed a fine on ones. At as a moment, I demonstrate to the reality of the prisons in Brazil with regard to the contingent and the social types that more are to catch for the criminal law. Finally, I alert on the constant possibility of rebellions in the prisons in all Country. Keywords: Criminal policy. Prisons. Criminal law. 1. introdução A política criminal carcerária no Brasil sempre ocorreu de maneira descolada das políticas públicas de inclusão ou de ressocialização dos apenados. A história do tratamento desumano, degradante, criminalizador e fossilizador *SGT da PMCE 5ª CIA/1ºBPM; Mestre em Políticas Públicas e Sociedade – uECE (2008), Mestre em Planejamento e Políticas Públicas – uECE (2007); Especialista em História e Sociologia – uRCA (2006) e Graduado em História – uECE (2002). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 67 xAVIER, A. R. no sistema carcerário brasileiro vêm de longe. Sob as concepções do Direito Penal postivistalegalista, a política criminal e o Sistema Penal Brasileiro – SPB padece de políticas públicas voltadas para o respeito e a dignidade da pessoa humana. Vivemos atualmente diante de duas questões cruciais no País com relação à violência criminal: a primeira diz respeito ao aumento descontrolado dessa violência em todos os espaços. A segunda questão que também é derivada da primeira paira na adoção de política criminal sempre mais dura aumentando cada vez mais a superlotação carcerária. Na realidade é possível se dizer que no Brasil nunca houve política criminal planejada, estudada, direcionada e atualizada para a área carcerária. Como conseqüência mais visível, vez por outra, há erupções de megarebeliões e o avanço do Crime Organizado se torna uma ameaça à soberania do Estado Democrático de Direito a partir das penitenciárias. Foi o caso das rebeliões em quase todos os presídios dos Estados brasileiros e os ataques a alvos civis e a agentes do poder público ocorridos em (2006), comandados pelas duas maiores organizações criminosas do Brasil: Primeiro Comando da Capital – PCC, em São Paulo e Comando Vermelho – CV no Rio de Janeiro. Neste sentido, a função das prisões no Brasil não é ressocializar apenados, mas, castigar desumanamente e transformar delinqüentes de pequenos delitos em criminosos em potencial. É preciso saber qual o sentido das prisões respondendo a três perguntas básicas: por que punir? A quem punir? Como punir? 2. modelo do sistema penitenciário na sociedade disciplinar Segundo Foucault (2001a), o modelo do novo sistema penitenciário surgiu na Europa na passagem do século xIII para o século xIx e serviu, entre outras coisas, como um laboratório para constituição de um corpo de saber sobre o criminoso e seus delitos. As prisões desse novo modelo carcerário são tecnologias políticas típicas do novo modelo de Sociedade: a Disciplinar, surgida no final do século xVIII, por ocasião da 68 instalação do Estado-Nação (pós-Revoluções Americana e Francesa) em substituição a Sociedade de Soberania do Estado Absolutista. Segundo ainda Foucault, inicialmente, as prisões foram criadas para vigiar, punir e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta, limitar seus espaços e controlar o seu tempo. Para cumprir esse objetivo, as prisões necessitavam de um projeto arquitetônico elaborado pelo empirista e jurista inglês Jeremy Bentham, em fins do século xVIII, descrito por Foucault: Façamos uma breve revisão do funcionamento arquitetônico do panopticon. Ele consiste num amplo terreno com uma torre no centro e, em sua periferia, uma construção dividida em níveis e celas. Em cada cela, duas janelas que permitem a vigilância das celas. As celas são como ‘pequenos teatros’, onde cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O detento, deste modo, torna-se visível ao supervisor, porem apenas a este, ele é privado de qualquer contato com as celas contíguas. Ele é ‘objeto de uma informação, jamais sujeito numa comunicação’.... Foucault ressalta que isto se dava através da indução do detento a um estado de objetividade, de permanente visibilidade. O detento não pode ver se o guarda está ou não na torre, portanto, deve se comportar como se a vigilância fosse constante, infinita e absoluta. A perfeição arquitetônica é tal que, mesmo que o guarda não esteja presente, o aparelho de poder continua a funcionar (apud DREYFuS & RABINOW, 1995, p. 207). O poder panóptico de Bentham é contínuo, disciplinar e anônimo podendo ser acionado por qualquer um que esteja na condição de fazê-lo e qualquer um pode estar sujeito a seus mecanismos. Se esse poder panóptico funcionasse infalivelmente não haveria violência nas prisões, pois os presos, por não saberem quando estão sendo vigiados tornar-se-iam guardiões de si próprios. Conforme Foucault, o panóptico produz, ao mesmo tempo, saber, poder, controle do corpo e controle do espaço, numa tecnologia Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS disciplinar integrada. É um esquema de poder de constante vigilância de seus habitantes. É uma tecnologia do poder disciplinar. Sem dúvida, o panóptico sendo, ao mesmo tempo, vigilância e observação, segurança e saber, isolamento e transferência, encontrou, na prisão, o lugar ideal para sua realização. No entanto, Uma dimensão extremamente importante do funcionamento do sistema de prisão é o fato de que ele nunca conseguiu cumprir suas promessas. Desde o seu nascimento e até o presente, as prisões não funcionaram. A descrição de Foucault do número de reincidências e a uniformidade da reforma retórica é tocante. As prisões não corresponderam às exigências para as quais eram as únicas qualificadas: produzir cidadãos normais a partir de criminosos empedernidos (idem, p. 214). Na visão Foucaultiana a análise deve girar não em torno do fracasso das prisões, mas a que objetivos ou lições se pode tirar com os supostos fracassos (que ao final nem fracassos são). Neste caso, seria necessário supor que a prisão e os castigos não sejam destinados a suprir as infrações, mas antes, a “distingui-las, distribuí-las, utilizá-las; que eles visem, nem tanto a tornar dóceis aqueles que estão prontos para transgredir as Leis, mas que eles tentem organizar a transgressão das Leis numa tática geral das sujeições” (idem, ibidem). Com efeito, conforme Deleuze (1981), a partir, sobretudo da 2ª Guerra Mundial consolidou-se um novo modelo de Sociedade, a de controle em razão das crises dos estabelecimentos de confinamento (escola, fábrica e prisões). Neste sentido, nesta sociedade o controle social terá que acompanhar os avanços tecnológicos podendo, inclusive, o apenado ser acompanhado no cumprimento de sua sanção por meio de chips, coleras eletrônicas, etc. 3. A realidade das prisões no Brasil A indistinção de infrações penais: a falta de distribuição eqüitativa e justa e a falta de aproveitamento de infratores menos periculosos nas prisões brasileiras vêm, ao longo do tempo, transformando o Sistema Penitenciário Brasileiro numa constante escola de aperfeiçoamento para violência criminal em todos seus aspectos. A prática indiscricionária de amontoar presos nas prisões no Brasil vem de longe. Na década de 1930 e durante o Regime Militar, por exemplo, o autoritarismo político dos governantes permitiu jogar nos cárceres pessoas que tinham ideologias partidárias (presos políticos) junto com os presos condenados por infrações penais ou presos comuns. O contato dos presos políticos com os condenados comuns contribuiu e muito para conscientização e reconhecimento de direitos sempre negados aos reclusos comuns. Aqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiu muitas lições do contato havido na década de 1930 com os membros da Aliança Nacional Libertadora encarcerados na Ilha Grande. quando os presos políticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do Estado Novo, deixaram nas cadeias presos comuns politizados, questionadores da causas da delinqüência e conhecedores dos ideais do socialismo (LIMA, 1991, p. 27). A história do presídio Cândido Mendes situado na Ilha Grande no Estado do RJ demonstra a dura realidade do Sistema Penitenciário no País. A cadeia havia sido criada durante a primeira República, ainda no contexto das Sociedades Disciplinares analisadas por Michel Foucault. Nela existia um posto de fiscalização sanitária para detectar males em navios que vinham da Europa e da áfrica, como a febre tifóide. Na década de 1920, o presídio Cândido Mendes servia para presos idosos e para aqueles que estavam prestes a terminar suas penas. Porém, a partir de 1964, com o advento do regime militar o presídio foi transformado em prisão de segurança máxima onde se juntou o bandido dito irrecuperável com o velho presidiário, que trabalhava como colono nas lavouras em torno do presídio. Isto contraria tanto o projeto panóptico arquitetônico de Bentham como as intenções de possível justiça. A situação carcerária no Brasil não somente se constitui num caos, mas tende a se transformar numa erupção constante de megarebeliões. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 69 xAVIER, A. R. As freqüentes rebeliões e motins que ora estão ocorrendo nos presídios e cadeias públicas no Brasil continuarão acontecendo com maior força, ainda. quando em 1971, na França, Foucault diagnosticou que as prisões iriam “pegar fogo”, muitas autoridades e estudiosos da época o ignoraram. Porém, O início de uma onda de motins que se estendeu pelos estabelecimentos penitenciários franceses durante o inverno de 1971-1972. Mais de trinta canais de detenção e centrais tornaram-se palco de greves, de motins, de sit-in. Esses movimentos que serão sucedidos pelos de 1973, estão na origem da reforma penitenciária de meados dos anos 1970.... Os detentos exatamente porque detentos e humilhados e usados e explorados, tornaram-se uma força coletiva em face da administração. Para Foucault, esta força dava testemunho do início de um processo, essa sublevação era a primeira manifestação de ‘uma luta política encetada contra todo o sistema penal pela camada social que era sua primeira vítima’ (GROS, 2004, pp. 17 e 19). Esses fatos demonstraram o quanto Foucault estava correto em sua análise e quanto acreditava que o poder, mesmo sendo o de dominação sobre apenados precisa ser dosado coordenadamente. Para Foucault o que se tem de analisar não é uma teoria ou um conceito sobre o poder, mas como ele opera. Para ele a dominação não é a essência do poder, mas que o poder se exerce tanto sobre o dominado como sobre o dominante. É possível perceber que há nas relações de poder um processo dialético que é transferido às relações sociais proporcionando a auto-formação ou a auto-obediência. Nesta ótica, as relações de poder operam de forma objetiva, intencional, estratégica, gradual, lógica e articulada. É desta forma que o panoptismo de Jeremy Bentham (1791), tomado por Foucault, constituise numa forma geral e definidora das relações de poder com a vida cotidiana nas Instituições Disciplinares, especificamente nas prisões. quando não se compreende e não se segue as normas de como o poder deve ser operado este pode causar grandes resistências, superiores as suportáveis e 70 aí o exercício do poder não produz, mas provoca o caos. É nesse aspecto que o autoritarismo das leis e do poder público no Brasil tem proporcionado megarebeliões e motins constantes nas penitenciárias e cadeias por todo o País. O poder não é uma mercadoria, uma posição, uma recompensa ou um trauma, é a operação de tecnologias políticas através do corpo social.... Para compreender o poder e sua materialidade, seu funcionamento diário, devemos nos remeter ao nível das micro-práticas, das tecnologias políticas onde nossas práticas se formam.... O poder não estar restrito às instituições políticas. O poder representa um ‘papel diretamente produtivo’, ‘ele vem de baixo’, é multidirecional, funcionando de cima para baixo e também de baixo para cima.... Na prisão, tanto os guardas quanto os prisioneiros são alocados sob as mesmas operações específicas de disciplina e vigilância, sob as restrições concretas da arquitetura da prisão (DREYFuS & RABINOW, pp. 203-204). O Brasil administra um dos maiores sistemas penais do mundo ficando entre os dez. A população carcerária está distribuída em vários estabelecimentos carcerários, incluindo penitenciárias industriais terceirizadas, presídios e cadeias públicas, casas de detenção, distritos e delegacias policiais, colônias agrícolas, centros de observação e recuperação, casas de albergados, hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e os núcleos para menores. As cadeias públicas, que parecem mais verdadeiros calabouços, estão repletas de presos. As penitenciárias, presídios públicos ou terceirizados, casas de albergados e até as colônias agrícolas estão com excedentes de apenados. Segundo pesquisa divulgada pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, no último ano do governo de FHC, 2002, o sistema carcerário brasileiro abrigava 239.345 pessoas, entre homens e mulheres. Em dezembro de 2006, o registro era de 401.236 apenados, entre homens e mulheres. Isto significa um aumento de 67% a mais de presos. Na variável homem/mulher verificou-se uma estabilidade, ou seja, em 2002, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS 95,7% dos presos eram homens, enquanto em 2006, eram 94,25%. A pesquisa começou em 2000 e o crescimento foi constante, mas a partir de 2003, segundo Maurício Kuehne, diretor do DEPEN, o aumento foi significante. Isso ocorre, segundo Kuehne, porque entram mais presos do que saem no sistema. É registrado, em média mensal, um excedente de 3.000 (três mil) presos no sistema carcerário. Atualmente, em razão do aumento do fluxo carcerário, o sistema penitenciário do Brasil abriga 103.433 presos a mais do suportável (DIáRIO DO NORDESTE, 27/03/2007, P.16.) Apesar das garantias de proteção e respeito à pessoa humana relativa à população carcerária constar na Constituição Federal (art.5º), de 1988, incluindo respeito e proteção à integridade física e moral, na prática isto não ocorre. Bem antes da CF de 1988, o CPB, que é de 1940, em seu artigo 38 estabelece: “Aos presos serão assegurados todos os direitos não atingidos pela lei”. Além desses instrumentos legais existe uma Lei específica destinada, exclusivamente, ao sistema carcerário, a Lei de Execuções Penais – LEP (Lei Nº 7.210, de 11 de 07 de 1984). Esta Lei, em tese, é o guia essencial à Administração penal e regulamenta, normatiza e prevê direitos e deveres dos apenados e dá outras providências. Em seu artigo 10, a LEP estabelece que a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. A LEP foi criada com o objetivo de proteger os direitos substantivos e processuais daqueles que estão no cárcere cumprindo penas, garantindo-lhes, inclusive, assistência jurídica, de saúde, educacional, sócio-cultural, religiosa, material e trabalhista. A assistência material prevista nos artigos 12 e 13 da LEP prevêem que ao preso e ao internado será fornecido alimentação, vestuário e instalações higiênicas e o cárcere disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração carcerária. Vale ressaltar que é assegurado ao detento, no artigo 28 da LEP, o trabalho remunerado, porém, este trabalho não está sujeito ao regime da Consoli- dação das Leis do Trabalho – CLT. As normas da LEP foram inspiradas no modelo das regras mínimas para o tratamento de prisioneiros estabelecido pela ONU. Com efeito, o preceituado nesses dispositivos legais não é aplicado na prática no cotidiano das prisões em todo o Brasil. Devido a isto, o sistema penal no País e sua administração têm sido focos de ferrenhas críticas por órgãos ligados aos Direitos Humanos e pela imprensa nacional e internacional. São inúmeros os pressupostos de que o sistema penitenciário brasileiro encontrase em crise e chegando à beira do caos. Essas crises vão desde as incompatibilidades do sistema legislativo punitivo ao sistema de administração carcerária. Deste modo, a questão carcerária tem preenchido páginas e está sempre em constante debate por estudiosos e autoridades do poder público na tentativa de se encontrar solução. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, por exemplo, adotou ações complementares para a administração criminal e penitenciária estabelecidas nas resoluções Nºs. 016, de dezembro de 2003 e 03, de setembro de 2005. O objetivo do CNPCP é regulamentar com eficiência a administração da Justiça Criminal na execução das penas e de medidas de segurança aos presos, prevenindo a violência criminal dentro dos presídios e realizando inspeção e fiscalização para que presos de dentro das prisões não comandem ações criminosas extramuros dos diversos presídios espalhados pelo Brasil. Com efeito, o sistema carcerário no Brasil padece de carências que têm se acumulado ao longo do tempo começando pela falta de construção de presídios, sobretudo na esfera federal. Além disso, as celas dos presídios brasileiros não estão de acordo com as normas regulamentares. Ao invés da construção de celas presidiárias individuais, com 6 (seis) metros quadrados, com pia, ventilação, acompanhamento individualizado do preso, parlatório e trabalho o cárcere no Brasil, em regra geral apresenta um flagrante quadro de violação dos direitos da pessoa humana. São celas esburacadas, úmidas, fedidas, sem qualquer higiene que comportam dezenas de seres humanos apenados, quando deveria comportar 4 (quatro) ou 5 (cinco) presos, no máximo. É Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 71 xAVIER, A. R. possível dizer que o apenado no Brasil é punido duplamente: quando sua sentença é selada nos Tribunais extramuros, significa apenas a primeira porque a outra e mais cruel lhe aguarda nos intramuros dos famigerados cárceres de todo o País. Existem, em regra geral, 5 (cinco) problemas graves na situação carcerária no Brasil: superlotação, tratamento desumano, falta de trabalho, corrupção e Crime Organizado. O sistema penal, em um significativo número de casos, especialmente em relação aos delitos patrimoniais – que são a maioria -, promove condições para a criação de uma carreira criminal. Particularmente, dentre as pessoas originárias das camadas mais humildes da sociedade, o sistema seleciona aqueles que, tendo caído em uma primeira condenação, surgem como bons candidatos a uma segunda criminalização, levando-os ao ingresso no rol dos desviados, como resultado do conhecido fenômeno psicológico do “bode expiatório”. Induvidosamente, isto constituiu uma inqualificável violação dos Direitos Humanos, e o sistema penal, ao insistir com a pena, nada mais faz do que engrossar esse rol, e até leva o indivíduo à destruição (ZAFFARONI & PIRANGELI, 1997, p. 76). Apesar de a política criminal ter por objetivos: desenvolver efetiva política de promoção do homem no plano social; defender a instituição das penas alternativas; apoiar a descriminalização e a despenalização; atentar para as avançadas modalidades criminosas, como poluição sonora, do ar, das águas, crimes digitais e Crime Organizado; disciplinar eticamente os programas de televisão que banalizam a violência e o sexo; ampliar as vagas do sistema penitenciário, evitando o recolhimento de condenados e presos provisórios em delegacias policiais; construir mini-prisões para abrigar no máximo 300 reclusos; construir presídios de segurança máxima em regiões fronteiriças ou em zonas de grande concentração de criminalidade violenta; promover permanentemente assistência jurídica aos condenados, aos presos provisórios, aos internados e aos egressos, através das Defensorias Públicas, 72 dos Serviços de Assistência Judiciária mantidos pela OAB, assim como Escritórios de Prática Forense dos Cursos ou Faculdades de Direito; e outros, a realidade é justamente o contrário. Os condicionamentos do Sistema Penal no Brasil, além de promover a destruição psíquica e física da pessoa humana, não somente sujeita-a a um processo de criminalização, mas, submete-a a um processo de fossilização. Isto é feito na medida em que esse sistema ... se vale de uma seleção de pessoas dos setores mais humildes e, .... Este condicionamento, ainda muito pouco estudado, é, todavia, gravíssimo. utiliza-se de um grupo de pessoas de baixa condição social, que perde o seu grupo de identificação originário e o leva à adoção de permanentes atitudes de desconfiança, que se corrompa, e essa corrupção o obrigue a uma solidariedade incondicional para com o grupo artificial e se veja submetido a um regime quase militar: e, conseqüentemente, à arbitrariedade em relação às condições e estabilidade laborativa, serve como “bode expiatório” para os excessos do sistema, e, por fim, torna-se mais exposto à violência física que esse mesmo sistema cria (ZAFFARONI & PIRANGELI, 1997, p. 76). No Brasil, as prisões e as detenções, muitas vezes ilegais, apesar das restrições constitucionais, continuam ocorrendo banalizadamente contra a maioria da população trabalhadora, pobre e não branca. A forma indiscriminada de detenção e prisão que são realizadas no País configura-se um desrespeito deliberado, apesar do Estado Democrático de Direito, dos preceitos constitucionais e dos Direitos Humanos. Nas prisões, apesar de haver uma lei que regularmente a administração penal, a LEP, as atrocidades de violências continuam ocorrendo contra presos, sendo suprimido destes direitos e garantias constitucionais. Neste sentido a prisão no Brasil é uma instituição ineficiente, beligerante e degradante, com recursos mal administrados e dominados pela corrupção. Se os organismos policiais e o Judiciário não sofreram reformas muito menos o sistema penitenciário. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS 4. Considerações finais Bibliografia Não sou adepto de nenhuma impunidade. Todavia, não se pode esquecer que a pena, para ser justa precisa ter apenas o grau de rigor suficiente para afastar o homem da vontade do impulso ao crime. É válido acreditar que não existe homem que em sua sã consciência hesite entre o crime, apesar das vantagens que este anseie, e o risco de perder para sempre a liberdade. Devemos está cônscios de que nenhum tormento pode ir além da capacidade da resistência humana, limitada pela sensibilidade e a organização do corpo humano e que os castigos mais cruéis, podem provocar, às vezes, a impunidade. Se as leis são tão cruéis, correm o risco de serem modificadas rápido ou não poderão mais vigorar e punir o crime. Destarte, é preciso repensar a realidade das prisões no Brasil de modo a dispensar políticas públicas no sentido de não mais tratar seres humanos como lixo ou coisa parecida. Se quisermos avançar no almejado Estado Democrático de Direito teremos que começar por respeitar os Direitos da pessoa humana que constantemente estão sendo desrespeitados nas prisões por todo este imenso País. Advirto também que apesar de termos tido uma certa calmaria de rebeliões após os episódios de 2006, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, é bom começarmos a discutir outras estratégias visando não só conter as rebeliões, mas evitá-las em seu nascedouro. O fim do ano se aproxima e nesse período poderemos ter, talvez, megarebeliões nunca visto antes. Não estou querendo fazer profetismo algum, porém nunca é demais a prevenção, principalmente quando tratamos de tão complexa questão. É oportuno citar o ex-presidiário e romancista russo Fiódor Dostoievski (2003), quando afirmava que é possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões. Indubitavelmente, qualquer pessoa ao visitar uma das prisões brasileiras concluirá sem qualquer hesitação: o Brasil está mergulhado numa imensa barbárie social. I – Livros e periódico DELEuZE, Gilles. Conversações – 1972 – 1990. Rio de Janeiro: ed. 34, 1992. 1981. DIáRIO DO NORDESTE, 27/03/2007. DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Crime e Castigo. São Paulo: nova Cultural, 2003. DREYFuS, Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carreiro. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1995. FOuCAuLT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2001a. __. Sobre a Prisão. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001b. GROS, Fredéric et. al. (Orgs.). A coragem da verdade. Tradução de Marcos Marciónico. São Paulo: Parábola editorial, 2004 (Episteme; I). LIMA, Wiliam da Silva. Quatrocentos contra um – uma história do Comando Vermelho. Petrópolis: Vozes, 1991. ZAFFARONI, Eugênio Raúl & PIRANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. II - Legislação/Doutrina BRASIL. Ministério da Justiça. CONSELHO NACIONAL DE POLíTICA CRIMINAL E PENITENCIáRIA – CNPCP, resoluções Nºs. 016, de dezembro de 2003 e 03, de setembro de 2005 (Estabelece ações complementares para a administração criminal e penitenciária). Lei 2.848/ 40 (Estabelece o Código Penal Brasileiro). __. 7.210/ 84 (Lei de Execução Penal). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010 73 74 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL Artigo CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO A BuSCA PELA rEPArAção Por DAnoS AmBiEntAiS CAuSADoS Por AtiviDADES PEtroLífErAS DA trAnSnACionAL ChEvron-tExACo Em tErritórioS inDígEnAS no CASo “Maria aguinda e outros autores versus texaco: AnáLiSE DA AtuAção DA CortE nortEAmEriCAnA DE APELAçõES Do SEgunDo CirCuito Carol Manzoli Palma1 rESumo: O presente artigo pretende trazer ao conhecimento da comunidade jurídica, estudo de caso sobre uma ação proposta por grupos indígenas Equatorianos contra a companhia petrolífera Texas Company, acusada de causar danos ambientais às terras indígenas na Amazônia. A análise recairá sobre os argumentos da sentença da Corte Norte-Americana de Apelações de Segundo Circuito, que determinou seu julgamento através da doutrina do forum non conveniens. Palavras-chave: povos indígenas, petróleo, Equador, Estados Unidos, Texaco, transnacionais, forum non conveniens, jus cogens, Alien Torts Claims Act. ABStrACt: This article intends to bring to the attention of the legal community, a case study of a lawsuit filed by Ecuadorian indigenous groups against Texas Company, accused of causing environmental damage to indigenous lands in the Amazon region. The analysis will rely upon the arguments of the u.S. Court of Appeals for 1 A autora é advogada, consultora ambiental e mestranda em Direito pela universidade Metodista de Piracicaba (uNIMEP). Este trabalho é fruto de uma pesquisa bem mais ampla que vem desenvolvendo para sua dissertação de mestrado sobre os aspectos jurídico-ambientais das atividades petrolíferas. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 75 PALMA, C. M. Second Circuit sentence, which ordered its trial by the forum non conveniens doctrine. Keywords: indigenous people, petroleum, Ecuador, United States, Texaco, transnational, forum non conveniens, jus cogens, Alien Torts Claims Act. 1. introdução O processo de colonização, criação e transformação de muitos países, embora moldado com características peculiares de cada região, tem um quadro em comum que até hoje o arcabouço jurídico internacional esforça-se para proteger, priorizar, regulamentar e discutir: a possibilidade de coexistência dos povos, e o respeito às suas culturas e tradições. No Equador, os povos indígenas sofreram dominação pelo Império Inca, e depois pelos colonizadores Espanhóis. No entanto, mesmo com a extinção de certas populações indígenas por estes acontecimentos históricos, no século xIx, por volta das décadas de 50 e 60, algumas delas ainda viviam no isolamento em meio à floresta amazônica, na região oriental Equatoriana, com sua cultura totalmente preservada.2 Neste período, duas leis foram aprovadas pelo Governo Equatoriano com o propósito de abrir a região amazônica para o desenvolvimento, as Leis de Colonização e de Reforma Agrária de Terras Baldias, abrindo espaço para um novo processo de “dominação” destes povos, mas agora pelas grandes empresas que lá se estabeleceriam. 3 como os Achuar, Cofán, Huaorani, Siona-Secoya e Shuar. A TexPet operou através de um consórcio distribuído em partes iguais para ela e a Gulf Oil Corporation. No ano de 1974, o Governo da República do Equador, através da empresa estatal PetroEcuador, adquiriu 25% do direito de exploração neste consórcio. No transcorrer dos dois anos seguintes, a PetroEcuador adquiriu a parte que cabia à Gulf Oil, e se tornou a maior interveniente no consórcio. Na década de oitenta, a TexPet ainda operava uma dutovia, que em 1989 passou a ser de responsabilidade da PetroEcuador, a qual também assumiu a função de perfuração de poços na região. Em junho de 1992, a TexPet abandonou todos os seus interesses no consórcio, deixando tudo o que ainda lhe era de direito para a PetroEcuador.5 No ano seguinte à saída da TexPet, reclamantes Equatorianos entraram com a primeira de duas ações contra a Texaco em Nova Iorque, em nome de trinta mil habitantes da região amazônica. Em 1994, residentes do Peru que moravam na região a jusante de onde a TexPet praticava suas atividades, entraram com uma outra ação contra a Texaco, também na Corte Nova Iorquina, em nome de vinte e cinco mil habitantes Peruanos. Segundo Tamara Jezic aput Isabela Figueiroa, 2. As atividades petrolíferas da texaco no Equador Devido aos incentivos para o desenvolvimento da região amazônica no Equador,4 a empresa petrolífera Texaco Petroleum Company (TexPet), subsidiária da Texas Company (Texaco) iniciou suas atividades de exploração e perfuração de poços de petróleo. Nesta localidade viviam algumas comunidades indígenas, 76 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 Os efeitos ambientais, sociais, culturais e econômicos das atividades da Texaco foram devastadores. A Texaco derramou diariamente mais de 4,3 milhões de galões de águas de produção altamente tóxicas, em poços sem proteção em todo o Leste, em vez de enterrar os resíduos tóxicos em covas de grande profundidade, como faz nos Estados unidos. A Texaco também foi responsável por trinta derramamentos importantes do oleoduto Trans-equatoriano de 498 quilômetros, que se estende desde o Leste até a costa oeste do Equador, derramando 16,8 milhões de galões de petróleo diretamente no meio ambiente, mais de 1,5 vezes os 10,8 milhões de galões derramados pela Exxon Valdez A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO no estuário Príncipe William do Alaska.6 Yana Curi estudou as comunidades afetadas pelas atividades petrolíferas e suas conclusões revelaram que as mulheres de comunidades próximas aos poços e estações de petróleo apresentaram um risco de aborto espontâneo 2,5 vezes mais alto, ou seja 150% maior que as mulheres que vivem em comunidades não contaminadas.7 Doenças como cânceres de laringe, fígado, pele e estômago também foram registradas em maior quantidade pela estudiosa.8 Neste ínterim, em 1995, a despeito do processo que já corria na Corte Americana, a Texaco celebrou um acordo com o Governo Equatoriano, no qual a transnacional pagou quarenta milhões de dólares para remediação de áreas contaminadas. 3. A alegação dos reclamantes9 A reclamação das comunidades indígenas Equatorianas foi apresentada perante a Corte Distrital da região sul de Nova Iorque, em nome de Maria Aguinda e outros, e por este motivo o caso ficou conhecido como “Maria Aguinda e outros autores versus Texaco”. O juiz do caso era Vincent Broderick, e em resumo, os peticionários alegavam que as operações da Texaco poluíram as florestas e os rios da região, resultando em danos ambientais e danos à saúde dos habitantes. Sobre a possibilidade de enfrentamento da questão pela Corte Americana, os peticionários trouxeram como argumento a lei americana chamada de Alien Torts Claims Act. Buscavam a responsabilidade objetiva da empresa, com o pagamento de indenização em dinheiro, pagamento por acompanhamento médico dos cidadãos doentes e a limpeza do ambiente para acesso à água potável; argumentos como a contaminação do local ter causado a impossibilidade de realizarem pesca e caça, também permearam a petição. Dentre os demais pedidos, o de fechamento dos dutos que, segundo alega- vam, estavam abertos e abandonados; a criação de um fundo de monitoramento ambiental e o estabelecimento de padrões ambientais para futuras operações petrolíferas no Equador. Vale destacar que os reclamantes afirmaram que a remediação realizada pela corporação foi ineficiente, uma vez que apenas colocaram terra por cima dos locais afetados, continuando assim, a contaminação no solo e nos lençóis freáticos. A transnacional defendeu-se apresentando uma carta do então Embaixador do Equador nos Estados unidos, onde o mesmo afirmava que o processo apresentado nos Estados Unidos era uma afronta à soberania nacional do Equador. O argumento prioritário da Texaco, no entanto, foi a doutrina do forum non conveniens.10 Com a morte do juiz Broderick, o caso passou ao Juiz Jed Saul Rakoff que declinou da análise dos pedidos feitos por Maria Aguinda e outros, com base na doutrina trazida pela transnacional. A justificativa da Corte também foi a de que a empresa PetroEquador e a República do Equador eram atores indispensáveis no processo, e que, como não quiseram participar da demanda, esta lacuna traria soluções não equitativas. Neste contexto, o Equador entrou com uma moção para intervir a favor dos reclamantes, e submeteu através do Procurador Geral da Republica, uma declaração de que o país buscava proteger os interesses dos cidadãos indígenas do Equador, os quais foram seriamente afetados pela contaminação ambiental atribuída pela companhia Texaco. Segundo o Procurador, a intenção do Equador era a de “buscar a indenização necessária para aliviar os danos ambientais causados pela Texaco.”11 A Corte negou todos os pedidos de reconsideração feitos pelos reclamantes, e também a moção do Equador, que negava-se a se submeter às regras das Cortes Americanas, e recusava-se a abandonar sua imunidade soberana.12 Os peticionários recorreram à Corte de Apelações do Segundo Circuito para que a mesma solicitasse a apreciação de seus pedidos em primeira instância; a Corte de Apelações instruiu a Corte Distrital a sopesar independentemente os fatores relevantes que dispensariam a doutrina do forum non conveniens e reexaminar a questão, “à Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 77 PALMA, C. M. luz de todas as circunstâncias atuais, incluindo a posição do Equador com relação à manutenção do litígio”13 nos Estados Unidos. Após novos recursos e moções por ambos os litigantes, em 30 de maio de 2001, a Corte Distrital da região sul de Nova Iorque concedeu a moção à Texaco, declinando assim, dos pedidos dos reclamantes; destacamos na decisão da Corte, o argumento de que “os Estados Unidos não têm nenhum interesse público em acolher uma ação internacional contra uma entidade americana que pode adequadamente ser buscada no local onde a violação ocorreu.”14 A discussão seguiu novamente para a Corte de Apelações do Segundo Circuito, tendo o órgão decidido não apreciar o mérito dos pedidos, pela doutrina do forum non conveniens. Balanceando os interesses públicos e privados, a Corte entendeu que, entre outras razões: a) seria oneroso para a Corte articular a tradução de testemunhos de grupos indígenas variados, com dialetos próprios; b) seria mais viável um tribunal Equatoriano visitar as áreas poluídas; c) dados médicos estão arquivados no Equador. No ano de 2003, os reclamantes endereçaram sua petição à Corte Superior de Nueva Loja, no Equador. Dezessete anos já se passaram desde que iniciaram a persecução da vitória nas Cortes judiciais, e as comunidades indígenas ainda aguardam o desfecho de sua trágica história. 4. Análise dos argumentos da sentença da Corte Americana de Apelações do Segundo Circuito As sociedades mercantis expandiram-se a ponto de tornarem-se presentes em diversos países, com lucros bilionários. Sabemos que com relação às transnacionais, existe o chamado “Estado de origem”, ou seja, o local onde se situa a cabeça de uma empresa, e onde decisões são tomadas. Nascida neste local, a corporação vai crescendo e se instalando em diferentes países. Para Marcel Sinkondo as empresas transacionais são hoje consideradas, por alguns, como sujeitos auxi78 liares do Direito Internacional Público, interferindo, por sua importância econômica e pelo poder político internacional de fato, no organograma das instituições oficiais e impondo-se, com maior relevância do que a grande maioria dos Estados, como atores de peso no processo internacional de decisões políticas, sociais e econômicas.15 Se de um lado temos esta crescente atuação das empresas no mercado a nível internacional, juntamente com sua poderosa influência nas políticas e normas nacionais e internacionais, de outro, temos mecanismos para soluções equitativas de controvérsias. Chama atenção neste estudo a negativa pelas Cortes Americanas de apreciarem os pedidos dos reclamantes. José Cretella Neto já denunciou prática parecida, apontando que o Estado de origem “poderá alegar que a prevenção e a repressão a atos danosos ao Estado que reclamar a atuação de uma transnacional é tarefa que incumbe às autoridades onde o fato ocorreu.” 16 Completa que inexistem no plano internacional, normas primárias de cumprimento obrigatório sobre a conduta das transnacionais, com exceção das convenções sobre prevenção e combate à corrupção – sendo estas insuficientes pelas possibilidades de prejuízos resultarem de diversos atos – e a maioria das normas de conduta apenas trazidas como recomendação. 17 Muito embora existam estes obstáculos, podemos enumerar sólidas bases que reiteram o posicionamento dos Equatorianos na escolha da Corte Americana. Em primeiro lugar, a nível nacional, os Estados Unidos possuem a lei nomeada de Alien Torts Claims Act, a qual prevê jurisdição original às Cortes distritais para julgarem uma ação civil proposta por um estrangeiro caso haja um ilícito civil, cometido em violação aos direitos das nações (Law of nations - jus gentium)18 ou a um Tratado Norte-Americano. O direito das nações, originalmente chamado de direito das gentes, fundamentou-se em Roma, quando da chegada de estrangeiros da Gália, Ilíria, Germânia e Mauritânia, entre outras localidades. Tal realidade deu espaço a um direito natural materializado não mais pelo formalismo, mas sim por costumes e leis que regem os povos Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO pelo direito que lhes é próprio, ou seja, comum a todos os homens; digamos que ele é instituído por razões naturais, diferentemente de outros que são gerados por fatores mercantis, familiares ou religiosos.19 A sentença da Corte de Apelações do Segundo Circuito aponta que delitos de natureza ambiental não necessariamente violam o “direito das nações” e que o Alien Torts Claims Act não compele os Estados Unidos a fornecerem um fórum quando existir um fórum estrangeiro mais adequado. Embora o forum non conveniens seja um princípio notadamente reconhecido, entendemos que não poderia ter sido um principio hierarquicamente superior na apreciação da reclamação, porque o direito internacional possui uma abordagem com valores mais universais. Não falamos de valores que, embora inerentes ao homem, surjam como justificativa para atitudes, guerras e apropriações ilegítimas e ilegais. O problema da doutrina do forum non conveniens é, como o próprio nome já anuncia, uma questão de conveniência. Para quem não é conveniente que o julgamento seja realizado na Corte Americana? A Conveniência das grandes empresas detentoras de poderio econômico e influência política. É cediço que a questão ambiental está inserida no direito internacional, pois como sobreviveriam os povos, que outros direitos poderiam se desdobrar de sua existência, se sem um meio ambiente sadio e equilibrado a continuação da espécie humana não é possível? Teríamos um direito sem nações. um direito para ninguém, e o direito propriamente não existiria mais também, pois ele foi criado pelo homem para reger a vida humana, como fundamento da convivência harmoniosa dos seres humanos. Princípios tradicionais poderiam endossar a apreciação Norte-Americana da ação civil, pois estão inseridos em declarações universais, reconhecidas por todas as nações, justamente por conterem valores absolutos. O Artigo 16 da Declaração universal dos Direitos dos Povos, aprovada em 1976, na Argélia, elucida que “todo povo tem direito à conservação, à proteção e ao melhoramento de seu meio ambiente.” E para esta finalidade, caso haja violações, o Artigo 30 dispõe que “o restabelecimento dos direitos fundamentais de um povo, quando gravemente desconsiderados, é dever que se impõe a todos os membros da comunidade internacional.” Vale destacar ainda, que ações como as formuladas por Maria Aguinda e outros, podem ser um importante veículo de modificação do comportamento corporativo na obtenção de soluções judiciais para um número grande de pessoas. Por isso o julgamento é tão importante, já que demonstra a tendência dos países na solução de controvérsias deste tipo, destacando a atuação dos atores como as organizações não governamentais, os grupos étnicos, os governos e as transnacionais. Para o direito internacional, seria preciso um acordo que estabelecesse um limite de tempo para o julgamento de ações desta natureza, para que não aumente a insegurança e que haja uma decisão equitativa e efetiva. A reparação do dano ambiental não é uma discussão meramente financeira, mas também moral para aqueles afetados pelas atividades poluidoras, e que estão aguardando por um resultado justo. O uso do direito para impor o desenvolvimento das indústrias petrolíferas, mas não para controlar ou remediar as injúrias que elas causam, é injusto e reflete e reforça a necessidade de trabalhar o direito e a governança global. As corporações e os governos já exercitam o consentimento informado quando negociam contratos de desenvolvimento; é preciso tornar esta realidade possível no papel e na prática também aos povos indígenas, às minorias, e às diversas etnias que por diferenças culturais podem necessitar de maior atenção e proteção e que - sem coerção e manipulação - possam ter o direito de negar a criação de projetos abusivos ou que danifiquem suas terras, seus lares, suas culturas e o ambiente em que vivem.20 5. Considerações finais Em Copenhague, na reunião nações para a criação de um possível instrumento jurídico vinculante sobre mudanças climáticas, o Equador Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 79 PALMA, C. M. pediu a quantia de doze bilhões de reais para deixar de explorar mais petróleo nas regiões amazônicas. O projeto de exploração de petróleo encontra-se, em parte, localizado no Parque Nacional Yasuní, considerado um dos locais mais ricos em biodiversidade do mundo; na região também vivem comunidades indígenas com sua cultura preservada. Sabemos que existem mecanismos na indústria petrolífera que são muito mais modernos do que os existentes há vinte anos, mas projetos desta magnitude causam enormes impactos ambientais. Em 2007, após vinte anos de negociação, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, mas os Estados unidos não assinaram. A Declaração enfatiza, em seu artigo 29 que os povos indígenas têm direito à conservação e à proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos, cabendo aos Estados o estabelecimento e a execução de programas de assistência aos povos indígenas para assegurar essa conservação e proteção, sem qualquer discriminação. A Declaração destaca, no artigo 40, que os povos indígenas têm direito a “procedimentos justos e equitativos para a solução de controvérsias com os Estados ou outras partes e a uma decisão rápida sobre essas controvérsias”, bem como a “recursos eficazes contra toda violação de seus direitos individuais e coletivos”. Essas decisões deverão levar em conta “os costumes, as tradições, as normas e os sistemas jurídicos dos povos indígenas interessados e as normas internacionais de direitos humanos.” No mesmo momento em que alguns membros da comunidade internacional esforçam-se para a promoção e melhoria da globalização jurídica, e reconhecem a necessidade de proteção do meio ambiente e dos direitos humanos, destacando a interdependência e a cooperação como solução para os conflitos políticos, sociais, culturais, ambientais e financeiros, outros países andam na contramão, fechando-se para este tipo de institucionalização. O resultado será sentido quando perceberem que nos tempos atuais, não 80 há como viver de forma isolada no combate ao crime organizado, às mudanças climáticas, às catástrofes, ao terrorismo e ao desrespeito aos direitos humanos. Enquanto os países disputam poder e eficiência econômica, aquelas comunidades indígenas seguem perquirindo um resultado justo e equitativo que alivie um pouco de seu sofrimento. Cabe a nós, cidadãos e operadores do direito, a promoção de uma justiça social e ambiental que impeça novos acontecimentos como estes. 6. notas 2 BERNALl, Angelica. Power, Powerlessness and Petroleum: Indigenous Environmental Claims and the Limits of International Law. Paper presented at the annual meeting of the American Political Science Association, Marriott, Loews Philadelphia, and the Pennsylvania Convention Center, Philadelphia, PA, Aug 31, 2006. p. 7 e segs.. Disponível em: <http://www.allacademic.com/meta/ p152630_index.html.> Acesso em 05 nov. 2009. 3 Ibid. 4 Veja localização no Anexo 1. 5 Informações retiradas de united States Court Of Appeals For The Second Circuit. Archive: Aguinda x Texaco (Decision). Texaco in Equador. Disponível em: <http://www. texaco.com/sitelets/ecuador/docs/aquin da_v_texaco_d. pdf.> Acesso em 05 nov. 2009. 6 Ecuador: La campaña contra Texaco Oil, in: David Cohen et.al., Incidencia para la Justicia Social - Guía global de acción y reflexión, quito, Abya Ayala, 2001, p. 209 e segs. Apud FIGuEROA, Isabela. Povos indígenas versus petrolíferas: controle constitucional na resistência. Sur, Rev. Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 3, n. 4. Junho, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S1806-64452006000100004&script=sci_ arttext> 7 Apud Isabela Figueroa. Op. cit. p. 73. 8 Ibid. 9 united States Court Of Appeals For The Second Circuit. Archive: Aguinda x Texaco (Decision). Texaco in Equador. Disponível em: <http://www.texaco.com/sitelets/ecuador/ docs/aquin da_v_texaco_d.pdf.> Acesso em 05 nov. 2009. 10 A doutrina do forum non conveniens possibilita que uma Corte decline de sua jurisdição se entender que seja inconveniente ou que um exista um fórum alternativo o qual possa melhor analisar a questão suscitada perante o mencionado órgão. 13 Vide sentença, Op. cit., p. 8. Minha tradução e adaptação. 14 Vide sentença, Op. cit., p. 10. Minha tradução e adaptação. 15 apud CRETELLA NETO, José. Empresa Transnacional e o Direito Internacional: exame do tema à luz da globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 28. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO 16 CRETELLA NETO, José. Op.Cit. p. 191 Ibid., p. 193. 18 Hoje esta assertiva designa o Direito Internacional. 19 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 55. 20 KIMERLING, Judith. Indigenous Peoples and The Oil Frontier In Amazonia: The Case of Ecuador, Chevron Texaco, and Aguinda v. Texaco. n/c.: n/c. 2006. p. 663. 17 7. Agradecimento A autora agradece o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. (processo nº 2009/032838). 8. Bibliografia BERNAL, Angelica. Power, Powerlessness and Petroleum: Indigenous Environmental Claims and the Limits of International Law. Paper presented at the annual meeting of the American Political Science Association, Marriott, Loews Philadelphia, and the Pennsylvania Convention Center, Philadelphia, PA, Aug 31, 2006. 42p. Disponível em: <http://www.allacademic.com/ meta/p152630_index.ht ml.> CRETELLA NETO, José. Empresa Transnacional e o Direito Internacional: exame do tema à luz da globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 521p. Ecuador Judicial Site Inspections. A Detailed Look at Texaco’s Remediation Efforts and Judicial Site Inspections. Disponível em: <http:// www.texaco.com/sitelets/inspections/en/ > FIGuEROA, Isabela. Povos indígenas versus petrolíferas: controle constitucional na resistência. Sur, Rev. Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 3, n. 4. Junho, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S180664452006000100004&script=sci_arttext> Acesso em 07 nov. 2009. KIMERLING, Judith. Indigenous Peoples and The Oil Frontier In Amazonia: The Case of Ecuador, Chevrontexaco, and Aguinda v. Texaco. n/c.: n/c. 2006. 664 p. ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 296p. united States Court Of Appeals For The Second Circuit.. Archive: Aguinda x Texaco (Decision). Texaco in Equador. Disponível em: <http:// www.texaco.com/sitelets/ecuador/docs/aquin da_v_texaco_d.pdf.> Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010 81 82 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS Artigo SExuALiDADE E DirEitoS humAnoS Clara Silveira Belato 1 Eduardo Baker Valls Pereira 2 RESUMO: O presente artigo busca introduzir uma discussão acerca da relação entre Direitos Humanos e Sexualidade frente ao atual paradigma de normatização dessas temáticas no plano nacional e internacional escolhendo algumas temáticas específicas para trabalhar, partindo da discussão de Foucault acerca do que é a sexualidade. Se enfatizam os Princípios de Yogyakarta como possível instrumento internacional nesta discussão e algumas iniciativas nacionais de tratar a matéria. Palavras-chave: Sexualidade. Direitos humanos. Direitos fundamentais ABSTRACT: The present article aims to introduce a discussion about the relationship between Human Rights and Sexuality taking into account the current paradigm of regulation of these themes at national and international level; One will work with some specific issues, building on Foucault’s discussion on what is sexuality. It will be emphasized the Yogyakarta principles as a possible international instrument in this discussion and some national initiatives to address the matter. Keywords: Sexuality. Human Rights. Fundamental rights. 1. introdução O presente artigo se propõe a discutir alguns aspectos dos direitos humanos no que diz respeito à sexualidade. Para tal, sentimos a necessidade de nos colocar primeiramente as seguintes questões: O que seria a sexualidade? 1 Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva 2 Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 83 BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V. Que papel ela representa na sociedade e qual a sua relação com o Direito? Conscientes de que não existe uma resposta única para tais questões, nem um conceito definido e universal que esgote todo o significado da palavra, escolhemos como referencial teórico a obra de Michel Foucault ‘História da Sexualidade, volume I’. Em seguida, passamos ao exame de alguns mecanismos legais existentes que podem ser utilizados para a proteção dos direitos sexuais, tanto internacionalmente quanto nacionalmente, constatando que há, ainda, uma precariedade neste tipo de produção normativa nesse sentido. Em seguida e por último, achamos oportuno trazer à tona alguns casos concretos, como projetos de lei e jurisprudências, para evidenciar hipóteses de proteção e de violação de direitos humanos e aprofundarmos um pouco mais o debate. Foucault afirma que, ao contrário, nunca se falou tanto sobre a sexualidade. Nunca foi tão importante conhecê-la, falar sobre ela, descobrila, confessá-la a duras penas. O sexo, ao longo dos últimos dois séculos, se ligou expressamente à noção de subjetividade, foi figura incorporada ao homem, de tal modo que ele não mais concebe a si mesmo sem ela. Para entender a si próprio, para ter acesso a seu corpo e a sua identidade o homem passou, através de uma construção histórica, a necessariamente ter que descobrir a “verdade” sobre sua sexualidade. “É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à sua própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, o elemento oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade de seu corpo (pois ele é uma parte real e ameaçada desse corpo do qual constitui simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história) (...) Chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade naquilo que foi, durante tantos séculos, considerado como loucura; a plenitude de nosso corpo naquilo que, durante muito tempo, foi um estigma e como que a ferida nesse corpo; nossa identidade, naquilo que se percebia como obscuro impulso sem nome. Daí a importância que lhe atribuímos, o temor reverente com que o revestimos, a preocupação que temos de conhecê-lo. Daí o fato de ter se tornado, na escala dos séculos, mais importante do que nossa alma, mais importante do que nossa vida; e daí todos os enigmas do mundo nos parecerem tão leves comparados a esse segredo, minúsculo em cada um de nós, mas cuja densidade o torna mais grave do que todos. O pacto faustiano cuja tentação o dispositivo de sexualidade inscreveu em nós é, doravante, o seguinte: trocar a vida inteira pelo próprio sexo, pela verdade e a soberania do sexo. O sexo bem vale a morte.” (FOuCAuLT, 2006, p. 169-170) 2. Sexualidade ou Sexualidades? Procuremos entender melhor o que efetivamente está envolvido quando se fala na proteção e violação de direitos humanos no que diz respeito à sexualidade. que sexualidades são essas que se busca proteger e às quais freqüentemente se discrimina? As sexualidades, as condutas, as identidades recriminadas são as que se identificam ou que pelo menos por um bom tempo foram identificadas como desvios, perversões e doenças. Alguns comportamentos que ainda hoje são definidos como patologias pelo discurso médico, psicológico e jurídico. Buscamos respostas para entender qual a função que o discurso sobre essas sexualidades exerce dentro das relações de poder contemporâneas e qual seria a função do Direito nessa conjuntura. Nosso ponto de partida é o discurso de uma teoria da repressão. Haveria uma repressão generalizada à sexualidade. Ela deveria então calar-se, omitir-se. Através da interdição ela seria condenada ao silêncio e à não existência. Seria esse o interesse ou objetivo nas relações de poder que se colocam, o mutismo e a repressão. 84 Para essa importância excessiva que passa a ter o sexo, contribuiu a discussão nos últimos séculos sobre a sexualidade. O sexo se tornou ob- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS jeto do conhecimento, criou-se toda uma análise minuciosa e exaustiva sobre ele na Medicina, na Psicologia, na Jurisprudência, no âmbito administrativo e da política de Estado. Aos poucos foi confeccionada uma ciência do sexo. Essa ciência sexual foi uma das construções fundamentais dos últimos dois séculos, fruto de uma mudança estrutural na sociedade. De uma sociedade em que o soberano tinha o poder de tirar a vida de seus súditos se passou a uma sociedade na qual o poder está focado na vida, e não na morte. O poder deve organizar e gerir a vida, e nesse sentido dois pólos de controle principais se desenvolveram. O controle sobre os corpos (através dos mecanismos de adestramento, disciplina e docilização dos mesmos, buscando a maior utilidade possível – o que é trabalhado na obra ‘Vigiar e Punir’ do autor) e o controle dos corpos como espécie, no sentido de organizar a sua função biológica e a questão populacional, através de critérios como natalidade, mortalidade, longevidade, e outros. O sexo constitui um elemento fundamental, pois é o elo entre esses dois pólos de controle. E é através da análise desses mecanismos de poder que nós buscamos entender a relação entre direito e sexualidade. A principal característica atribuída à sexualidade pelo discurso científico foi a sua capacidade eminentemente patológica. O sexo foi considerado como algo que, por suas características inerentes poderia ser acometido por doenças. Passou a ser vigiado por diversas instâncias, desde a sexualidade da criança, observada de perto pelos pais, pedagogos, pediatras e babás. Do saber que foi construído, o que nos interessa para a discussão é a chamada psiquiatrização do prazer perverso. Isso implica, principalmente, no seguinte: o instinto sexual foi isolado, conceituado como instinto meramente biológico. Vincularam o sexo a uma finalidade reprodutiva, pois a lógica era ter o controle do corpo como espécie. Com isso, toda conduta que não se encaixasse nesse critério biológico, todo prazer que não tivesse utilidade, ou fosse um prazer estéril, foi classificada como distúrbio. Aí entram desde a sodomia até, por exemplo, a masturbação. É feita uma categorização dos indivíduos, uma especificação de acordo com sua “doença”, esse indivíduos que seriam os “perversos”, muitas vezes associados às doenças mentais. Como tal, a Medicina estava disposta a oferecer tratamentos, buscando a “cura”, buscando a normalização. Essas sexualidades errantes, desviantes, improdutivas, cumprem uma função importante nesse sistema, embora não sejam desejadas, em tese, elas são estimuladas, pois são elas que justificam toda a intervenção normalizadora médico-clínica-psiquiátricalegal-administrativa. Nesse contexto, poder e prazer não se anulam, funcionam numa estrutural espiral eterna. No início essas pessoas eram isoladas nas clínicas, A “ciência” difundia, na época, a teoria da degenerescência: o perverso sempre tinha parentesco com doentes, e seus descendentes seriam raquíticos e estéreis. Sustentava-se a tese da hereditariedade. Com base nela sustentou-se a eugenia e o racismo de Estado, com inúmeras atrocidades cometidas e extensas violações aos direitos humanos. A psicologia, que tem o mérito histórico de ter se oposto a essa lógica da hereditariedade, também cumpriu e cumpre sua função normalizadora. As confissões não são feitas apenas no ambiente clínico ou nos consultórios médicos, mas também nos divãs. O indivíduo sente-se liberto ao confessar-se e preso ao continuar silente. Na busca da verdade de seu sexo detalha seus desejos mais íntimos mas é o ouvinte, por ser o sexo considerado obscuro e fugidio que irá, além de julgá-lo, dizer-lhe qual é a sua verdade. É o psicólogo, portanto, que determinará para o indivíduo qual a verdade sobre sua sexualidade. Falemos, finalmente, sobre o papel do Direito. O Direito não funciona, nesse contexto, como a lei que proíbe, que estabelece o lícito e o ilícito e impõe condutas e sanções. Embora nós apresentemos, mais adiante, alguns casos de leis de outros países que agem nesse sentido, acreditamos que pelo reduzido número de casos levados a juízo que elas possuem uma característica muito mais simbólica. Essa visão do Direito como interdição se relaciona com a tese de repressão generalizada da sexualidade. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 85 BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V. Para Foucault a teoria da repressão é apenas um discurso para aceitarmos mais facilmente o poder. Se nos sentimos reprimidos, os mecanismos de poder que são mais sutis, mais amplos e mais criativos passam desapercebidos. Para ele, enxergar o poder apenas como interdição é enxergá-lo como algo extremamente limitado. O poder assim só poderia proibir, através da lei, dizer não, determinar o ilícito. quando na verdade tem uma função positiva e construtiva nas subjetividades. Numa sociedade em que as técnicas de poder se centram na vida, na saúde, na longevidade, o direito tem uma função normalizadora, se integra aos aparelhos médicos e administrativos para melhor regular a vida humana. Mas existe também a resistência, que possui um caráter plural tanto quanto o poder. Ela também parte da vida, reivindica a vida no que tem de fundamental, questiona, se manifesta, exige seus direitos e a legitimação de suas sexualidades como condição sine qua non para a dignidade humana, revertendo a situação, utilizando a linguagem médico-jurídica contra o poder. É aqui que entra a luta universal de diversos grupos pelo reconhecimento de seus direitos. Essa intervenção do direito na vida possui, portanto, um caráter dúplice: enquanto classifica, determina, controla sob a jurisdição e a tutela estatal; enquanto reduz o sujeito ao nome e ao gênero que lhe atribui, bem como à sexualidade regrada que lhe impõe, também é questionado; subitamente se vê obrigado a proteger o que gostaria de normalizar; em seguida, conforma-se e normaliza. Os movimentos, as pessoas, também pautam o direito: nele incluem suas sexualidades que este busca não admitir e não tutelar. E este, por sua vez, se apropria e a normaliza, contendo-a. 3. Sexualidade como direito humano e o plano internacional Em primeiro lugar, é importante deixar claro, no momento em que foi escrito o presente artigo, não há no plano internacional nenhum tratado que trate especificamente da questão da 86 sexualidade. Por exemplo, não temos nenhum acordo internacional que proíba explicitamente a discriminação contra os homossexuais. Entretanto isto não significa que exista uma absoluta lacuna no plano internacional. Exatamente tendo em vista as constantes violações de Direitos Humanos perpetradas contra esses grupos sociais, a Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos, representando diversas organizações de defesa dos direitos humanos, elaboraram os chamados Princípios de Yogyakarta. Os Princípios são o produto da reunião de vinte e nove especialistas na questão da sexualidade e Direitos Humanos, de vinte e cinco países diferentes, na universidade Gadjah Mada, em Yogyakarta, Indonésia, em novembro de 2006. Os Princípios de Yogyakarta tratam da “aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero”. 3 Os Princípios, na verdade, não são em si novos. O que foi feito foi a resignificação de princípios já consagrados de Direitos Humanos, muitos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobre o prisma da sexualidade. Dando uma nova dimensão aos Direitos Humanos já positivados na esfera internacional. Com isso, seria possível trabalhar esta temática no plano internacional – quiçá até na área de litígio internacional – mesmo frente à lacuna normativa existente. O texto dos Princípios de Yogyakarta apresenta vinte e nove destes Direitos Humanos clássicos e mostra como a questão da orientação sexual e da identidade de gênero se encontram já protegidas por ela, o que não é objeto de consenso4. Seria demasiado exaustivo fazer uma análise de cada uma dos princípios, portanto selecionamos alguns que nos parecem proporcionar uma discussão relevante para apresentação. Direito à Igualdade: Os Princípios de Yogyakarta relacionam esse direito ao da nãodiscriminação ao afirmar que A discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero inclui qualquer Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na orientação sexual ou identidade de gênero que tenha o objetivo ou efeito de anular ou prejudicar a igualdade perante a lei ou proteção igual da lei, ou o reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária, de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais. (PRINCíPIOS, p. 11-12) Tal princípio pode ser lido como o veto principal da discussão acerca da orientação sexual e identidade de gênero, pois uma das grandes lutas destes grupos sociais é exatamente por um tratamento igual ao dispensados a, por exemplo, aos heterossexuais. Neste sentido, qualquer legislação que criminalize a atividade consensual entre pessoas do mesmo sexo deve ser revogada, pois afrontaria a igualdade de tratamento perante a lei protegida internacionalmente. Assim como o simples fato da lei proporcionar um tratamento mais restritivo a alguma minoria sexual constituiria uma violação ao princípio da igualdade. Embora a noção de igualdade já parece conter tal exigência, o argumento utilizado por parte dos defensores de um tratamento desigual é que não se pode tratar os desiguais igualmente e que as minorias sexuais não estariam na mesma posição que os arranjos familiares tradicionais. O que o texto dos Princípios faz é dizer que tal fator não pode ser um critério para a criação de distinções e tal noção ainda não foi incorporada ao cenário internacional de maneira sólida. Por exemplo, se poderia citar a presença de leis antisodomia nos Estados Unidos. Direito à Liberdade de Opinião e Expressão: Nesse sentido, nunca poderá uma pessoa ter seu direito à palavra tolhido pelo simples fato dela(e) ser homossexual ou transgênero ou por defender os direitos desses grupos. Porém, um ponto muito importante levantado pelos Princípios é fato de que se deve garantir “que o exercício da liberdade de opinião e expressão não viole os direitos e liberdades das pessoas de orientações sexuais e identidade de gênero diversas” (idem, p. 26). O texto é aberto e não aponta especificamente para o tipo de restrição seria legítimo, porém uma interpretação possível seria no sentido de que manifestações que violem o direito à honra e à dignidade de pessoas em razão dos parâmetros acima expostos não estariam protegidas pela liberdade de expressão da mesma maneira que outras formas de manifestar-se. Neste sentido, não se poderia defender abertamente que a homossexualidade é um absurdo e que todo homossexual deveria ser normalizado, pois isso estaria ferindo a honra e a dignidade de toda pessoa homossexual, direitos esses também protegidos pela normatividade internacional. Entretanto, o texto como foi redatado poderia dar margem à interpretação de que alguma espécie de censura prévia seria necessária, o que conflitaria com parte da normativa internacional acerca da liberdade de expressão, como por exemplo a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que apenas reforça a noção de que tal temática ainda precisa e deve ser melhor trabalhada no cenário internacional. Direito de Constituir Família: Essa talvez seja uma das questões mais controversas da questão da sexualidade e direitos humanos. Todos nós sabemos da forte resistência que existe na sociedade em relação ao reconhecimento de um conceito de família mais amplo, que inclua, por exemplo, as relação homoafetivas. Os Princípios nos dizem que: Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. (idem, p. 29) Nesse sentido, todos países deveriam reconhecer a legitimidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo, dando a elas os mesmos direitos e possibilidades de arranjo familiar que a legislação dá para os casais heterossexuais, permitindo inclusive a adoção de crianças por esses casais. É interessante apontar que diversos países do mundo já reconhecem o direito do homossexual de constituir família, principalmente nos últimos dez anos. Por exemplo, apesar de poucos países permitirem o casamento entre pessoas do mesmo sexo (Dinamarca, áfrica do Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 87 BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V. Sul, Espanha, Canáda, Bélgica e Holanda; por exemplo), mais de dez países admitem a união civil, também chamada de união estável, dentre eles: Irlanda, Eslovênia, França, Alemanha e Noruega. Pela lista de direitos humanos elencadas acima e pela breve explicação da correlação entre alguns deles e o tema da sexualidade já ficou evidente que muitos desses direitos estão protegidos por diversos tratados internacionais. Isto que significa que se pode pleitear a garantia e a proteção da esfera dos mesmos relativa à sexualidade em juízo, seja no plano interno – no casos de tratados nos quais o Brasil é signatário –, seja no plano internacional – no caso dos sistemas internacionais de proteção de Direitos Humanos. Neste sentido, por exemplo a Convenção Americana de Direitos Humanos apresenta um largo rol de direitos humanos que abordados pelos Princípios de Yogyakarta, o que significa que seria possível, em tese, trabalhar a questão dos direitos sexuais através do referido diploma. Entretanto, cabe levar uma pequena ressalva. O artigo 27 declara que é “reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e fundarem uma família”, o que, a primeira vista, nos dá a impressão de estarmos diante de uma visão estritamente heterossexual do casamento e que outros arranjos familiares não estaria protegidos pela Convenção. uma possível saída interpretativa para a restrição imposta pela Convenção é admitir que a instituição do casamento só se refere à união entre pessoas de sexos diferentes, porém a família não precisa se resumir a isso. O ponto 1 do artigo 27 prevê a proteção da unidade familiar, não da família heterossexual, e família e casamento são dois institutos distintos. Logo, para que se posso proteger a família, enquanto “elemento natural e fundamental da sociedade”, é necessário reconhecer a diversidade de modelos familiares que existem, incluindo a união homoafetiva. Portanto, para poder se efetivar esse dispositivo da Convenção Americana de Direitos Humanos seria necessária a criação em seus países signatário, incluindo no Brasil, formas alternativas de se permitir o florescimento e o 88 reconhecimento de núcleo familiares diversos da tradicional família pai, mãe e filhos. Essa leitura não viola o texto da norma, pelo contrário, busca dar máxima efetividade ao seu conteúdo, ao mesmo tempo que a harmoniza com os demais princípios consagrados pelo pacto, como a da igualdade de tratamento perante à lei. 4.Sexualidade como direito humano e o direito brasileiro No que diz respeito à normatividade nacional, ainda não temos nenhuma lei federal que promova os direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. O casamento entre pessoas do mesmo sexo não é, ainda, expressamente regulamentado e nenhuma lei especifica claramente a discriminação baseada em orientação sexual ou identidade de gênero como uma violação dos Direitos Humanos. Todavia, isto não significa que o Direito Brasileiro não forneça nenhuma espécie de proteção nestes casos Em primeiro lugar, tudo o que foi dito acima acerca da aplicação dos Princípios de Yogyakarta na esfera internacional pode perfeitamente ser utilizado no âmbito da legislação nacional. Todos os princípios presentes em Yogyakarta são protegidos de forma expressa pelo nosso ordenamento jurídico, principalmente pela nossa Constituição. Ademais, os tratados internacionais ratificados pelo Brasil também fazem parte do ordenamento jurídico nacional – como é o caso da Convenção Americana – e, portanto, podem ser utilizados internamente. Por exemplo, o inciso IV do artigo 3º da Constituição diz que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Assim como o inciso xLI do artigo 3 determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” é evidente que a questão da sexualidade pode ser perfeitamente enquadrada nessas normas. O caput do artigo 5º diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS natureza”, logo, aos homossexuais e transgêneros não pode ser dado um tratamento pior do que aquele reservado aos demais cidadãos, o que nos remete diretamente à questão do casamento, da adoção e da união estável; caso utilizemos a noção de direito à igualdade esboçada nos Princípios de Yogyakarta. Tradicionalmente se entende que o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo é proibida no Brasil. O parágrafo 3º do artigo 226 diz que a união estável só se dá entre homem e mulher, o que impediria que casais homossexuais conseguissem ingressar nesse regime. Quanto ao casamento, apesar da Constituição não dizer expressamente que só se limita a homem e mulher, o artigo 1.514 do Código Civil diz expressamente que esse instituto está reservado para homem e mulher. Sem querermos entrar no mérito da inconstitucionalidade do referido do dispositivo da lei cível, ou da tentativa de se explicar porque poderia se considerar inconstitucional o parágrafo 3º do artigo 226 da própria Constituição, podemos voltar um pouco no texto constitucional, para o caput do artigo 226. Diz ele que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Ora, família e casamento, ou união estável, não se identificam, como já vimos. Existe família e diversidade familiar fora desses institutos e é dever do Estado, conforme se depreende da leitura do artigo acima, proteger esses núcleos familiares não convencionais. Portanto, mesmo que não se permita aos casais homossexuais contrair casamento ou união estável, o comando constitucional exigiria que o Estado criasse mecanismos que permitam a proteção dessas famílias. O fato de uma família ser composta por dois homens não retira o dever de tutela do Estado, talvez pelo contrário. Pelo fato deste tipo arranjo familiar não possuir o mesmo grau de proteção legal por parte do Estado, além da questão da rejeição por parte da sociedade, é que o Estado dispense uma atenção especial a essa situação de vulnerabilidade, buscando formas efetivas de se resolver essa questão. Nesse sentido, temos o Projeto de Lei 1.151 de 1995, da então deputada Marta Suplicy. Tal projeto buscou criar a figura da união Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, ou Parceria Civil Registrada, conforme o substitutivo proposto pelo então deputado Roberto Jefferson. Assim, aos homossexuais seria dada um novo instituto familiar, dando aos cônjuges proteção quanto à partilha de bens, herança, planos de saúde, direitos previdenciários, dentre outros direitos e deveres. Porém, o substitutivo do deputado Roberto Jefferson buscou impedir a adoção de crianças por parte de casais homossexuais, em total contramão em relação aos recentes avanços da jurisprudência. Tal proposta, entretanto, é insuficiente. Ao criar uma classe especial de união para aqueles arranjos familiares não tradicionais, ainda não se estaria dando plena efetividade ao princípio da igualdade. Não se pode negar o avanço que representaria a regulação da união civil para os casais homossexuais, porém esta mesma proposta também demonstra que ao menos parte da sociedade ainda não estaria disposta a reconhecer as distintas formas familiares em pé de igualdade. É importante notar que, apesar de tudo isso, parte da jurisprudência vem reconhecendo uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, se valendo dos princípios constitucionais e métodos hermenêuticos tradicionais como a analogia. Ademais das possibilidades de atualização via interpretação e projetos de lei, nós temos leis e normas que, de forma ainda um pouco tímida e restrita, dão proteção aos Direitos Humanos relativos à sexualidade. Por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro nós temos a Lei Estadual 3.406 de 2000, que “estabelece penalidades aos estabelecimentos que discriminem pessoas em virtude de sua orientação sexual”. No Município do Rio de Janeiro nós temos a Lei Municipal 2.475 de 1996, que “determina sanções às Práticas Discriminatórias na Forma que Menciona e dá outras providências”, determinando que “Os estabelecimentos comerciais, industriais e repartições públicas municipais que discriminarem pessoas em virtude de sua orientação sexual, na forma do parágrafo 1o do art. 5º da Lei Orgânica do Município, sofrerão as sanções previstas nesta lei”, sanções estas que vão desde advertência Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 89 BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V. até cassação de alvará, progressivamente. O parágrafo 1º do artigo 5º da Lei Orgânica do Município determina que “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de (...) orientação sexual”, o que evidencia o entendimento de que a questão da sexualidade está compreendida dentro da problemática dos Direitos Humanos, tanto que o Título no qual se insere tal artigo se chama “Dos Princípios e Direitos Fundamentais” e todos nós sabemos da estreita relação entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, sendo, de forma geral, os segundos a positivação dos primeiros. Ainda no Rio de Janeiro, temos a Lei 3.786, graças a qual “os parceiros homossexuais passam a ser reconhecidos pelo mesmo estatuto dos companheiros em uniões estáveis homossexuais”, para questões previdenciárias. Na mesma linha, temos a Instrução Normativa nº 57 do INSS, que foi criada em reposta a uma ação judicial que determinou, no caso concreto, o mesmo direito previsto no seu artigo 20, que determina que: “O companheiro ou a companheira homossexual de segurado inscrito no RGPS passa a integrar o rol dos dependentes e, desde que comprovada a união estável, concorrem, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes preferenciais de que trata o inciso I do art. 16 da Lei no 8.213, de 1991, independentemente da data do óbito, ou seja, mesmo tendo ocorrido anteriormente à data da decisão judicial proferida na Ação Civil Pública n. 2000.71.00.009347-0.” Uma das leis que mais expressamente trata a questão da sexualidade e dos Direitos Humanos é a Lei Estadual 11.872 de 2002, promulgado no Estado do Rio Grande do Sul. Ele dispõe “sobre a promoção e reconhecimento da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade, preferência sexual” e expressamente declara que a Administração reconhece o respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidadãos, devendo para tanto, promover sua integração e reprimir os atos atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade, preferências sexuais, exercidas den90 tro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuízos a terceiros. Em seguida a lei apresenta um rol exemplificativo de que tipos de conduta poderiam ser consideradas atentatórias à dignidade em razão de orientação sexual ou identidade de gênero e apresentando diversas sanções para os estabelecimentos nos quais tal atitude se deu. Além de prever diversos tipos de punição adaptadas ao porte e ao caráter público ou privado do estabelecimento violador. Se o caso se referir, por exemplo, a um servidor público, pode haver a exoneração do mesmo. Se poderia recorrer a outros exemplos de legislação estadual ou municipal, porém o importante é ficar claro que estas são iniciativas isoladas e que abordam apenas questões específicas. Não há, ainda, um tratamento abrangente para questão e tal solução não poderia ser dada a nível local ou regional – seja pelo fato de que a organização normativa brasileira que restringe o tratamento de certas matérias ao nível federal, seja devido a ausência de vontade política por parte de alguns entes federados – fazendo com que a responsabilidade da União em formular políticas e práticas aplicáveis ao pais como um todo aumente de importância. Neste sentido, temos os Programas Nacionais de Direitos Humanos. Em 2002, a Secretaria Especial de Direitos Humanos publicou a segunda versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) que deveria ter sido implementado com os recursos orçamentários previstos no Plano Plurianual de 2000-2003 e na lei orçamentária anual. O PNDH deveria servir também como pauta de discussão do Plano Plurianual 2004-2007, sendo que nesse último ano seria feita uma nova revisão do mesmo, que o que somente veio a ocorrer no final de 2009, sendo que o plano ainda está pendente de aprovação quando da redação deste artigo. O programa de 2002 representou um significativo avanço em relação ao Programa anterior, em relação à temática da sexualidade, incluindo o tema da orientação sexual dentro da questão da garantia do Direito à Liberdade e as questões relativas a gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais dentro das problemáticas do Direito à Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS Igualdade. Cabe aqui apresentar alguns dos pontos apresentados no programa mais relevantes para a nossa discussão: “114. Propor emenda à Constituição Federal para incluir a garantia do direito à livre orientação sexual e a proibição da discriminação por orientação sexual. “115. Apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação de sexo e mudança de registro civil para transexuais. “117. Excluir o termo ‘pederastia’ do Código Penal Militar. “241. Implementar programas de prevenção e combate à violência contra os GLTTB, incluindo campanhas de esclarecimento e divulgação de informações relativas à legislação que garante seus direitos. “242. Apoiar programas de capacitação de profissionais de educação, policiais, juízes e operadores do direto em geral para promover a compreensão e a consciência ética sobre as diferenças individuais e a eliminação dos estereótipos depreciativos com relação aos GLTTB. “244. Apoiar a criação de instâncias especializadas de atendimento a casos de discriminação e violência contra GLTTB no Poder Judiciário, no Ministério Público e no sistema de segurança pública.” Infelizmente, boa parte das diretrizes traçadas no plano em questão não produziram os resultados esperados. Por exemplo, podemos destacar que o Código Penal Militar não foi alterado e que ainda não há uma regulamentação para a parceria civil de pessoas do mesmo sexo. Dois anos depois, em 2004, o Ministério da Saúde junto com a Comissão Provisória de Trabalho do Conselho Nacional de Combate à Discriminação da Secretaria Especial de Direitos Humanos publicou o documento “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual”. O Programa apresenta uma longa lista de ações a serem desempenhadas e realizadas pelo Estado e pela sociedade. Isso porque, apesar da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República ser o órgão formalmente responsável pela implementação, articulação e avaliação da integralidade do Programa apresentado, “a responsabilidade pelo combate à homofobia e pela promoção da cidadania de gays, lésbicas e transgêneros se estende a todos os órgãos públicos, federais, estaduais e municipais, assim como ao conjunto da sociedade brasileira” (COMISSÃO, p. 27). Não é pertinente aqui pormenorizar as propostas do Programa, mas vamos apontar alguns pontos relevantes: “Estabelecer e implantar estratégias de sensibilização dos operadores de Direito, assessorias legislativas e gestores de políticas públicas sobre os direitos dos homossexuais; “Apoiar a criação da Convenção Interamericana de Direitos Sexuais e Reprodutivos, em consulta permanente com a sociedade civil; “Elaborar diretrizes que orientem os Sistemas de Ensino na implementação de ações que comprovem o respeito ao cidadão e à nãodiscriminação por orientação sexual; “Discussão com vista na atualização dos protocolos relacionados às cirurgias de adequação sexual; “Apoiar elaboração de uma agenda comum entre movimento negro e movimento de homossexuais e a realização de seminários, reuniões, oficinas de trabalho sobre a temática do racismo e da homofobia.” Mais recentemente assistimos à discussão em torno do PnDH 3, apresentado no final de 2009. O texto apresenta um objetivo estratégico em relação à orientação sexual e à identidade de gênero, como já fazia o PnDH 2. Infelizmente, a leitura do texto nos mostra que as pautas presentes são muito semelhantes as já desenhadas em 2004. Ademais, é importante destacar que o Programa mencionado se encontra sob intensa critica por parte de diversos setores da sociedade brasileira, como no que diz respeito à união civil de casais homossexuais . Em conseqüência, o Governo, no momento da redação deste artigo, acenava a possibilidade de alterar algumas das partes criticadas, o que poderia fragilizar ainda Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 91 BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V. a parca proteção que o Programa dispensa à questão da sexualidade. Destaca-se, ainda, que há questões que se repetem – como apoiar projeto de lei acerca da união civil entre pessoas do mesmo sexo – e retrocesso – o texto anterior apoiava a regulamentação da mudança no registro civil para transexuais e o presente texto apenas fala do uso no nome social. Tal fato nos leva à questão dos transgêneros (chamados de transexuais pelo PnDH), último ponto a ser discutido neste trabalho. Tal temática comporta principalmente duas discussões: a cirurgia de adequação sexual e a mudança de nome e sexo no assento civil. Analisemos cada uma separadamente O Conselho Federal de Medicina (CFM) possui competência, outorgada pela Lei nº 3.268, de 1957, para determinar quais procedimentos são éticos e quais não são. Na realização daqueles considerados antiéticos pelo Conselho, o médico poderá sofrer uma variedade de sanções administrativas, incluindo a cassação da sua licença médica. Durante a primeira metade dos anos 90, o CFM ainda considerava a operação de adequação de sexo como antiética5, partindo da noção de que é ao médico é proibida a prática ou indicação de procedimentos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação, de acordo com o Código de Ética Médica. O Conselho considerava a operação de adequação sexual crime tipificado no artigo 129, parágrafo 2º, inciso II, do Código Penal, ou seja, lesão corporal grave por “perda ou inutilização de membro, sentido ou função”. Felizmente, em 1997, o CFM mudou sua posição com a edição da Resolução nº 1.482, que passou a considerar a cirurgia de adequação sexual como um “tratamento” adequado à transexualidade, estabelecendo uma série de critérios para que a pessoa possa ser submetida a tal cirurgia. Esse entendimento se sedimenta principalmente em dois dispositivos legais. O parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, que prevê a remoção de “órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento” e o artigo 13 do nosso Código Civil que diz que “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio 92 corpo, quando importar diminuição permanente de integridade física, ou contrariar os bons costumes”. A partir dessas duas normas e do entendimento que “a cirurgia de adequação de sexo é uma solução terapêutica para um fenômeno psíquico específico” (BELATO; PEREIRA, p. 9) permite-se a cirurgia de adequação sexual, pois haveria um excludente de ilicitude, proveniente da lei cível e constitucional, para a conduta tipificada na norma penal. Apesar de essa solução resolver, teoricamente6, o problema prático, a resposta não parece de todo adequado. Isso porque se continua vendo a transexualidade como um distúrbio, algo a ser curado, daí a noção de tratamento, cura. Argumenta-se que se o transexual não passar pela operação ele poderá criar um quadro crônico de depressão, chegando até ao suicídio e à auto-mutilação. Logo, “dos males o menor”. A operação salva a integridade psíquica do transexual, porém reconhece seu próprio quadro psicológico como anormal e errado. Não nos aprofundaremos aqui nos inúmeros problemas dessa tese, algo que já foi, de certa forma, trabalhado na primeira parte desse texto. Em seguida, temos a questão da mudança de nome e sexo do Registro Civil. É evidente a importância desse passo para que o transexual possa desfrutar plenamente de uma vida digna e normal. Caso seu nome continue correspondendo ao do seu sexo biológico originário, ele(a) continuará sendo vítima de agressões, humilhações e discriminações, o que não pode ser aceito. A Lei de Registros Públicos não permite expressamente a mudança de nome e sexo nos casos de cirurgia de adequação sexual. A lei é de 1973, logo fica evidente que não poderíamos esperar algo assim da mesma. Porém, há uma saída possível. Permitam-nos emprestar as palavras de um trabalho anterior de nossa lavra para apresentar uma possível solução: O artigo 55, parágrafo único, da Lei 6.015 declara que os “oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores” e o artigo 57 da mesma lei postula que apenas “após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz” a alteração posterior do nome, “somente Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS por exceção e motivadamente”. Já encontramos um problema inicial, a lei só faz menção à exposição ao ridículo quando se refere ao momento do registro inicial do nome da pessoa, por outro lado, a mesma lei dá poderes ao juiz de efetuar tal alteração em caso excepcional e com motivos suficientes. Conforme encontramos em nossa pesquisa, a jurisprudência e a doutrina reconhecem o direito do requerente de mudar seu nome em caso de exposição ao ridículo, fato mais do que notório, já tendo sido objeto de reportagens na grande mídia. Sendo reconhecida como legítima a demanda acerca desses casos, considera-se, por conseqüência lógica e direta, que os casos de transexualidade também devem ter acesso ao mesmo direito, mas pretendemos aprofundar um pouco mais o tema. Tendo em vista a falta de previsão legal expressa, contra ou a favor da questão, somos levados aos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº. 4.657 de 1942, a “Lei” de Introdução ao Código Civil, que declaram que permitem ao interpretador da norma utilizar-se da analogia e princípios gerais de direito para resolver uma dada lacuna legal. Podemos considerar que, atualmente, o artigo 55 da Lei de Registros Públicos serve para salvaguardar a dignidade da pessoa humana, que esse é seu fim social à luz do atual texto constitucional. Logo, da mesma forma que se tenta proteger o recém-nascido de futuras situações vexatórias, deve-se, por analogia, proteger o transexual da mesma situação, já que o juiz deve considerar o fim social da lei. Tal raciocínio é semelhante ao utilizado na questão dos nomes esdrúxulos. Da mesma forma que o nome pode expor ao ridículo, o sexo que consta nos documentos legais do transexual também pode expô-lo a isso. Por isso, mesmo que não haja previsão legal para a mudança de sexo, acreditamos que se deve aplicar um raciocínio análogo àquele utilizado na mudança de nome no registro civil. Quanto a isso a jurisprudência diverge bastante: temos decisões que não permitem a mudança; decisões que permitem a mudança, desde que conste o termo transexual em locais diversos, tais como a Carteira de Identidade ou outros documentos utilizados publicamente; e, por fim, aquelas que permitem a mudança de sexo sem que a mesma fique notificada nos documentos de uso corrente. Tendo em vista a lógica utilizada para sustentar a necessidade da mudança, o respeito à dignidade da pessoa humana e seu direito à privacidade (ambas garantias constitucionais), a última solução nos parece mais condizente com as necessidades do transexual e com a realidade que ele irá enfrentar. Contudo, a mudança deve constar no registro civil do operado ou operada, por razões de segurança jurídica7 e para se preservar a função do registro civil, que é de relatar “fatos históricos da vida do indivíduo”. (idem, p. 5) 5. Conclusão A questão da sexualidade já há muito tempo é objeto do poder do Estado e das instituições sociais. O corpo e a subjetividade, instância indissociáveis do homem, são constantemente trabalhados para se formar um determinado tipo de sexualidade. Mas o corpo e seu dono reagem e contra-fluxos surgem, reivindicando reconhecimento e construindo novas formas de sexualidade. Na sociedade contemporânea a questão da sexualidade não pode ser corretamente analisada se não tivermos sempre em mente os Direitos Humanos. A autodeterminação, a liberdade e a não-discriminação são direitos fundamentais para que se possa ter uma visão acurada dessa questão. A luta por essas novas, e velhas, sexualidades é uma luta respaldada por todo o arcabouço jurídico construído em torno dos direitos individuais e coletivos de todo homem, mesmo que resignificados sobre essa nova ótica, e pela construção de direitos novos. Não cabe ao Estado ou a nenhum grupo social ou de moralidade determinar como as pessoas lidarão com sua própria sexualidade. Todos devem ser tão livres quanto possível para construir a sua própria sexualidade, sem que haja imposição violenta de padrões de conduta ou de formas de pensar. Todavia, necessariamente passamos pelo Direito ao tratar desta questão, portanto é impor- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 93 BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V. tante destacar novamente a importância dos Princípios de Yogyakarta. Ao fazer esta releitura dos Direitos Humanos clássico, o trabalho realizado por esses especialistas instrumentaliza qualquer ativista da área de Direitos Humanos que queira militar nos temas relativos à sexualidade. Porém, não podemos nos satisfazer com isso. É muito importante que se consiga a aprovação de ao menos um tratado internacional que trate explicitamente da questão da sexualidade, por exemplo, proibindo a discriminação por motivos de orientação sexual. O valor simbólico da ratificação de tal acordo seria incontestável, representando a vitória de grupos sociais historicamente perseguidos e massacrados, como os gays, lésbicas e transgêneros, afirmando para todo o mundo que essa não é uma questão que possa ser mantida sob o arbítrio das soberanias nacionais e que se deve respeitar sim a diversidade sexual. Mas enquanto esse tempo não chega os Princípios de Yogyakarta podem nos ser muito úteis. Gostaríamos de terminar com uma citação que acreditamos exprime o papel que os Direitos Humanos, e seu reconhecimento e defesa, deve desempenhar nessa luta: “Em se tratando de direitos humanos, não há espaço para omissões. “Os Estados se vêem confrontados ante uma escolha crucial: afirmar a universalidade dos direitos humanos ou (...) implicitamente endossar as constantes violações e abusos dos direitos humanos regularmente perpetrados contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, nos diversos países e regiões de todo o mundo. “Sabemos, de antemão, que para alguns países esta não será uma decisão fácil; contudo, a proteção aos direitos humanos requer coragem, integridade e liderança. (FISHER, p. 24)” 6. notas 3 O nome do trabalho é exatamente “Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero”. 94 4 Nesse sentido, basta ver que em torno de 90% da população brasileira que considera homossexualismo errado, conforme o estudo realizado por Alberto Carlos Almeida revela em seu livro “A Cabeça do Brasileiro”. 5 Processo Consulta CFM nº 0617/90 – PC/CFM/Nº11/1991 e Processo Consulta CFM nº 0817/90 – PC/CFM/ Nº12/1991, ambos disponíveis no sítio eletrônico da entidade 6 Dizemos teoricamente pois uma contestação possível seria afirmar não ser competência do Conselho Federal de Medicina estipular o que é lícito ou ilícito, logo não importa o que suas resoluções digam, ele não pode criar um excludente de ilicitude. Porém, não é ele que cria o excludente. Ele já está na norma civil e constitucional, que são, porém, incompletas de conteúdo. O que é exigência médica ou tratamento médico só pode ser determinado pelos médicos, não faria sentido esperar que o legislador editasse portarias regulamentando quais procedimentos médicos se encaixam nos dois dispositivos citados acima. 7 “É importante lembrar que os números dos documentos, tais como CPF e RG, do transexual continuam os mesmos, portanto, a segurança jurídica já estaria, ao menos em boa parte, salvaguardade através disso”. (idem, p. 9) 7. Bibliografia BELATO, Clara; PEREIRA, Eduardo B. V. Transexualidade e direito brasileiro: uma visão panorâmica. In: II JORNADA CARIOCA DE INICIAÇÃO CIENTíFICA, 2006. Rio de Janeiro: IBMEC, 2006. BRANNEN, Daniel E.; Hanes, Richard C.. Supreme Court drama: cases that changed America. Canada: Elizabeth M. Shaw, 2001. BRASIL. Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Programa nacional de direitos humanos 2. Brasília: Ministério da Justiça, 2002. Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Programa nacional de Direitos Humanos (PnDH-3) ed. rev. Brasília : SEDH/Pr, 2010. CONSELHO Nacional de Combate à Discriminação. Brasil sem homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília : Ministério da Saúde, 2004. FISHER, John (compilador). Resolução brasileira em direitos humanos e orientação sexual: um resumo com as principais informações para as delegações governamentais. [S.I.]: ARC In- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS ternational, [2004?]. Acesso em: 1 nov. 2007. Disponível em: <http://www.arc-international. net/briefp.pdf>. VIANNA, Adriana; LACERDA, Paula. Direitos e políticas sexuais: mapeamento e diagnóstico. Rio de Janeiro: CEPESC, 2004. FOuCAuLT, Michel. A história da sexualidade: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. v. 1. ZAMBRANO, Elizabeth et al. O direito à homoparentalidade: cartilha sobre as famílias constituídas por pais homossexuais. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2006. Acesso em: 1 nov. 2007. Disponível em: <http://www. esnips.com/nsdoc/14c0a2b9-a9cc-4d14-bce062747e6ba86b>. PRINCíPIOS de Yogyakarta: princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. [S.I.: s.n.], 2007. Acesso: 26 out. 2007. Disponível em: <http://www.clam. org.br/pdf/Yogyakarta.pdf>. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010 95 96 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 Artigo CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR? CrimES DE PESCA no PAntAnAL: DE quEm É A ComPEtÊnCiA PArA LEgiSLAr? Fabio Marques Barbosa1 Lamartine Ribeiro2 José Manfroi3 rESumo: Fundamentado nos preceitos Constitucionais, o presente artigo teve a intenção de investigar a competência da defesa do bioma Pantanal em território sul-mato-grossense. Foi constatado, que alguns princípios constitucionais não estão sendo obedecidos. Entretanto, a pesquisa não proporcionou uma resposta precisa à indagação inicial. Dessa forma, fez-se necessário uma construção de raciocínio baseado na hermenêutica constitucional, com referência às atuais concepções sobre a matéria, alcançando, assim, uma possibilidade de resposta ao questionamento. Palavras-chave: Pantanal. Crimes de pesca. Normas Penais em Branco. Conflito de Competência. ABStrACt: Based on the Constitutional provisions, this article was intended to investigate the competence of the defense of the Brazilian Pantanal, located in the state of Mato Grosso do Sul. It was found that some constitutional principles are not being obeyed. However, the research did not provide a precise answer to the initial inquiry. As consequence, it was necessary to build na argument based on constitutional hermeneutics, with reference to the current understanding of the matter, achieving a possibility to anwer the question. Keywords: Pantanal. Fishing crimes. Blank Criminal Laws. Jurisdiction Conflict. Bacharel em Direito pela universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Pós-graduado em Direito Criminal pela uCDB/ Campo Grande/MS (lato sensu) e mestrando bolsista (FuNDECT) em Estudos Fronteiriços pela universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]. 2 Professor, especialista e advogado. Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da uCDB/ Campo Grande/MS. E-mail: [email protected]. 3 Graduado em filosofia (FuCMT/MS), Mestre em Educação (uFMS) e Doutor em Educação (uNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de Pós-graduação lato sensu da uCDB/Campo Grande/MS. E-mail: [email protected]. 1 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 97 BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J. introdução O Pantanal sul-mato-grossense é a maior área alagável do mundo. É considerado um grande delta interno e um grandioso santuário ecológico, onde se acumulam as águas da bacia do Rio Paraguai, originando uma enorme diversidade de fauna e flora. O turismo contemplativo e a prática da pesca trazem, todos os anos, milhares de pessoas do Brasil e do mundo. No meio desse santuário, assenta-se Corumbá, que segundo a língua tupi-guarani (curupah), significa “lugar distante”. Banhado pelo rio Paraguai e por alguns afluentes do Estado de Mato Grosso do Sul, o município é um atrativo turístico, sendo a exploração da pesca um fator importante para a sua economia. A fiscalização das águas pantaneiras, predominantemente de interesse da União, é realizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e pela Polícia Militar Ambiental do Estado de Mato Grosso do Sul, através de convênio. Os enquadramentos legais diante de um ato ilícito de pesca são baseados nas legislações federal e estadual. De acordo com a gravidade da infração, são imputadas ao autor da ilicitude sanções administrativas ou penais: estas seguem a tipificação constante na Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) e aquelas, além do Decreto 6.514/08, as legislações estaduais. Todavia, para a maioria dos delitos ambientais, a tipificação constante na Lei 9.605/98 necessita da complementação de outras normas federais, estaduais ou municipais, dependendo da predominância da competência constitucional. Essas normas complementadas são denominadas normas penais em branco. A questão em estudo no presente artigo é, então, analisar as normas em vigor no tocante aos crimes de pesca cometidos no Pantanal, para, ao final, tentar apontar a quem compete legislar sobre a matéria, observando se os princípios norteadores do direito ambiental estão sendo respeitados. Para isso, serão apresentados tópicos sobre os fundamentos da lei de pesca, a 98 competência legislativa em matéria ambiental, as normas penais em branco, o poder de polícia do estado e a legislação pesqueira vigente. Embora esta seja uma discussão com pouca jurisprudência e escassos posicionamentos doutrinários, ela é bastante relevante para o universo acadêmico, e para a população regional, sobretudo devido à iminente reforma na legislação pesqueira do Estado, o que certamente, importará na transformação das vidas daqueles que dependem da exploração desses recursos naturais. 1. fundamentos da lei de pesca Para que seja dada efetividade à proteção da natureza, o legislador brasileiro utiliza-se, além da tutela constitucional, da tutela civil, administrativa e penal. A Constituição Federal, em seu art. 225, § 3º, estabelece que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão aos infratores, pessoas físicas ou jurídicas, sanções penais e administrativas, independente da obrigação de reparar os danos causados. Tratando-se de crime de pesca, foram sancionados três artigos da Lei 9.605/98 (lei dos crimes ambientais), que embora relevantes, têm sua eficácia contestada, devido ao grande índice de reincidência. Tais dispositivos, doravante analisados, protegem de forma expressa a fauna ictiológica4 e tipificam condutas que caracterizam a prática da pesca predatória, prevendo penas restritivas de liberdade ou de direitos, cumuladas ou não com multas. É preciso evidenciar que, embora exista previsão legal para a aplicação de penas restritivas de liberdade, cumuladas ou não com a pecuniária, as penas aplicadas no Direito Penal Ambiental, na prática, acabam sendo restritivas de direitos, em observância ao disposto no art. 7º, I, da Lei 9.605/98, que prevê a substituição quando aquelas não ultrapassarem quatro anos. Como são poucos os casos em que a pena alcança quatro anos de detenção e, normalmente, no Brasil, as penas são aplicadas no mínimo legal, dificilmente, alguém terá sua liberdade cerceada por uma ilegalidade ambiental. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR? Ao lado dos dispositivos até aqui mencionados, existem ainda outros, na esfera Estadual, que suplementam a legislação Federal e regulamentam os procedimentos administrativos, como o estabelecimento de cota de pescado, o tamanho mínimo das espécies para a captura, o período de defeso5, etc., que devem ser aplicados observando normas diretivas peculiares ao Direito Ambiental. 2. tipo penal aberto Em observância aos princípios constitucionais da reserva legal ou do contraditório, é consignado ao agente o direito de se defender. Por esse motivo, em tese, as normas penais devem descrever completamente todas as características do fato típico. Todavia, as condutas lesivas ao meio ambiente, que possuem formas múltiplas e mudam freqüentemente, nem sempre permitem uma descrição direta e objetiva, como ocorre nos delitos comuns. Para Heleno Cláudio Fragoso (1958), alguns tipos penais não descrevem de forma expressa ou completa a transgressão do agente delituoso, dependendo da violação de normas especiais que o tipo pressupõe. Dessa maneira, a ilicitude deve ser estabelecida pelo juiz, que verificará se houve ou não a transgressão das normas que a incriminação pressupõe. Por esse e por outros motivos, temas referentes aos tipos penais ambientais são amplamente discutidos pela doutrina. Por serem, algumas vezes, demasiadamente abertos, recorre-se, em muitos casos, às normas penais em branco. 3. normas penais em branco É através de ato administrativo emanado de órgãos ambientais integrantes do SISNAMA6 que melhor se protegerá o meio ambiente. Estes órgãos definem os locais, períodos e condições em que os recursos naturais devem ser explorados de forma sustentável. Como anteriormente mencionado, em determinados momentos, a lei faz remissões da norma à outros dispositivos, para que as complementem, devido à sua complexidade técnica. Para Fernando Capez (2003), tais normas, denominadas normas penais em branco, são dispositivos nos quais o preceito secundário (cominação da pena) está completo, permanecendo indeterminado o seu conteúdo. “Trata-se, portanto, de uma norma cuja descrição da conduta está incompleta, necessitando de complementação por outra disposição legal ou regulamentar” (p. 32). O autor classifica-as em “sentido lato ou homogêneas; sentido estrito ou heterogêneas; norma penal em branco ao avesso” (p. 32). Segundo Arthur Migliari Junior (2003), normas penais em branco são aquelas que não possuem conteúdo incriminador por si só, exigindo complementação por outra norma jurídica, como a edição de uma lei, um decreto, um regulamento, uma portaria de determinado Departamento do Estado, etc., a fim de que possam ser aplicadas ao fato concreto. Analisando especificamente os artigos 34 e 35 da Lei 9.605/98, observa-se que o tipo penal é remetido a outros dispositivos, que regulamentarão tais condutas. A expressão “autoridade competente”, que regulamentará a pesca, por exemplo, se refere ao IBAMA ou ao órgão estadual que desempenhe funções delegadas. Assim, essa complementação não ofende o princípio da reserva legal. Entretanto, um óbice que, eventualmente, poderia ser suscitado contra essa afirmação, seria a disposição estampada no art. 22, inciso I, da Carta Constitucional. Conforme esse artigo, compete privativamente à união legislar sobre direito penal. Nessa esteira, atos emanados de autoridade estadual não deveriam integrar os preceitos incriminadores de normas penais em branco, ou amparar juízo valorativo referente a elementos normativos, sob pena de inconstitucionalidade formal. Porém, os mencionados atos estaduais ou municipais não inovam o direito penal e nem criam novas condutas típicas. São, na verdade, uma disposição meramente complementar. 4. Competência em matéria ambiental A Constituição de 1988 adotou como forma de Estado o federalismo7, determinando a capital Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 99 BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J. federal em Brasília. A organização políticoadministrativa compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos nos termos da Constituição Federal. Essas entidades federativas se manifestam sobre a mesma população e sobre o mesmo território, e, por esse motivo, a repartição de competências entre os entes governamentais constitui um dos núcleos fundamentais do Estado Federal Brasileiro e um dos temas mais conflituosos em matéria ambiental. José Afonso da Silva (2007), considera que a “competência é a faculdade juridicamente atribuída à uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. [...] são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções” (p. 71). A autonomia federativa, segundo o autor, “assenta-se em dois elementos básicos: a existência de órgãos governamentais próprios e a posse de competências exclusivas”. (p. 72) De acordo com o magistério de Alexandre de Moraes (2004), o princípio geral que norteia a repartição de competências é o da predominância do interesse. Ele explica: Pelo principio da predominância do interesse, à união caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral ao passo que aos Estados referemse as matérias de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local. Em relação ao Distrito Federal, por expressa disposição constitucional (CF, art. 32, § 1º), acumulam-se, em regra, as competências estaduais e municipais, com a exceção prevista no art. 228, xVII, da Constituição. (p. 290) Estados – Poderes remanescentes (CF, art. 25, § 1º); Município – Poderes enumerados (CF, art. 30); Distrito Federal – Estados + Municípios (CF, art. 32, § 1º) 2. Possibilidade de delegação (CF, art. 22, parágrafo único) – Lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias de competência privativa da União. 3. áreas comuns de autuação administrativa paralela (CF, art. 23). 4. áreas de autuação legislativa concorrente (CF, art. 24). (p. 291) Em relação à classificação das competências, FERREIRA (2007), posiciona-se da seguinte forma: I - quanto à natureza: a) executivas: reserva a determinada esfera do poder o direito de estabelecer e executar diretrizes, estratégias e políticas relacionadas ao meio ambiente; b) administrativas: traz o sentido de implementação e fiscalização, ou seja, remete ao exercício do poder de polícia pelas entidades federativas com o propósito de proteger e preservar o meio ambiente; c) legislativa refere-se à capacidade outorgada a um ente da Federação para legislar sobre questões referentes à temática ambiental. II – quanto à extensão: a) exclusivas: exclui os demais entes federativos do seu exercício; Adotando o referido princípio, o legislador constituinte estabeleceu quatro pontos básicos no regramento constitucional para a divisão de competências administrativas e legislativas (MORAES, 2004): 1. Reserva de campos específicos de competência administrativa e legislativa: b) privativa: embora seja também específica de determinado nível de governo, admite delegação ou suplementariedade; união – Poderes enumerados (CF, arts, 21 e 22); d) concorrente: prevê a possibilidade de disposição sobre determinada matéria 100 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 c) comum: também denominada cumulativa ou paralela, é exercida de forma igualitária por todos os entes que compõem a Federação; CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR? por mais de um ente federativo, havendo entretanto, uma primazia por parte da união quanto a fixação de normas gerais; e) suplementar: indica a possibilidade de edição de normas que pormenorizem normas gerais existentes ou supram a sua ausência ou omissão. (p. 204-206) Posto isso, pode-se dizer que compete à União a elaboração de normas gerais, restando aos demais entes políticos a especificação das condutas, observando-se a realidade local. 5. Conflitos de competências A distância do poder central e uma possível disputa pelo poder entre os órgãos ambientais, muitas vezes, podem gerar dificuldades na aplicação das normas em casos concretos. Essas dificuldades têm influência direta no que se refere à repartição de competências. São invocados, então, os princípios constitucionais, a doutrina e a jurisprudência, para estabelecer a predominância das normas. Para Fernando Capez (2003), há conflito quando duas ou mais normas pretendem regulamentar, aparentemente, o mesmo fato. No entanto, apenas uma delas acaba sendo aplicada. Para o autor, o caso fica configurado com a presença dos seguintes elementos: a) unidade do fato (há somente uma infração penal); b) pluralidade de normas (duas ou mais normas pretendendo regulá-lo); c) aparente aplicação de todas as normas à espécie ( a incidência de todas é apenas aparente); d) efetiva aplicação de apenas uma delas (somente uma é aplicável, razão pela qual o conflito é aparente). (p. 67) Freitas (2007) estabelece alguns posicionamentos nas situações mais comuns: Em princípio: a) quando a competência for privativa da união, a eventual fiscalização de órgão estadual ou municipal com base na competência comum de proteção ao meio ambiente não retira a prevalência federal; b) quando a competência for comum (por exemplo, preservação de florestas), deve ser verificada a existência ou não de interesse nacional, regional ou local e, a partir daí, definir a competência material (por exemplo, a devastação de grandes proporções na Serra do Mar configura interesse federal, em face do contido no art. 225, § 4º, da Constituição Federal); c) quando a competência for do Estado, por não ser a matéria privativa da União ou do Município (residual), a ele cabe a prática dos atos administrativos pertinentes, como fiscalizar ou impor sanções (por exemplo, controle da pesca em rio municipal); d) no mar territorial a fiscalização cabe à Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha; e) cabe ao Município atuar apenas em caráter supletivo quando a matéria for do interesse comum e houver ação federal ou estadual; f) cabe ao Município atuar privativamente quando a matéria for do interesse exclusivo local (por exemplo, poda de árvores nas vias públicas). (p. 80) FERREIRA (2007), assinalando também normas conflitantes, aponta três possibilidades de análise: a) pode ocorrer que, mesmo observando os seus campos de atuação, União e Estados legislem de forma conflitante. Nesse caso, entende-se que deverá predominar a regra mais restritiva, uma vez que se busca a satisfação de um interesse público; b) uma segunda possibilidade consiste na inobservância dos limites constitucionais impostos ao exercício da competência concorrente. A invasão do campo de atuação alheio implica a inconstitucionalidade da lei, seja ela federal, seja ela estadual; c) finalmente, pode ainda o conflito entre leis resultar da impossibilidade de definir precisamente o que são normas gerais e normas especiais. Tais conflitos devem ser solucionados tendo por base o princípio in dúbio pro natura, devendo prevalecer a norma que melhor defenda o direito fundamental tutelado, ou seja, o meio ambiente. (p. 215). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 101 BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J. I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; Observa-se, segundo a autora, que, sendo a norma mais restritiva ao homem, ela será mais benéfica ao meio ambiente, devendo assim, ter prevalência diante da norma mais permissiva. [...] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 6. o pantanal mato-grossense e o conflito de competências A região do Pantanal ocupa uma área aproximada de 250 mil km2, formando a maior planície inundável do planeta, localizada em território brasileiro, argentino, boliviano e paraguaio. Considerado um patrimônio nacional e constituído por rios de interesse da união e dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o Pantanal ocupa uma área de 138 mil km2, distribuído entre estes dois estados. O fato de constituir um patrimônio nacional deixa explícito o interesse da união em tutelar tal ecossistema. Porém, o Pantanal, como outros patrimônios nacionais, ainda não possuem uma legislação própria para a sua proteção. O art. 225, da Constituição Federal, impõe ao Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente, tomando todas as medidas para assegurar a efetividade da tutela ambiental. Cada ente federado deverá atuar respeitando os limites de sua competência. Como evidenciado, há casos excepcionais, em que a competência administrativa comum poderá ser exercida por um ente distinto daquele que editou a norma. A Carta Magna traz dispositivos que enumeram os bens pertencentes aos entes federados, distribuídos da seguinte forma: Art. 20. São bens da união: [...] III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; [...] Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: 102 [...] § 4º. A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização farse-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. [...] Dessa forma, é notória a constatação de que o Pantanal é um patrimônio nacional, permanecendo, assim, o interesse da União em sua tutela, embora seja permitido aos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul suplementar a legislação federal. 7. Legislação vigente Como registrado, além da lei 9.605/98 e demais normas federais, existem, no Estado de Mato Grosso do Sul, outros dispositivos que suplementam a legislação federal, seja para regulamentar a pesca no Estado ou para atribuir sanções administrativas pela prática da pesca ilícita. O Decreto nº 5.583, de 16 de novembro de 2005, autoriza o IBAMA a estabelecer normas para a gestão do uso sustentável dos recursos pesqueiros. O art. 93, da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul, atribui a mesma competência à SEMAC9, na esfera estadual. Vinculada a essa Secretaria, foi instituído, no ano de 2007, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR? pelo Decreto nº 12.231/2007, o IMASuL10, com a finalidade de coordenar e executar a política de meio ambiente em todo o território do Estado de Mato Grosso do Sul e fazer cumprir as legislações federal e estadual sobre essa atividade. Para praticar a pesca no Estado de Mato Grosso do Sul, além dos dispositivos já comentados, o pescador, residente ou não no estado, deverá se atentar para as seguintes normas: • Decreto-lei 221, de 1967, Código de Pesca: dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca e dá outras providências. • Decreto nº 6.514/2008: dispõe sobre a especificação das sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. • Lei Estadual nº 3.329, de 19 de Dezembro de 2006: estabelece normas para a exploração de recursos pesqueiros no Estado de Mato Grosso do Sul. • Decreto Estadual nº 11.724, de 05 de novembro de 2004. • As portarias do IBAMA, que fixam anualmente o período de proibição da pesca e dão outras providências para todo território nacional, como cota e tamanho mínimo para a captura das espécies, local e petrechos permitidos para a pesca, etc. • As resoluções da SEMAC, que fixam anualmente o período de proibição da pesca e dão outras providências para todo território do Estado de Mato Grosso do Sul, como cota e tamanho mínimo para a captura, locais e períodos permitidos para a pesca, etc. Devido à complexidade das normas e a necessidade de complementação destas, se nota, constantemente, alguns conflitos entre as legislações federal e estadual, principalmente no tocante à regulamentação das cotas, petrechos permitidos e tamanho mínimo para a captura. Impende destacar que a cota de captura permitida aos pescadores amadores no Estado de Mato Grosso do Sul, até julho de 1995, foi equivalente à cota estabelecida pela legislação federal, que era de 30kg e mais um exemplar. O Estado passou a adotar, a partir daí, cotas mais restritivas, reduzindo-as progressivamente. Tal procedimento fez com que o turismo de pesca, segundo a Embrapa11, sofresse uma acentuada evasão. Com isso, a partir de 2004, a cota estadual igualou-se novamente à federal - 10kg e mais um exemplar (Portaria IBAMA nº 30, de 23 de maio de 2003). No ano de 2006, a cota foi estabelecida com dois exemplares (um de couro e um de escama) voltando a ser equiparada no ano seguinte. Para demonstrar o conflito das normas regulamentadoras federal e estadual, duas tabelas são apresentadas abaixo. Em pleno vigor, esta portaria e decreto fixam o tamanho mínimo das espécies para a captura nos rios da Bacia do Paraguai, no Estado de Mato Grosso Sul. NOME COMuM MíNIMO NOME CIENTíFICO TAMANHO Armado Pterodoras granulosus Barbado Pinirampus pirinampu Corvina Plagioscion spp Curimatã, sábalo Prochilodus lineatus Dourado Salminus brasiliensis Jaú Zungaro zungaro Jurupensen Surubim cf. lima Jurupoca Hemisorubim platyrhynchos Pacu caranha, pacu Piaractus mesopotamicus Pati Luciopimelodus pati Piau- açu, boga Leporinus macrocephalus Piau verdadeiro, piau Leporinus aff obtusidens Piau verdadeiro, piau Leporinus aff elongatus Piraputanga Brycon hilarii Surubim, cachara Pseudoplatystoma.fasciatum Surubim, pintado Pseudoplatystoma coruscans 35 cm 60 cm 30 cm 38 cm 65 cm 95 cm 35 cm 40 cm 45 cm 65 cm 38 cm 25 cm 30 cm 30 cm 80 cm 85 cm (PORTARIA IBAMA Nº 3, DE 28 DE FEVEREIRO DE 2008 ) NOME COMuM MíNIMO NOME CIENTíFICO Jaú Pintado Cachara Dourado Pacu Curimbatá Piau-uçú Barbado Piraputanga Paulicéia luetkeni Pseudoplaystoma coruscans Pseudoplaystoma fasciatum Salminus maxilosus Piractus mesopotamicus Prochilodus lineatus Leporinus sp Pinirampus pirinampu Brycon Microlepis TAMANHO 95 cm 85 cm 80 cm 65 cm 45 cm 38 cm 38 cm 60 cm 30 cm (DECRETO ESTADuAL Nº 11.724, DE 05 DE NOV DE 2004) Acompanhando as tabelas acima, facilmente se constata que na Portaria do IBAMA existem 04 (quatro) espécies de peixes não tabelados no Decreto Estadual. Isso permite que os pescadores Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 103 BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J. capturem tais espécies em qualquer tamanho, pois a Polícia Militar Ambiental do Estado de Mato Grosso Sul segue apenas o Decreto Estadual, um equívoco danoso para a fauna ictiológica pantaneira. 8. Do poder de Polícia do Estado Para dar efetividade às normas ambientais, o poder público utiliza-se do poder de polícia. Com tal prerrogativa, o Estado garante a preservação da ordem pública, limitando o exercício dos direitos individuais em benefício da coletividade. Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006) aduz que “o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados”. (p. 126) Nesse passo, é através do poder de polícia que os órgãos fiscalizadores ambientais, efetivamente, garantem a tutela do meio ambiente. Esse poder se manifesta através das licenças, permissões, proibições, autorizações e fiscalizações. Sobre o tema, segue a lição de Toshio Mukai (2004): estaduais, pelos respectivos aparelhos regionais. Todavia, considerando as dificuldades de infraestrutura, a falta de agentes e principalmente a grande área a ser fiscalizada, sobretudo em território sul-mato-grossense, tal fiscalização, no tocante à pesca, é efetuada através de convênio entre o IBAMA e a Polícia Militar Ambiental do Estado de Mato Grosso do Sul. 9. Delitos de pesca A objetividade jurídica dos dispositivos constantes na Lei de Crimes Ambientais, referentes à pesca, está na tutela do equilíbrio ecológico, tendo como sujeito passivo toda a coletividade. Trata-se de crimes formais12, salvo melhor juízo, pois o tipo penal não exige a produção do resultado para a consumação do delito, embora seja possível a sua ocorrência. Transcrevendo os aduzidos dispositivos, in verbis, se tem: Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: O poder de polícia, police power, em sentido amplo, compreende um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública, senão também estabelecer para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar conflitos de direitos e para garantir a cada um o gozo ininterrupto de seu próprio direito, até onde for razoavelmente compatível com o direito dos demais. (p. 89) Posto isto, denota-se que o poder de polícia possui três funções: preventiva, repressiva e fiscalizadora. Como analisado, o Pantanal é constituído por rios de interesse da União e dos Estados de Mato Grosso e Mato grosso do Sul. As águas de interesse da União, teoricamente, deveriam ser fiscalizadas por órgãos federais e, as de instâncias 104 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem: I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos; II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos; III - transporta, comercializa, beneficia ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas. Art. 35. Pescar mediante a utilização de: I - explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante; II - substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente: CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR? Pena - reclusão de um ano a cinco anos. Art. 36. Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora. Importa mencionar a admissibilidade do crime tentado, pois a pesca poderia não ocorrer por circunstâncias alheias à vontade do agente. O núcleo do tipo é pescar e o elemento subjetivo das condutas típicas é o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de pescar, utilizando-se dos meios ilícitos ou em desacordo com as normas regulamentares. Considerações finais Especificamente, este trabalho se limitou a apresentar apenas os fundamentos da tutela da ictiofauna pantaneira, discorrendo sobre o art. 225, § 3º da Carta Maior e artigos 34 e 35, da Lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais). Tratou-se da competência constitucional em matéria ambiental e de sua repartição entre os entes federados de forma sintetizada. Em termos gerais, foi registrado que tal repartição, segundo posicionamentos doutrinários, deverá obedecer à predominância do interesse, sendo o interesse geral de competência da União, o interesse regional de competência dos Estados membros e o interesse local de competência dos municípios. Notou-se que a competência privativa da União não é absoluta, podendo os Estados legislarem em matérias específicas enumeradas pela Constituição, desde que haja Lei complementar nesse sentido. Observou-se que pertence ao estado-membro o “poder-dever” de editar dispositivos regulamentares, completando as normas penais em branco e disciplinando a proteção da natureza ou a exploração e utilização dos recursos naturais. Exercendo o poder de polícia ambiental, cabe a ele adotar as medidas tendentes a combater a poluição e preservação do meio ambiente. Cabe ressaltar que não há dúvida quanto à constitucionalidade ou à juridicidade das normas estaduais ou municipais que complementem as normas penais em branco ou fundamentem o juízo valorativo dos elementos normativos, desde que tal complementação seja mais benéfica à natureza. Entretanto, não raras vezes, duas ou mais normas, em pleno vigor, podem regulamentar a mesma conduta típica, se apresentando de forma conflituosa. Assim, para a aplicação da norma ao caso concreto, o aplicador da sanção se recorre aos princípios constitucionais para definir como proceder. um desses princípios norteadores, como visto, é o da predominância da norma mais restritiva a ação humana. Porém, o mencionado preceito não está sendo lembrado em pleno patrimônio nacional. Tentar-se-á esclarecer tal assertiva com as seguintes considerações: • O Pantanal é um patrimônio nacional, devendo prevalecer assim, o interesse geral de sua tutela, qual seja, o da União. • Os Estados Federados não possuem competência legislativa em matéria penal, pertencendo privativamente à união tal competência. • Sabe-se que a aplicação da conduta criminosa pesqueira depende de normas que regulamentem o tamanho mínimo para a captura, a cota de pescado por pescador, os petrechos, períodos e locais permitidos para a prática da pesca, etc. • As normas regulamentares do IBAMA são aplicáveis em todo o território nacional, especialmente nos rios de interesse da União (interesse geral). • As normas da SEMAC são aplicadas no Estado de Mato Grosso do Sul, nos rios de interesse regional. • Existe, como observado, uma contradição nas tabelas de pescado fixadas para a mesma região (Pantanal sul-matogrossense) entre o IBAMA e a SEMAC. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 105 BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J. Posto isso, pode-se dizer que, ao não compatibilizar suas normas com as Portarias do IBAMA, o Estado de Mato Grosso do Sul está sendo mais permissivo à exploração da pesca. Agindo assim, está consentindo na retirada de espécies que ainda não atingiram o tamanho mínimo para a reprodução, o que pode levar a extinção dessas espécies do bioma pantaneiro, afetando toda a cadeia alimentar dessa fauna. Portanto, pode-se afirmar que as normas regulamentares estaduais, neste caso, devem acompanhar sistematicamente a legislação federal ou, no mínimo, serem mais restritivas ao homem, pois o Pantanal, como determinado pela constituição, é um Patrimônio Nacional, devendo prevalecer o interesse geral de sua tutela. As normas regulamentares estaduais devem ter eficácia somente nas águas de interesse ou competência regional. Assim, a melhor solução para compatibilizar tais normas, de forma que permaneçam em plena harmonia, seria a elaboração de uma Lei Ordinária para a tutela ambiental do Pantanal. Com isso, possivelmente, se dissipariam quaisquer dúvidas sobre a prevalência de interesses, beneficiando a natureza e todos aqueles que contemplam ou exploram os recursos naturais desse “patrimônio mundial”. notas Fauna ictiológica: fauna aquática. Período de defeso: época em que os peixes sobem os rios para o ciclo da reprodução (piracema). 6 Sistema Nacional do Meio Ambiente 7 Federalismo: é a união permanente e indissolúvel de Estados autônomos, mas não soberanos, sob a égide de uma Constituição, sendo certo que, entre eles, já há uma repartição interna de atribuições governamentais, sendo-lhes vedada, porém, a secessão. José Geraldo Brito (FILOMENO, 1997, p. 89) 8 Art. 22, xVII, CF/88: Compete privativamente a união legislar sobre: [...] xVII – organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos territórios, bem como organização administrativa destes [...]. 9 SEMAC: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, das Cidades, do Planejamento, da Ciência e da Tecnologia. 10 IMASuL: Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul. 11 Embrapa: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (A pesca no Pantanal Sul: Situação atual e Perspectivas, 2004, p. 17). 4 5 106 12 Crimes formais: São aqueles em relação aos quais a lei descreve uma ação e um resultado, mas a redação do dispositivo deixa claro que o crime consuma-se no momento da ação, sendo o resultado mero exaurimento do delito. (GONÇALVES, 2003, p. 10) Bibliografia CANOTILHO, José Gomes, MORATO LEITE, José Rubens (org). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. ______. Curso de Direito Penal. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2008. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2006. FERREIRA, H. S. “Competências Ambientais”. In: José Gomes, MORATO LEITE, José Rubens (org). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. FILOMENO, José Geral Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1997. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. V. 1. São Paulo: Editora José Bushatsky, 1958. FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a Efetividade das Normas Ambientais. São Paulo: RT, 2005. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal: Parte Geral. Vol. 7. São Paulo: Saraiva, 2003. LOBO, P. L. N. Competência Legislativa Concorrente dos Estados-membros na Constituição de 1988. Revista de informação legislativa. Vol. 101. Brasília, Senado Federal, jan.-mar., 1989. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2004. MuKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004. SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2007. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF Artigo oS funDAmEntoS tEóriCoS E PrátiCoS Do gArAntiSmo no Stf Grupo do Ativismo Judicial IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo* rESumo: O estudo objetiva contrapor as categorias de judicialização e de ativismo judicial importantes para delimitar as decisões do STF com a concepção de garantismo. A jurisdição constitucional brasileira com certa freqüência tem adotado nos seus julgamentos tal parâmetro teórico-prático. Propõe-se a análise da sua origem no pensamento doutrinário de Luigi Ferrajoli. O garantismo na análise proposta não é visto no sentido estrito ao campo do Direito Penal. A escolha de dois julgados garantistas do STF leva a conclusões, também, de que ele não pode ser resumido apenas a garantias constitucionais. Há, dessa forma, a necessidade permanente de contextualizar numa complexidade institucional prática como é a do Supremo Tribunal Federal. Palavras chave: Ativismo Judicial. Judicialização. Garantismo. ABStrACt: The aim of this study is to compare the categories of judicialization and judicial activism that are important to evaluate the decisions of the STF (meaning Brazilian Supreme Court in Portuguese) based on the conception of civil rights’ protection. The Brazilian constitutional jurisdiction has often adopted, in its trials, this abstract and practical concept. The proposal is to analyze its origin in Luigi Ferrajoli doctrinal thought. The conception of civil rights’ protection is not taken in the strict sense of Criminal Law. The choices of two civil rights’ protection trials also lead us to the conclusion that it cannot * O Grupo do Ativismo Judicial é integrado pelo professor Alexandre Garrido da Silva, universidade Federal de uberlânida, Anna Federici Araujo, Bacharel em Direito pela PuC-Rio, Bernardo Medeiros, Mestre em Direito pela PuC-Rio, Daniella Peçanha, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Eduardo Pereira Vals, graduando em Direito do Ibmec-RJ, Fermando Gama, universidade Federal Fluminense, Havine Santos Muri Rodrigues, Bacharel em Direito pelo Ibmec-Rio, Jorge Chalub, Mestre em Direito pela PuC-Rio, José Ribas Vieira, Ibmec, PuC-Rio, Julliano Castro, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Karine Souza, graduanda de Direito do Ibmec-RJ. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 107 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo be limited to constitutional guarantees. Therefore, there is the permanent need of understanding the institutional complexity context, a common practice in STF. Keyword: Judicial Activism. Judicialization. Civil Rights’ Protection. 1. introdução A adoção de um modelo constitucional com uma ampla carta de direitos fundamentais ensejou na Corte Constitucional brasileira um movimento que prega, essencialmente, a sua efetivação: o garantismo. A este cenário agregase a mudança de composição desta Corte, a partir do primeiro mandato do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, e a reforma do Poder Judiciário, por meio da Emenda Constitucional nº 45/04, contribuindo para uma mudança de postura das instituições judiciárias. Observa-se um novo desenho institucional, sob qual o Supremo Tribunal Federal adquire o papel de protagonista. A aproximação com o sistema de tais garantias constitucionais provoca um questionamento, na expectativa de compreender a sua fundamentação teórica. O presente trabalho, nesse sentido, tem por fim analisar esta postura da jurisdição constitucional brasileira vinculada a um debate do garantismo, principalmente como é formulado pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli. Pretende-se, pois, identificar a origem e definição deste fenômeno, de modo que se faça possível avaliar as manifestações dos Ministros do STF, em especial diante de dois outros fenômenos que acometem esta Corte, a saber: o ativismo judicial e a judicialização da política. De fato, paralelamente à expansão de uma política garantista, também se fazem presentes os movimentos do ativismo judicial e da judicialização da política. Estes, contudo, embora dotados de semelhanças, também comportam diferenças. A judicialização da política envolve um processo de todo o Poder Judiciário, de cunho essencialmente procedimental. O ativismo judicial, ao contrário, direciona-se aos atores deste Poder. A judicialização da política, tal qual defendida por Tate e Vallinder1, pode ser identificada por 108 meio de instrumentos de proteção judicial, da migração de discussões do Legislativo para o Judiciário através de impugnações ou, ainda, pela adoção de procedimentos tipicamente judiciais no Legislativo e no Executivo. Em contra partida, o ativismo judicial, também descrito pelos autores, seria um fenômeno no qual os juízes passam a se interessar por uma atuação política, isto é, de participar do policy-making2. Em uma escala comparativa, a judicialização da política seria um fenômeno maior dentro do qual poderia ser encontrado o ativismo judicial. Diante de tal perspectiva, este trabalho propõe-se a desvendar se haveria uma articulação do garantismo com os demais fenômenos hoje identificados no STF. Deste modo, pretendese verificar se, independentemente do lastro doutrinário de Ferrajoli, estaria a aplicação das garantias constitucionais articulada a uma instrumentalização de ativismo judicial. Há, pois, a seguinte situação-problema: poder-se-ia aferir que o Poder Judiciário brasileiro adota a linha de garantismo ou seria algo distinto do perfil institucional decisório do STF? Vale dizer, a respeito desta temática de garantias constitucionais, com a sua possível interface com o ativismo judicial, este artigo não se limita apenas ao parâmetro estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal. Há um direcionamento desta análise para o fato de que a sua efetivação contribui para compreender o debate atual na sociedade brasileira no tocante a teoria constitucional contemporânea. Assim, seguindo a leitura de Rosalind Dixon3, registra-se que as denominadas sociedades anglo-saxônicas passaram nesses últimos anos pelo “novo constitucionalismo da commonwealth”, caracterizado pela aproximação do Poder Legislativo com o Judicial Review. Isto é, por um processo de sedimentação de “weak-judicial review” com a efetivação de direitos. A teoria constitucional contemporânea, recepcionada no Brasil por influência dos constitucionalismos alemão, italiano e espanhol, vivenciou duas discussões doutrinárias relevantes, a saber: o neoconstitucionalismo4 e o garantismo. Por conseqüência, há aqui a intenção de descrever essa presença garantista no Brasil e suas Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF especificidades, como é o caso de uma possível interlocução com o ativismo judicial. Para tanto, o estudo realizado divide-se em dois conjuntos, quais sejam, 1) qualificar e tipificar o garantismo proposto por Luigi Ferrajoli e suas interações com o pensamento jurídico brasileiro contemporâneo; e 2) aplicar essa análise a determinadas decisões do STF no período de 2008-2009, considerando as garantias constitucionais especiais. Há, dessa forma, um entendimento ampliado a respeito do espectro do garantismo envolvendo inclusive questões políticas. 2. Democracia e direitos fundamentais em ferrajoli O início do século xxI aponta para uma maior ênfase à teoria democrática. Destarte, da leitura do texto Las Garantías Constitucionales de los Derechos Humanos5, pode ser constatada uma estrutura político-institucional, articulando o conceito de democracia com a efetivação dos direitos fundamentais. Tal direcionamento significa uma perspectiva doutrinária com o objetivo de agrupar teoria do estado, teoria do direito e teoria da democracia. Ferrajoli observa que, normalmente, a concepção de democracia é reduzida a um arranjo institucional na forma de tomada de decisões políticas que se limita a uma mera expressão de “vontade da maioria”. O delineamento formulado nesse quadrante é uma preocupação, como se traduz numa força majoritária rousseauniana ou, nos Estados unidos, de caráter madisoniano. Assim, o jurista italiano aproxima-se de um debate contemporâneo de relevância que objetiva, sobretudo, definir o processo democrático.6 Partindo à sistematização de Ferrajoli, a forma de democracia por ele questionada pode ser denominada formal ou procedimental. Isso em razão da sua legitimação residir apenas na simples manifestação da soberania popular, no sentido de que somente há obrigação para o indivíduo na linha de ser a decisão o resultado de quem a toma e se traduzir como o próprio destinatário da norma, enquanto maioria. É inegável que a dimensão formal expressa um componente inalienável da democracia, mas não é o único elemento a ser considerado, segundo a lição do italiano. Nesse sentido, o autor central do garantismo destaca determinados argumentos para que a democracia não seja abreviada a sua dimensão formal, quais sejam: 1) a concepção formal falha em explicar as democracias contemporâneas, pois estas trazem a noção de Estado de Direito e Estado Constitucional. Em ambos os casos, a soberania popular não é ilimitada, pois o Poder Legislativo passa a estar restringido por certas normas constitucionais, como o princípio da igualdade e os direitos fundamentais; 2) uma democracia não estará apta a sobreviver sem um mínimo de limite substancial necessário, independentemente de serem ou não apenas pressupostos. Caso contrário, poderse-ia suprimir os mecanismos democráticos através da vontade da maioria; 3) a democracia formal se baseia na noção de vontade popular, mas esta só surge quando a liberdade de expressão se concretiza em todas as suas modalidades. Num outro aspecto, os direitos de liberdade só se tornam realmente efetivos se houver a presença dos demais direitos fundamentais garantindo um mínimo existencial, principalmente no tocante à educação e à informação. Em outras palavras, a vontade só é manifestada de forma plenamente livre, quando o locutor possui como base todo um conjunto de direitos básicos garantidos.7 Como objeção às afirmativas de Ferrajoli, cabe ponderar, a título de reflexão, que não há propriamente uma quebra da vontade da maioria. Ao contrário, o poder constituinte originário seria exatamente a expressão mais próxima desta soberania popular, daí resultando o fato do Poder Legislativo estar vinculado à Constituição, justamente em maior respeito à democracia formal. Faz-se importante assomar, ainda no tocante aos direitos fundamentais, que a posição de Ferrajoli revela certa limitação. Como pano de fundo, está o estudioso do garantismo afirmando que os que não tem acesso a estes direitos Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 109 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo fundamentais não são aptos a decidir o que é melhor para eles. Ora, seria o caso de ponderar se a falta de educação formal impede alguém de avaliar perspectivas e propostas. Todavia, a questão é ainda mais complexa e, não é que se afaste totalmente do jurista defensor do garantismo, apenas destaca-se que este ponto deveria ser tratado com mais cuidado. Se assim fosse, traria como consequência lógica a ideia de que não há democracia até que todos tenham acesso a certos direitos sociais fundamentais, o que, apesar de discursivamente impactante, não parece uma afirmativa suficientemente adequada. Ademais, no meio tempo, entre ter e não ter democracia, haveria o sério risco de afirmar que não há, propriamente, uma expressão da vontade popular, mas da parte informada e daquela ainda não apta a decidir. Nessa linha, os últimos não se mostram capazes de apontar o que seria melhor para eles e para o coletivo, o que é um passo distante de afirmar que a melhor decisão seria aquela materializada pelo grupo dos que tem acesso à informação, visto que tal conclusão ocasionaria perigosas implicações óbvias8. Evidentemente, não se cogita a hipótese desta acarretar um tênue retorno a um regime totalitário. Esse raciocínio contraria os pressupostos acima e traduz, como resultado, uma visão técnica do governo; algo próximo de uma tecnocracia aos moldes de Weber. É certo que se trata de um exagero que parte do pressuposto das inferências do autor, mas serve para apontar que talvez tal argumento apresentado seja frágil em termos prático-teóricos. quanto à natureza social da democracia, lembra Ferrajoli, a noção de vontade da maioria como verdadeira expressão da soberania popular está baseada numa visão organicista e comunitária da sociedade. Por conseguinte, na verdade, apagaria a diversidade e o conflito inerente a todo grande agrupamento social, sublinhando que a vontade da maioria é a manifestação de todos, quando, de fato, é apenas a vontade da maioria. Algo que pode servir para mascarar um componente ideológico que busca exatamente suprimir essas diversidades culturais e sociais, em prol de um determinado ideal de povo.9 110 Ao ser destacado o sentido social da maioria no pensamento de Ferrajoli, cabe indagar acerca de certa proximidade de sua argumentação com a crítica ao fundamento meramente majoritário expressa em Jürgen Habermas. O então teórico alemão assevera, nitidamente, contra a limitação do ideário democrático à homogeneidade resultante da maioria e opta por uma visão discursiva de sentido consensual.10 Exatamente para coibir possíveis abusos, surge o constitucionalismo como forma de garantir a democracia, entendida agora não mais como algo apenas formal. O constitucionalismo retira da maioria o poder de dificultar ou impedir que a minoria um dia se torne maioria, o que apresenta, necessariamente, um componente substancial. A soberania popular pode ser, desse modo, entendida de duas formas: 1) em sentido literal, ou seja, a soberania como pertencente ao povo como um todo. Logo, ninguém, nem mesmo o Legislativo, possui o direito de se considerar como expressão da vontade do povo. É um princípio de legitimação da democracia; 2) em sentido figurado, a soberania popular é composta exatamente pelos direitos fundamentais de cada um dos cidadãos individualmente, de modo que a violação do direito fundamental de uma pessoa, é uma violação da soberania popular. Vale observar, no entanto, que é passível de crítica esta última modalidade de soberania popular, visto que não se compreende, com exatidão, como se articula com o universo dos direitos fundamentais. um aspecto é afirmar que os direitos fundamentais possibilitam o exercício pleno da soberania popular ou que eles são pressupostos dela. Posição muito diferente é afirmar que a soberania popular resulta da soma dos poderes e contrapoderes de todos, entendidos estes como os direitos fundamentais de cada um. A partir dos argumentos acima, deduz-se que as garantias constitucionais dos direitos fundamentais, em suas quatro dimensões, são, também, instrumentos de defesa da democracia. Portanto, o garantismo é tanto uma face do constitucionalismo, quanto um pressuposto da democracia. A rigidez constitucional não é garantia, mas característica inerente à posição que ocupa Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF a Constituição na hierarquia das normas. Esta característica confere aos direitos fundamentais uma dimensão negativa (impedimento de violação) e uma positiva (expectativa de execução). Argumenta-se, no entanto, que esta rigidez acaba por limitar os próprios princípios da democracia para as gerações futuras, já que estas estarão impedidas de escolher que normas são melhores para elas, estando o “povo” de mãos atadas, frente a normas já possivelmente datadas. Segundo o autor examinado no presente estudo, em realidade, o que estas garantias fazem é impedir que a geração atual impeça as gerações futuras de exercer uma soberania popular plena, pois como já dito, os direitos fundamentais são garantias da própria democracia. Logo, o que eles deixam fora do campo decisório é para se possibilitar a própria democracia. Assim, as mãos estão atadas em parte para que não se permaneçam dessa forma ainda mais no futuro. A única maneira de o povo romper com esse processo institucional, ao descartar os direitos fundamentais é rompendo com a ordem constitucional e instaurando este regime autoritário. A título de reflexão, registre-se que essa postura de Ferrajoli não resolve o problema principal, isto é, de saber o que são direitos fundamentais. Como os direitos sociais, o rol de direitos fundamentais aumentou muito, o que pode levar a uma banalização dos mesmos, sobretudo em tempo onde o discurso acerca da dignidade da pessoa humana eleva tudo ao patamar de direito fundamental. Em relação às garantias constitucionais, estas podem ser divididas em duas formas: negativas e positivas. As garantias negativas impedem a produção de normas contrárias a elas, como as normas sobre alteração constitucional e controle de constitucionalidade. As primeiras (garantias negativas primárias) incluem limites absolutos e limites relativos, assim como limites explícitos e implícitos. As segundas (garantias negativas secundárias) podem estabelecer um modelo difuso ou concentrado, sendo o segundo o mais eficaz. As garantias positivas obrigam o legislador a promulgar uma legislação que dê efetividade a estes direitos. Segundo o autor, na ausência de garantias de efetividade para estes direitos, não temos lacunas, mas sim a efetiva inexistência do direito, pois, seguindo a concepção de Kelsen, só é direito aquilo a que corresponde um dever, logo se não há meio de se exigir do Estado o cumprimento do direito, já que não se trata de direito. Tal aspecto contradiz os pressupostos do positivismo, porque limita a positividade de certas normas jurídicas, e do constitucionalismo. Outrossim, retira o patamar elevado das normas constitucionais que carecem deste tratamento de efetividade. Vale, porém, pensar que há uma garantia concreta acerca destes direitos: a garantia de que se produza a norma reguladora. Mas esta é uma garantia fraca, pois é difícil assegurar a efetividade mediante uma garantia positiva secundária - controle de constitucionalidade nos casos de omissão - e porque está é uma meta-garantia - garantia de se introduzir uma garantia forte. Pode afirmar-se, ponderando, que toda norma constitucional possibilita a eficácia negativa que impede a produção de normas em sentido contrário. Assim, mesmo que a garantia positiva não esteja efetivamente garantida (não seja direito), ela ainda produzirá efeitos desta forma, logo, será algo. O ponto é que este algo não é direito, mas mera garantia negativa – o que é bem diferente. É mister registrar que na posição do autor – e, de fato, aplica-se a noção kelseniana de direito – não haveria, propriamente, direitos nesse ponto, mas meras enunciações. Tal fato não está retirando a força normativa dos direitos fundamentais de caráter positivo. Pelo contrário, está evidenciando a deficiência legislativa e indicando ainda mais fortemente a necessidade de mudanças. Esta posição não diminui a eficácia negativa, nem a possibilidade de se exigir em juízo o direito, mas apenas busca um rigor maior no uso do termo “direito”. É exatamente na lacuna ou na inefetividade das garantias legislativas (leis que garantiriam a efetividade dos direitos constitucionais) que reside o principal fator de ilegitimidade constitucional dos nossos ordenamentos. Carece-se Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 111 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo de garantias primárias para os direitos sociais e de técnicas jurídicas que constranjam o poder público a introduzir tais normas. Pontuando de uma forma global a proposta reflexiva sobre a democracia e os direitos fundamentais ao sublinhar a respeito dessa articulação dessas duas variáveis identificando o grau de legitimidade do ordenamento constitucional. Pois este se traduz pela efetividade das garantias dos direitos constitucionalmente estabelecidos e identificando a sua ilegitimidade com suas violações ou – pior – com sua lacuna11 3. o garantismo e o Direito Penal A compreensão do pensamento de Ferrajoli expressa que sua concepção de garantismo se ocupou, primeiramente, da matéria penal, preocupando-se em delimitar uma doutrina jurídica menos interessada na punição cega dos alvos preferenciais do sistema punitivo e mais com uma compreensão global do fenômeno criminoso, sensíveis às particularidades deste ramo do Direito. Nesta linha, deve ser destacada uma das primeiras obras que tratou diretamente do tema, ensaiando uma explicação do garantismo profundamente comprometida com os direitos fundamentais, exatamente como prelecionava Ferrajoli na sua obra primeira, conforme visto acima. As interpretações do quadro teórico desse jurista italiano mereceram de Amilton Bueno de Carvalho e de Salo de Carvalho na obra Aplicação da pena e Garantismo, mais especificamente, no primeiro capítulo redigido pelo segundo autor, intitulado “Estado Democrático de Direito e Garantismo: considerações a partir do princípio da secularização”, no qual Salo aponta essa possibilidade de demarcar o garantismo no tratamento penal. O garantismo penal é entendido como forma de se racionalizar a intervenção penal, afastando o uso do direito penal como controle social em detrimento dos direitos e garantias individuais. O garantismo, então, cria um “instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados”.12 112 O direito penal e o processual penal são vistos como formas de se proteger o mais fraco da relação, que, no momento do delito, é o ofendido, mas que, durante o processo, é o réu. Nesta linha, portanto, o garantismo representa principalmente um limitador do arbítrio estatal, pois os direitos fundamentais, ao estarem fora da esfera de decisão, impedem certas posturas por parte do Estado. A garantia desses direitos são, pois, condições básicas de convivência. O ponto de partida do garantismo é o princípio da legalidade, mas isto não faz com que legalidade e legitimidade se identifiquem. Aqui, pelo contrário, se cria uma clara cisão entre os dois conceitos, assim como entre vigência e validade, pois a última subordina a norma aos “valores materiais” expostos na Constituição. Daí, não há presunção de que os atos estatais são sempre regulares, pois não basta o respeito ao formalismo legislativo para que a norma seja tida como válida. Com isso, o garantismo destaca a responsabilidade ética que envolve a função do que aplica o direito, pois este passa a ter como dever a constante verificação da validade das normas, a partir destes direitos fundamentais constitucionais. Recuperando a herança do movimento italiano da magistratura livre, da qual foi um dos principais representantes, Ferrajoli nos ensina que: A interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, que corresponde ao juiz, junto com a responsabilidade de eleger apenas os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 Era isto, e não outra coisa - diga-se de passagem - o que entendíamos há vinte anos com a expressão ‘direito alternativo’, recordado por Perfecto Ibañez, e em torno da qual se produziram tantos equívocos: interpretação da lei conforme a Constituição e, quando o contraste for insanável, dever do juiz de declarar a invalidade constitucional; portanto, nunca sujeição a lei de forma acrítica e incondicionada, OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF mas sujeição sobretudo a Constituição, que impõe ao juiz a crítica das leis inválidas através da reinterpretação em sentido constitucional e a denúncia de sua inconstitucionalidade.13 Como no processo penal o mais fraco é o réu, o garantismo visa criar uma série de limites e freios ao exercício arbitrário do poder de punir, com o intuito de garantir os direitos fundamentais do réu, sobretudo no que tange aos direitos individuais. Daí a criação de requisitos como legalidade, necessidade, lesividade, dentre outros, pois aqui sempre se está buscando uma racionalização do poder de punir, tendo como principal garantia as garantias fundamentais positivadas na Constituição, mas, principalmente, o primado da liberdade. 4. o garantismo e seu dimensionamento constitucional Na leitura do texto Garantismo jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração Pública, de autoria de Adriano De Bortoli14, apresentado no xVI CONPEDI, depreende-se uma reflexão mais detalhada dessa relação entre o Estado Constitucional e o garantismo. Segundo Ricardo Guastini, jurista citado pelo autor, é delimitada a seguinte conceituação da função garantista: uma organização jurídica diz-se garantista quando inclui estruturas e instituições aptas a manter, oferecer proteção, defender e tutelar algumas liberdades individuais bem definidas. Dessa forma, um jurista legitima-se como garantista quanto dirige suas atividades para o aumento ou eficácia das estruturas e dos instrumentos oferecidos pela organização jurídica para tutelar, defender, etc, as liberdades individuais.15 Acrescente-se a lição Eligio Resta: (O garantismo é) um liberalismo sui generis. A motivação é que, de uma parte, ele adere a um modelo de “Estado social de Direito”, “ou seja, a um ordenamento que confere e garante não só direitos de liberdade, mas principalmente direitos sociais”, contudo, “não se estende ao direito de propriedade e nem mesmo por esta razão à liberdade econômica” que o pressupõe. Por esse raciocínio - é a conclusão de Guastini - o Garantismo é, por assim dizer, “incompleto”.16 Para Ferrajoli, cotejando com as observações anteriores, o garantismo possui sentidos diversos: 1) modelo normativo de Direito (mais garantista é o sistema que se aproxima mais das garantias previstas no texto constitucional); 2) teoria jurídica de validade, vigência e eficácia (só é válida a norma que se adequar a certos requisitos substancias; vigência e validade conferem justiça interna, mas apenas a concordância do ordenamento com valores políticos externos confere justiça externa); 3) teoria política (o garantismo é uma forma de positivismo, pois vincula todo exercício de poder à lei, mas se distancia dele, pois não iguala vigência à validade, nem validade à eficácia); 4) e filosofia política (o Estado deve buscar justificação externa). A partir deste universo, deduz-se que o garantismo tem como características: 1) a vinculação de todo o funcionamento estatal à normatividade; 2) a divergência entre validade e vigência; 3) e uma ilegitimidade jurídica irredutível (pois o juízo feito pelo juiz, quando da análise da validade, insere um componente valorativo. Pondera-se, contudo, certa limitação, pois esse procedimento, por si próprio, confere certo grau de ilegitimidade, visto que toda decisão judicial possui um componente valorativo inerente a ela. Se não existe juiz neutro e imparcial, logo toda decisão possui certo tanto de ilegitimidade; o que afasta a crítica. Entretanto, poder-se-ia argumentar que no garantismo este componente valorativo é mais forte e mais decisivo). O Estado Garantista não está só vinculado pelo princípio da legalidade em todos os planos, mas também pela funcionalização do próprio Estado, no sentido de garantir os direitos fundamentais. Todo poder se encontra limitado por deveres jurídicos. O Estado Liberal limita-se às garantias negativas, enquanto o Estado Social inclui prestações positivas como parte da ação estatal. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 113 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo O garantismo se insere na tradição positivista, mas tem um olhar crítico sobre a mesma, pois não identifica vigência com validade. Ao fazer tal separação, abre-se para o juiz a possibilidade de um juízo valorativo que negará a validade a certar normas. O SG só pode se concretizar com a articulação do ordenamento como um todo e com a dissociação entre vigência e validade, que permite a crítica das normas através do juízo de validade, que compara a norma analisada a certos parâmetros de hierarquia superior. Todavia, ressalta que ao assumir tal postura não está negando a separação entre Direito e moral e entre juízos de validade e juízos de justiça, mas reafirmando a tarefa do jurista – não só cívica e política, mas, acima de tudo, científica, de valorar a validade ou invalidade das normas conforme parâmetros de validade tanto formais quanto substanciais estabelecidos pelas normas de hierarquia superior.17 O jurista ao criticar o direito vigente (e para Ferrajoli isto é fazer ciência) assume os valores constitucionalmente positivados como parâmetros do próprio discurso jurídico, independentemente da sua adesão moral. (…) Assim, os juízos de validade são científicos e desempenham um controle da produção normativa, comum ao Estado de Direito.18 Esta análise de validade compara a norma a certos critérios provenientes de níveis superiores (principalmente de natureza constitucional), mas, exatamente devido ao componente valorativo, não é possível estabelecer critérios de verdade acerca do juízo. A coerência do sistema jurídico não seria característica inerente, mas sim um ideal limite que o jurista deve ter em mente quando for realizar este juízo de validade, sendo este exatamente o principal papel do mesmo. Sublinhe-se, ainda, que o garantismo exige a justificação externa do Estado por meio dos direitos vitais dos cidadãos. Assim, só é legítimo o Estado que cumpre este seu papel. Daí a aporia da irredutível ilegitimidade política do Estado, pois os direitos fundamentais nunca estarão plenamente satisfeitos para todos. Também na linha que expande a preocupação do garantismo para além da doutrina penal, podemos destacar a produção de Sérgio Cademartori, um dos pioneiros neste tipo de abordagem no Brasil. Seu texto Apontamentos iniciais acerca do Garantismo auxilia para delimitar com precisão a concepção do garantismo. O garantismo não é uma teoria formal, pois não nega seu caráter prescritivo. O Sistema Garantista (SG) se funda no positivismo e no constitucionalismo. A mera legalidade é condição necessária para o Garantismo, mas não esgota seus pressupostos. 114 Os direitos fundamentais servem como critério de deslegitimação do poder, antes de servir como critério de legitimação. Os direitos fundamentais não se confundem com direitos patrimoniais, pois são sempre universais, indisponíveis e seu exercício não implica que outro abdique de nada, mas há de se levar em consideração que a concretização de direitos fundamentais depende de orçamento e que o orçamento é finito. A última assertiva só faz sentido num plano abstrato, que é exatamente o que o garantismo busca evitar, meras abstrações. Refuta-se o legalismo ético, que aproximaria Direito e Moral, por meio da necessidade de um ponto de vista externo; um modelo heteropoiético do Direito que faz com que se exija a legitimação no lado de fora do próprio direito. Exatamente pelo fato de Moral e Direito não se identificarem, não há uma obrigação moral de se respeitar o Direito, assegurando o direito de resistência que surgirá exatamente quando o SG não mais for capaz de prover os direitos fundamentais. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 Sendo a discricionariedade a essência do poder, a sua sujeição ao direito é a maior conquista das instituições jurídicas liberais. Neste sentido, o Sistema Garantista pode ser definido como uma técnica de diminuição da discricionariedade e maximização das expectativas garantidas como direitos fundamentais.19 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF Isto aproxima o Garantismo de Dworkin, que também queria reduzir a arbitrariedade das decisões judiciais no caso das chamadas lacunas, daí a criação do conceito de princípio como norma dotada de positividade suficiente para vincular a decisão do julgador. Seu texto A relação entre Estado de Direito e Democracia no pensamento de Bobbio e Ferrajoli já demonstra uma preocupação em entender o garantismo em consonância com um determinado conceito de democracia, se alinhando, assim, à produção mais recente de Ferrajoli, conforme visto acima. Sendo assim, a utilidade da leitura de Cadematori instrumentaliza-se de modo a acentuar a presença de um projeto de Estado e de sociedade por parte do jurista italiano examinado. Segundo o professor da UFSC, para Ferrajoli, os poderes do Estado se legitimam formal (princípio da legalidade e sujeição do juiz à lei) e substancialmente, por meio da função judicial e sua capacidade de tutelar os direitos fundamentais, sendo que a segunda pressupõe a primeira. Logo, na ausência completa de lei, o juiz não possui outra saída que não a denegação da justiça, mesmo que acredite que o pedido deveria estar abarcado dentro do rol dos direitos fundamentais. O garantismo leva à democracia substancial ou social, pois passa a exigir a efetivação dos direitos fundamentais positivos, como as questões de moradia, saúde e educação. Assim esta democracia se funde ao Estado de Direito. Ferrajoli cria quatro classes de direitos fundamentais: 1) direitos humanos (reconhecidos a todas as pessoas, como vida, integridade, saúde, etc.); 2) direitos públicos (concedidos apenas aos cidadãos, como direito ao trabalho, residência, assistência pública); 3) direitos civis (apenas para aqueles com capacidade de fato, como poder negocial e liberdade de iniciativa empresarial); 4) e direitos políticos (somente para cidadãos com capacidade de fato). Ferrajoli leciona: Precisamente, se a regra do Estado Liberal de Direito é que nem sobre tudo se pode decidir, nem sequer por maioria, a regra do Estado Social de Direito é que nem sobre tudo se pode deixar de decidir, nem sequer por maioria; sobre questões de sobrevivência e subsistência, por exemplo, o estado não pode deixar de decidir, inclusive ainda que não interessem à maioria.20 Assim, no Garantismo, a expansão da democracia não se resume ao aumento dos espaços decisórios e de debate público, mas exige, necessariamente, “la tutela sustancial de derechos vitales siempre nuevos y, a la vez, mediante la elaboración de nuevas técnicas garantistas aptas para asegurar una mayor efectividad” (Ferrajoli). Sérgio Cademartori também nos traz uma importante contribuição para o pensamento brasileiro acerca do garantismo no seu livro Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista.21 Tendo como principal referencial teórico a obra Direito e Razão de Ferrajoli, o livro de Cademartori tem como principal objeto a compreensão de como a teoria garantista propõe uma diferente forma de legitimação do Estado de Direito: O Estado e o Direito não são vistos como valores em si mesmos ou absolutos, que se autojustificam, mas sim são vistos como meios ou instrumentos que de fato perseguem (ou não) , em cada caso concreto, fins extrajurídicos úteis, desejáveis, axiológica ou politicamente “justos”.22 A teoria de Ferrajoli introduz a importante distinção entre ponto de vista interno e ponto de vista externo, quando da análise da ordem jurídica. Enquanto que o primeiro se limita a analisar a concordância das normas existentes com a lógica do próprio sistema, a segunda abordagem exige uma visão distanciada do ordenamento jurídico, partindo da compreensão de um conjunto axiológico extrajurídico, portanto, ético e moral, tornando a teoria garantista essencialmente democrática, pois serão as próprias pessoas que poderão fazer tal avaliação e não algum órgão centralizado, como no caso do ponto de vista interno, que sempre nos remete aos tribunais superiores. Ainda na esteira da legitimação, o autor brasileiro ressalta a importância da noção de Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 115 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo legitimação substancial, segundo a qual o Estado só se legitima na medida em que garante os direitos fundamentais, seja refreando-se de medidas que violem os direitos de liberdade, seja promovendo positivamente políticas em prol da implementação dos direitos sociais. Apenas o Estado capaz de dar conta destas duas exigências poderá ser visto como legítimo substancialmente – sendo, porém, que tal legitimação exige que previamente já haja uma legitimação formal, que é o respeito ao governo sub leges, ou seja, deve haver respaldo legal para tais políticas. Tal noção aliada a de ponto de vista externo, cria um forte mecanismo teórico de verificação da legitimidade de qualquer Estado, mas aqui Cademartori visualiza uma distinção entre Estado de Direito e Democracia Política, pois o primeiro impediria que na segunda se fosse possível gerar a supressão dos direitos fundamentais, mesmo que por vontade da ampla maioria. Logo, o Estado de Direito, na visão garantista, serviria como um freio aos abusos da vontade da maioria, impedindo que os direitos fundamentais de quaisquer minorias pudessem ser violados. No marco contemporâneo, o Estado de Direito com que trabalhamos não é o liberal, mas sim o Estado Social de Direito. Isto aliado com o raciocínio acima, faz com que surja a noção de democracia substancial, na qual a Democracia Social e o Estado Social de Direito fazem parte de um todo garantista, no qual vigora “um estado liberal mínimo (pela minimização das restrições das liberdades aos cidadãos) e estado social máximo (pela maximização das expectativas sociais dos cidadãos e correlatos deveres de satisfazê-las por parte do estado)”23. Cademartori destaca, de forma interessante, algumas passagens da Constituição que demonstram de que forma podemos afirmar que o Brasil é sim, teoricamente, um Estado Constitucional de Direito, enquanto um sistema de garantias. Dentre elas podemos ressaltar: 1) o art. 5º, §2º, que apresenta uma cláusula de abertura para que direitos e garantias não positivadas na Constituição também sejam tidos como parte integrante do regime jurídico e; 2) o art. 23, I, que atribui aos diferentes entes federativos a responsabilidade de zelar pelas 116 leis e instituições democráticas, evidenciando o caráter sub leges do Estado de Direito brasileiro. Como podemos ver, então, o conceito de democracia ainda não cumpre uma função central nesta etapa do pensamento de Cademartori. Apesar de importantes passagens como: “Já nos direitos sociais, são determináveis os conteúdos, mas não os limites (sempre poderão surgir novos direitos deste tipo (…)). E é pelo grau e quantidade das garantias adscritas a esses direitos que se pode medir a qualidade de uma democracia.”24 De maneira geral, devido ao fato de ainda estar vinculado apenas à obra Direito e Razão, a doutrina brasileira que pudemos destacar ainda falha em ressaltar a importância do conceito de Democracia para a construção de uma teoria geral garantista. Evidentemente que, ao ressaltar a importância do Estado de Direito e suas manifestações, a doutrina nacional já aponta na direção das publicações mais atuais do mestre italiano, como fica claro pela síntese que Cademartori faz do que é a legitimidade do ponto de vista garantista, como “adequação da produção normativa e da ação administrativa aos valores plasmados nas cartas de Direito fundamentais”25. Da mesma forma, podemos notar uma aproximação dos estudos mais recentes do autor italiano na parte final do livro do autor brasileiro onde o mesmo afirma que: Graças a essa dimensão substancial, o Direito vincula as maiorias não somente quanto à forma de seu exercício (ou seja, os processos de tomada de decisões), mas também em sua substância (referente aos conteúdos que as decisões devem ter ou não ter). Em suma, enquanto o princípio da maioria nos declara quem decide, o princípio da democracia substancial nos diz o que se deve e o que não se deve decidir.26 Assim, o garantismo se torna uma ferramenta para se avaliar concretamente ações governamentais, no que Cademartori já se aproxima muito da produção mais recente de Ferrajoli. Todavia, ainda há um salto a ser feito que pode ajudar qualitativamente na cultura jurídica nacional no que diz respeito a uma discussão mais ampla do Estado de Direito e do Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF próprio conceito de democracia na sociedade contemporânea brasileira. O garantismo, como posto em Ferrajoli, nos aponta claramente para uma discussão do próprio Estado, sua atuação concreta, razões e processo de legitimação. uma análise de tal forma plural ainda não foi adequadamente empreendida na doutrina nacional. Apesar de serem encontrados alguns autores que esboçam ideias próximas às do mestre italiano, uma utilização mais direta da produção bibliográfica mais recente de Ferrajoli e sua aplicação na realidade brasileira, não só apenas no ordenamento jurídico, mas também práticas efetivas dos governos. 5. Estudo de casos: o garantismo no Brasil O procedimento do quadro analítico a respeito das decisões do Supremo Tribunal Federal fundamentou-se numa leitura mais ampla do garantismo não se restringindo somente ao universo penal. Assim, a reflexão a ser materializada privilegiou o tema das políticas públicas dos medicamentos. Para cotejar a postura do Tribunal Maior sobre essa forma de garantismo, houve a contraposição com um contexto mais centrado no campo dos Direitos Fundamentais e no direito à liberdade em termos de prisão cautelar (HC 100574/MG). Para tanto, este estudo pode avançar na delimitação desses dois casos na medida em que foram estabelecidas as seguintes questões: no quadro brasileiro, o garantismo viabiliza-se com a presença de ativismo judicial?; em caso afirmativo, esse citado ativismo teria uma natureza meramente formal ou estaria sob o abrigo de uma preocupação de efetivar Direitos Fundamentais? 5.1. O caso dos medicamentos 5.1.1. Metodologia O Constituinte lançou mão do direito à saúde no rol de “Direitos e Garantias Fundamentais”, da Lei Maior (art. 6º, CRFB/88), posicionando-o no ordenamento jurídico, sem limitá-lo a um simples ideal. Há quem diga que as normas constitucionais relativas à saúde são meramente programáticas, o que as limitaria à determinação de princípios e da finalidade pública do ditame legal que estão atreladas, sem especificar o meio pelo qual o ente público as colocaria em prática; retirando-lhes qualquer pretensão de garantir um direito. O Estado do Rio de Janeiro, ao longo desses anos, quando se viu confrontado, em Juízo, com pedidos de fornecimento de medicamentos, encaminhou a sua resposta apoiado no argumento de que o direito à saúde é um direito social que não faz nascer, em contrapartida, uma obrigação, uma relação jurídica, um vínculo obrigacional (no sentido jurídico do termo) entre os cidadãos e as pessoas jurídicas de direito público.27 (...) 22. O direito à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição Federal é de aplicação imediata a teor do que dispõe o parágrafo primeiro do artigo 5o. A interpretação daquele artigo não deve transformar o seu conteúdo em promessa constitucional, haja vista a magnitude do direito à vida. Nesse sentido, leia-se a seguinte ementa: A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMáTICA NÃO PODE TRANSFORMá-LA EM PROMESSA CONSTITuCIONAL INCONSEqÜENTE. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...) (grifos aditados)28 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 117 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo Quando lidamos com direitos fundamentais, as normas programáticas devem ter aplicação imediata, haja vista que a sua positivação e função estão intimamente ligadas a sua eficácia e aplicabilidade. Ao aceitarmos, pacificamente, a existência de direitos sem garantias, alinhamo-nos, conscientemente ou inconscientemente, entre aqueles que concebem – inconsciente ou conscientemente, também – esteja a Constituição integrada por fórmulas vazias, desprovidas de valor jurídico. Em que pese as concessões de liminares, os entes públicos argumentam que tais medidas prejudicam as finanças públicas e contrariam a legislação ordinária, que veda a concessão de liminar contra o Estado, sem a instauração do contraditório. O que se coloca em xeque é a “saúde financeira” do Poder Público, em nome “saúde física” de um cidadão. Quanto a esta questão da liminar, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que: “(...) Assegurar-se o direito à vida a uma pessoa, propiciando-lhe medicação específica que lhe alivia até mesmo sofrimentos e a dor de uma moléstia ou enfermidade irreversível, não é antecipar a tutela jurisdicional através de medida cautelar, mas garantir-lhe o direito de sobrevivência. (...)”30 Cumpre reconhecer, assim, que a Constituição é, toda ela, norma jurídica e, como tal, todos os direitos nela contemplados têm aplicação direta, vinculando tanto o Judiciário, quanto o Executivo, como Legislador. Sustento, nestas condições, que as normas constitucionais programáticas, sobretudo – repita-se – as atributivas de direitos sociais e econômicos, devem ser entendidas como diretamente aplicáveis e imediatamente vinculante do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.29 Com base em informações coletadas na audiência pública sobre saúde, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, entendeu que medicamentos requeridos para tratamento de saúde devem ser fornecidos pelo Estado. Esta é a primeira vez que o Supremo utiliza subsídios da audiência para fixar orientações sobre a questão. Os dados foram utilizados na análise de Suspensões de Tutela Antecipada (STAs). As STAs 175 e 178 foram formuladas, respectivamente, pela união e pelo Município de Fortaleza para a suspensão de ato do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que determinou à união, ao Estado do Ceará e ao Município de Fortaleza, o fornecimento do medicamento denominado Zavesca (Miglustat), em favor de C.A.C.N. Já na STA 244, o Estado do Paraná pediu a suspensão da decisão da 1ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, que determinou o fornecimento do medicamento Naglazyme (Galsulfase) por tempo indeterminado. 118 5.1.2. O caso e a decisão Após ouvir os depoimentos prestados na audiência pública convocada pela Presidência do STF, para a participação de diversos setores da sociedade envolvidos com o tema, o Ministro Gilmar Mendes entendeu ser necessário redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil. Para isso, destacou pontos fundamentais a serem observados na apreciação judicial das demandas de saúde, na tentativa de construir critérios ou parâmetros de decisão. Segundo o Ministro, deve ser considerada a existência, ou não, de uma política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Para ele, ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema único de Saúde (SuS), o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. “Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública de saúde parece ser evidente”, entendeu Mendes. De acordo com o Presidente do STF, “se a prestação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SuS, é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF de não fornecê-la ou de uma vedação legal à sua dispensação”. Ele observou a necessidade de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), além da exigência de exame judicial das razões que levaram o SUS a não fornecer a prestação desejada. 5.1.3. Tratamento diverso do SUS O Ministro salientou que obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, “de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada”. Dessa forma, considerou que deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS, em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, “sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente”. Entretanto, o Presidente destacou que essa conclusão não afasta a possibilidade do Poder Judiciário, ou da própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso. “Inclusive, como ressaltado pelo próprio Ministro da Saúde na Audiência Pública, há necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos. Assim, não se pode afirmar que os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SuS são inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial”, finalizou. 5.1.4. A questão Mínimo existencial vs. Reserva do possível Outro ponto que faz com que o Judiciário tenha uma posição menos passiva, é o argumento da reserva do possível. Diante da realidade do nosso país, ou seja, da constante ausência de condições mínimas de sobrevivência, o juiz não só pode, como deve decidir sobre políticas públicas. O importante é que, mesmo que se aceite a teoria do mínimo existencial, deve-se tentar ampliar ao máximo o núcleo essencial do direito, de modo a não reduzir o conceito de mínimo existencial à noção de mínimo vital. Afinal, se o mínimo existencial fosse apenas o mínimo necessário à sobrevivência, não seria preciso constitucionalizar os direitos sociais, bastando reconhecer o direito à vida. Apesar da reserva do possível ser uma limitação lógica à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos, o que se observa é uma banalização no seu discurso por parte do Poder Público, quando se defende em juízo sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir a decisão judicial. Assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental.31 5.1.5 Pontos de reflexão Os argumentos centrais alegados pelos Estados, são basicamente a falta de registro dos medicamentos na ANVISA, não podendo, dessa forma, ser comercializados no Brasil, além, é claro, da reserva do possível.32 A partir dessas considerações, e ao verificar que os medicamentos estão registrados na ANVISA, o Ministro Gilmar Mendes concluiu que, nos casos em questão, as provas juntadas atestavam que os medicamentos são necessários para o tratamento das respectivas patologias. De acordo com ele, os entes federados não teriam comprovado ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde e à economia públicas, capaz de justificar a excepcionalidade da suspensão de tutela. Neste sentido, o Presidente do STF entendeu que medicamentos requeridos para Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 119 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo tratamento de saúde devem ser fornecidos, sim, pelo Estado. E mais, na decisão, tentou estabelecer critérios que devem ser observados pelo Judiciário, ao apreciar questões semelhantes, quais sejam: 1) deve ser considerada a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte; 2) é necessário que haja registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); 3) e é exigido exame judicial das razões que levaram o SUS a não fornecer a prestação desejada. O campo de políticas públicas é ambiente da discricionariedade administrativa, mas, baseado na teoria de garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli, só será permitido ao agente público fazer uso dessa discricionariedade a partir do momento em que a Administração Pública tiver satisfeito o mínimo existencial, representado pelos direitos fundamentais, dos quais a saúde é um dos principais. A discussão que surge dessas conclusões é a seguinte: se a saúde, assim como outros direitos sociais, estão incluídos naquele âmbito de direitos que devem ser implementados, prioritariamente, pelos Poderes Executivo e Legislativo, mediante programas de políticas públicas, qual seria a legitimidade de decisões judiciais ordenando o fornecimento de medicamentos a determinadas pessoas? É essa intervenção que se denomina, nos termos da decisão do Ministro Gilmar Mendes, de judicialização das relações políticas e sociais, ou seja, a este movimento, realizado pelo Judiciário, de impor ao Estado Administração a concretização de direitos sociais. Tais decisões podem até ser vistas como judicialização da política, mas não como ativismo judicial, dado que essa parcela da população não dispõe de outro modo que não a ação judicial para defender seus direitos. Assim, não resta outra opção aos nossos Magistrados e Tribunais, a não ser a de acolherem os pedidos e determinarem a correção da situação de extrema gravidade, urgência e justiça. 120 Do ponto de vista de uma visão garantista do controle da Administração, já que esta deve atuar em todos os momentos, tendo a pessoa como centro de suas realizações, cabe ao Judiciário a avaliação dos atos administrativos, sempre sob a perspectiva dos direitos fundamentais constitucionais. A Emenda Constitucional nº 26 à Constituição Federal de 1988 inseriu um novo direito social (“assistência aos desamparados”), impondo ainda maior compromisso ao Judiciário com as camadas pobres da população, de modo que estão legitimados pela Carta à defesa daquele direito, quando seus titulares não são contemplados com as prestações às quais o Estado está obrigado. E essa tarefa enquadra-se na teoria garantista mediante dois princípios: o da legalidade, pois as garantias dos direitos fundamentais devem estar asseguradas na legislação, e o da submissão à jurisdição, ou seja, tais direitos devem ser acionáveis em juízo, em relação aos sujeitos responsáveis por suas violações, ações ou omissões. 5.2 O caso da prisão cautelar por tempo excessivo 5.2.1 Metodologia A análise dos elementos teóricos já explanados é melhor visualizada se redirecionada a uma perspectiva prática. Nesse sentido, é possível estudar a recente manifestação do STF (HC 100574 MC/MG, informativo nº 562 do STF), cujo conteúdo mescla características próprias do garantismo de Ferrajoli como do conceito de ativismo judicial. Assim, de modo que se perceba a relação entre estes dois fenômenos, o presente estudo apresentará uma discussão sobre a manifestação da Corte Constitucional brasileira, indicando os possíveis desdobramentos de sua observância. 5.2.2 O caso e a decisão O legislador processual penal, identificando a necessidade de proteger o curso da instrução criminal, estabeleceu ser possível a decretação Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF de uma prisão cautelar ao acusado. Esta, contudo, não é auferível de modo arbitrário, devendo seguir determinados pressupostos, sobretudo a necessidade e a inexistência de outro meio hábil a proteção do curso do processo. Deste modo, apenas excepcionalmente poderá ser verificada prisão antes da completa cognição sobre a lide, de forma que se preze tanto pelo processo quanto pelas garantias do acusado. É calcado em tal perspectiva que se verificou o voto do Min. Rel. Celso de Mello diante da duração excessiva de uma prisão nomeada como cautelar. O caso transposto ao STF diz respeito a um indivíduo que teve sua liberdade restringida desde dezembro de 2003 por meio de uma decisão que decretou a sua prisão cautelar. Não bastasse a impropriedade do prolongamento da prisão, o processo ao qual este se sujeitava foi invalidado sem qualquer indicação de soltura, obrigando-o a permanecer recluso. O caso, em verdade, é marcado por diversas impropriedades formais e materiais, instigando a Corte à realização de uma análise baseada não apenas em garantias substanciais, mas também sob a razoabilidade de suas decisões. De fato, é sob estes dois aspectos (princípios substanciais e razoabilidade) que se funda a discussão do caso. Por um lado observa-se o discurso pautado na grave ofensa às garantias constitucionais em virtude de um prolongamento excessivo (quase seis anos) de uma prisão cautelar. Por outro, verifica-se a necessidade de utilização do princípio da razoabilidade para o afastamento da súmula nº 691 do STF, segundo a qual o STF não poderia conhecer de habeas corpus já indeferido liminarmente por Tribunal Superior, no caso o Tribunal Superior da União. Há, pois, a discussão de efetividade de garantias, processuais e materiais, e a necessidade de revisão de precedente sumulado diante do caso concreto. No que se refere à defesa das garantias, notam-se os absurdos cunhados ao longo do processo. Primeiramente aborda-se, por óbvio, o tempo de acautelamento a que se encontra submetido o indivíduo, que totaliza quase seis anos. Para além da violação a própria dignidade da pessoa humana, são suscitados os princípios da presunção da inocência e da resolução do litígio, bem como a própria inconformidade legal, que já tornaria, por si só, abusiva a prisão, sujeitando o seu relaxamento. Nessa perspectiva, também se desconstitui o argumento de prolongamento da prisão em razão da apresentação repetida de recursos, levantado pelo juízo de primeira instância. Aqui se destacou o princípio do devido processo legal, dentro do qual se extrai o direito de recorrer que, em nenhuma hipótese, poderá ser justificativa para a extensão de uma prisão. Nas palavras do Ministro: “O excesso de prazo [...] traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LxxVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional” “O fato inquestionável, neste caso, é um só: o paciente não deu causa a qualquer procrastinação [...] limitando-se, ao contrário, a exercer, regularmente, os direitos que derivam da cláusula constitucional do “due process”, notadamente o direito de recorrer” Sob o espectro da competência, é com base na problemática que envolve o caso que se manifesta o Ministro. Segundo ele, embora haja entendimento já sumulado de impossibilidade de apreciação do habeas corpus indeferido por Tribunal Superior, é manifesta a necessidade de, diante do caso concreto, propor um afastamento de cunho excepcional do precedente. Isto porque aqui haveria um “abuso de poder ou de manifesta ilegalidade” que autorizaria a supressão deste comando. Assim, a fim de que não se perdurem ou consagrem as violações às garantias e/ou direitos conferidos ao sujeito, possibilita-se o afastamento da súmula nº 691, fazendo-se possível a proteção do então paciente. O caso, deste modo, conjuga aspectos tanto garantistas como ativistas. O garantismo se insere na defesa da efetivação de direitos fundamentais, isto é, de garantias elencados no Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 121 GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo corpo constitucional. É, em alguma medida, também um positivismo, sob o qual se prega a aplicação daquilo declarado pelo próprio ordenamento jurídico. O ativismo judicial, por sua vez, se manifesta sob a modalidade, descrita por Marshall, de ativismo de precedentes, no qual há uma resistência do magistrado em aplicar o entendimento já consagrado na Corte. Em verdade, o caso remete a importante consideração sobre tais fenômenos. Observa-se que o ativismo judicial só fora suscitado em razão da necessidade de se garantir a aplicabilidade de direitos fundamentais. Vale dizer, neste caso, o ativismo judicial é viabilizado pelo próprio garantismo, que, abrigando uma base valorativa, possibilita ao magistrado uma posição mais atuante no próprio caso, quer invalidando atos de outro Poderes, quer invalidando o próprio entendimento construído no Judiciário. 5.2.3. Pontos de reflexão Em termos analíticos, constata-se descompasso constitucional acompanhando a prisão de um paciente, o STF vê-se, assim, diante da necessidade de compor dois dos importantes fenômenos que hoje cerceiam o Judiciário: o garantismo e o ativismo judicial. Como forma de assegurar o direito à liberdade o paciente, de fato, utilizou-se uma postura ativista (afastando a súmula vigente ao caso examinado) para a consecução de um tratatmento garantista de base num “senso comum liberal” como foi expressa no voto do Ministro Celso de Mello. 6. Conclusão O estudo apontou que a compreensão das decisões prolatadas pelo STF, com fundamento em uma perspectiva de garantismo, diante dos casos examinados, passa naturalmente por dois balisamentos: (i) O garantismo traduzido numa leitura do quadro teórico de Ferrajoli, como foi recepcionado pela doutrina brasileira, como um modelo de efetivação de direitos pautados por um alargamento do conceito de garantismo não mais vinculado a um mero alinhamento no uni122 verso penal. (ii) E, sob outro desdobramento, o garantismo corrente na sociedade brasileiro foi o que se abrigou na atuação do Supremo Tribunal. Deve ser sublinhado que o seu direcionamento foi mais em parâmetros de “um senso comum liberal”. Além dessas observações, não pode ser omitida a crítica de Roberto Gargarella a respeito do garantismo de Luigi Ferrajoli contido na sua obra Democracia y Constitución.33 Lembra Gargarella no seu blog “Seminário de Teoria Constitucional y Filosofia Política”34 que a linha teórica de Ferrajoli está lastreada “los deficitis de argumentación”. Isto é, numa filosofia política anti-majoritária e de raízes elitistas. Imputa a cidadania, assim, a produção de decisões opressivas. Há, segundo o citado estudioso argentino, uma defesa de Ferrajoli sobre o controle judicial demaisada imperfeita. Pois, “os juízes de qualquer Corte Suprema dissentirão como nós frente a dilemas de direitos”. Gargarella não apóia um afastamento do controle judicial e nem formas plebiscitárias. Mas quer destacar as insuficiências do quadro teórico de Ferrajoli, principalmente, diante de experiências constitucionais de mais de duzentos anos que ainda não estão, devidamente, consensuadas e compartilhadas. Ao ser enfrentado esse direcionamento do garantismo no Supremo Tribunal Federal num universo de certos “padrões liberais”, examinados nos dois casos, e acatada a crítica de Gargarella ao quadro teórico de Ferrajoli, percebe-se a impossibilidade de reduzir esse debate a uma mero universo formal de aplicação das denominadas garantias constitucionais individuais traduzidas ao longo do artigo 5º da C.F. vigente. Impõe-se, pelo percurso analítico materializado, considerando a atuação institucional do Tribunal Maior, um compromisso constante de delimitar um contexto teórico e prático de caracteristicas complexas como se revela nessa concepção de “garantismo”. notas TATE, C., VALLINDER, T. The Global Expansion of Judicial Power. New York university Press, New York, 1997. 2 Os autores Tate e Vallinder destacam um processo conhe1 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF cido como policy-making, no qual haveria uma interação entre os valores dos juízes e a vontade de participar da construção política da sociedade. 3 Designing Constitutional Dialogue: Bills of Rights & the New Commonwealth Constitucionalism (mimeo sem ano de circulação). 4 É importante a leitura da obra Legitimidade da Jurisdição Constitucional organizada por BIGONHA, Antonio Alpino e MOREIRA, Luiz. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris/ ANPR. 2010. Na parte introdutória os dois organizadores acentuam que, após a CF. de 1988, o debate constitucional brasileiro ficou preso ao tema de pricnípios. Acentuou mais o jurídico do que o político 5 Revista Doxa, v. 29, p. 15-31. 6 Conferir a obra de AGAMBEN, Giorgio; e outros autores. Démocratie, dans quel état? Paris; La Fabrique éditions, 2009. Neste estudo, há uma reflexão importante sobre quais são os alinhamentos hoje a respeito da democracia. A recente obra publicada Teoria y Critica de del Derecho Constitucional, Tomo I - Democracia sob a coordenação de GARGARELLA, Roberto no seu texto « Constitucionalismo versus Democracia », capítulo III, páginas 23 a 40. Buenos Aires : Abeledo Perrot 2009 discute a questão de pensar hoje o processo democrático. 7 Assim corrobora Miguel Reale em sua obra Pluralismo e Liberdade, pág. 58: “(...), cada experiência particular de valores não está em função da liberdade exclusiva de um sujeito isolado, dependendo, ao contrário, necessariamente, de sua intersubjetividade, pois, sendo um valor, a liberdade não pode deixar de possuir, como sua qualidade essencial, liames de solidariedade ou de co-participação com todos os demais valores.” (grifo do autor) 8 Poder-se-ia aqui ensejar uma discussão acerca de um dos alicerces da democracia: a igualdade. Com o pretexto de alcançar o melhor resultado, transforma-se a igualdade numa mera formalidade, o que equivaleria a uma espécie de retorno à teoria igualitária de que lançou mão o Estado liberal. 9 Sejamos francos, então, ainda que pessimistas: é quimera dizer que somos todos iguais, quando apenas alguns se fazem ouvir. Portanto, igualdade jurídica não implica, necessariamente, igualdade de fato. Há que se considerar, entretanto, o entendimento de alguns no tocante à realização de uma igualdade absoluta, quando alegam ser este um objetivo além das possibilidades humanas; algo que se poderia observar ao longo do curso histórico. 10 HABERMAS. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 11 Vide sobre esta síntese da reflexão de FERRAJOLI, Luigi “La Democracia Constitucional“ in Democracia y garantismo edição de Miguel Carbonell Madrid: Editorial Trotta S.A. 2008 páginas 25 a 40 12 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 19. Veja, também, capítulo xLIII La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa Del despretigio actual de los Derechos Humanos de autoria de PASTORE, Daniel R., in op, cit, GARGARELLA, Roberto, tomo II, páginas 1162 a 1206. A leitura é importante porque procede a um questionamen- to dos Direitos Humanos. Isto é que, em razão de reparar a vitima, há um excesso neopunitivo no sistema acusatório. 13 FERRAJOLI, Luigi. El derecho como sistema de garantías.In: Jueces para la democracía, Barcelona, 1992 apud CARVALHO, 2002, p. 24. 14 Disponível em: < http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf > Acesso em: ? 15 BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado de direito e administração pública. In: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 16., 2007. Anais... Belo Horizonte: CONPEDI, 2007, p. 6000. 16 RESTA, Eligio. La ragione del diritti apud BORTOLI, idem.. 17 BORTOLI, idem, p. 5997. 18 CADEMARTORI, Sérgio. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Disponível em: <http://www.buscalegis. ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/14035/13599> Acesso em: 13 jul 2009. 19 Idem. 20 FERRAJOLI, Derecho y razón apud CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk; CADEMARTORI, Sérgio. A relação entre estado de direito e democracia no pensamento de Bobbio e Ferrajoli. In: Revista Seqüência, Florianópolis, n. 53, dez. 2006, p.150. 21 CARDEMATORI, Daniela Mesquisa Leutchuk e CARDEMATORI, Sérgio, op.ci 22 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed.. Campinas: Millenium, 2007, p. 93-94. 23 Ibidem, p. 212. 24 Ibidem, p. 109. 25 Ibidem, p. 230. 26 Ibidem, p. 232. 27 TAVARES, Lúcia Lea Guimarães. O Fornecimento de Medicamentos pelo Estado. In: Revista de direito da Procuradoria-Geral 55:109-10, 2002, p. 43. 28 Ação Ordinária n.º 2006.72.00.010914-6/SC – TRF04 – Juiz Carlos Alberto da Costa Dias – j. 20.11.06. 29 GRAu, Eros Roberto. Direitos, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 88. 30 REsp n.º 97.912/RS, 1T - STJ, Min. Garcia Viera, j. 27.11.1997. 31 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. Ed. Atlas: São Paulo, 2008, p. 194. 32 As alegações de negatividade de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas como desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode é deixar que a evocação da reserva do possível converta-se “em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de direitos sociais (...)”. (http:conjur. estadao.com.Br/static/text/26851,1) 33 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Constitucion, op.cit. 34 Disponível em: < http://seminariogargarella.blogspot. com/2009/11/criticando-ferrajoli.html> Acesso em: 8 de nov 2009. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010 123 124 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS Artigo A EfiCáCiA horizontAL DoS DirEitoS funDAmEntAiS nAS rELAçõES PrivADAS ESPAnhoLAS Jonathas Fortuna Gomes* rESumo: É de imprescindível importância, antes de compreendermos como a eficácia dos direitos horizontais na relações privadas Brasileiras se manifestou, entender o alcance desse instituto no Direito Espanhol, haja vista sua Forte influencia, para formação doutrinaria e legislativa Brasileira. A eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais, entre nós, nasceu no seio Espanhol e Alemão. Pela Leitura desse texto, inevitavelmente serão notadas varias semelhanças Palavras-chave: Direitos fundamentais. Eficácia Direita e imediata. Julgamentos TC e TS Espanhóis. Constituição espanhola. ABStrACt: It is vital importance, before understanding the effectiveness of horizontal rights in private relations Brazilian manifested itself, understand the scope of this Law Office in Spanish, due their strong influence and doctrinal training to Brazilian legislation. The horizontal effectiveness of Fundamental Rights, among us, born of the Spanish and German. Reading the text that will inevitably be noticed several similarities. Keywords: Fundamental Rights. Direct and Immediate Effectiveness. Trials CT and TS Spanish. Spanish Constitution. Advogado. Pós-Graduando em Direito Civil pela uFBA(universidade Federal da Bahia).Pós graduando em Direito Civil pela FACuLDADE BAHIANA DE DIREITO. * Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 125 GOMES, J. F. misma de la relación laboral causó en el recurrente la vulneración de su derecho a expresar libremente sus pensamientos, ideas y opiniones por cuanto el ejercicio de dicho derecho fundamental fue la única causa de su despido. Tampoco la Sentencia de suplicación reparó la vulneración del derecho fundamental del recurrente a su libertad de expresión producida por el acto extintivo empresarial al declarar el despido improcedente con opción empresarial entre indemnización o readmisión. Lo antes razonado nos lleva derechamente al otorgamiento del amparo con la ineludible consecuencia de declarar la nulidad del despido disciplinario al incurrir éste en violación del invocado derecho fundamental, con los efectos legalmente previstos (art. 56.5 LET) de readmisión forzosa del trabajador despedido y abono de los salarios dejados de percibir. 1. Constituição Espanhola e Aplicabilidade dos Direitos fundamentais 1.1 A eficácia direta e imediata dos Direitos fundamentais: Na Espanha, os direitos fundamentais se aplicam as relações jurídicas, sem nenhuma necessidade de mediação legislativa, apresentando uma eficácia direta e imediata. É o juiz do caso concreto quem vai aplicar a norma de Direito Fundamental, estabelecendo uma regulação legal especifica de acordo com as nuances fáticas apresentadas no conflito. Juan ubillos, adepto da teoria da eficácia vinculante dos Direitos Fundamentais pelos particulares, transcreve o entendimento do Tribunal Constitucional Espanhol, na STC 18/1984: [...] no debe interpretarse en el sentido de que sólo se sea titular de los derechos fundamentales y libertades públicas en relación con los poderes públicos, dado que en un Estado social de Derecho como el que consagra el artículo 1° de la Constitución no puede sostenerse con carácter general que el titular de tales derechos no lo sea en la vida social, tal y como evidencia la Ley 62/1978[…] Prosseguindo o entendimento, o referido Tribunal no STC 20/2002 proferiu aplicação direta à liberdade de expressão prevista no artigo 20 da Constituição Espanhola: Siendo esto así, es decir, producido el despido con vulneración del expresado derecho fundamental, es claro que la respuesta dada por la Sentencia ahora recurrida del Juzgado de lo Social no respetó el necesario equilibrio entre las obligaciones dimanantes del contrato de trabajo y el ámbito del derecho fundamental del trabajador en juego, ni la restricción del ejercicio de dicho derecho efectuada por el contrato de trabajo fue la estrictamente imprescindible, proporcional y adecuada a la satisfacción de legítimos intereses empresariales, puesto que la existencia 126 Nessa linha, ainda que a teoria da eficácia imediata não tenha prevalecido na Alemanha, a qual até hoje adotou o entendimento do caso Lüth, optando pela teoria mediata, tornou-se dominante em vários países, como Espanha, Portugal, Itália, Argentina e, no Brasil, tendo como autores aliados Daniel Sarmento, Ingo Sarlet e Wilson Steinmetz A doutrina jus fundamental da Espanha também acolhe, via de regra, sem receios a teoria da eficácia direta, levando em consideração reiteradas decisões do Tribunal Constitucional que evidenciam essa tendência. Pedro de Vega García, renomado doutrinador espanhol, não vê motivos para receio, salientando que a aceitação da eficácia direta não é mais que uma necessidade decorrente das transformações operadas na concepção teórica dos direitos fundamentais, pois foram elas que abriram caminho à Drittwirkung no plano jurisprudencial e doutrinal. Sem a projeção desses direitos em todos os setores do ordenamento jurídico, não há que se falar em “igualdade”, em suas palavras: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 “La igualdad formal ante la ley (como norma jurídica general que regula las A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS relaciones entre particulares) sólo tiene sentido en la medida en que esa igualdad abstracta no queda destrozada socialmente por la desigualdad material y econômica de las posiciones de los indivíduos que deberían ejercitarla. Aparece así la Drittwirkung como correctivo de unas formas de organización social que, en el plano real, chocan frontalmente con el sistema de valores que, en el plano ideal, definen al ordenamiento constitucional. Lo que a la postre significa dar el salto de un Derecho constitucional de la libertad a un Derecho constitucional concebido, ante todo, como Derecho de la igualdad”. Mais contundente é Bilbao ubillos, que relata em sentido inverso aos “partidários da eficácia mediata”, que a mediação do legislador não pode ser considerada “um trâmite indispensável”, pois não tem um “caráter constitutivo, senão meramente declarativo”. E dilata seu raciocínio, afirmando que “um direito fundamental cujo reconhecimento depende do legislador, não é um direito fundamental, e sim um direito de cunho legal, simplesmente. O direito fundamental se define justamente pela indisponibilidade de seu conteúdo ao legislador”. E vai além o autor espanhol: si nos atenemos, pues, a los estrictos términos en que se formula, esta teoría niega en realidad la ‘Drittwirkung’. Al interponerse necesariamente la ley o la cláusula general, lo que se aplica como regla de decisión del litigio es una norma de Derecho Privado. uma Minoria ainda presente de doutrinadores espanhóis se contrapõe a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, indo de contra as premissas de Drittwirkung, afirmando que esta se ferindo frontalmente a autonomia privada que deve permeia as relações sociais, conforme afirma Juan Maria Bilbao ubillos, in verbis: “ Late em El fondo de estas posturas La convicción de que La Drittwirkung puede ser uma espécie de “caballo de Troya” que destruya El sistema construído sobre La base de La autonomia privada” 1.2 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas espanholas: “O art. 53º, n.1 “da constituição espanhola estabelece em linhas gerais que:” Os direitos e liberdades reconhecidos no capitulo II do presente titulo vinculam todos os Poderes Públicos”. Partindo desse pressuposto, nota-se, claramente, que o legislador espanhol atribui à titularidade dos direitos fundamentais as autoridades publicas, mas cabe enfatizar que em momento nenhum o legislador excluiu da qualidade de destinatários desses direitos os indivíduos, já que nas relações entre particulares não deve permeia só o principio da autonomia privada, mas, também o direito fundamental a igualdade e não-discriminação. Nessa esteira, não devemos esquecer o art.11 nº1 da Constituição Espanhola que prima entre os valores mais elevados pela igualdade e o art.9 nº2 dessa mesma constituição que outorga atribuição a todas as autoridades publicas para promover condições hábeis para se estabelecer a igualdade entre os indivíduos dos mais variados grupos sociais de maneira real e eficaz. Fortalecem esse entendimento, as palavras de Juan Maria Bilbao ubillos, ao defender a aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, dizendo: “Ciertamente El artículo 53.1 del Texto Constitucional tan sólo establece de manera expressa que los derechos fundamentales vinculam a los poderes públicos, pero elo no implica una exclusión absoluta de outros posiblés destinatários” Para o doutrinador espanhol Freixes Sanjuan, em seu livro a Constituição e dos direitos fundamentais, Barcelona, 1992, é preceito consagrado no ordenamento jurídico espanhol, o eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Registre-se que, evidentemente, que os direitos fundamentais são aplicados de maneira diferenciada a cada relação privada, daí Drittwikung , defender uma aplicação casuística , estabelecendo a ponderação dos direitos confli- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 127 GOMES, J. F. tantes e dos interesses subjacentes numa linha horizontal, com o que titula “julgamento de razoabilidade” inadmitiam a postulação eleitoral de servidores governamentais. O TC assinalou que a configuração do Estado como Social culmina: 1.3 Um breve Histórico sobre decisões que consolidam a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares no Tribunal Constitucional (TC) e no Tribunal Supremo (TS) da Espanha: No órgão de cúpula da jurisdição constitucional ibérica, também foi considerável a influência provocada pelo Bundesverfassungsgericht. A eficácia entre particulares dos direitos fundamentais começou a ser analisada pela Corte ainda em meados dos anos 80, quando duas decisões tomadas pelo Tribunal Constitucional (TC) ergueram as balizas teóricas que norteariam o assunto na jurisprudência espanhola. Em 1982, o litígio versava sobre uma manifestação realizada por trabalhadores em protesto contra a demissão de uma funcionária. Eles se concentraram em frente à loja de frutas em que laborava portando faixas pedindo sua readmissão, gritando palavras de ordem. Chegaram inclusive a conclamar os passantes a não entrar no estabelecimento, o que levou à natural queda no movimento da clientela e perda de produtos perecíveis. O Tribunal Constitucional entendeu que: nem a liberdade de pensamento nem o direito de reunião e manifestação compreendem a possibilidade de exercer sobre terceiros uma violência moral de alcance intimidatório, porque isso é contrário a bens constitucionalmente protegidos como a dignidade da pessoa e seu direito à integridade moral (arts. 10 e 15 da Constituição espanhola), que não só os poderes públicos devem respeitar, mas também os cidadãos, de acordo com os artigos 9 e 10 da Norma Fundamental (STC 2/1982). Dois anos mais tarde, a questão de mérito versava sobre a rejeição, pelo órgão eleitoral competente, da candidatura de pessoas vinculadas ao Conselho de Administração da Caixa Econômica (Caja de Ahorros) das Astúrias. O indeferimento baseara-se em precedentes que 128 [...] una evolución en la que la consecución de los fines de interés general no es absorbida por el Estado, sino que se armoniza en una acción mutua Estado-Sociedad, que difumina la dicotomia Derecho PúblicoPrivado y agudiza la dificultad tanto de calificar determinados entes, cuando no existe una cualificación legal, como de valorar la incidencia de una nueva regulación sobre su naturaleza jurídica. En el campo de organización, que se el que aqui interesa, la interpenetración entre Estado y Sociedad se traduce tanto en la participación de los ciudadanos en la organización del Estado como en una ordenación por el Estado de entidades de carácter social en cuanto a su actividad presenta un interés público relevante. O aspecto mais relevante do pronunciamento em estudo, porém, foi de natureza processual. Admitiu-se que, se por um lado existem direitos que só podem ser invocados perante os poderes públicos, por outro a vinculação desses poderes à Constituição “se traduz em um dever positivo de dar efetividade a tais direitos quanto à sua vigência da vida social, dever que afeta ao legislador, ao executivo e aos juízes e tribunais”. Em conseqüência: el recurso de amparo se configura como un remedio subsidiario de protección de los derechos y libertades fundamentales cuando los poderes políticos han violado tal deber. Esta violación puede producirse respecto de las relaciones entre particulares cuando no cumplen su función de restablecimiento de los mismos, que normalmente corresponde a los Jueces y Tribunales. Segundo Bilbao ubillos, as decisões mais significativas do TC – aquelas em que se reconheceu de forma mais nítida a eficácia entre particulares dos direitos fundamentais – foram emitidas quase sempre em conflitos de caráter laboral. A STC 88/1985, em que se Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS discutia a licitude de ato demissional imposto a trabalhador que havia criticado publicamente o funcionamento da empresa em que laborava, foi “marcante na jurisprudência constitucional”. O decisório estabeleceu que o contrato de trabalho “não implica, de modo algum, a privação para uma das partes, o trabalhador, dos direitos que a Constituição lhe reconhece como cidadão, dentre outros o direito a expressar e difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões”. E concluiu: Ni las organizaciones empresariales forman mundos separados y estancos, respecto del resto de la sociedad, ni la libertad de empresa que establece el art. 38 de la C.E., legitima el que quienes prestan servicios en aquéllas por cuenta y bajo la dependencia de sus titulares deban soportar despojos transitorios o limitaciones injustificadas de sus derechos fundamentales y libertades públicas, que tienen un valor central y nuclear en el sistema jurídico constitucional. Las manifestaciones de «feudalismo industrial» repugnan al Estado social y democrático de Derecho y a los valores superiores de libertad, justicia e igualdad a través de los cuales ese Estado toma forma y se realiza (art. 1.1). Sobre o exercício dos direitos fundamentais no campo do direito obreiro, a STC 90/1997 pode ser vista como um resumo da evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional: la jurisprudencia de este Tribunal ha insistido reiteradamente en la plena efectividad de los derechos fundamentales del trabajador en el marco de la relación laboral, ya que ésta no puede implicar em modo alguno la privación de tales derechos para quienes prestan servicios en las organizaciones productivas, que no son ajenas a los principios y derechos constitucionales que informan el sistema de relaciones de trabajo. [...] el ejercicio de tales derechos únicamente admite limitaciones o sacrificios en la medida que se desenvuelve en el seno de una organización que refleja otros derechos reconocidos constitucionalmente en los arts. 38 y 33 CE y que impone, según los supuestos, la necesaria adaptabilidad para el ejercicio de todos ellos” Para o tribunal, portanto, do contrato de trabalho se derivam “equilíbrios e limitações recíprocas” para ambas as partes, de sorte que “também as faculdades organizativas empresariais se encontram limitadas pelos direitos fundamentais do trabalhador, ficando obrigado o empregador a respeitá-los”. A limitação desses direitos só seria admissível se a própria natureza do trabalho contratado implicar tal restrição, aliada a um acentuado interesse empresarial; a simples invocação do poder diretivo patronal não basta para sacrificá-lo. Por outro lado, na ATC 625/1987, a corte constitucional espanhola estabeleceu que a demissão motivada pela realização de trabalho religioso (proselitismo, captação de voluntários para a igreja, etc.) por parte do obreiro, durante período de inatividade laboral transitória, não representa violação aos direitos de não-discriminação, liberdade religiosa e livre expressão do pensamento, pois neste caso “lo que se sanciona no es la realización en sí de la actividad, sino el perjuicio que ella ocasionaba en el proceso de recuperación de la capacidad para el trabajo del demandante”. No plano jurídico civil, interessante caso de 1995 faz-se digno de menção. Os recorrentes haviam feito uma doação de bens imóveis a sua filha, mas depois intentaram procedimento judicial objetivando a revisão do ato por ingratidão. Sucede que a donatária, casada e mãe de dois filhos, iniciara relacionamento afetivo com homem marroquino, e chegou a ponto de abandonar sua família para viver com ele. Para os pais (doadores), a humilhação gerada pela situação era causa suficiente para o reconhecimento da ingratidão. As instâncias inferiores rejeitaram o pleito, ao argumento de que a atitude dos pais demonstrara intolerância e racismo, vez que a gravidade da conduta por eles apontada residia essencialmente no fato de o amante ser de origem “magrebí”. O Tribunal Supremo manteve tal opi- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 129 GOMES, J. F. nião, aduzindo que a insistência dos recorrentes em enfatizar este fato provava que agiam “com apoio em componentes claramente xenófobos, contrários à dignidade da pessoa humana e ao princípio da igualdade perante a lei”. Em decisão polêmica, o Tribunal Constitucional manteve, na STC 73/1985, decisum prolatado pelo Tribunal Supremo e negou recurso de amparo manejado por pessoa que tivera sua entrara proibida em um cassino. O recorrente fundamentara seu pedido no art. 14 da Constituição, morada do princípio da igualdade, que, em sua ótica, lhe asseguraria o direito de ingressar na casa de jogo. O TS havia decidido que o caso não era de violação a direito fundamental, pois que a admissão de não-sócios dependia do consentimento dos encarregados do estabelecimento. O TC considerou que a proibição de acesso é decisão adotada por particulares com base em fundadas suposições, não se podendo nela vislumbrar uma violação ao princípio da igualdade, já que “constitui uma atividade protetiva dos interesses da própria entidade privada”. Avaliou, outrossim, que os cassinos são entidades “sobre as quais não se pode predicar aos cidadãos um direito ilimitado de livre acesso”. Bilbao Ubillos demonstrou preocupação com os impactos negativos da decisão. Soa procedente seu argumento de que [...] o direito de admissão que o proprietário pode invocar na defesa de seus interesses econômicos não pode amparar uma política sistemática de discriminação racial por parte dos estabelecimentos abertos ao público. Com apoio na doutrina de J. Alfaro pondera que: quem abre um lugar público afirma sua vontade de contratar, em princípio, com quem quer que aceite seus preços e condições de venda; a abertura do local implica, ao menos, a renúncia a selecionar a clientela sobre bases individuais. Mais recentemente, o Tribunal Constitucional, na apreciação de outro recurso de amparo, firmou posição no sentido de que o ato de banir 130 sócio de cooperativa é suscetível à plena cognição judicial, e que a submissão do mérito e da legitimidade desse ato à revisão pelo Judiciário não fere o direito fundamental de auto-organização que assiste a tais entidades. Certo sócio cooperativista fora expulso por desancar verbalmente os integrantes da Junta Diretiva da mesma, acusando-os de estar lucrando às custas da referida associação. Inconformado, promoveu ação que mereceu guarida nas instâncias de base, que consideraram que sua falta não era de gravidade passível de extrusão. A cooperativa recorreu ao TC alegando violação ao direito fundamental de associação reconhecido no art. 22 da Constituição. Na STC 96/1994, o tribunal rechaçou o amparo. A argumentação contida no decisório levou em conta que a expulsão implicava “não apenas a simples perda da condição de sócio ou membro da cooperativa, senão também dos direitos de conteúdo econômico inerentes a tal condição”. Destacou-se, ainda, que esse “significativo prejuízo econômico” justificava que os tribunais possuíssem “uma plena cognição” desses atos. A liberdade estatutária que permite a tais entidades se auto-regularem não resulta que as sanções por elas aplicadas fiquem ao abrigo de ter suas causas judicialmente apreciadas. Segundo Ignacio Gutiérrez Gutiérrez, a não-instrumentalização do ser humano é tema que tem permitido ao Tribunal Constitucional prolatar notáveis decisórios, mormente no que respeita à dignidade da pessoa humana. Dentre as importantes conclusões a que chegou a corte, destaca: a) a pessoa não pode ser patrimonializada; é sujeito, não objeto de contratos patrimoniais (STC 212/1996); b) o trabalhador não pode ver subordinada sua liberdade pela sua consideração de “mero fator de produção” ou “mera força de trabalho” (STC 192/2003); c) a pessoa não pode ser, enquanto tal, mero instrumento de diversão e entretenimento (STC 231/1998); d) a pessoa é convertida em mero objeto nos casos de agressão sexual (STC 53/1985 e STC 224/1999); Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS e) a dignidade impõe que a assunção de compromissos e obrigações tenha em conta a vontade do sujeito, ao menos quando são de transcendência peculiar, como a maternidade (STC 53/1985); do mesmo modo, a dignidade da pessoa humana impõe que seja reconhecida ao sujeito a possibilidade de participar de processos judiciais nos quais se lhe atribuem responsabilidades penais, sem que figure como mero objeto desses procedimentos (STC 91/2000). À guisa de conclusão, o que exsurge claro da análise dos precedentes ora transcritos é que o Tribunal Constitucional, desde os anos 80, não tem se furtado a proclamar a eficácia inter privatos dos direitos fundamentais regulamentados na Constituição espanhola, seja em sede de litígios trabalhistas, seja em conflitos civis. No que tange ao modo como se dá essa incidência, todavia, existe alguma vacilação na jurisprudência da alta corte, que em algumas ocasiões parece se inclinar a favor da eficácia direta, e em outras demanda a mediação estatal. O problema é agravado porque inexiste, até o presente momento, qualquer manifestação expressa da corte sinalizando a adoção da Mittelbare, da unmittelbare Drittwirkung ou de qualquer outra teoria. Bibliografia ALExY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales . Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001. SARLET, Ingo Wolfgang (org.). #Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. SILVA, De Plácido e. Dicionário Vocabulário jurídico. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. ESPANHA. Constitución Española. Tribunal Constitucional de España. LuÑO, Antonio Enrique Perez 1984. Los derechos fundamentales. Editorial Tecnos, S.A., 1995. Madrid Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010 131 132 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 Artigo A ConDEnAção DA ComuniDADE quiLomBoLA DA oLAriA Em irArá, BAhiA: 05 DE mAio DE 1890 Jucélia Bispo dos Santos1 rESumo: Os ancestrais dos atuais moradores que residem na comunidade da Olaria, em IraráBahia, tinham um estilo de vida bem diferente dos dias atuais. Os presentes grupos, vivendo situações variadas e complexas, apresentam elementos comuns no que diz respeito à relação com a terra, à consangüinidade, ao passado histórico, às alianças e aos confrontos com a sociedade do entorno. Antes do século xx, esse povo tinha terras e, conseqüentemente, trabalho, que lhe garantia o mínimo para sobreviver. No entanto, a raiz histórica dessa mudança remonta ao final do século xIx, quando os antepassados dos atuais moradores perderam suas terras para um homem branco da região, de nome Antônio Moura, um advogado que morava na cidade de Irará. Palavras-chave: condenação, quilombos, identidade. ABStrACt: The ancestors of today’s residents residing in the community of pottery, IraráBahia, had a different lifestyle of today. These groups, living varied and complex situations have common elements regarding the relationship with the Earth, consangüinidade, history, alliances and clashes with the surrounding society. Before the 20th century, this nation had land and thus work, to guarantee the minimum to survive. However, the historical root of this change back to the late 19th century, when the ancestors of today’s residents lost their land for 1 Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela universidade Federal da Bahia, professora de História do Ensino Médio da rede estadual da Bahia, e professora das disciplinas de Teorias Sociológicas I e II da Faculdade Nobre de Feira de Santana. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 133 SANTOS, J. B. a white man in the region, Antonio Moura name, a lawyer who lived in the city of Irará. Key words: condemnation, quilombos, identity. introdução O lócus desta investigação é a comunidade da Olaria a qual, portanto, faz parte do município de Irará-Bahia. Atualmente, Irará possui 25.531 habitantes e uma área total de 271,7 km², distando sua sede cerca de137 km de Salvador, capital do Estado. Como vias de acesso destacam-se as rodovias de ligação à capital do estado, a BA084, via Coração de Maria, à Feira de Santana, via Santanópolis a BA-504. Localizada a 4 km do distrito sede, a região da Olaria foi fundada no final do século xIx por famílias de ex-escravos que resistiram à escravidão. A origem da ocupação inicial data de mais de cem anos, segundo a memória dos moradores mais antigos, que aponta que as referidas terras, nas quais os atuais moradores residem, foram ocupadas num período anterior à Lei áurea, em 1888. A recordação dos nativos mais velhos abaliza que os primeiros moradores desse lugar chagaram à região por volta do século xVIII. Conforme a memória de Sr João, a vida na Serra de Irará era mais tranqüila na época dos seus ancestrais. Ele já nasceu nos tempos difíceis século xx, e conta que tudo mudou depois que as pessoas perderam suas terras. Na memória dos moradores mais velhos dessa região tem-se o registro de que as terras foram tomadas de seus parentes, ainda no século xIx2. Assim, Sr. João narra: Foi assim... Um dono fazendeiro daqui disse que meu avô roubou o boi dele. Depois disso ele levou a questão adiante. Aí, o meu avô já ficou com medo... Depois que ele deu queixa e ganhou a questão, disse que meu avô tinha que pagar o boi, seno que ele não tomou a rez dele. Aí depois disso, o meu avô pediu para Antônio Moura guardar o documento da terra. Aí, esse advogado Moura morreu. Depois disso, o meu avô foi lá ver as terras com a viúva. Mas, a viúva disse que as terras não era 134 mais dele, porque ele tinha vendido para o marido dela. Com isso, o documento sumiu e ninguém mais tem terras. Uma das lembranças mencionadas pelos moradores que está em torno da perda das terras coletivas, pode ser encontrada nos registros oficiais. Esta história que fortemente presente na memória de Sr. João, também está presente na ação de condenação de 1890, qual condenou as pessoas da região a perder a sua pose das terras3. É possível verificar nesses termos um processo de autuação, queixa/denúncia, inquirição das testemunhas, auto de perguntas aos réus, juntadas, datas, conclusões, libelo acusatório, contestação do libelo, sentença, apelação, recursos, entre outros. Assim, como todo processo se desencadeou numa condenação coletiva. 1- o Contexto da Condenação O conteúdo apresentado nesse documento apresenta fragmentos que registram relações conflituosas entre sujeitos de cor e homens brancos. Parte desse processo representa o perfil dos controles que eram estabelecidos para com as comunidades de ex-escravos que estavam saindo da escravidão. Essas condutas cotidianas faziam parte dos comportamentos que deveriam prevalecer na relação entre indivíduos distintos e grupos socialmente delimitados mediante o perfil de raça. De um lado, um fazendeiro branco; e do outro, negros quilombolas. Assim, é possível identificar o perfil das partes e quais foram os procedimentos jurídicos adotados para julgar réu e suplicante. Embora se tratem de fontes oficiais, produzidas pelos agentes de repressão, o que de certa forma condiciona o tipo de informação disponível, é possível entrever na fala dos implicados aspectos e particularidades do seu cotidiano e das relações sociais estabelecidas. Nesse processo criminal os réus, negros, são acusados de roubarem um boi de carro de um homem branco. Notadamente, nas partes definidas como auto de perguntas aos réus e inquirição das testemunhas, é possível perceber o perfil do cotidiano do ex-escravo que residia nas comunidades livres e como esses eram perseguidos pelas Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 elites brancas locais. Essa documentação traça a linha genealógica das famílias que se criaram a partir da formação dos quilombos na região. Com esse documento, foi possível comprovar a presença centenária das localidades dos descendentes de escravos fugidos, e acelerar o processo de transferência de posse definitiva das áreas. Foi na fatídica tarde do dia 05 de maio de 1890 que tudo aconteceu. A princípio, tudo parecia transcorrer sem maiores sobressaltos nas malhadas da comunidade da Olaria. Possivelmente, esse foi um dia comum, como outros dias árduos de trabalhos4, em que a lida dos trabalhadores rurais começava cedo. Antes das cinco horas da manhã, homens e mulheres já estavam de pé para começarem a “lida” diária. Todo trabalho era conduzido em torno da roça, onde as famílias plantavam gêneros alimentícios como feijão, milho e mandioca e criavam animais, como galinhas, jegues e porcos. Depois de um intenso dia de trabalho, Francisco Chagas das Neves, juntamente com o seu filho Hermenegildo Chagas das Neves, quando os últimos raios do sol desapareciam na Serra de Irará, deparavam-se com um boi que ansiava para morrer, ao lado de suas propriedades, assim como narrou a testemunha do processo, Manoel Gomes da Silva: Manoel Gomes da Silva, lavrador morador de um lugar denominado Olaria, natural da freguesia de Nossa Senhora da Purificação dos Campos estado casado da idade de 28 anos testemunha jurada sob palavra de honra prometeu dizer a verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. Aos costumes disse nada. Perguntado sobre o primeiro item da petição inicial, respondeu que na tarde de cinco do corrente mês passava , ele testemunha, pela parta da Fazenda de Francisco das Chagas Oliveira e viu junto a cerca das malhadas de Hermanegildo, um boi ansiando para morrer e vendo ele que aquele boi de carro poderia ser de algum fazendeiro vizinho, que pudesse ter notícia para vir aproveitálo, aconselhou a Francisco Chagas para mandar dar parte para o Capitão Jacob Cavalcante de Almeida, ou outro vizinho a quem o boi pudesse pertencer.Chagas não tinha por quem mandar dar parte do ocorrido.Entretanto, no dia seguinte, apareceu em casa dele, Jacob Cavalcante de Almeida convidando para testemunhar para irem a casa de Chagas junto com outras pessoas da vizinhança verificarem a causa que deu motivo a morte do boi nas malhadas de Francisco das Chagas ... Naquele tempo, carne bovina fresca era privilégio de poucos que moravam no centro da cidade. As famílias rurais comiam animais de carne de caça, galinhas de quintal, carne de porcos. Quando comiam carnes bovinas, geralmente essas eram secas, em forma de carne de sertão. Não tendo como avisar para a polícia local, pois já era tarde e não havia possibilidade de alguém dessa família encarar a noite para prestar queixa na delegacia local, os familiares Chagas das Neves resolveram aproveitar a carne do boi. Afinal, um boi inteiro poderia ser visto com um presente dos deuses, como fruto da providência. A carne bovina era muito cara nessa época. Assim, a carne que fosse aproveitada do boi que estava quase morto ajudaria essa família a se sustentar de carne por vários dias. Pois, não só a carne seria aproveitada, como também todas as vísceras, que sempre foram o alimento básico das comunidades pobres da Irará. Nessa região, a alimentação consumida era sinônimo de status social; existiam consideráveis desníveis sociais, no que diz respeito à condição de sobrevivência dos moradores rurais. Na área rural havia, por um lado, pequeno número de médios e grandes proprietários com elevado padrão de vida, eram os pequenos fazendeiros que possuíam criação de gado e terras. Por outro lado, existia um considerável número de pequenos proprietários que dependiam exclusivamente do precário trabalho da roça. As famílias dos pequenos proprietários rurais caracterizaram como várias as necessidades, sobretudo no que diz respeito ao sustento básico. Nos períodos de escassez de chuvas, as chamadas necessidades aumentavam, comprometendo a sobrevivência da família rural iraraense, especialmente no que se refere ao suprimento alimentar. A fome era uma constante nas famílias dos pequenos agricultores da zona rural de Irará, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 135 SANTOS, J. B. independentemente da época do ano. Tudo o que as pessoas produziam girara em torno do sustento básico da família. uma jornada de trabalho na pequena roça representava o sustento de todos. Portanto, mulheres, homens, jovens e crianças se mobilizavam para garantir a sobrevivência familiar. Não havia distribuição do lucro do trabalho, pois esse era movido com o único objetivo de saciar as necessidades básicas de todos. O controlador dos recursos da produção era o pai de família, que exercia a autoridade do pater familiae sobre os filhos. Assim, prevalecia o poder do chefe do domicílio, que dotado de um poder tradicional, controlava a todos conforme a necessidade de continuação do núcleo familiar5. As famílias rurais descendentes de exescravos negros que tinham recebido recentemente a liberdade eram ameaçadas de perder suas terras. Com isso, esses grupos tentavam se proteger das diversas possibilidades de ataques que vinham das ações dos fazendeiros. Assim sendo, as pessoas passavam por diversas dificuldades de sobrevivência e lutavam pelo mínimo de que necessitavam para sobreviver, que era a terra. Com a posse das terras, essas pessoas garantiam o sustento mínimo, como o direito de sanar a fome. As dificuldades eram vencidas mediante a articulação de uma rede de solidariedade entre os iguais. Dessa forma, a família consolidava suas formas de organização, enquanto uma organização entre os humanos do mesmo sangue, ou parentes por afinidades, que se estruturavam em prol de uma relação que visionava ao arremate das necessidades materiais de sobrevivência. Em torno do grupo familiar, as pessoas vivenciavam situações de alegrias e tristezas. Os momentos de alegria, como o nascimento de uma criança, eram movidos por festas. Os momentos de tristezas eram compartilhados também com grande pesar. Quando alguém morria, todos deixavam os seus afazeres para velar o morto. Entretanto, seria perfeito, se o dono do boi não procurasse seu animal e movesse uma ação judicial contra a família Chagas. O processocrime foi instaurado a partir da denúncia de Jocob Cavalcante de Almeida, um senhor de terras da região de Irará, que possuía carro de 136 boi. No dia 16 de maio de 1890, as malhadas da comunidade da Olaria serviram de palco ao trágico acontecimento que, no plano da história, representou um marco no processo de segregação social dos seus atuais moradores. A família de Francisco Chagas das Neves foi movida por uma situação que conduziu seus membros e parte dos homens da comunidade para resolver o litígio na comarca da Vila da Purificação. Naquele dia, 16 de maio de 1890, o juiz Joaquim Menezes de S”Antana, com o apoio do escrivão Rogarciano Ermelino de Carvalho, conduziu o julgamento de uma família que morava na comunidade da Olaria. A família de Francisco Chagas foi acusada de ter roubado um boi do capitão Jocab Cavalcante de Almeida. Segundo consta da ação de condenação, a família acusada desempenhou o seguinte ato6: Diz o cidadão Jacob Calvacante de Almeida, residente nesta vila, que Francisco das Chagas Oliveira, mancomunado com os seus filhos Hermenegildo Chagas e Domingas, moradores na terra, tendo na tarde de seis de corrente mês, espancaram um boi de carro do domínio do suplicante, tendo das malhadas de Hermenegildo, causando a morte imediata, consta que, antes de avisarem ao suplicante afim de visitar seu capital de forma que entendesse evitar o seu prejuízo, foi a carne, como tudo consumida pela casa de Francisco das Chagas, utilizando-se de tudo sem dar satisfação de espécie alguma [...]p.5 Francisco das Chagas foi julgado acusado e foi para o tribunal acompanhado de seu filho Hermenagildo. Como testemunhas, o Juiz de Paz da vila da Purificação ouviu os senhores: Tabela 1: Perfil das testemunhas de acordo com as categorias de trabalho e raça. Miguel da Rocha Lavrador Negro descendente Morador da de ex-escravos Olaria Fazendeiro Pardo Morador da Pedra üüüü Negro descendente Morador da Olaria Vieira Antonio Justino de Souza Manuel Gomes da Silva Branca de ex-escravos Primeira testemunha, Miguel da Rocha Vieira, 36 anos, lavrador, morador do lugar denominado Olaria, natural da Freguesia de Nossa Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 Senhora da Purificação dos Campos, solteiro. O Sr. Miguel era um negro ex-escravo, que morou na região de Inhambupe, quando ainda era cativo. Depois que alcançou a liberdade formou família e foi morar na região da comunidade Olaria. Segunda testemunha, Antônio Justino de Souza, 50 anos, proprietário de pequena fazenda, natural desta Freguesia, no lugar denominado Pedra Branca, casado. De acordo com a documentação da ação de condenação, em análise, apresenta que esse senhor possuía gado. No século xIx, em Irará, quem possuía terras e gado possuía prestígio e era visto como um sujeito de posses. Essa testemunha, em seu depoimento, sempre se colocou a disposição de defender o suplicante, o fazendeiro branco. Terceira testemunha: Manuel Gomes da Silva, 28 anos, lavrador, morador no lugar denominado Olaria, casado, natural da Freguesia de Nossa Senhora da Purificação dos Campos. Esse senhor foi um dos fundadores da Olaria. Ele é filho de Marcelino, conhecido como Março, que residia no Quilombo do Espanto. Das testemunhas envolvidas no processo, esta foi a única que assinou o nome. Subentende-se que ele era alfabetizado. Os réus eram Francisco Chagas das Neves e seu filho Hermenegildo Chagas das Neves. Todos eles, réus e duas testemunhas, eram ex-escravos ou descendentes, acusados de praticarem delitos que, por motivos aparentemente fúteis, tiveram de enfrentar a justiça e seus procedimentos formais. No final do século 19, todo cidadão “de cor” corria o risco de ser confundido com um sujeito perigoso, caso não tivesse sua posição social largamente reconhecida pela sociedade vigente. Nesse caso, possuidor de uma propriedade de terras. Por conta disso, sujeitos como os Chagas eram perseguidos. Por outro lado, os fazendeiros disputavam as terras dos pequenos proprietários rurais. Os homens brancos queriam aumentar seus domínios e, por isso, muitos deles invadiam as propriedades dos homens de cor. Os descendentes dos ex-escravos, como os sujeitos que moravam na comunidade da Olaria, passavam por muitas dificuldades no final do século xIx, dentre as quais pode-se citar a questão de perseguição nos meios urbanos e rurais. Essas pessoas não tiveram acesso ao trabalho e às condições mínimas de dignidade. Na zona rural, o trabalho adivinha da terra. Todos os descendentes de escravos sonhavam com a posse da terra. Depois de 1850, a posse foi à única via de acesso à apropriação legítima das terras públicas. Era uma via que estava aberta tanto para os pequenos quanto para os grandes proprietários. Com essa lei, as aquisições de terras públicas só poderiam ocorrer através da compra, ou seja, só poderiam ser adquiridas por aqueles que tivessem condições de pagar por elas. Um dos objetivos dessa lei foi exatamente impedir que negros libertos e mestiços tivessem acesso à terra. Com isso, os grupos de pequenos produtores, posseiros e sitiantes negros não tiveram a garantia de permanência sobre suas terras. Alguns negros que conquistaram a posse das terras por meio da ocupação eram constantemente ameaçados de perder sua posse para senhores brancos. No final do século xIx, registravam-se diversos conflitos movidos por interesses de apropriação e de desapropriação de terras nas regiões rurais de Irará. Os ex-escravos e seus descendentes eram reprimidos por ações de discursos advindos de uma mentalidade que configurava uma rigorosa discriminação e preconceito. Os negros eram assim perseguidos e discriminados por pertencerem às classes sociais mais desfavorecidas que são, por isso mesmo, entendida como as classes perigosas7. A escritora inglesa M. Carpenter (1840), utiliza a expressão “classes perigosas” como “um grupo social formado à margem da sociedade civil.”, e ainda “... eram constituídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não tendo sido presas, haviam optado por obter seu sustento e o de sua família através da prática de furtos e não do trabalho.” As comunidades de quilombos concentravam famílias pobres, mestiças, descendentes de escravos, enfim: uma população que, em meados do século xIx, começou a se marginalizar pelo cercamento das terras, que se desencadeou a partir da criação da Lei de Terras. Dava-se início a um processo de extinção e eliminação de pequenas propriedades rurais. Na demarcação dos novos limites rurais, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 137 SANTOS, J. B. começava a se organizar uma elite fundiária que se utilizava do código criminal para vigorar a sua perspectiva de comando. Na expectativa de se livrarem das perseguições, os ex-escravos criavam comunidades por meio de vínculos que foram articulados por marginalizados, mediante às questões relacionadas com: a identidade, as suas tradições e a cultura. Dentro das estratégias de sobrevivência no campo, passaram a existir múltiplas articulações e significados da comunidade negra. As solidariedades eram tecidas entre os próprios negros, visando à garantia da proteção da vizinhança contra as violências dos senhores. Os crimes têm sido crescentemente utilizados por historiadores como fonte para os mais diversos temas de pesquisa. A documentação rica em vários aspectos, presta-se como uma janela através da qual é possível enxergar indícios e sinais das diferentes imagens da vida social e das relações que predominavam na sociedade em determinada época8. Portanto, essa ação de condenação, em análise, traz o perfil do modo de vida do negro camponês iraraense que saíam da escravidão. Depois da abolição, negros, pardos e brancos se envolviam em conflitos visando à posse de terras. Habitantes de um mesmo espaço social parecem ter vivido em uma espécie de área de “fricção interétnica”, na qual os conflitos eram constantes e suas motivações freqüentemente se relacionavam à necessidade de manutenção de uma hierarquia social definida pela cor, atributo de uma posição social. Observa-se que as partes envolvidas no processo emergiam nas mais variadas situações sociais, envolvendo freqüentes disputas em torno da hierarquia social que deveria regular as relações entre brancos e a “gente de cor”. Por meio de uma hierarquização que fora construída em torno da categoria de raça e posse de terras, no final do século xIx pode-se perceber qual foi o lugar social designado para o negro que tem sua história estrelaçada com o cativeiro. À medida que os depoimentos vão se somando, começa a ser desvendada uma história que, reconstruindo os antecedentes da briga, vai 138 apontando os responsáveis pelo trágico acontecimento e o modo como as testemunhas os julgam, com sutis diferenças. No desenrolar da condenação os réus ouviram calados as testemunhas falarem dos fatos ocorridos em torno do litígio. E, assim, conta-se no seguinte depoimento: Miguel da Rocha Vieira, lavrador, morador no lugar denominado Olaria, natural de Freguesia de Nossa Senhora da Purificação dos Campos, solteiro, com trinta e seis anos de idade, testemunhas jurada sob uma palavra de honra, prometendo dizer a verdade do que sabe e lhe perguntado lhe fosse de costume disse nada a perguntar do que sabia a respeito do primeiro motivo da petição do autor? Respondeu que no dia seis de corrente mês achou-se ele testemunha, fazendo uma casa... Quando passou o capitão Jacob Cavalcante de Almeida e convidara e ele testemunha para verificar se ele viu um boi que encontrava-se morto junto as cercas de Francisco Chagas das Neves. Bem como o lugar é de subida havia mais de uma braça de cerca de varas derrubada pelo impulso da força do boi que tangido para fora pelo filho de Chagas de nome Hermenagildo, no mesmo lugar, notou ele testemunho que o boi esquartejado, tratando-se do fato, conforme presenciou os vestígios encontrados, sabendo mais que foi isto feito pelas filhas de Francisco das Chagas, em cuja casa ele testemunha viu a carne na sala de dentro, bem como o couro do boi em questão... Nesse depoimento, notam-se como as evidências da culpa ou da inocência dos acusados eram atribuídas por um vizinho que fazia parte do mesmo status social que a família julgada. uma visão sobre o certo e o errado é perceptível nesse discurso e, dentro dela, uma percepção mais específica da justiça une os homens de cor. Os depoimentos de vizinhos, parentes e agregados, os iguais das partes envolvidas, constroem uma espécie de perfil pregresso, um quadro de referências sobre como os sujeitos viviam em comunidade. Quando a testemunha fora questionada Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 sobre o caso, as mesmas tentaram afirmar que os Chagas não foram responsáveis pela morte do boi, em questão. Isso implica uma questão que presume a relação afetiva entre acusados e testemunhas. Para a testemunha, o animal estava passando, na região da Serra de Irará, moído e cansado, quando os filhos de Francisco decidiram sacrificar o boi, a fim de que esse não morresse. Como os Chagas não sabiam a quem pertencia o bovino, decidiram, então, usufruir da carne do animal. Porém, no depoimento do fazendeiro, a família Chagas era vista como um grupo que pretendeu tomar posse do boi do senhor Jacob Cavalcante: Antonio Justino de Souza, lavrador, de um lugar denominado Pedra Branca , casado, com cinqüenta anos de idade, testemunha jurada sob sua palavra de honra, prometendo dizer só a verdade do que soubesse e lhe perguntando fosse; perguntado o sabia a respeito da petição do autor Jacob Cavalcante de Almeida respondeu que na tarde do dia cinco do corrente mês achando-se ele testemunha em sua casa próxima a de Francisco Chagas fora avisado por uma filha deste, disse-lhe que achava-se na malhada de Hermenagildo, filho de Francisco das Chagas, cuja malhadas acha-se antiga, aos do réu Francisco chagas, achavase caída uma rez de cor branca com as fontes feridas e que a filha de Chagas lhe perguntara se este rez não lhe pertencia, no que ele testemunha respondera que a referida rez era da propriedade do Capitão Jacob Cavalcante de Almeida, na manhã do dia seis dirigira ele testemunha a casa de Chagas , vira quatro quartos da carne sobre a mesa, assim como, o couro enrolado encostado dentro de uma parede da casa; e verificou a cor branca o dito couro ; assim como soube por diversas pessoas da vizinhança que as vísceras fora tratada e aproveitado tudo por uma filha de Chagas... De todo modo, esses depoimentos acabam por definir um consenso que condena os “causadores da desordem”, sobretudo a Francisco Chagas das Neves, o principal acusado. Com esse depoimento, pode-se perceber como os processos são montados, no que diz respeito ao papel atribuído às testemunhas chamadas pelas autoridades judiciais, que é o que revelarem uma espécie de perfil sociocomportamental do réu. Assim, fica claro o sofrimento com intensidade calculada e ritual para a marcação das vítimas do poder penal. Essas representações do poder vigiavam, disciplinavam e ordenam a vida do grupo dos indivíduos que lhes eram subordinados. O indivíduo é fixado dentro do sistema de produção, construindo sua visão de mundo dentro das normas e saberes constituídos. Opera-se uma inclusão por exclusão9. No depoimento desse fazendeiro, pode-se notar como esse grupo visava à constituição de sociedade disciplinar configurada por uma modalidade de poder que perduraria até os dias atuais e que tem como viés em relação ao direito penal a preocupação com o intuito de vigiar e disciplinar. Desde os períodos das primeiras entradas da colonização, a região de Irará foi dominada pelos homens brancos. Durante os períodos da colônia e do império, o poder local estava sob o comando dos fazendeiros (curraleiros) e dos representantes da Igreja. Esses formavam a elite local. Os grupos dominantes valeram-se uma estratégia de comando dos grupos racializados, através de ideologias impostas cientificamente pelas instituições do conhecimento e através de normas jurídicas. Neste último caso, o direito é estabelecido nas relações sociais, enquanto uma inclusão normativa que estabelece e sistematiza as regras necessárias para assegurar o equilíbrio das funções do organismo social e a obediência coercitivamente imposta pelo poder público10. As instituições passam a funcionar em arquiteturas planejadas para favorecer a vigilância, com planejamento. 2-A república em irará Tanto no Império (1822-1889), quanto na República, as várias constituições a que fora submetido o país modificaram a situação, quer das Províncias/Estados, quer dos Municípios. Depois Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 139 SANTOS, J. B. que a república foi instalada, o cenário do poder regional foi alterado nas diversas regiões do Brasil. O perfil do poder republicano era firmado nos ideais positivistas. O pensamento de Comte baseava-se numa idéia evolutiva de sociedade, em que a humanidade deveria passar, primeiramente, por dois estágios: o teológico e o militar. O terceiro seria o ápice da evolução social: o estágio positivo. Dentro desta perspectiva, acreditava-se que o Estado seria o grande responsável por patrocinar o bem social. A influência desse pensamento no período monárquico promoveu uma compreensão de que o regime que mais se aproximaria do ideal positivista não poderia ser a Monarquia, mas sim a República. Entretanto, a apropriação patrimonialista do Estado pelos grupos oligárquicos frustrou muitos positivistas. A república era governada pelos líderes militares que criaram o conselho de intendência para os diversos municípios. A 8 de agosto de 1895, a Vila da Purificação foi elevada à categoria de cidade com o nome de Irará, pela lei Estadual de número 100. A sede, formada freguesia tinha a denominação de Nossa Senhora da Purificação dos Campos. Com isso, os representantes do poder local exigiam do Governo da Província uma segurança maior através do policiamento. Ao atender a essas necessidades, o poder local passou a ser controlado pela Câmara Municipal que era administrada pelos Intendentes Gerais de Polícia. Assim, Pedro Nogueira Portela foi codecorado como o primeiro intendente de Irará. Estes eram os ricos proprietários que definiam os rumos políticos das vilas e cidades. O povo não podia participar da vida pública nesta fase. O conselho de intendência de Irará foi formado pelos senhores de terras do lugar, os grandes fazendeiros. Esse era composto por três titulares: de Higiene, de Fazenda e de Obras, através de funções executivas, exercidas simultaneamente. Os componentes do Conselho tinham privilégios importantes, pois não podiam ser presos, processados ou suspensos, senão por ordem régia, dentre outros. quanto à autoridade dos juízes ordinários, só deixavam de ser acatados quando vinham juízes de fora nomeados pelo El-rei11. Aos vereadores competia a organização das posturas e vereações, bem como a nomeação 140 de um almotacel, que era um encarregado das posturas, e que tinha, inclusive, a incumbência de zelar pelo asseio e policiamento das povoações e da fiscalização e aferição dos pesos e medidas. A partir da implantação do conselho de intendência, surgia em Irará a idéia de poder da norma, do perfil positivo moderno. Os intendentes tinham como missão construir hospitais a fim de organizar a ação médica no município. Os republicanos agiram em nome da higiene, da moral e dos bons costumes, do progresso e da civilização. Eles exerciam o controle da observação do doente, e coordenação dos cuidados que impediam o contágio. Os intendentes de Irará criaram as Escolas Reunidas. Nesse período, os processos crimes em Irará eram movidos visando a controlar e civilizar a sociedade. No Arquivo Público Municipal de Irará encontramse processos do final do século xIx que tratam de punições voltadas para a falta de zelo, grosseria, desobediência, tagarelice, insolência, gestos não conformes, sujeira, imodéstia e indecência. Essas punições eram executadas através de pequenas humilhações e privações, e prisão. O sistema de poder dos intendentes trabalhava de acordo com uma lógica que estimulava a gratificação-sanção para o sucesso do treinamento e da correção da população. Portanto, o sistema era posto numa hierarquização que determinava as relações dos “bons” e dos “maus”, visando estabelecer o poder da Norma. Quando Irará era vila, não havia o Conselho de Intendência e sim o Conselho Municipal, também formado pelos Vereadores, e seu presidente era quem administrava o Município. Esse governo acarretou modificações na natureza e nas espécies documentais produzidas pela Câmara. Toda a documentação referente a este período está presente no Arquivo Público Municipal de Irará. Por meio dessa documentação, é possível encontrar descrições sobre o trabalho dos agentes da política. Durante essa fase, existiam disputas acirradas pelo poder. Em épocas de eleições, os políticos locais utilizavam diversas estratégias para mobilizar o eleitorado. Conforme, o seguinte relato12: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 Eles brigavam muito, tinha ocasiões aqui, que a feira era sempre mudada por motivos A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 das rixas dos coronéis. Pedro Nogueira botava a feira aqui em cima na Praça da Bandeira. Pedro de Lima vinha da roça com o pessoal dele e perguntava: Quem mudou a feira? – Foi Pedro Nogueira! Então, bota lá pra baixo! Todo mundo lá pra baixo! E ai, mudava a feira... Ele tinha jagunços essas coisas! Pedro de Lima se dizia um homem curado, que tinha negócio de corpo fechado. Certa feita ele estava na Prefeitura reunido e o Jacó- aquele do Campo Limpo, lá em Coração de Maria, veio aqui fazer política. Pedro de Lima soube de tudo isto e desafiou Jacó. Teve um dia que Jacó foi lá na Prefeitura, meteu a porta dentro e atirou balas em todo mundo, mas nenhuma pegou em Pedro de Lima, porque ele tinha corpo fechado, e por isso todo mundo aqui tinha medo dele... Assim, os poderosos brigavam pelo poder estabelecendo alianças e rupturas13. Apesar das desavenças entre si, os conselheiros da intendência teriam de promover o desenvolvimento local. No século xIx, a função militar dos intendentes desmembrava-se do Serviço Administrativo em Intendência e Intervenção (Fiscalização). As novas competências são gradativamente atribuídas ao conselho geral, entre as quais a possibilidade de votar um orçamento e cobrar impostos. A fim de explicitar quais eram as preocupações do poder público, no governo dos intendentes em Irará, são apresentados aqui alguns temas que eram abordados com maior freqüência nas discussões da Intendência Municipal14:projeto de Regimento Interno da Câmara Municipal;Saneamento da cidade; Impostos sobre transporte e propriedade; Posturas relativas às doenças infecciosas. Dentre as perspectivas do desenvolvimento surgiam medidas que estavam direcionadas aos processos de civilização da cidade, tais como: organização das ruas; medidas sanitárias de controle da higiene pública; construção de prédios públicos, avenidas ruas e praças; e, especialmente, o combate ao crime e a formação de bandos15. uma das missões dos intendentes era combater a circulação de negros na região, pois, as pequenas rebeliões existentes e outras que não chegaram a ser concretizadas16, as fugas, os roubos e as atitudes violentas contra proprietários de terras e seus familiares, e a formação de quilombos contribuíram decisivamente para a legitimidade desses discursos. A vida social dos marginalizados era evidenciada por várias circunstâncias de precariedades, sobretudo as mínimas possibilidades de construção da cidadania. A condenação das classes perigosas foi uma postura que as elites do poder público estabeleceram, com o propósito de combater o crime e promover o desenvolvimento da nação. As ideologias republicanas eram positivistas e evolucionistas: viam o negro como vadio, incapaz, proveniente da própria impossibilidade da sociedade da época de aceitá-lo. Assim, o ex-escravo se tornou um indivíduo visto como desordeiro e ameaçador17, uma vez que, a civilização só poderia existir caso promovesse a educação moral do povo. Somados a esses temores, os ideais de calma e de desenvolvimento confluíram para a concepção de uma representação de desigualdades e conflitos que eram condicionados pelas às hierarquias estabelecidas nos embasamentos étnicos. 3- o negro em irará depois da Abolição O negro não ocupou um espaço importante na vida social da sociedade iraraense. O único momento em que a presença negra é visível e enaltecida é retratado nas descrições dos costumes e das manifestações culturais, produzidas principalmente pelos folcloristas, registrando aspectos da música, da dança ou da religiosidade. Assim, conforme pontua o fazendeiro Sóstenes Flores, os negros não tinham “capacidade” de assumir o poder18: Os pretos não... Eles não participavam do poder em Irará na época dos intendentes. Eles não participavam de suas festas, samba... Porque eu penso assim: que os pretos gostam mais é de festa e de samba. Não é? Porque se der a obrigação, peso pesado, eles não vão lá onde eu fui não... Não dá não! Agora eu acho que são trabalhadores, mas gostam mesmo é de festa. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 141 SANTOS, J. B. Tanto assim, que eles brilham assim como Martinho da Vila e o outro Timóteo... A idéia de não ter capacidade de assumir o poder já insinua que o espaço do poder era demarcado pela categoria de raça. Os ex-escravos foram marginalizados. Eles, geralmente moravam em comunidades rurais com poucas condições de sobrevivência, possuíam vulnerabilidade humana, insegurança, desproteção social e, de maneira mais ampla, a fragilidade da vida, que são dimensões objetivas das iniqüidades porque atravessavam essa comunidade. As falas fazendeiro do branco expressam a opressão dispensada pelas elites dominantes aos negros que recém-saídos do cativeiro e os demais sujeitos racializados, como os indígenas. Entram nesse rol as iniciativas de resistência dos índios e dos negros no Brasil colonial. Ou seja, toda essa coletividade que vivia uma exclusão social e que foi condenada a não possuir as condições mínimas de sobrevivência no Estado brasileiro. A aplicação da ação de condenação da família Chagas, segundo os discursos do poder do século xIx, poderia ser vista como um procedimento burocrático que tinha como objetivo maior a justiça positiva neutra. O direito penal da época considerava que se deveria tomar certa distância do julgamento dos crimes, para se fazer crer que seu objetivo seria o de corrigir, reeducar, “curar”, passando a execução da pena para outras instâncias19. A ação de condenação da família Chagas pressupõe que, nesta época, existia um perfil de identidade forjada numa experiência negativa do trabalho cativo que levara tais trabalhadores a se recolherem, depois da abolição, numa estratégia de autodefesa. Esta atitude traduzia mais do que a definição de um território. Ela tendia a restituir para aqueles trabalhadores negros, nalguma medida, a autonomia sobre o trabalho e o tempo de trabalho, tornando difícil o exercício de algum tipo de controle da classe dominante sobre aquela força de trabalho ainda não convertida ao trabalho “livre”. Apesar dos depoimentos de defesa cedidos pelas testemunhas, os Chagas foram condenados. O escrivão finalizou com a seguinte sentença: “Vistos e examinados esses autos, pede que o 142 autor cidadão Jacob Cavalcante de Almeida, que o réu Francisco Chagas das Neves, lhe pague a quantia de oitenta mil réis, importância de um boi manso.” Assim foi feito! Essa condenação resultou das ações que eram constantemente promovidas na região de Irará, no século xIx. Essa ação serve como exemplo dos conflitos que foram estabelecidos entre os estamentos da elite local e os sujeitos racializados. As elites brancas locais perseguiam os sujeitos racializados que não estavam ligados a eles, na condição de agregados, ou dependentes. De acordo com Foucault, as formas que os aparelhos do Estado julgam os delitos penais foram, e são formas de exercer o poder20. Ou seja, o criminoso é tratado conforme os ideais dos dominantes que os julgam. Ou seja, de acordo com as normas jurídicas de cada época o criminoso será sempre o subjugado. Porém, essa ação de condenação não finalizou com a sentença do juiz. A família de Francisco era uma família que possuía uma pequena propriedade de terras, a qual sustentava a todos com o trabalho familiar. Todavia, essas pessoas plantavam e colhiam a fim de garantirem a sobrevivência. Depois de condenados, eles não tiveram condição de pagar a quantia de dinheiro estipulada pela pena. Assim, suas terras foram tomadas por Jacob Cavalcante de Almeida. Com o passar dos anos, a organização das roças, das fazendas e comunidades negras rurais sofreu a divisão entre muitos herdeiros. Assim, esta estrutura produziu a alteração do quadro fundiário da Serra de Irará, ao longo do século xIx. A subdivisão das fazendas entre muitos herdeiros pode ter contribuído para a alteração do quadro dessa região. Com isso, os atuais moradores da Olaria, comunidade que foi palco desse conflito, não tem terras para trabalhar. Considerações finais Ao levar em conta a origem da comunidade da Olaria, é possível considerar que essas surgiram mediante às relações que foram estabelecidas no local através da união de famílias de ex-escravos que saíram do cativeiro no final do Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890 século xIx. As primeiras famílias dessa região tinham uso comum das terras e praticavam uma agricultura baseada na mão de obra familiar. O uso comum da terra era engendrado através da noção de ancestralidade, o que formou a base física desses grupos. Segundo considera o senhor João dos Santos21: Na época do povo mais veio, a gente não tinha posse de terra. Quem comandava tudo era o pai de família. quando ele morria o fio mais veio que passava cuida dos negócio da família. Ninguém tinha má querência com isso. O povo não brigava, porque respeitavam os pai de família... Quando aparecia qualqué desavença, logo logo, se resolvia... As questão não ia adiante. Todo mundo tinha o mesmo direito da terra. Podia tirar lenha no mato, pescar no ri, pegar barro para fazer loiça... quando as primeiras famílias que fundaram a comunidade ocuparam essa região, viviam da agricultura familiar, do extrativismo animal, vegetal e mineral e, do lucro advindo da produção de objetos de cerâmica. Existia, nessa época, o extrativismo e a criação solta de animais, como cabras e ovelhas. Todas essas formas de uso da terra combinavam democraticamente áreas de exploração familiar e de uso comum. Assim, as pessoas conseguiam a segurança alimentar a preservação da biodiversidade e a sustentabilidade dos agroecossistemas. Nos dias atuais, pode-se fazer uma comparação entre o passado e o presente. Nessa relação, que compara o modo de vida atual, com o que os primeiro ancestrais da comunidade organizaram, entende-se que os atuais moradores da comunidade da Olaria vivem de especificidades que divergem do passado. De acordo com as pessoas que atualmente residem no lugar, a vida no passado é vista como mais tranqüila. Hoje, os moradores sofrem por conta de vários fatores de ordem socioeconômica; mas o que mais prejudica a sobrevivência na região é a falta de terras para o trabalho agrícola. O cultivo de gêneros alimentícios e o artesanato em barro e em palha sempre mantiveram esse grupo. Grande parte da produção estava voltada para o próprio consumo, mas sempre houve intercâmbios com os mercados próximos. Segundo alguns anciãos da comunidade, a razão da pobreza dos indivíduos que residem nesse lugar está racionada com à falta de terras para trabalhar. O senhor João dos Santos, afirma que sua família não têm terras porque os seus pais perderam toda a propriedade que possuíam num processo. Ao recordar esse passado amargo, ele destaca que: O finado meu pai contava que meu avô não teve como pagar esse depo... aí ele foi obrigado a passar a posse de suas terras. Toda essa região aqui pertencia ao meu avô. Começava de lá do Açougue Véio até na cerca de pedras. Depois disso, minha sinhá, a gente ficou sem terras. Hoje eu moro aqui no berço dessa estrada, não tenho terras para trabaiá... Vivo do salário do governo... Depois desse episódio, a vida dos sujeitos que moram na Olaria alterou-se bruscamente. Com o processo, a família foi obrigada a pagar a quantia equivalente a 80 mil réis, o valor equivalente ao preço do boi, na época. O senhor João dos Santos, afirma que Francisco Chagas foi condenado e a sua família não tive condição de quitar a dívida. Dessa forma, toda a comunidade também foi condenada, uma vez que as terras eram coletivas. Eles tinham uma única documentação que comprovava a posse22. Quase a totalidade das terras ocupadas até o século xIx, era agrupada em torno de uma terra de uso comum. No passado, a dinâmica da vida coletiva era diferente da dos dias atuais. Os sujeitos viviam dos recursos naturais de forma harmônica, consumiam, produziam e comercializavam o excedente adquirido na própria terra. Como já foram consideradas, esta comunidade era constituída por terras de uso comum, e por uma diversidade de apropriação dos recursos naturais (solos, hídricos, e florestais) em que diferentes categorias de trabalhadores e trabalhadoras rurais trabalham e mantêm a vida, reproduzindo práticas e saberes dos ancestrais e produzindo novos conhecimentos e formas de existência. Os nativos alegam que antes da Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 143 SANTOS, J. B. instalação da propriedade privada na região, os recursos naturais eram explorados comunitariamente e, assim havia um limite, de extração que a área suportava. Porém, os atuais “donos das terras” exploram em demasia os recursos naturais da região, sobretudo: lenha, madeira, pedras que são transformadas em britas, argila, entre outros. Essas pessoas viviam do uso comum das terras, onde praticavam a agricultura baseada na mão-de-obra familiar. As localidades eram herdadas em linha agnática, assegurando aos parentes lineares o “controle” sobre o território. As residências se estabeleciam em determinado setor tendo por foco aglutinador as parentelas agnáticas de parentes mais próximos, os quais se constituíam na unidade social de maior densidade, a comunidade em si. A principal característica desse trabalho era a vivência solidária entre seus membros, evidenciando saberes que a luta pela sobrevivência somente tem força quando é feita coletivamente. A produção da farinha de mandioca e de seus derivados, como o beiju, é um exemplo claro da produção coletiva. Por conta da perca das terras, esse povo construiu naquele território, no decorrer do tempo, relações conflituosas entre si e com os outros que estão ao se redor. Depois que os quilombolas da comunidade da Olaria perderam suas terras surgiram na região efeitos indesejáveis, sobretudo, no equilíbrio ecológico que em muitos casos, já se faz perceptível. Atualmente, a região sofre com problemas de degradação ambiental. Muitos são os processos relacionados ao uso e ocupação dos espaços que podem influenciar os recursos hídricos, tais como: desmatamentos, queimadas e o manejo inadequado ou uso intensivo dos solos. O que mais acelerou esse processo de degradação ambiental foi a alta taxa de abertura de novas fronteiras agrícolas e de áreas para pastagens. Almeida(prestor) contra o réu Franscisco Chagas das Neves. Purificação,1890. 4 Idem. 5 Poder tradicional, em virtude da fé na santidade dos ordenamentos e dos poderes senhoriais desde sempre presentes. O tipo mais puro é a dominação patriarcal. WEBER, Max. Os tipos de dominação. In: Economia e Sociedade. Editora unB, vol. 1. Brasília,1991. 6 ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá. Ação de condenação (Capitão Jacob Cavalcante de Almeida(prestor) contra o réu Franscisco Chagas das Neves. Purificação,1890. 7 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: O mito das classes perigosas. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói, Intertexto, 2001. 8 ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá. Ação de condenação (Capitão Jacob Cavalcante de Almeida(prestor) contra o réu Franscisco Chagas das Neves. Purificação,1890. 9 FOuCAuLT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004. 10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Batista Machado; rev. Silvana Vieira. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.65-73. 11 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. O município representativo no Brasil. 2º Ed. São Paulo: Alfa-Omega. 1975 12 TRANSCRIÇÃO DA GRAVAÇÃO DO DEPOIMENTO DO SR. SóSTENES PAES COLHO. Projeto História Oral de Irará. 12/julho de 1985. 13 Idem 14 ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá. Maços referentes ao conselho de intendência desse município. 15 LIVRO DE ACTAS DA INTENDÊNCIA MuNICIPAL – de 12 de junho de 1892 a 9 de abril de 1894 – Vila de Nossa Senhora da Purificação – Bahia. 16 REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. (orgs.) Liberdade por um fio; história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 17 SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. 2ª ed., Rio de Janeiro: Graphia, 1998, p. 54. 18 TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DO SR. SóSTENES PAES COELHO. Em colaboração para o projeto de história oral de Irará-12/07/1985. 19 Idem. 20 FOuCAuLT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004. 21 ENTREVISTA: João dos Santos Ramos, morador da Olaria, nascido em 1912, negro, da localidade de Olaria, cedida no dia 14/08/2005. 22 ENTREVISTA: João dos Santos Ramos, morador da Olaria, negro, da localidade de Olaria, cedida no dia 14/08/2005. notAS ENTREVISTA: João dos Santos Ramos, morador da Olaria, negro, da localidade de Olaria, cedida no dia 14/08/2005. 3 ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá. Ação de condenação (Capitão Jacob Cavalcante de 2 144 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA Artigo EL uSo “trAnSnACionAL” DE PruEBA oBtEniDA Por mEDio DE torturA* Kai Ambos** ABStrACt: The article examines the “transnational” use of torture evidence, i.e., the use of evidence obtained by torture by third states or parties in national criminal trials. It starts, on a theoretical level, from Beling’s doctrine of “prohibited evidence” (“Beweisverbote”) (infra A.). First, the “supranational” use of torture evidence, i.e. the use before international criminal tribunals (ICTY, ICTR, ICC), is analysed (B.) as it may influence national practice. It is concluded that such evidence is always inadmissible since it is unreliable and, more importantly, its use is antithetical and damaging to the integrity of the proceedings (B. III.). Second, the same conclusion must be drawn for the transnational use of torture evidence (C.). The exclusion of such evidence follows from international law, in particular Art. 15 UNCAT (C. I.), and from the national law of Germany and England & Wales as two representative jurisdictions for “inquisitorial” and “adversarial” criminal procedure (C. II.). Third, the burden to prove that such evidence was not obtained by torture rests with the state and the standard is one of a real, serious risk (D.). rESumEn: El artículo examina el uso “transnacional” de prueba obtenida por medio de tortura, es decir, el uso de prueba obtenida por medio de tortura por parte de Estados o Partes en juicios criminales nacionales. Comienza, en un nivel teórico, desde la doctrina de Beling de * * Artigo publicado originalmente no livro Terrorismo, Tortura y Derecho Penal, Editorial Atelier, 2009, p.67 e seguintes. Catedrático de derecho penal, derecho procesal penal, derecho comparado y derecho penal internacional en la universidad Georg-August de Göttingen; juez del Tribunal estadual de Göttingen (Landgericht). [[email protected]]. Agradezco a mi asistente Maria Laura Böhm y mi colaborador estudiantil Szymon Swiderski por su ayuda. Agradezco a los Profs. Paul Roberts (Nottingham) y Dr. Richard Vogler (Sussex) por sus comentarios críticos y constructivos e igualmente al revisor anónimo del Israeli Law Journal por sus críticas observaciones. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 145 AMBOS, K la “prueba prohibida” (“Beweisverbote”) (infra A.). Primero, el uso “supranacional” de prueba obtenida mediante tortura, es decir, el uso frente a tribunales penales internacionales (Tribunal Penal Internacional para la Antigua Yugoslavia, “TPIY”, Tribunal Penal Internacional para Ruanda, “TPIR”, y Corte Penal Internacional, “CPI”), es analizado (B.) en cuanto a su posible influencia en las prácticas nacionales. Se concluye que tal prueba es siempre inadmisible ya que no es confiable y, más importante, porque su uso es antitético y perjudicial a la integridad de los procedimientos (B. III). Segundo, la misma conclusión debe ser extraída para el uso transnacional de prueba obtenida mediante tortura (C.). La exclusión de tal prueba se sigue de la ley internacional, en particular del Art. 15 de la Convención contra la Tortura de la ONU, “CTONU” (C.I), y de las leyes internas de Alemania e Inglaterra y Gales como dos jurisdicciones representativas del proceso penal “inquisitorial” y “adversarial” (C. II.). Tercero, la carga de la prueba en cuanto a que tal material probatorio no fue obtenido mediante tortura recae en el Estado y el criterio es que se trate de un riesgo real y serio (D.). introducción Desde la perspectiva del derecho penal (internacional) la cuestión de la tortura tiene dos aspectos. El primero es material: ¿es ilícito el uso de la tortura en todas las situaciones, incluso en las más extremas en donde ella es aplicada para salvar vidas de inocentes (llamada tortura preventiva), y el torturador debe siempre ser castigado? He intentado encontrar una respuesta diferenciada a esta cuestión en otro lugar.1 El segundo aspecto es procesal: ¿la prueba obtenida por medio de tortura puede ser utilizada en procesos penales? En países regidos por el reinado del derecho (rule of law) y el juicio justo (fair trial) la respuesta es simple y clara: “no”, si la tortura fue aplicada por autoridades nacionales y la prueba obtenida con la tortura sería usada en un proceso penal posterior. Para tal situación, que podríamos llamar “uso directo de prueba obtenida por medio de tortura”, las normas de 146 procedimiento nacionales establecen claras prohibiciones.2 Estas prohibiciones nacionales están basadas en el derecho de los derechos humanos, en particular el art. 15 de la Convención contra la Tortura de la ONu (“CT-ONu”).3 una cuestión más compleja, que será analizada en este trabajo, es la de si tales prohibiciones también son aplicables al uso transnacional de prueba obtenida por tortura, esto es, a situaciones en que la tortura es aplicada en un país y la prueba obtenida es utilizada en otro. Es posible distinguir aquí dos situaciones. Primero, el Estado A que tiene una clara prohibición de utilizar prueba obtenida por tortura traslada a un sospechoso al Estado B –conocido por sus prácticas de tortura– para obtener tal prueba. Segundo, el Estado A en una investigación (conjunta) en el Estado B consigue prueba por medio de tortura y sus investigadores traen la prueba al país para presentarla en un proceso penal. La diferencia entre estos casos es obvia: en el primer caso, la práctica de tortura en el Estado B es usada conciente e intencionalmente para sortear las prohibiciones de tortura del Estado A; en el segundo caso, el Estado A consigue prueba por medio de tortura accidentalmente, sin utilizar intencionalmente las prácticas de tortura del Estado B. El uso transnacional de prueba obtenida por medio de tortura debe ser distinguido del uso supranacional de tal prueba, esto es, el uso ante tribunales penales internacionales. Luego de una breve explicación del punto de partida teórico relativo al uso de prueba obtenida ilegalmente, comenzaremos con el análisis de nuestra cuestión a nivel supranacional, dado que puede producir algunas conclusiones importantes respecto del uso transnacional en los tribunales nacionales de prueba obtenida mediante tortura. A. El punto de partida teórico El enfoque positivista y desligado de los principios del Estado de Derecho en el uso de prueba obtenida ilegalmente solo fue superado en Alemania, y en los sistemas procesales influenciados por el pensamiento alemán, a comienzos del siglo xx con la teoría de las “prohibiciones probatorias” de Ernst Beling (Beweisverbote), publicada en 1903.4 La idea fundamental de esta Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA teoría es que la búsqueda de la verdad dentro de la investigación procesal penal tiene limitaciones debidas a los intereses contrapuestos de índole colectiva e individual.5 La determinación de estas limitaciones depende principalmente de la posición que el ordenamiento jurídico otorga al individuo frente al poder estatal.6 En una democracia liberal constitucional, ordenada de acuerdo a los principios del Estado de Derecho, esta posición encuentra su expresión más significativa en los derechos fundamentales, especialmente en la dignidad humana y el libre desarrollo de la personalidad, garantizados constitucionalmente o por los tratados de Derechos Humanos aplicables.7 En esta clase de ordenamiento hay áreas que el legislador constitucional ha protegido de la injerencia estatal; por lo tanto, en principio, el esclarecimiento de hechos a través de determinados medios probatorios resulta inadmisible y prohibido.8 Como lo expuso el Tribunal Supremo de Justicia alemán (Bundesgerichtshof): “Si bien el fin del tribunal penal es descubrir la verdad, en un Estado constitucional la verdad no puede ser perseguida a cualquier precio”.9 Por lo tanto, el acusado es reconocido y respetado como un sujeto activo y no simplemente como el objeto de los procesos penales.10 Su libertad de decisión y de acción es intangible e invulnerable; no puede ser menoscabada ni manipulada.11 La manipulación de la libre voluntad del acusado mediante amenazas, coerción, engaño u otros métodos similares debe ser prohibida, y esta prohibición debe ser hecha efectiva mediante las sanciones correspondientes. Sin embargo, las prohibiciones de prueba no tienen solo el componente individual de proteger los derechos individuales12 y vengar su violación mediante la exclusión de la prueba obtenida ilegalmente en contra13 del acusado.14 Las prohibiciones probatorias conllevan también una dimension colectiva al preserver la integridad constitucional del orden legal,15 especialmente mediante la garantía y realización de un juicio justo.16 Esto fue reconocido en 1961, mucho después de Beling, por la Suprema Corte de Justicia de uSA cuando al explicar la regla de exclusión – equivalente a la doctrina de las “Beweisverbote” – por “el imperativo de la integridad judicial”,17 developed by others to “integridad moral”.18 Un efecto colateral (positivo) de las reglas de exclusión podría ser el impacto disciplinario que estas reglas podrían tener en las autoridades investigadoras, pero éste no puede ser su propósito principal ya que existen procedimientos administrativos específicos para sancionar la conducta ilegal de los agentes oficiales.19 En resumen, el interés público o estatal en descubrir la verdad en un juicio penal puede ser outweighed por los intereses privados protegidos como garantías fundamentales o derechos, o incluso por el interés colectivo en la integridad de los procesos criminales y, en definitiva, por el orden constitucional. Este enfoque doble individual-colectivo también es seguido en el nivel internacional, en particular al considerarse el posible efecto del uso de prueba “tainted” en la integridad de los procesos (véase infra B.). El sistema en cuestión de las prohibiciones probatorias o de reglas de exclusión puede generar tensiones entre la justicia material (realización del ius puniendi) y la justicia procesal (protección de derechos y de la integridad judicial).20 En otras palabras, esto podría acarrear una relación conflictiva entre, por una parte, el interés en el funcionamiento de una administración de justicia penal encaminada a la investigación y sanción efectiva de delitos, y, por otra parte, la protección de los derechos fundamentales del acusado y la integriad del sistema en su conjunto.21 Esto no permite una “regla simple, algorítmica, apta para todo fin” inflexible,22 sino que muchas veces requiere de un balance delicado de intereses que conduce a decisiones que muy pocas veces satisfacen a ambas partes – fiscal y defensor –equitativamente. En todo caso, reglas basadas en principios constitucionales rigen el uso de la prueba obtenida ilegalmente, y sus consecuencias son el precio que un Estado constitucional regido por los principios del Estado de Derecho, un verdadero Rechtsstaat, debe estar dispuesto a pagar si quiere estar a la altura de la letra de su propia ley. B. El uso supranacional de prueba obtenida por tortura Aunque los procesos ante los Tribunales ad-hoc de la ONu (Tribunal Penal Internacional Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 147 AMBOS, K para la Antigua Yugoslavia, “TPIY”, y Tribunal Penal Internacional para Ruanda, “TPIR”) están fuertemente influenciados por la tradición de common law,23 con respecto a la admisión de prueba ha sido adoptada una postura liberal más típica de la tradición de civil law.24 No hay reglas técnicas estrictas. Esto se debe, por un lado, a la necesidad que tiene un Tribunal internacional de “combinar las tradiciones jurídicas de muchos países”;25 por otro lado, es el resultado del hecho de que los tribunales penales internacionales, debido al violento contexto de sus casos, se confrontan a menudo con falta de evidencia que debe ser compensada con reglas probatorias flexibles.26 i. tPiY/tPir Las reglas para la admisión de pruebas se encuentran en las Reglas de Procedimiento y Prueba de ambos tribunales, que han sido establecidas por los jueces (cfr. art. 15 del Estatuto del TPIY y art. 14 del Estatuto del TPIR). Dado que ambas normativas son esencialmente idénticas nos concentraremos en las RPP del TPIY e indicaremos las diferencias cuando sea necesario. Hasta ahora, ni el TPIY ni el TPIR tuvieron que decidir sobre la admisión de prueba obtenida por medio de tortura. La regla 89, la “Carta Magna” del derecho probatorio,27 contiene el principio general de que “una Sala puede admitir toda prueba relevante que estime con valor probatorio” (regla 89 (C) RPP del TPIY y TPIR) y que “puede excluir prueba si su valor probatorio es sustancialmente superado por la necesidad de asegurar el juicio justo”28 (regla 89 (D) RPP del TPIY). Si bien las RPP del TPIR no contienen tal regla de exclusión específica en la correspondiente sección sobre reglas de pruebas (reglas 89 ss.), la regla 70 (F) RPP del TPIR confirma el poder inherente de las Salas de juicio del TPIR de excluir prueba “si su valor probatorio es sustancialmente superado por la necesidad de asegurar un juicio justo”.29 Si bien, en el resultado, la regla 89 (D) concede una amplia discreción con respecto a la exclusión de prueba –sin sujeción a las reglas probatorias 148 nacionales (regla 89 (A))–, la regla 95 es más específica con respecto a prueba obtenida a través de ciertos métodos (prohibidos) y por consiguiente es aplicable específicamente a la prueba obtenida por medio de tortura. Ella reza como sigue: “Ninguna prueba será admisible si es obtenida a través de métodos que arrojen una duda sustancial sobre su fiabilidad o si su admisión es antitética a y dañaría gravemente la integridad del proceso.”30 Si bien es controvertido si esta regla es una lex specialis respecto de la regla 89 (D)31 o sólo clarifica su contenido,32 es claro que ella excluye prueba obtenida por medio de métodos prohibidos sin ninguna ponderación ulterior (como expresado, por el contrario, en la regla 89 (D): “superado por la necesidad …”).33 Esta regla deja a los jueces la decisión sobre qué métodos arrojan “una duda sustancial sobre su fiabilidad” o cuando la admisión de prueba sería “antitética a” y “dañaría gravemente” el proceso.34 Por lo tanto, si cierta prueba ha de ser admitida o excluida depende de las circunstancias de cada caso.35 De modo interesante, la versión original de la regla era más clara con respecto a nuestra cuestión. Ella excluía la admisión de prueba obtenida por medios “que constituyen una grave violación a los derechos humanos internacionalmente protegidos”.36 Dada la protección contra la tortura en varios instrumentos de derechos humanos y el estatus de la prohibición de tortura como ius cogens (véase infra 2.), la prueba obtenida por medio de tortura constituiría “una grave violación a los derechos humanos internacionalmente protegidos”37 y en consecuencia tendría que ser excluida. Sin embargo, con la modificación de la regla 95 la exclusión no es más “una cuestión de medios, sino una de resultado”.38 Como establece la regla, aun si son violados derechos humanos internacionalmente protegidos, como la libertad frente a la tortura, los jueces cuentan aún con discreción para admitir prueba obtenida por medio de tortura, en tanto y en cuanto ellos la consideren confiable y no gravemente dañina para la integridad del proceso. Por consiguiente, estas condiciones de admisibilidad deben ser analizadas con más detalle. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA 1. ¿Es la tortura un método que arroje dudas sustanciales sobre la fiabilidad de dicha prueba? La no fiabilidad de la prueba obtenida por tortura fue, además de consideraciones humanitarias, la razón principal de su abolición de los códigos de procedimiento penal de la Europa continental por la reforma ilustrada postrevolucionaria.39 La doctrina coincide en que la imposición de tortura es más adecuada para evaluar la capacidad del sospechoso a soportar el dolor que su lealtad a la verdad.40 Claramente, la mayoría de los interrogados bajo tortura admitiría casi todo para frenar la imposición de dolor adicional. En el viejo procedimiento criminal inquisitivo de la época medieval la cuestión de la fiabilidad a menudo conducía a limitar el uso de información que podría ser verificada posteriormente, por ejemplo, registrando el lugar donde el sospechoso torturado había indicado que estaba el arma homicida.41 La no fiabilidad de la prueba obtenida por tortura fue también una de las razones para la introducción de la regla de exclusión del art. 15 CT-ONu, que será discutida luego con más detalle (C. I. 1.). Se consideró que invocar tal declaración no fiable ante un tribunal sería contrario al principio del “juicio justo”.42 En definitiva, aunque la Sala de juicio debería siempre excluir la prueba obtenida por tortura en vista de la “duda sustancial” en cuanto a su fiabilidad, podrían existir aún casos en donde tal prueba pueda ser verificada por investigaciones posteriores y pueda probarse que era correcta. Por consiguiente, la cuestión crucial en cuanto a su admisibilidad es la siguiente 2. ¿La admisión de prueba obtenida por medio de tortura sería antitética y dañaría gravemente la integridad del proceso? Aunque esta parte de la regla 95 no se refiera al método a través del cual la prueba es obtenida, sino a la consecuencia (resultado) de su admisión para el proceso en su conjunto, una Sala de Juicio debe aún evaluar la prueba a la luz de la manera y las circunstancias que rodearon su obtención. Si la admisión de la prueba sería “antitética a” y “dañaría gravemente la integridad del proceso” depende de la gravedad de la violación cometida para obtener la prueba.43 Como regla es posible decir que con el incremento del nivel de gravedad de la violación aumenta también la probabilidad de que la admisión sea “antitética a” y “dañ[e] gravemente la integridad del proceso”.44 En cuanto a la prueba obtenida por medio de tortura es posible distinguir entre aquella obtenida por los investigadores del tribunal y aquella lograda por terceros. En el primer caso, puede haber pocas dudas acerca de que tal prueba será considerada como altamente antitética a y dañina para la integridad del proceso y en consecuencia tendría que ser excluida. Esto se sigue, antes que nada, de la importancia de la prohibición de tortura que el mismo TPIY ha reconocido en su frecuentemente citada decisión en el caso Furundzija en donde consideró a esta norma como de ius cogens45 y como “uno de los estándares más fundamentales de la comunidad internacional”.46 En Nicolic, la Sala de juicio incluso consideró en un obiter que graves maltratos o torturas de un sospechoso pueden constituir un obstáculo a la jurisdicción del Tribunal: “En circunstancias en que un acusado ha sido gravemente maltratado, quizás incluso sometido a (…) tortura, antes de ser entregado al Tribunal, esto puede constituir un impedimento jurídico al ejercicio de la jurisdicción sobre tal acusado. Éste sería ciertamente el caso, si personas que actúan en nombre de la Fuerza de Estabilización en Bosnia y Herzegovina o el Procurador estuvieren involucrados en tales muy graves maltratos (…).47 (…) No sería apropiado para una Corte de justicia juzgar a una víctima de esos abusos”.48 De esto se sigue, a fortiori, que la prueba obtenida por medio de tortura sería antitética a y dañina para la integridad del proceso y en consecuencia debería ser excluida. Esto es aplicable no sólo a la prueba obtenida por los investigadores del Tribunal, sino también a aquella obtenida por personas que actúan en nombre del Tribunal, por ejemplo, las fuerzas de mantenimiento de la paz de la ONu. Otra cuestión es, sin embargo, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 149 AMBOS, K cómo debe ser tratada la prueba obtenida por otros terceros independientes, en particular, las autoridades nacionales, que actúan sin ninguna vinculación con los tribunales. Esta cuestión tiene una gran importancia práctica para todo tribunal penal internacional, dado que normalmente éstos no cuentan con suficiente personal para obtener toda la evidencia y dependen de la cooperación de las autoridades nacionales.49 Como ha sido dicho antes, los tribunales no han tomado una decisión sobre la admisión de prueba obtenida por medio de tortura. Sin embargo, ellos tuvieron que tratar con prueba obtenida por autoridades nacionales en violación de los derechos de los sospechosos aplicables ante esos tribunales. Así, la Sala en Celebici se enfrentó con la cuestión de si podía admitir prueba que había sido obtenida durante un interrogatorio llevado a cabo por la policía austriaca en ausencia del abogado del sospechoso. Aunque el derecho nacional aplicable (austriaco) de la época no preveía un derecho a la defensa técnica durante el interrogatorio policial y, en consecuencia, la prueba había sido legalmente obtenida según el derecho austriaco,50 la Sala de Juicio sostuvo que el procedimiento austriaco lesionaba el derecho a la defensa técnica según el art. 18 (3) del Estatuto del TPIY y que, en consecuencia, las declaraciones hechas ante la policía eran inadmisibles en el proceso.51 una posición similar parece haber sido tomada en la primera decisión de apelación del TPIR en el caso Barayagwiza.52 La cuestión era si la excesiva duración de la detención provisional del acusado en Camerún (sin ser informado inmediatamente sobre los cargos en su contra) convertiría a su arresto, de otro modo legítimo, en ilegítimo y podría constituir un obstáculo a la jurisdicción (personal) del Tribunal sobre la base de la “doctrina del abuso de proceso”. La Sala de Apelación respondió esta cuestión de manera afirmativa, separando la cuestión del órgano responsable por la duración de la detención del efecto de la violación como tal: “Incluso si la culpa es compartida entre los tres órganos de los tribunales – o es el resultado de la acción de un tercero, como Camerún–, esto socavaría la integridad del proceso judicial para proceder. Además, 150 sería injusto para el apelante enfrentar un juicio sobre esas acusaciones si sus derechos fueron abiertamente violados. Por consiguiente, para la doctrina del abuso de proceso es irrelevante qué entidad o entidades fueron responsables por las alegadas violaciones de los derechos del apelante.”53 Aunque esto se sigue, otra vez a fortiori, de que la prueba obtenida por medio de tortura nunca puede ser admitida, una Sala de Apelación diferente modificó posteriormente esta decisión, centrándose sobre las responsabilidades (organizacionales) por la duración de la detención y denegando un recurso por una lesión de los derechos del acusado, pues esto era responsabilidad principal de terceros.54 De manera similar, en Brdjanin, una Sala de Juicio admitió transcripciones de conversaciones telefónicas interceptadas (ilegalmente) por fuerzas de seguridad de Bosnia y Herzegovina con el argumento de que la “función de este Tribunal no es disuadir y sancionar la conducta ilegal de las autoridades de investigación domésticas, excluyendo la prueba obtenida ilegalmente”.55 En otras decisiones el TPIR se ha abstenido de supervisar la legalidad de los actos de autoridades nacionales.56 Resumiendo esta jurisprudencia, es claro que los tribunales no admitirían prueba obtenida mediante tortura por sus propios investigadores o por fuerzas que actúan en su nombre (como, por ejemplo, la Fuerza de Estabilización –SFOR- en Nikolic), pero no es claro cómo tratarían a tal prueba si fuera producida por terceros actuando de manera completamente independiente. Voy a sostener que la prueba obtenida por medio de tortura no debe ser admitida bajo ninguna circunstancia, independientemente de su proveniencia. Dado el estatus de la prohibición de la tortura como “uno de los estándares más fundamentales de la comunidad internacional”,57 ésta no puede ser comparada con lesiones ordinarias o menores de reglas de procedimiento. Incluso en estos casos los tribunales no ignoran la infracción, pero, en ciertas ocasiones, conceden preeminencia a la importancia de la prueba para el proceso concreto; en este contexto, el hecho de que la prueba fue cometida por un tercero Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA puede jugar un papel a favor de su admisión. En otras palabras, la responsabilidad personal o de la organización por la infracción, esto es, la cuestión de si la infracción puede ser imputada a los tribunales es sólo un aspecto a tener en cuenta en la ponderación de intereses.58 Claramente, el resultado de esta ponderación cambia con la gravedad de la infracción procesal en cuestión y las consideraciones a favor de la admisión de pruebas no pueden superar a una violación de una prohibición tan importante como la prohibición de tortura.59 En otras palabras, la regla procesal -in casu la prohibición de obtener prueba mediante tortura- puede adquirir una importancia tal que impide cualquier ponderación de intereses y que, en consecuencia, su infracción importa necesariamente la exclusión de la prueba respectiva. Del mismo modo, la “doctrina de la bandeja de plata” de la Corte Suprema de los EE.UU.,60 sobre cuya base la prueba obtenida por particulares o por un gobierno extranjero estaba generalmente permitida,61 ha sido limitada cuando la infracción procesal, como en el caso de la tortura, “conmueve la conciencia de la Corte americana”.62 Hay consideraciones adicionales, basadas en el derecho de los tribunales, que hablan en contra de admitir prueba obtenida por medio de tortura aun cuando fuera obtenida por terceros. Primero, la obligación de los tribunales establecida en sus Estatutos de asegurar que el proceso sea justo y rápido (art. 20 (1) TPIY, art. 19 (1) TPIR) se extiende a violaciones de reglas procesales anteriores al juicio, dado que ellas pueden afectar el carácter de justo del proceso como tal. Esto significa que tales violaciones deben ser consideradas y no pueden ser despachadas con consideraciones meramente organizacionales relacionadas con la responsabilidad por la violación.63 Segundo, la regla 95 debe ser interpretada a la luz de su versión original que, como fue explicado arriba, claramente prohibía la admisión de prueba obtenida mediante tortura. La modificación de la regla no tuvo el propósito de limitar, sino de ampliar los derechos del acusado.64 Tercero, la misma Sala en el caso Brdjanin emitió el 15 de febrero de 2002 una decisión sobre los estándares que gobiernan la admisibilidad de la prueba (“Order on the Standards Governing the Admissibility of Evidence”) donde estableció que las “declaraciones que no son voluntarias, sino que son obtenidas de los sospechosos por medio de una conducta opresiva, no pueden pasar el examen de la regla 95”.65 De manera similar, dentro del marco del procedimiento de admisión de culpabilidad (guilty plea) (regla 62bis), la admisión debe ser hecha voluntariamente para que sea aceptada como una confesión.66 Esto muestra que la voluntariedad, que siempre es anulada con la tortura, es un presupuesto para que la declaración sea admitida.67 Cuarto, hay un argumento teleológico con respecto a los crímenes de competencia de los tribunales: si la tortura es parte de esos crímenes (como un crimen contra la humanidad o un crimen de guerra, art. 2 (b), art. 5 (f) Estatuto del TPIY y art. 3 (f), art. 4 (a) Estatuto del TPIR) sería contradictorio que los tribunales pudieran admitir prueba obtenida por una conducta que ellos mismos deben juzgar.68 El argumento no puede ser refutado con el razonamiento de que los tribunales tienen que juzgar los “crímenes más graves conocidos a la humanidad”69 y de que, en consecuencia, está justificado un enfoque más flexible para la admisión de la prueba obtenida (por medio de tortura).70 Éste no es un argumento material, sino el procesal discutido arriba con respecto a la ponderación de intereses. Por consiguiente, son aplicables los mismos contra-argumentos: hay un límite a la ponderación si uno de los valores en juego es absoluto, esto es, in casu el valor absoluto de la prohibición de tortura. ii. La Corte Penal internacional La situación ante la CPI es esencialmente la misma. El artículo 69 (7) del Estatuto de la CPI -lex specialis respecto de la regla general de admisibilidad del apartado (4) del mismo artículo71- repite la (nueva) regla 95 de las RPP de los TPIY/TPIR y establece: “No serán admisibles las pruebas obtenidas como resultado de una violación del presente Estatuto o de las normas de derechos humanos internacionalmente Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 151 AMBOS, K reconocidas cuando: (a) Esa violación suscite serias dudas sobre la fiabilidad de las pruebas; o (b) Su admisión atente contra la integridad del juicio o redunde en grave desmedro de él.” De este modo, en principio, la prueba obtenida en violación de derechos humanos no es per se inadmisible, sino que la decisión depende de su fiabilidad y sus efectos sobre la integridad del proceso. Así, en el caso Lubanga72 la defensa invocó una violación al art. 33 del Código Procesal Penal congolés por un allanamiento que se había realizado en la vivienda de Lubanga sin que él se encontrase presente.73 Si bien la Sala de Cuestiones Preliminares (Pre-Trial Chamber) reconoció una violación del principio de proporcionalidad y por tanto una violación de “derechos humanos internacionalmente reconocidos” no declaró inadmisible la prueba en cuestión ya que consideró que en el caso concreto dicha violación no afectaba la “fiabilidad” de tal prueba ni perjudicaba la integridad del proceso.74 La Sala consideró, con base en la revisión de la jurisprudencia relevante, que únicamente graves violaciones pueden acarrear la exclusión de la prueba, agregó sin embargo que la prueba solo era admisible “a los fines de la audiencia de confirmación”, enfatizando además el “alcance limitado” de tal audiencia así como la posibilidad de que la Sala de Primera Instancia (Trial Chamber) se pronuncie en forma diferente respecto de la admisibilidad de la prueba en cuestión.75 En cuanto a la prueba obtenida por medio de tortura, las mismas consideraciones antes efectuadas conducirían a su inadmisibilidad absoluta.76 Esto es aplicable a toda la prueba obtenida por medio de tortura independientemente de su fuente o su efecto a favor o en contra del acusado.77 Del párrafo 8 del art. 6978 se deriva la irrelevancia para la CPI del derecho nacional, dado que la Corte no se pronunciará sobre la “aplicación” de dicho derecho. Consecuentemente, la CPI debe juzgar la admisibilidad sobre al base de su derecho; en particular, su “aplicación e interpretación (...) deberá ser compatible con los derechos humanos internacionalmente reconocidos” (art. 21 (3)). Esta clara referencia a derechos humanos fundamentales, tal como la 152 libertad frente a la tortura, es un fuerte argumento adicional de que hay “algunas violaciones que, por su naturaleza, son tan crasas o tan incompatibles con los derechos humanos internacionalmente reconocidos que la admisión de prueba obtenida” por tales medios siempre será antitética a y dañina para la integridad del proceso.79 Last but not least, con respecto al procedimiento de admisión de culpabilidad previsto en el art. 65 del Estatuto de la CPI también se reconoce que tal admisión debe hacerse “voluntariamente” (ver art. 65 (1) (b)) y que sería “nula e inválida”80 si fuera obtenida por medio de tortura. iii. Primera conclusión intermedia con respecto al uso supranacional de prueba obtenida por medio de tortura El uso supranacional de prueba obtenida por medio de tortura es siempre inadmisible. Tal evidencia no es fiable y, más importante, su uso es antitético a y perjudicial para la integridad del proceso. Para considerar inadmisible a esta prueba es suficiente con que exista uno de estos dos defectos, dado que la regla 95 TPIY/TPIR y el art. 69 (7) del Estatuto de la CPI prevén una formulación alternativa (“o”). una distinción entre prueba obtenida por medio de tortura por los investigadores del tribunal o por terceros no puede ser hecha razonablemente, ya que sólo minaría la regla general que espera que los tribunales penales internacionales -como modelos para la justicia penal nacional- respeten completamente los derechos humanos internacionalmente reconocidos. Esto implica que estos tribunales no pueden utilizar prueba obtenida en violación de estos derechos. Como ha señalado Sluiter: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 “Como modelos para la justicia penal internacional, puede esperarse que el TPIY y el TPIR respeten plenamente los derechos humanos internacionalmente protegidos. A largo plazo, el apoyo a y la confianza en formas de atribución penal internacional, incluyendo la recientemente establecida corte penal internacional (CPI), dependerá de si los tribunales pueden hacer honor a esta expectativa o no.”81 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA C. El uso transnacional de prueba obtenida mediante tortura El uso trasnacional de prueba obtenida por medio de tortura ha sido objeto de dos decisiones recientes de cortes superiores en Gran Bretaña y Alemania. Ambas pueden informar nuestra discusión y servir como casos modelo. En el caso “A and others v. Secretary of State for the Home Department”82 la Casa de los Lores británica (House of Lords) tenía que decidir si los tribunales británicos podían admitir como prueba declaraciones que habían sido obtenidas por medio de tortura por oficiales de un Estado extranjero sin estar involucradas las autoridades británicas. Los recurrentes fueron detenidos en aplicación de la sección 23 de la Ley sobre antiterrorismo, crimen y seguridad (Antiterrorism, Crime and Security Act) de 2001.83 La disposición autoriza la detención por un período indefinido de sospechosos certificado como terroristas internacionales según la sección 21 de esa Ley si, por razones jurídicas o prácticas, es imposible deportarlos. La persona certificada terrorista según la sección 21 puede apelar a la Comisión de Apelación Especial de inmigración (Special Immigration Appeals Commission –SIAC-) contra la certificación argumentando que no hay motivos razonables para la sospecha (véase la sección 25 de la Ley). Los recurrentes sostuvieron que el secretario de Estado se había basado ilegalmente para la emisión de los certificados en prueba obtenida por medio de tortura proporcionada por otro Estado. Sin embargo, la SIAC sostuvo que la prueba, en la cual se fundaba (en parte) la sospecha, podía ser usada y en consecuencia rechazó la apelación. La Corte de Apelación para Inglaterra y Gales confirmó esa decisión. El 8 de diciembre de 2005, los Cámara de los Lores, concordando con la posición de los recurrentes, anuló la decisión por unanimidad, sosteniendo que el common law prohíbe la admisión de prueba obtenida por medio de tortura “independientemente de dónde, o por quién o con base en qué autoridad fue impuesta la tortura”.84 En su decisión del 14 de junio de 2005, el Tribunal Superior estadual de Hamburgo (Oberlandesgericht) tuvo que tratar con una cuestión similar en el caso “El Motassadeq”.85 Motassadeq fue imputado de un delito similar a la conspiración previsto en el § 30 (2) tercera alternativa del Código penal alemán (Strafgesetzbuch)86 en relación con los ataques del 11 de septiembre. El Departamento de Estado de los EE.uu. proporcionó, vía fax, resúmenes de declaraciones de tres miembros de Al qaida de alta jerarquía prestadas en interrogatorios cumplidos por autoridades estadounidenses mientras esas personas estaban detenidas.87 A causa de la sospecha general, basada en informes de prensa y de organismos de derechos humanos, de que los miembros de Al qaida eran sometidos a tortura, el Tribunal buscó información sobre el lugar y las circunstancias de los interrogatorios; pero tal información no pudo ser obtenida. Si bien el Tribunal admitió en última instancia las declaraciones como evidencia -dado que, con base en la libre apreciación de la prueba disponible, la tortura no pudo ser probada (sobre la delicada cuestión de la carga y el estándar de la prueba, véase más detalladamente infra C.)-, también declaró, en un obiter, que ninguna declaración obtenida por tortura -sin importar su proveniencia (autoridades nacionales o extranjeras)- puede ser admitida como prueba.88 Si se comparan estos dos casos, lo más llamativo es que en ninguno de ellos las autoridades nacionales estaban involucradas en la obtención de la prueba respectiva. Según la distinción hecha en la introducción, entre la obtención pro-activa de la prueba mediante el traslado del sospechoso a Estados que practican la tortura (primera situación) y la obtención más bien accidental de tal evidencia (segunda situación), estos casos corresponden a la segunda situación. Sin embargo, si (aun) en esta situación la admisión de prueba obtenida por medio de tortura debe ser considerada legalmente imposible, entonces lo mismo vale a fortiori para la primera situación. En cuanto al subsiguiente análisis esto significa que la segunda situación debe ser examinada en primer lugar y la primera sólo debe serlo si la prueba obtenida por medio de tortura es considerada admisible en esta (segunda) situación. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 153 AMBOS, K i. El uso trasnacional de prueba obtenida por medio de tortura a la luz del derecho internacional El uso trasnacional de prueba obtenida por medio de tortura puede ser incompatible con el art. 15 CT-ONU y el principio del juicio justo tal como es reconocido especialmente en el art. 6 del Convenio Europeo de Derechos Humanos (“CEDH”) y la jurisprudencia respectiva. 1. Art. 15 CT-ONU a) Ratio y alcance El art. 15 CT-ONu es la única regla universal89 que explícitamente excluye la prueba obtenida por medio de tortura: “Todo Estado Parte se asegurará de que ninguna declaración que se demuestre que ha sido hecha como resultado de tortura pueda ser invocada como prueba en ningún procedimiento, salvo en contra de una persona acusada de tortura como prueba de que se ha formulado la declaración.” Los travaux de la CT-ONU90 demuestran que esta regla obligatoria fue incluida en la convención esencialmente por dos razones: La primera era la salvaguarda de la lealtad del proceso, dado que toda declaración hecha bajo tortura es, como ya ha sido antes expuesto, susceptible de ser no fiable. La segunda razón era para desalentar el uso de la tortura, eliminando uno de sus principales incentivos para aplicarla. Además, en última instancia, el art. 15 CT-ONu refleja el “más amplio principio”,91 también expresado en la regla 95 de las RPP de los TPIYI/TPIR y en el art. 69 (7) (b) Estatuto de la CPI, de la salvaguarda de la integridad del proceso (judicial).92 Impidiendo el uso de la prueba obtenida por medio de tortura en el proceso judicial, el art. 15 CT-ONU no sólo asegura que sea excluida la prueba no fiable, sino también la prueba que “abusa[ría] y degrada[ría] el proceso”93 e “involucra[ría] al Estado en una contaminación moral”.94 El art. 15 CT-ONu no sólo es aplicable –obviamente- a 154 la situación “clásica” en que el Estado utiliza la prueba que él mismo ha obtenido en un juicio penal contra el acusado (torturado),95 sino también a la prueba obtenida mediante tortura en otro Estado. Esto se sigue ya de una interpretación literal, dado que el art. 15 CT-ONU no limita la exclusión a la prueba propia (nacional) obtenida mediante tortura, sino que establece de manera general que “ninguna declaración (...) hecha como resultado de tortura” será invocada como prueba “en ningún procedimiento”, esto es, la prueba obtenida mediante tortura no es admisible independientemente de su proveniencia,96 inclusive la prueba que se haya obtenido con base en aquella (efecto extendido).97 El ilimitado alcance de la disposición puede ser explicado por su ratio, a saber, eliminar incentivos para el uso de tortura, así como impedir la producción de prueba no fiable y cualquier perjuicio a la integridad del proceso; la proveniencia de la prueba no altera su naturaleza ilícita y sus efectos negativos. Además, si los proyectistas hubieran querido limitar el alcance de la disposición, ellos fácilmente hubieran podido hacer lo que hicieron con respecto a otras obligaciones que surgen de la CT-ONU (véase, por ejemplo, el art. 2 (1), 12 y 13).98 De hecho, ellos han actuado así con respecto a la utilización (excepcional) de la prueba obtenida mediante tortura en contra del torturador con el fin de probar la existencia de la declaración bajo tortura (véase el art. 15 última parte). Sin embargo, una aplicación extensiva de esta excepción por vía de analogía a otros casos contra el torturador, como recientemente ha sugerido Scharf,99 ha de ser rechazada. Scharf sostiene que las declaraciones biográficas de los detenidos del centro de tortura Tuol Sleng de los Jemeres Rojos (Khmer Rouge) deberían ser admitidas como prueba en el juicio contra los líderes de los Jemeres Rojos ante las Cámaras extraordinarias del Tribunal internacional establecido por la ONU.100 Scharf es bien conciente del riesgo de que tal excepción socave el art. 15 CT-ONU y en consecuencia propone cuatro criterios que deberían ser satisfechos para que un tribunal pueda considerar prueba obtenida mediante tortura. Primero, tal prueba nunca debe ser utilizada en un proceso donde la Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA víctima de dicho abuso es el acusado. Segundo, nunca debe ser utilizada cuando las autoridades de persecución estuvieran directa o indirectamente involucradas en los actos de maltrato. Tercero, tal prueba tampoco debe ser considerada a menos que fuera suficientemente corroborada. Cuarto, no debería ser admitida si, con esfuerzos razonables, la autoridad de persecución pudiera obtener prueba no manchada que fuera efectiva para establecer la responsabilidad penal.101 Aunque sea difícil de aceptar que acusados como los líderes de los Jemeres Rojos saquen ventaja del art. 15 CT-ONu, esto es, una disposición que ciertamente no estaba destinada a ampararlos frente a la responsabilidad penal, el daño causado a la legitimidad de un proceso contra torturadores que se basa esencialmente en prueba obtenida mediante tortura no debería ser subestimado y ciertamente no puede ser superado por los cuatro criterios propuestos por Scharf. En efecto, estos criterios no se relacionan con la cuestión de la integridad o lealtad del proceso, sino que sacrifican estas consideraciones en nombre de la “eficiencia probatoria”102 con vistas a condenar acusados con la mayor facilidad posible. Tal “flexibilidad”, uno de cuyos ejemplos recientes es el proceso contra Saddam Hussein,103 perjudica, a largo plazo, a la justicia penal internacional. b) El impacto del art. 15 CT-ONU en el derecho doméstico La CT-ONU, como un tratado internacional, no tiene fuerza vinculante en el derecho local, a menos que se le haya dado efecto a través de una incorporación explícita, sea a través de un acto del parlamento o ley o, además, en algunas jurisdicciones de common law, a través de principios de derecho consuetudinario internacional.104 Esto significa que la CT-ONu sólo es parte del derecho alemán, pero no del derecho doméstico inglés, porque sólo en el primero el acto legislativo correspondiente ha sido adoptado por el parlamento.105 Si el tratado en cuestión puede ser aplicado directamente (en parte) por tribunales locales depende de la naturaleza y contenido de sus normas, esto es, si ellas son lo suficientemente claras y precisas para ser “auto-ejecutorias” (self executing) con respecto a individuos sin necesidad de una clarificación ulterior por disposiciones locales.106 De otra forma, el efecto de ese tratado estaría limitado a imponer una obligación general de adaptar el orden jurídico a los objetivos establecidos por sus reglas.107 En A and Others, el juez Lord Neuberger negó que el art. 15 CT-ONu fuera auto-ejecutorio en los tribunales ingleses, dado que está dirigido a “todo Estado parte”. 108 Sin embargo, éste no es un argumento convincente, dado que los tratados internacionales no siempre distinguen entre el gobierno y otros órganos del Estado.109 Más bien, el hecho de que el art. 15 CT-ONu obliga a los Estados partes a asegurar que la prueba obtenida mediante tortura no sea invocada en procesos (judiciales) da a entender que está dirigido a la rama judicial.110 El mismo punto de vista ha sido seguido por el Tribunal Federal Constitucional alemán (Bundesverfassungsgericht),111 aunque la jurisprudencia del Comité contra la tortura de la ONu y la práctica de los Estados no son uniformes.112 Sea como fuere, el Tribunal Superior estadual de Hamburgo aplicó el art. 15 CT-ONu como una regla de exclusión local “auto-ejecutoria”.113 Aun cuando no se quiera ir tan lejos en contra de una concepción dualista, no puede negarse que el art. 15 CTONU es obligatorio para los Estados parte de la CT-ONu y, como tal, esa disposición informa la interpretación del derecho y la práctica locales respectivos. Por consiguiente, la House of Lords usó correctamente el art. 15 CT-ONu como una pauta para interpretar el derecho doméstico inglés y sus obligaciones según el CEDH.114 2. El art. 6 (1) del Convenio Europeo de Derechos humanos En el CEDH no hay una regla de exclusión explícita de la prueba obtenida por medio de tortura. La prohibición de tortura del art. 3 CEDH no se refiere a la cuestión de las consecuencias procesales por la violación de este derecho, en particular no establece una regla de exclusión.115 A pesar de ello, tal regla puede ser inferida de Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 155 AMBOS, K una interpretación sistemática y teleológica del principio del juicio justo consagrado en el art. 6 (1) del CEDH en concordancia con el art. 3 del CEDH. El Tribunal Europeo de Derechos Humanos (TEDH) no prescribe reglas de admisibilidad de la prueba, sino que en este punto deja a los Estados parte una amplia discreción;116 este Tribunal solamente examina – en una especie de evaluación del efecto general – si el proceso en su totalidad fue justo. Por consiguiente, en Schenk v. Switzerland el Tribunal sostuvo que su tarea no era decidir “como una cuestión de principio y en abstracto” si la prueba – que fue obtenida en contra del derecho local – puede ser admisible en juicio sin privar al recurrente de su derecho a un juicio justo, sino analizar si el proceso en su totalidad fue justo.117 Adoptando este punto de vista el TEDH puso énfasis en el hecho de que la conversación telefónica registrada ilícitamente no era la única prueba sobre la cual se basaba la condena del acusado118 y que él tuvo oportunidad suficiente para cuestionar la autenticidad de la grabación.119 Por lo tanto, en el caso de prueba obtenida en violación del art. 8 CEDH (derecho a una vida privada y familiar) el TEDH estableció que la admisión de tal prueba sólo viola el art. 6 (1) CEDH si el proceso en un todo no fue justo.120 In casu, el TEDH lo negó, tomando en consideración la naturaleza de la violación y la oportunidad del acusado de cuestionar la autenticidad de la prueba involucrada.121 El TEDH ha adoptado, sin embargo, un punto de vista diferente con respecto a los tratamientos inhumanos y degradantes de acuerdo con el art. 3 CEDH. En el caso Jalloh v. Germany122 declaró – luego de repetir el principio general de una evaluación general – que respecto de prueba obtenida mediante métodos constitutivos de una violación del art. 3 CEDH eran aplicables consideraciones diferentes, dado que esta norma protege uno de los valores más fundamentales de la sociedad y, a diferencia de otras disposiciones, no admite excepciones.123 Aunque el TEDH dejó abierta la cuestión de si la admisión de prueba obtenida por tratamientos inhumanos y degradantes convierte por sí misma 156 al proceso en injusto,124 fue más explícito con respecto a la tortura: “prueba incriminatoria – sea en la forma de una confesión o de prueba material – obtenida como resultado de actos de violencia o brutalidad u otras formas de tratamiento que puedan ser caracterizados como tortura nunca debería ser usada como prueba de la culpabilidad de la víctima, independientemente de su valor probatorio. Cualquier otra conclusión sólo serviría para legitimar indirectamente la clase de conducta moralmente reprensible que los autores del artículo 3 de la Convención buscaron proscribir (...).”125 De alguna manera, con esta clara exclusión de la prueba obtenida por tortura el TEDH hizo hincapié en la naturaleza y gravedad de la violación y, por ello, hizo lo mismo que ya había hecho in abstracto en Kahn v. UK.126 También vale la pena mencionar que el TEDH limitó el alcance de su afirmación a “prueba incriminatoria (…) usada como prueba de la culpabilidad de la víctima”,127 permitiendo así, aparentemente, la admisión de prueba obtenida por medio de tortura a favor del acusado. Aunque este punto de vista puede rendir homenaje al amplio derecho de defensa del acusado del art. 6 (3) (c) CEDH, está en conflicto sin embargo con la ratio de la regla de exclusión del art. 15 CT-ONu y, en consecuencia, debería ser rechazado.128 En todo caso, el TEDH confirmó su posición en Harutyunyan v. Armenia. La cuestión del caso se refería a si el acusado había sido privado de un proceso justo por la admisión de su confesión y de otras declaraciones incriminatorias de terceros que habían sido arrancadas por medio de tortura. El TEDH resolvió – recordando expresamente los principios desarrollados en Jalloh v. Germany129 – que “independientemente del impacto que las declaraciones obtenidas bajo tortura tuvieran sobre el resultado del proceso penal contra los recurrentes, el uso de esta prueba convierte a su juicio como un todo en injusto”.130 Luego de arribar a esta conclusión, el tribunal no halló necesario ocuparse de la diferente cuestión de si la admisión de prueba obtenida por medio de tortura lesiona el derecho a no auto-incriminarse Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA (nemo tenetur se ipsum accusare).131 Aunque el alcance de este derecho se limita a declaraciones incriminatorias en perjuicio del acusado, es altamente relevante en nuestro caso.132 Este derecho, aunque no explícitamente mencionado en el art. 6 CEDH, es un principio internacionalmente reconocido y, en cierto modo, la otra cara de la presunción de inocencia consagrada en el art. 6 (2) CEDH.133 De él se sigue que la autoridad de persecución penal debe intentar probar su caso sin recurrir a prueba que ha sido obtenida del acusado mediante opresión de su voluntad. De lo contrario, el tribunal debe decidir si el uso de tal prueba constituye una violación no justificada del derecho a la luz de todas las circunstancias del caso.134 Dado que su razón subyacente es respetar y proteger la voluntad del acusado y evitar una injusticia (miscarriage of justice),135 es evidente que cualquier declaración obtenida mediante tortura – en cuanto método que explícitamente se propone quebrar la voluntad del sospechoso y tiende a producir confesiones falsas – constituye una flagrante violación de este derecho y en consecuencia debe ser excluida para preservar un juicio justo. Last but not least, en el reciente caso Gäfgen,136 la Corte distinguió entre el uso de prueba que fue resultado directo de una violación del art. 3 CEDH y el uso de aquella que fue solo el fruto (indirecto) de tal violación. Mientras que en el primer caso la prueba “nunca debería estar basada en ella para probar la culpabilidad de la víctima, independientemente de su valor probatorio”,137 en el último caso hay por lo menos una “fuerte presunción” de que el uso de tal prueba tacharía al juicio en su conjunto de injusto.138 En suma, la jurisprudencia reciente del TEDH considera que la admisión de prueba obtenida por medio de tortura lesiona el juicio justo en el sentido del art. 6 (1) CEDH, dado que la tortura es tan grave que su uso convertiría al procedimiento en su conjunto en injusto.139 Aunque el tribunal no se refiere específicamente al uso transnacional de prueba obtenida por medio de tortura, la jurisprudencia analizada, especialmente con respecto a la importancia dada a la protección frente a la tortura, da a entender que para el tribunal sería indiferente si la prueba fue obtenida por medio de tortura provocada por terceros. En efecto, en Schenk v. Switzerland el tribunal no cuestionó el hecho de que la grabación fuera hecha por un particular, es decir, como en el caso de autoridades nacionales extranjeras, no podía ser atribuida directamente al Estado, sino que esencialmente se centró en la naturaleza de la violación en el marco de una ponderación de intereses.140 Esto significa que la cuestión decisiva es si la naturaleza de la violación – como el interés lesionado del acusado – es tal que superaría el interés del Estado a usar dicha prueba y en consecuencia convertiría al proceso en su conjunto en injusto. Es interesante notar que a la misma conclusión llegó la Casa de los Lores en su decision en A and others. Si bien en el momento de la decisión de los Lores el TEDH no había aún decidido el caso Harutyunyan v. Armenia, Lord Bringham of Cornhill expresó que él tenía pocas dudas en cuanto a que el tribunal habría considerado que la admisión de prueba obtenida por medio de tortura constituye una violación del art. 6 (1) de la CEDH.141 Para llegar a esta conclusión, los Lores invocaron el art. 15 de la CT-ONu para interpretar la garantía del juicio justo del art. 6 CADH,142 incorporado en el derecho británico doméstico con la Ley de derechos humanos de 1998 (Human Rights Act 1998).143 Este enfoque es correcto, dado que el art. 31 (3) (c) de la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados144 prevé que “toda norma pertinente de derecho internacional aplicable en las relaciones entre las partes” deberá ser tomada en consideración para interpretar los tratados internacionales. El mismo TEDH invocó la definición de tortura del art. 1 de la CT-ONu para dar al término tortura del art. 3 CEDH un significado más concreto.145 La referencia al art. 15 CT-ONU también es convincente porque es la única disposición con alcance universal que se ocupa explícitamente de nuestra cuestión y da a ella una clara respuesta, esto es, la absoluta exclusión de la prueba obtenida por medio de tortura independientemente de su proveniencia. Dado el estatus de la CT-ONU como tratado internacional y la importancia fundamental de la prohibición de tortura en derecho internacional, ésta es una respuesta final y de autoridad. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 157 AMBOS, K ii. El uso trasnacional de prueba obtenida por tortura a la luz de la tradición de civil law alemana y de common law inglesa Como resulta de las referencias esporádicas al derecho (jurisprudencial) alemán e inglés en el texto precedente, la posición de estas dos jurisdicciones en relación con nuestra cuestión es muy similar. Dado que estas jurisdicciones pertenecen a diferentes familias jurídicas (el civil law romano germánico y el common law angloamericano) y como tal se aproximan de manera diferente al problema de la prueba obtenida ilícitamente, un resultado similar o idéntico con respecto a nuestra cuestión produciría un fuerte argumento y punto de partida para un principio general de derecho en el sentido del art. 38 (c) Estatuto de la Corte Internacional de Justicia. 1. Alemania: el § 136 a de la ordenanza Procesal Penal La cuestión del uso de prueba obtenida ilícitamente en Alemania ha sido enormemente influenciada por la teoría de Ernst Beling de las “prohibiciones probatorias” (Beweisverbote), publicada tempranamente en 1903.146 La idea básica de esta teoría es que el interés público en averiguar la verdad en un proceso penal puede ser superado por intereses privados protegidos como derechos o garantías fundamentales. Como el Tribunal Supremo Federal alemán (Bundesgerichtshof; BGH) señaló: Aunque el objetivo del proceso penal es descubrir la verdad, en un Estado constitucional la verdad no puede ser perseguida a cualquier precio.147 El § 136a de la Ordenanza procesal penal alemana (OPP) contiene una regla de exclusión obligatoria para toda la prueba obtenida por medio de tortura por las autoridades nacionales. Si bien la “tortura” no está expresamente mencionada en el apartado 1 de esta disposición, los métodos enumerados en este apartado pueden llegar a constituir tortura. Aunque hay muchas reglas en la OPP para la salvaguarda de derechos 158 individuales, el § 136a es uno de los pocos casos en que el derecho explícitamente dispone una prohibición absoluta de utilizar en el proceso tal prueba ilícita. La razón de tal estricta regla de exclusión es la protección de la dignidad humana consagrada en el art. 1 de la Grundgesetz (Ley Fundamental), la Grundnorm (norma fundamental) de la constitución alemana.148 Forzar al acusado por medio de torturas o medios similares a hacer una declaración lo degradaría a “objeto” del procedimiento penal, lo cual es incompatible con su estatus de parte procesal149 y con su dignidad. La regla de exclusión también es aplicable a las declaraciones de testigos.150 Aunque el § 136a OPP se dirige de manera explícita únicamente a las autoridades nacionales151 y, en consecuencia, no es directamente aplicable a terceros,152 incluidas las autoridades extranjeras, es generalmente reconocido que, independientemente de su proveniencia, la prueba no puede ser utilizada si fue obtenida de una manera que constituye una violación especialmente grave de la dignidad del acusado. En tal situación, por ejemplo, en el caso de prueba obtenida por medio de tortura, ha de ser aplicado analógicamente el § 136a (3) OPP.153 De hecho, en Motassadeq, el Tribunal Superior estadual de Hamburgo sostuvo que la regla de exclusión también es aplicable en caso de prueba obtenida por medio de tortura por órganos de otro Estado.154 Por varias razones, éste es el punto de vista correcto. Antes que nada, el uso de tal prueba por un tribunal nacional sería en sí mismo una violación de las obligaciones a que el Estado se ha comprometido por la CT-ONU. Como se ha concluido antes (C.I.1.a)), el art. 15 CT-ONU excluye cualquier declaración obtenida por medio de tortura independientemente de su origen. Además, una lectura conjunta de las obligaciones que se derivan de la CT-ONU, en particular de los arts. 2 (1), 4 y 14 (1), y el estatus de ius cogens de la prohibición lleva a la conclusión de que el Estado debe hacer todo lo que está dentro de su poder para prevenir y abstenerse de consentir hechos de tortura.155 Aunque la obligación del Estado de proteger a las personas frente a la tortura, incluso por particulares,156 sólo puede extenderse a su territorio,157 queda en la decisión soberana de los tribunales aceptar o no en un proceso penal Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA prueba obtenida por medio de tortura por parte de autoridades de otro Estado. Si se aceptara esta prueba, se enviaría el mensaje contradictorio de que la tortura por algunos es inadmisible, pero por otros podría ser tolerada, como si esto cambiara la naturaleza del acto de tortura como ataque patente a la dignidad humana. Admitir la prueba obtenida por medio de tortura minaría, por tanto, el efecto disuasivo general de la regla de exclusión, es decir, desalentar a las autoridades nacionales –o en este caso: extranjeras- del uso de la tortura.158 Segundo, el uso de prueba obtenida por medio de tortura revictimizaría a la víctima de la tortura, atacando nuevamente su dignidad.159 Tercero, la no fiabilidad de la prueba obtenida por medio de tortura, antes demostrada (B. I. 1.), otra razón para no admitir tal evidencia, no cambia según la proveniencia de la prueba. Por último, pero no por ello menos importante: la prueba obtenida bajo tortura que es admitida en el proceso dañaría siempre, provenga de donde provenga, la integridad del proceso (véase supra B. I. 2.). Por las mismas razones, no parece que deba hacerse una excepción a la aplicación estricta de la regla de exclusión, en caso de que la prueba obtenida por tortura opere a favor del acusado.160 El hecho de que el § 136a OPP esté destinado, en principio, a proteger al acusado no cambia la evaluación crítica de conjunto del uso de prueba obtenida por medio de tortura. El efectivo ejercicio del derecho de defensa (véase ya supra I. I. 2.) no depende de la admisión de prueba obtenida por medio de tortura favorable al acusado. 2. gran Bretaña: ¿regla de exclusión? La aproximación del common law a la admisión de prueba (no de confesión) puede ser descrita como abiertamente “liberal” y sin principios, admitiendo básicamente toda evidencia que es considerada relevante.161 Una conocida frase de un juez del siglo diecinueve lo expresa del siguiente modo: “No importa cómo la obtienes: incluso si la robas, sería admisible”.162 Sólo hacia el final del último siglo esta posición ha devenido más restrictiva permitiendo a los jueces excluir prueba relevante,163 si fue obtenida ilegalmente y su admisión sería contraria a un juicio justo o lesionaría la regla contra la auto-incriminación.164 El gran avance actual, dando más peso a consideraciones de principios de derechos humanos, fue llevado a cabo con la Ley de Policía y Prueba Criminal de 1984 (Police and Criminal Evidence Act 1984, PACE)165 y la Ley de Derechos humanos de 1988 (Human Rights Act 1998) que incorporó el CEDH, especialmente su artículo 6.166 El sistema actual puede ser descrito todavía como flexible, pues en general la admisibilidad de la prueba es decidida sobre la base de un análisis del caso concreto por medio de una ponderación de intereses (derechos vs. condena).167 Las secciones 76 (2) y 76A (2) PACE prevén que las confesiones obtenidas por medio de “opresión” o a través de un interrogatorio y que resulten “no fiables” “no deberán” ser admitidas como evidencia.168 Esto es una regla de exclusión169 que primero estaba justificada en la inherente falta de fiabilidad de tal evidencia y luego, además, en el principio nemo tenetur y en la importancia de un adecuado comportamiento de la policía hacia las personas bajo custodia.170 El término “opresión” debe ser entendido de manera amplia, incluyendo, en particular, a la tortura (sub-sección 8).171 De acuerdo a la sección 78, el tribunal puede excluir prueba que pueda tener un “efecto adverso para un justo proceso”.172 Por lo tanto, el juez tiene discreción173 para excluir prueba que es, siguiendo la regla tradicional del common law, admisible en principio, pero que in casu sería contraria a un juicio justo,174 en particular si ella “ha sido obtenida de un modo indignante para los valores civilizados”.175 Aunque el argumento del juicio justo fue reforzado con la Ley de derechos humanos, está íntimamente relacionado con la idea de preservar la integridad moral del procedimiento penal y evitar el abuso de proceso.176 Esta última doctrina prohíbe “el ejercicio arbitrario, opresivo o abusivo del poder estatal”, en particular “recibir prueba en un procedimiento en curso, si al hacer ello se ayudaría o premiaría la comisión de alguno de tales ilícitos por una agencia del estado”.177 Sin embargo, aunque la sección 78 parece haberse “convertido en un bastión primario de la lealtad y la integridad Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 159 AMBOS, K moral en el proceso penal inglés”,178 la regla está limitada a la prueba de la acusación179 y la jurisprudencia proporciona pocas pautas en cuanto a su aplicación concreta, a excepción de requerir una violación de la regla significativa y sustancial.180 Es controvertido si la sección 78 es aplicable a la prueba (transnacional) obtenida por medio de tortura sin intervención de autoridades británicas. Aunque el uso de tortura tendría que ser considerado con seguridad como una violación de la regla significativa y sustancial, una cuestión diferente es si esto también hace inadmisible la prueba obtenida por medio de tortura por parte de autoridades extranjeras. La Corte de Apelaciones en A and others lo rechazó,181 Lord Bringham lo afirmó con el argumento de que la doctrina del abuso de proceso también es aplicable si el fundamento del caso sería moralmente inaceptable.182 Lord Nicholls invoca la condena universal y la repugnancia de la tortura para justificar su exclusión. Él distingue, además, entre el uso preventivo de la tortura por la policía para evitar que explote una “bomba de tiempo activada”183 y el uso represivo de prueba para lograr la convicción del acusado. Mientras el primero puede ser considerado correcto, el último no puede ser admitido.184 La distinción entre tortura preventiva y tortura represiva es en efecto importante y nos recuerda a la controvertida discusión de la punibilidad del torturador (preventivo) en los casos de una bomba a punto de explotar, en los cuales era indiscutido que tal evidencia no podía ser usada en un proceso penal.185 En síntesis, la prueba transnacional sólo puede ser admitida si en el Estado extranjero han sido respetadas las reglas de procedimiento.186 Éste no es el caso si la prueba fue obtenida por medio de tortura. La admisión de dicha evidencia dañaría siempre, independientemente de su proveniencia, la integridad del proceso y constituiría un abuso de proceso. y Gran Bretaña (II.) indican que la prohibición del uso de prueba obtenida por medio de tortura es “categórica” y que, como tal, se extiende también a la prueba transnacional obtenida por autoridades extranjeras con aplicación de tortura, aunque no estén involucradas en ningún modo las autoridades nacionales (segunda situación, ver la introducción y B in fine). La regla de exclusión respectiva también es aplicable, a fortiori, a la primera situación arriba descrita, en la cual un Estado produce tal evidencia de manera proactiva o, al menos, está involucrado en su producción. Cualquier otra conclusión dejaría abiertas las puertas a dobles estándares y socavaría la naturaleza absoluta de la prohibición de tortura. Para la primera situación de un Estado proactivo puede hacerse un argumento adicional a favor de la regla de exclusión: de acuerdo con el art. 3 CEDH (o art. 7 PIDCP) un estado parte está obligado a abstenerse de cualquier acto que pudiera exponer a personas bajo su jurisdicción a la tortura; en particular, está establecido que una persona no debe ser extraditada a un Estado donde corre el riesgo de ser torturada.187 El Estado que recibe la solicitud de extradición (Estado requerido) es considerado en esta situación responsable por la violación del art. 3 CEDH, dado que posibilita la violación en el estado requirente, aun cuando ésta no fuera su intención. una situación aún peor existe en el caso de extradición a un Estado torturador: el Estado que entrega a la persona hace posible la tortura en el Estado receptor e incluso se propone hacerlo.188 Este Estado tuvo, por tanto, “jurisdicción” en el sentido del art. 1 CEDH sobre la persona entregada.189 De manera similar, si el Estado que recibe la prueba estuvo involucrado en su producción (ilegal), su subsiguiente uso constituye un abuso de proceso.190 D. La carga y el estandard de prueba iii. Segunda conclusión intermedia con respecto a la prueba trasnacional obtenida por medio de tortura Tanto el derecho internacional aplicable (supra I.) como el derecho nacional de Alemania 160 Aunque las consideraciones precedentes tomaron por cierto que la tortura, dejando de lado los problemas de definición191, había sido efectivamente aplicada, en la práctica a menudo esto es desconocido y en consecuencia se plantea la cuestión de a quién corresponde la carga de Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA la prueba y qué estandard de prueba ha de ser aplicado. Generalmente, la carga de la prueba sólo puede ser distribuida entre las diferentes partes en un tipo de procedimiento que deja la responsabilidad de la producción y presentación de la prueba en las manos de esas partes. En dicho sistema adversarial, como el inglés, la carga de la prueba en cuanto a la culpabilidad corresponde normalmente a la fiscalía, pero en cuanto a otros elementos de prueba, como principio general del common law, a la parte que los quiere invocar.192 Por el contrario, en un sistema de tipo inquisitivo o dirigido por un juez, como el alemán, siempre es el Estado (el ministerio público fiscal o el juez), y no las partes, quien debe indagar sobre el asunto. Si bien el acusado puede proponer prueba relevante, el tribunal no depende de esta actividad. El juez está obligado a investigar los hechos “ex officio” (véase el § 244 (2) OPP) extendiendo la recepción de prueba a todos los hechos relevantes para el caso.193 En cuanto a la prueba (transnacional) obtenida bajo tortura es discutible si el enfoque ordinario arriba descrito es apropiado. En un procedimiento adversarial, esto significaría que el acusado tendría que probar la aplicación de tortura, dado que él quiere aducir este argumento para anular evidencia; en un procedimiento inquisitivo, el tribunal debe investigar el asunto, pero el riesgo de que no pueda ser probado es cargado al acusado.194 Así, en Motassadeq, el Tribunal Superior estadual de Hamburgo no tuvo por probado que las declaraciones de tres testigos, cuyos resúmenes fueron remitidos por autoridades estadounidenses, habían sido obtenidas por medio de tortura y, en consecuencia, fueron admitidas como evidencia.195 Ninguno de estos enfoques es apropiado por razones prácticas y por consideraciones relacionadas con el principio del juicio justo. En términos prácticos, es difícil para el acusado probar el uso de tortura si él no fue la víctima de ella y en consecuencia no tiene signos físicos para demostrarla. En casi todos los casos de posible tortura de un testigo, el acusado no está en posición de aducir hechos fiables para probar la tortura.196 Por lo tanto, del acusado no puede esperarse más que “exponga alguna razón plausible (…) de que la prueba ha venido, o es probable que haya venido, de uno de aquellos países que ampliamente se sabe o se cree que practican la tortura”.197 En efecto, la sección 78 PACE permite a la Corte excluir evidencia si lo cree necesario, para lo que sería suficiente con que la defensa plantee la cuestión.198 Con esto, la carga de la prueba se traslada a la parte que aduce la prueba que supuestamente ha sido obtenida por medio de tortura, esto es, esta parte, normalmente el Estado, debe probar que no se ha aplicado tortura o que no existe un “riesgo real” en este sentido.199 Esto está en conformidad con la interpretación que hace el Comité contra la Tortura del art. 15 CT-ONU según la cual la disposición supone un deber positivo del estado de examinar si declaraciones llevadas ante sus tribunals han sido hechas bajo tortura.200 En un sistema inquisitivo, la misma solución podría ser alcanzada mediante una aplicación analógica del principio in dubio pro reo, usualmente aplicable sólo con respecto a hechos relativos a la culpabilidad del acusado,201 al caso de prueba producida por medio de tortura o por métodos comparables.202 Si, como en Motassadeq, el uso de tortura no puede ser probado, la duda operaría a favor del acusado, es decir, se debería suponer que la prueba controvertida fue producida bajo tortura y, en consecuencia, no podría ser admitida. A su vez, la prueba solamente puede ser admitida si el uso de tortura puede ser definitivamente refutado.203 En este sentido ya ha decidido el BGH que en caso de faltar los puntos de apoyo suficientes y confiables para una instrucción exitosa, las correspondientes manifestaciones del acusado no pueden ser valoradas.204 El BGH así implícitamente y en favor del acusado parte de la falta de instrucción, cuando ésta no es seguro que pueda ser probada de acuerdo al convencimiento del Tribunal de juicio. Estas consideraciónes evidencian que la cuestión de la carga de la prueba está relacionada con el estandard de la prueba. Mientras que en un sistema adversarial debe exigirse desde un principio un cambio de la carga de la prueba, en un sistema inquisitivo la cuestión no es la carga sino en estandard de prueba, dado que Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 161 AMBOS, K la primera recae de todas maneras en el Estado (tribunal). La cuestión crucial entonces es qué necesita ser demostrado para excluir la prueba: ¿es suficiente con que haya un riesgo real o alta probabilidad de que la tortura fue aplicada o debe ser probada plenamente? Mientras que la Casa de los Lores siguió la primera posición, más flexible en A and others (la minoría205 optó por un “riesgo real”, la mayoría206 por “alta probabilidad”), el Oberlandesgericht de Hamburgo207 siguió la última posición más estricta. Esta posición parece encontrar un sostén en el art. 15 de la CT-ONU que se refiere a una declaración “que se demuestre que ha sido hecha como resultado de tortura”,208 es decir, la aplicación de tortura debe ser efectivamente “demostrada”. Sin embargo, otra vez aquí se plantea la cuestión de si un estandard estricto de este tipo es apropiado a la luz de las dificultades para probar con certeza el uso de tortura por parte de un Estado extranjero. Este Estado difícilmente cooperará en el esclarecimiento de los hechos209 y sin su cooperación es difícil encontrar prueba segura para probar la tortura. Además, el riesgo real o aún la alta probabilidad de que la prueba fue obtenida por medio de tortura es suficiente para contaminar la evidencia y así desacreditar el procedimiento. Finalmente, para un verdadero Estado de Derecho el riesgo real, es decir, la posibilidad seria de que haya sido utilizada prueba obtenida por medio de tortura debe ser suficiente para tornar insostenible el proceso.210 Por todas estas razones, debe considerarse suficiente el estandard de un riesgo real, serio.211 Conclusión final: Contra la admisión de prueba transnacional obtenida por medio de tortura El análisis del derecho de los tribunales penales internacionales ha mostrado que la prueba (supranacional) obtenida por medio de tortura no debe ser admitida, dado que tal prueba no es fiable y daña la integridad del proceso (B. III.). Lo mismo vale para la admisión ante tribunales nacionales de prueba (transnacional) obtenida 162 por medio de tortura (C. III.). La estricta regla de exclusión del art. 15 CT-ONu confirma este punto de vista. La ratio de esta regla es la no fiabilidad general de prueba obtenida por medio de tortura, su carácter lesivo de valores civilizados y su efecto degradante sobre la administración de justicia.212 Dada la desventaja de la defensa en el proceso penal, la carga de la prueba debe recaer en la parte que quiere presentar la prueba controvertida, es decir, el Estado. Por consideraciones prácticas y fundamentales basadas en el principio del juicio justo tal evidencia no debe ser admitida si hay un riesgo real, serio de que haya sido obtenida por medio de tortura (D.). notas “May a State Torture Suspects to Save the Life of Innocents?”, en Journal of International Criminal Justice (“JICJ”), núm. 6 (2), 2008, pp. 261-288; en castellano en: Revista Penal (España), 2009, núm. 24 (en edición). 2 Véase, por ejemplo, el § 136 a (1) de la Ordenanza Procesal Penal alemana (Strafprozessordnung, “StPO”), cuya traducción es la siguiente: “La libertad de resolución y manifestación de la voluntad del imputado no puede ser afectada a través de malos tratos, cansancio, injerencia corporal, suministro de sustancias, tortura, engaño o hipnosis. Sólo puede emplearse coerción si el derecho procesal penal lo permite. La amenaza de efectuar una medida inadmisible según sus disposiciones y la promesa de una ventaja no prevista legalmente están prohibidas”. El apartado (3) expresa: “La prohibición de los apartados (1) y (2) rige independientemente del consentimiento del imputado. Las declaraciones que han sido obtenidas en violación de esta prohibición no pueden ser valoradas, aun cuando el imputado consienta su valoración”. Véase también el § 166 de la Ordenanza Procesal Penal austríaca (Strafprozessordnung): “En perjuicio del acusado […] no está permitido usar su testimonio, así como aquellos de testigos y co-acusados, como prueba, si ellos: 1. Fueron obtenidos bajo tortura (art. 7 PIDCP, [...], art. 3 CEDH, [...], y art. 1 (1) y 15 CT-ONu […]) […]”. Véase también el art. 171 § 5 del Código Procesal Penal polaco (Kodeks Postêpowania Karnego) según el cual no está permitido “influir la declaración de la persona bajo examen a través de coerción o amenaza ilícita” y el art. 170 § 1 (1) según el cual una solicitud probatoria referida a tal evidencia será denegada. En el procedimiento francés todo acto de investigación puede ser apelado ante la Chambre d’Instruction, la cual puede declararlo nulo y excluir la evidencia así obtenida (“requête en nullité”, Art. 170-174 Code de Procédure Pénale) cf. STEFANI, G. / LEVASSEuR, G. / BOuLOC, B, Procédure pénale, Paris, Dalloz, 21.ed. 2008, número marginal (“nm”) 107, 1 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA 777; PFEFFERKORN, F., Einführung in das französische Strafverfahren, Hamburg, Lit, 2006, pp. 176, 178. Sobre la Ley de Policía y Prueba Criminal inglesa (Police and Criminal Evidence Act; en adelante PACE: Police and Criminal Evidence Act) de 1984 véase infra C. II. 2. 3 Para un análisis detallado, véase infra C. I.; véase también THIENEL, T., “The Admissibility of Evidence Obtained by Torture under International Law”, en European Journal of International Law (“EJIL”), 2006, núm.17(2), pp. 349-367, p. 356 ss. 4 BELING, E., Die Beweisverbote als Grenzen der Wahrheitsfindung im Strafprozess, Breslau, Schletter, 1903 (Address inaugural en la universidad de Tübingen); ya antes: BENNECKE/ BELING, Lehrbuch des Deutschen Reichs-Strafprozessrechts, Breslau, Schletter, 1900, §§ 83 3., pp. 327 ss. Véase también SENGE, L., en Karlsruher Kommentar zur Strafprozessordnung, München, Beck, 6.ed. 2008, antes del § 48 nm. 20; JAHN, M., “Beweiserhebungs- und Beweisverwertungsverbote im Spannungsfeld zwischen den Garantien des Rechtsstaats und der effektiven Bekämpfung des Terrorismus”, en: Verhandlungen zum 67. Deutschen Juristentag [„DJT“] Erfurt 2008, vol. I, Gutachten [estudios] Parte C, C 1-128, en C 21. 5 Véase también: HENKEL, H., Strafverfahrensrecht, Stuttgart et al., Kohlhammer, 1968, p. 271; OTTO, H., “Grenzen und Tragweite der Beweisverbote im Strafverfahren”, en Goltdammer’s Archiv für Strafrecht (“GA”), núm. 117, 1970, pp. 289-305, p. 289. 6 Véasse OTTO, supra nota 5, p. 291, donde se refiere a Beling. 7 Véase también: BELING, supra nota 4, p. 37: „Allseitig einverstanden wird man darüber sein, dass auch der Strafprozess die M e n s c h e n w ü r d e achten muss, und dass daher ein unlöslicher Konflikt zwischen Menschenwürde und Strafprozessinteresse zu einem Beweisverbot führen muss. (…) Aber auch von der Menschenwürde abgesehen wird die moderne Anschauung – und sicher mit Recht – darauf bestehen, dass jedem seine P e r s ö n l i c h k e i t s s p h ä r e vor Staatszugriff sichergestellt werde, auch im Strafprozess.” [“Existirá acuerdo en torno a que también el proceso penal debe tener en consideración la dignidad humana, y que consecuentemente de allí surge un conflicto insoluble entre dignidad humana e intereses del proceso penal, que conlleva a una prohibición de prueba. (…) Pero, aún dejando de lado la dignidad humana, la opinión moderna seguirá afirmando- y seguramente con razón- que la esfera de la personalidad de cualquier individuo debe ser asegurada ante la intervención estatal, también en el proceso penal.”] (énfasis en el original). Véase también: ROGALL, K., “Gegenwärtiger Stand und Entwicklungstendenzen der Lehre von den strafprozessualen Beweisverboten”, en Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft (“ZStW”), 1979, núm. 91, pp. 1-44, p. 9; EISENBERG, u., Beweisrecht der Strafprozessordnung, München, Beck, 6.ed. 2008, Parte 1, Cap. 3 párr. 330; KÜHNE, H.-H., Strafprozessrecht, Heidelberg, Müller, 7.ed. 2007, nm. 880. 8 ROGALL, supra nota 7, p. 6. 9 BGH, Sentencia, 14 de junio de 1960, reimpreso en BGHSt 14, p. 358, p. 365 = Neue Juristische Wochenschrift (“NJW”), 1960, núm. 13, p. 1580 ss., 1582: „Allerdings hat diese Rechtsauffassung zur Folge, daß wichtige, unter umständen die einzigen Mittel zur Aufklärung von Straftaten unbenutzt bleiben. Das muß jedoch hingenommen werden. Es ist auch sonst kein Grundsatz der StPO, daß die Wahrheit um jeden Preis erforscht werden müßte (§§ 245, 52 ff., 252, 81 a ff., 95 ff., 69 Abs. 3 StPO).” [“Sin embargo, esta interpretación jurídica tiene por consecuencia que importantes medios para el esclarecimeinto de delitos – en ciertos casos, los únicos medios – no puedan ser utilizados. Sin embargo, esto debe ser tolerado. No es un principio de la OPP, que la verdad deba ser investigada a cualquier precio (§§ 245, 52 ss., 252, 81 a ss., 95 ss., 69 apartado 3 OPP”]. Véase también BGH, Sentencia, 17 de marzo de 1983 reimpresa en BGHSt 31, p. 304, p. 309 = NJW, 1983, núm. 36, p. 1570 ss., p. 1571: „[…] die StPO zwingt nicht zur Wahrheitserforschung um jeden Preis.” [“(…) el OPP no obliga a la investigación de la verdad a cualquier precio.”]. 10 Véase más reciente KELKER, B., “Die Rolle der Staatsanwaltschaft im Strafverfahren”, en ZStW, 2006, núm. 118 (2), pp. 389-426, p. 420 ss.; para una perspectiva con base en principios constitucionales véase MuRMANN,u., “Über den Zweck des Strafprozesses”, en GA, 2004, núm. 151, pp. 65-86, p. 65 ss.; en particular sobre la relación sujeto-objeto ROBERTS, P., “Subjects, objects, and values in criminal adjudication”, en DuFF, A./ FARMER, L./ MARSHALL, S./ TADROS, V. (coord.), The trial on trial. Vol. 2. Judgment and calling to account, Oxford et al., Hart, 2006, pp. 37-64, p. 40 ss. 11 SCHMIDT, E., “Zur Frage der Eunarkon-Versuche in der gerichtlichen Praxis”, en Süddeutsche Juristenzeitung („SJZ”), 1949, p. 449, p. 450. 12 Originalmente así en especial ROGALL, supra nota 7, p. 16 ss. 13 Es controvertido, sin embargo, si información exculpatoria no debería ser siempre admitida en la prueba ya que opera en favor del acusado (en este sentido ROxIN, C./ SCHÄFER, G./ WIDMAIER, G., “Die Mühlenteichtheorie, Überlegungen zur Ambivalenz von Verwertungsverboten”, en Strafverteidiger (“StV”), 2006, núm. 26, pp. 655660, pp. 656, 659, 660; ROxIN, C., “Beweisverwertungsverbot bei bewußter Mißachtung des Richtervorbehalts (Bspr. von BGH StV 2007, 337)”, en Neue Zeitschrift für Strafrecht (“NStZ”), 2007,núm. 27, pp. 616-618, p. 618; conc. JAHN, supra nota 4, C 112 ss. (114). 14 Sobre esta teoría “vindicativa“ [„vindication”] o “curativa“ [“remedial”] crit. ROBERTS, P./ ZuCKERMAN, A., Criminal Evidence, Oxford et al., OuP, 2004, pp. 151, 152 ss. 15 Sobre este aspecto véase también SCHMIDT, E., Lehrkommentar zur Strafprozessordnung und zum Einführungsgesetz zur Strafprozeßordnung, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1957, vol. II, § 136a nm. 21 con su doctrina de la superioridad moral del Estado, sobre la cual se desarrolla la exigencia de un juicio justo (ibid., vol. I, nms. 40, 44, 49). Esta dirección sigue también la doctrina de Gerhard FEZER sobre la función autolimitativa del Estado, en: id., Grundfragen der Beweisverwertungsverbote, Heidelberg, Müller, 1995, p. 20 ss. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 163 AMBOS, K BEuLKE, W., Strafprozessrecht, Heidelberg, Müller, 10.ed. 2008, nm. 454; FINGER, T., “Prozessuale Beweisverbote – Eine Darstellung ausgewählter Fallgruppen”, en Juristische Arbeitsblätter (“JA”), 2006, núm. 38, pp. 529-539, p. 530. 17 Mapp v. Ohio, 367 u.S., p. 659 [“the imperative of judicial integrity”]; véase DRESSLER, J., understanding Criminal Procedure, Newark, NJ, LexisNexis, 3.ed. 2002, p. 381, señalando sin embargo también la jurisprudencia subsiguiente, que está cerca de renunciar por completo a la regla de exclusion de la Cuarta Enmieda. 18 ROBERTS /ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 157 ss. 19 El efecto “disciplinario” o “disuasivo” es controvertido: a favor la Suprema Corte de Justicia de uSA desde Mapp v. Ohio, véase DRESSLER, supra nota 17, pp. 381-382; crítico en cambio OTTO, supra nota 5, pp. 292, 301, argumentando que las reglas de exclusión son “kein geeignetes Mittel zur Disziplinierung der Strafverfolgungsorgane” [“no son un método adecuado para el disciplinamiento de los órganos investigadores”]; crit. también ROBERTS / ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 155 ss.; también en esta línea crítica la decisión 2 d) de la sección de Derecho Penal del 67mo. Deutschen Juristen Tag (Erfurt 2008), de acuerdo con la cual la función de las prohibiciones o exclusiones probatorias no debería ser el mantenimiento de la conducta legal de las instancias investigadoras (42 votos a favor, 31 en contra, 5 abstenciones). Véase, por otro lado, sobre las consecuencias prácticas para el entrenamiento policial ARLOTH, F., “Dogmatik in der Sackgasse – Zur Diskussion um die Beweisverwertungsverbote”, en GA, 2006, núm. 153, pp. 258-261, p. 259; en esta línea más positiva también PRITTWITZ, C., “Richtervorbehalt, Beweisverwertungsverbot und Widerspruchslösung bei Blutentnahmen gem. § 81 a Abs. 2 StPO”, en StV, 2008, núm. 28, pp. 486-494, p. 494; JAHN, supra nota 4, C 57 ss. 20 See AMELuNG, K., “Zum Streit über die Grundlagen der Lehre von den Beweisverwertungsverboten”, en Festschrift für Claus Roxin, Berlin u.a., de Gruyter, 2001, pp. 1259-1280, p. 1279; JÄGER, M., Beweisverwertung und Beweisverwertungsverbote im Strafprozess, München, Beck, 2003, p. 128. 21 Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional) Entscheidungen (Fallos), vol.44, p. 353, aquí p. 374. 22 ROBERTS / ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 159 [“simple, algorithmic, all-purpose rule”]. 23 NEMITZ, J. C., “Die Hauptverhandlung unter besonderer Berücksichtigung des Beweisrechts”, en Internationale Strafgerichtshöfe, 2005, núm. 53. 24 MAY, R. / WIERDA, M., International Criminal Evidence, Ardsley/NY, Transnational Publishers, 2002, p. 93; AMBOS, K., “The Structure of International Criminal Procedure: Adversarial, Inquisitorial or Mixed?”, en BOHLANDER, M. (coord.), International Criminal Justice: A Critical Analysis of Institutions and Procedure, London, Cameron May, 2007, pp. 429-503, p. 477 ss.; Id., Internationales Strafrecht, München, Beck, 2.ed. 2008, § 8 nm. 32. 25 ARCHBOLD, International Criminal Courts (KAHN, K.A.A. et al. eds.), 2.ed. 2005, § 9-1 [“to combine the legal traditions of many countries“]. 26 Cf. MAY / WIERDA, supra nota 24, pp. 95, 98 ss.; AR16 164 CHBOLD, supra nota 25, § 9-2. NEMITZ, supra nota 23, p. 56. 28 [“a chamber may admit any relevant evidence which it deems to have probative value” – 89 (C) –], [“may exclude evidence if its probative value is substantially outweighed by the need to ensure a fair trial” – 89 (D) –]. 29 [“if it’s probative value is substantially outweighed by the need to ensure a fair trial”]. Véase MAY / WIERDA, supra nota 24, p. 100; también SCHABAS, W., The uN International Criminal Tribunals –The Former Yugoslavia, Rwanda and Sierra Leone, Cambridge et al., CuP, 2006, p. 459. 30 [“No evidence shall be admissible if obtained by methods which cast substantial doubt on its reliability or if its admission is antithetical to, and would seriously damage, the integrity of the proceedings.”]. 31 Para este punto de vista SAFFERLING, C. J. M., Towards an International Criminal Procedure, Oxford et al., OuP, 2003, p. 295; para un punto de vista diferente NEMITZ, supra nota 23, p. 70; según el cual la regla 95 sólo tiene una “klarstellende Bedeutung” [“una función de clarificación”]. 32 Cf. NEMITZ, supra nota 23, p. 70. 33 [“outweighed by the need …”]. 34 [“cast substantial doubt on its reliability”], [“antithetical”], [“seriously damage”]. 35 Rule 89 (D): A Chamber may exclude evidence if its probative value is substantially outweighed by the need to ensure a fair trial. 36 Citado según CALVO-GOLLER, K. N., The Trial Proceedings of the International Criminal Court – ICTY and ICTR Precedents, Leiden et al., Nijhoff, 2006, p. 97 [„which constitute a serious violation of internationally protected human rights”]; véase también ZAPPALà, S., Human Rights in International Criminal Proceedings, Oxford et al., OuP, 2003, p. 151. El título original rezaba: “Evidence obtained by means contrary to international protected human rights.” [“Prueba obtenida por medios contrarios a los derechos humanos internacionalmente protegidos.“] (modificado en la 12ava revisión de las RPP). 37 [“a serious violation of internationally protected human rights”]. 38 Como expuesto por CALVO-GOLLER, K. N., supra nota 36, p. 97 [“no longer a matter of means but one of result”]. 39 Véase, por todos, IGNOR, A., Geschichte des Strafprozesses in Deutschland 1532-1846, Paderborn et al., Schöningh, 2002, p. 163 ss., señalando que la tortura no sólo era considerada como inhumana, sino también cada vez más como ineficiente para la persecución y castigo de los verdaderos criminales. 40 LANGBEIN, J. H., Torture and the Law of Proof, Europe and England in the Ancien Régime, Chicago, uCP, 2006, p. 8; KÜHNE, supra nota 7, nm. 890; PATTENDEN, R., “Admissibility in Criminal Proceedings of Third Party and Real Evidence Obtained by Methods Prohibited by uNCAT”, en The International Journal of Evidence & Proof, 2006, núm. 10, pp. 1-41, p. 6 ss. 41 LANGBEIN, supra nota40, p. 5. 42 BuRGERS, J. H./ DANELIuS, H., 27 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA The united Nations Convention Against Torture – A Handbook on the Convention Against Torture and Other Cruel Inhuman and Degrading Treatment and Punishment, Dordrecht et al., M. Nijhoff, 1988, p. 148. 43 [“antithetical”] [“Would seriously damage the integrity of the proceedings”]. 44 [“antithetical”] [“seriously damage the integrity of the proceedings”]. Véase, por ejemplo, Prosecutor v. Brdjanin, Case No. IT-99-36-T, Decision on the Defence Objection to Intercept Evidence (Oct. 3, 2003), par. 61 ss. 45 Prosecutor v. Furundzija, Case No. IT-95-17/1, Judgment, (Dec. 10, 1998), par. 144, 153 s. 46 Id. par. 154 [“one of the most fundamental standards of the international community”]; para ulteriores referencias véase AMBOS, supra nota 1,p. 265 s.; recientemente MÖHLENBECK, M., Das absolute Folterverbot, Frankfurt a.M., Lang, 2008, p. 39 ss. 47 Véase Prosecutor v. Nikolic, Case No. IT-94-2-PT, Decision on Defence Motion Challenging the Exercise of Jurisdiction by the Tribunal, (Oct. 9, 2002), par. 114; también citado en Prosecutor v. Nikolic, Case No. IT-942-AR73, Decision on Interlocutory Appeal Concerning Legality of Arrest (June 5, 2003), par. 28. 48 Prosecutor v. Nikolic (June 5, 2003), supra nota 47, par. 30 [“In circumstances where an accused is very seriously mistreated, maybe even subject to (…) torture, before being handed over to the Tribunal, this may constitute a legal impediment to the exercise of jurisdiction over such an accused. This would certainly be the case where persons acting for SFOR or the Prosecution were involved in such very serious mistreatment (…). (…) it would be inappropriate for a court of law to try a victim of these abuses”]. 49 SAFFERLING, supra nota 31, p. 292. 50 La nueva Ordenanza Procesal Penal de 2004 concede tal derecho, ver la sección 164 (2). 51 Prosecutor v. Delalic et al., Case No. IT-96-21-T, Decision on Zdravko Mucic´s Motion for the Exclusion of Evidence (Sept. 2, 1997), par. 52. 52 Prosecutor v. Barayagwiza, Case No. ICTR-97-19-AR72, Decision (Nov. 3, 1999). 53 Id. par. 73 [“even if fault is shared between the three organs of the Tribunals – or is the result of the action of a third party, such as Cameroon – it would undermine the integrity of the judicial process to proceed. Furthermore it would be unfair for the Appellant to stand trial on these charges if his rights were egregiously violated. Thus, under the abuse of process doctrine, it is irrelevant which entity or entities were responsible for the alleged violations of the Appellant’s right.“]. 54 Prosecutor v. Barayagwiza, Case No. ICTR-97-19-AR72, Decision (Mar. 31, 2000), par. 71, refiriéndose a nuevos hechos que “diminish the role played by the failings of the prosecutor as well as the intensity of the violation of the rights of the appellant.” [“disminuyen el rol jugado por los defectos del procurador, así como la intensidad de la violación de los derechos del apelante.”]. 55 Véase Prosecutor v. Brdjanin, supra nota 44, par. 63 (no. 9) [“function of this Tribunal is not to deter and punish illegal conduct by domestic law enforcement authorities by excluding illegally obtained evidence”]; véase también Prosecutor v. Kordic et al., Case No. IT-95-14/2-T, Oral Decision of Judge May (Feb. 2, 2000), Transcript 13671: “It´s not the duty of this Tribunal to discipline armies or anything of that sort” [“No es deber de este Tribunal el disciplinar ejércitos o nada semejante”] (referida en Brdjanin, como citada). 56 Véase SLuITER, G., “International Criminal Proceedings and the Protection of Human Rights”, en New England Law Review, 2002-2003, núm. 37, pp. 935-948, p. 941 con varias referencias en la nota 25. 57 Supra nota 4 [“one of the most fundamental standards of the international community”]. 58 Tal ponderación también puede ser identificada en Brdjanin, supra nota 44, par. 63 (no.7) y 63 (no. 8) donde la Sala expresa (con referencia a Prosecutor v. Delalic et al., Case No. IT-96-21-T, Decision on the Tendering of Prosecution Exhibits 104-108 (Feb. 9, 1998) par. 18-20) que su tarea sería puesta en peligro si la prueba no pudiera ser admitida a causa de “a minor breach of procedural rules” [“una violación menor a reglas de procedimiento”], dada la gravedad de los casos que ella debe resolver en general e in casu dada la gravedad de los cargos contra el acusado. En consecuencia, “it would be utterly inappropriate to exclude relevant evidence due to procedural considerations, as long as the fairness of the trial is guaranteed.” [“sería completamente inapropiado excluir prueba relevante debido a consideraciones de procedimiento, en tanto en cuanto la lealtad del juicio esté garantizada.”]. 59 En forma similar SLuITER, supra nota 56, pp. 946-947, enfatizando la naturaleza de la violación. 60 Sobre la base de la doctrina (“nacional”) de la bandeja de plata [“silver platter doctrine”], originalmente la Corte Suprema también permitió el uso en las Cortes federales de prueba que había sido obtenida ilegalmente por oficiales de los Estados. Pero posteriormente denunció esta posición en el caso Elkins v. united States, 364 u.S. 206, 80 S.Ct. 1437 u.S. (1960), véase WORRALL, J. L., Criminal Procedure, Boston, Pearson Allyn & Bacon, 2.ed. 2007, p. 55. 61 united States v. Janis, 428 u.S. 433, 455 n. 31 (1976). 62 united States v. Fernandez-Caro, 677 F.Supp. 893, 894 (S.D. Tex. 1987) [“shocks the conscience of American court.”]: “If conduct of foreign officers «shocks the conscience of American court, fruits of their mischief will be excluded under Fourth Amendment».“ [“Si la conducta de oficiales extranjeros «conmueve la conciencia de la Corte Americana, los frutos de su ilícito serán excluidos bajo la Cuarta Enmienda».”]. Véase recientemente SCHARF, M. P., “Tainted provenance: When, if ever, should Torture Evidence be admissible?”, en Washington and Lee Law Review, 2008, núm. 65, pp. 129-172, p. 151 ss., extendiendo este argumento al uso por los tribunales de prueba obtenida por terceros mediante tortura. 63 Cf. SLUITER, supra nota 56, pp. 942 ss. argumentando incluso que “every human rights violation” [“toda violación a derechos humanos”] debe ser tomada en consideración. 64 ZAPPALà, supra nota 36, refiriéndose al Segundo informe anual del TPIY (ICTY Second Annual Report), par. 26 incluida la nota 9 en conjunto con el título (“To broaden the rights of suspects and accused persons”), disponible en internet: www.un.org/icty/rappannu-e/1995/index.htm Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 165 AMBOS, K (consultado por última vez el 19 de febrero de 2008). Prosecutor v. Brdjanin, supra nota 44, par. 67 [“statements, which are not voluntary but are obtained from suspects by oppressive conduct, cannot pass the test under Rule 95 of the Rules.”]. 66 Cf. la regla 62bis RPP-TPIY que establece: “If an accused pleads guilty in accordance with Rule 62 (vi), or requests to change his or her plea to guilty and the Trial Chamber is satisfied that: (i) the guilty plea has been made voluntarily; […]” [“Si un acusado se declara culpable de acuerdo con la regla 62 (vi) o solicita cambiar su manifestación y declararse culpable y la Sala de Juicio está satisfecha con que: (1) la declaración de culpabilidad ha sido hecho voluntariamente; […]”] (bastardilla agregada). 67 Claramente, la analogía con la declaración de culpabilidad se basa en la premisa de que es una confesión, y como tal un elemento de prueba (cf. Blackstone’s Criminal Practice 2009, Oxford 2008, F17.2 (s. 2645): “A plea of guilty is a confession for the purposes of PACE 1984, s. 82 (1), and as such admissible in evidence provided that the provisions of s. 76 (2) are complied with” [“una declaración de culpabilidad es una confesión a los fines de PACE 1984, s. 82 (1), y como tal es admisible como prueba si están dadas las previsiones de la sec. 76 (2)]. Estrictamente hablando, sin embargo, se trata solo de un acto forense y su admisión en la prueba puede variar de acuerdo a las circunstancias del caso (cf. R v. Rimmer [1972] 1 WLR 268 CA, mentado por Blackstone tal como se cita supra, pero remarcando la importancia de los “facts of the case” [“hechos del caso”] y de la discreción judicial, y afirmando que una declaración va a ser solo “rarely” [“raramente”] admitida en la prueba [272]; véase también, recientemente, R v Adams (Ishmael) [2008] 1 Cr App R 35, [2007] EWCA Crim 3025: “Whether a suggestion of a plea at a case management hearing is or is not a provable admission or is or is not a safe basis for identifying what the issue is will vary from case to case.” [“Si la sugerencia de una declaración de culpabilidad en la audiencia preliminar de un caso es o no es un reconocimiento demostrable, o es o no es una base segura para identificar cuál es la cuestión, va a variar de caso a caso.”]). 68 En forma similar PATTENDEN, supra nota 40, p. 15. 69 [“gravest crimes that are known to mankind”]. 70 SCHARF, supra nota 62, p. 155. 71 El art. 69 (4) se centra en el “valor probatorio” de la evidencia y en el posible “perjuicio” para un juicio justo. Véase también PIRAGOFF, D. K., en TRIFFTERER, O. (ed.), Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court, Wien, NWV, 2.ed. 2008, art. 69, nm. 9. Las RPP-CPI no contienen reglas más concretas, véanse las reglas 63 ss. 72 Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, Case No. ICC01/04-01/06, Decision on the confirmation of charges (Jan 29 2007). 73 Id., par. 62 ss. 74 Id., par. 81 ss. [“internationally recognised human rights”], par. 85 [“reliability”]. 75 Id., par. 86 ss., par. 90 [“for the purpose of the confirmation hearing”], [“limited scope”]. 76 Para el mismo resultado CALVO-GOLLER, supra nota 65 166 36, p. 286, “The difficulty does not lie in cases of evidence obtained by means of grave breaches of an internationally recognized human right, such as torture for example, but by means of less severe measures.” [“La dificultad no radica en los casos de prueba obtenida por medio de graves violaciones a un derecho humano internacionalmente reconocido, tal como la tortura por ejemplo, sino a través de medidas menos severas.”]. 77 Véase también PIRAGOFF, supra nota 71, art. 69 nm. 66 (“no distinction between evidence proffered by the Prosecutor or the accused, or requested by the Court” [“ninguna distinción entre prueba ofrecida por el Procurador o el acusado, o requerida por la Corte”]). El punto sin embargo es controvertido, en cuanto a prueba obtenida mediante tortura utilizada en contra del torturador véase la discusión de la postura de Scharf infra notas 95 ss. 78 Art. 69 (8) ECPI: “La Corte, al decidir sobre la pertinencia o la admisibilidad de las pruebas presentadas por un Estado, no podrá pronunciarse sobre la aplicación del derecho interno de ese Estado.” 79 PIRAGOFF, supra nota 71, art. 69 nm. 71 [“some violations which, by their nature, are always so egregious or so inconsistent with internationally recognized human rights that the admission of evidence obtained”]; véase también PATTENDEN, supra nota 40, p. 15. 80 GuARIGLIA, F./ HOCHMAYR, G. en TRIFFTERER, O. (ed.), Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court, Wien, NWV, 2.ed. 2008, art. 65, nm. 25. 81 SLuITER, supra nota 56, p. 935 [“As models for international criminal justice, the ICTY and the ICTR may be expected to fully respect internationally protected human rights. In the long run, the support for and confidence in forms of international criminal adjudication, including the recently established permanent international criminal court (ICC) will depend on whether or not the tribunals can live up to this expectation.”]. 82 A and Others v. Secretary of State for the Home Department (No. 2) [2005] uKHL 71, [2005] 3 WLR 1249, disponible también en internet: www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldjudgmt/jd051208/aand-1.htm (consultada por última vez el 25 de febrero de 2008) [en adelante A and others, HL]. 83 Las secciones 21 a 32 de esta ley han sido revocadas por la Prevention of Terrorism Act 2005 [“Ley de prevención de Terrorismo de 2005”], la cual fue luego enmendada por la Counter-Terrorism Act 2008 [“Ley de ContraTerrorismo”] (véase <www.statutelaw.gov.uk>) (véase también WALKER, C., “Keeping Control of Terrorists without Losing Control of Constitutionalism”, en Stanford Law Review, 2007, pp. 1395-1463. 84 A and others, HL, supra nota 78, para. 10 (Lord Bingham) [“irrespective of where, or by whom, or on whose authority the torture was inflicted.”]. 85 OLG Hamburg, Decisión del 14 de junio de 2005, reeditada en NJW, 2005, núm. 58, p. 2326 ss., p. 2326, [en adelante OLG Hamburg, El Motassadeq]. 86 Acuerdo con otro para cometer un crimen o instigar a cometerlo. 87 No es claro dónde exactamente estaban detenidos los testigos. El Tribunal Superior estadual de Hamburgo (OLG Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2327) expresó que ellos estaban “… mit hoher Wahrscheinlichkeit zumindest im Zugriffsbereich der Administration der uSA …” [“… con alta probabilidad al menos dentro del ámbito de la administración de los EE.uu. ...”]. 88 OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2326, se refiere en el segundo principio guía (“Leitsatz”) de la sentencia al art. 15 de la CT-ONU y aplica esta disposición a testimonios obtenidos bajo tortura por autoridades extranjeras (“ … Verbot der gerichtlichen Verwertung von durch Folter herbeigeführten Aussagen, das … auch bei im Ausland durch Organe anderer Staaten mittels Einsatzes von Folter herbeigeführten Aussagen eingreift.” [“… prohibición de valoración judicial de declaraciones provocadas por medio de tortura, que … también opera en caso de declaraciones provocadas por medio de tortura en el extranjero por parte de órganos de otros Estados”]). Además, en su tercer principio guía, el Tribunal sostuvo que el § 136a OPP también es aplicable, por analogía, si tales medios de interrogación prohibidos son practicados por autoridades extranjeras y constituyen una flagrante violación de la dignidad humana (“… auf die Anwendung unzulässiger Vernehmungsmethoden durch Angehörige anderer Staaten entsprechend anwendbar, sofern die Erkenntnisse, um deren Verwertung es geht, unter besonderes krassem Verstoß gegen die Menschenwürde zu Stande gekommen sind.” [“... aplicable correspondientemente a la utilización de métodos de interrogación inadmisibles por parte de miembros de otros Estados, en tanto los reconocimientos, de cuya valoración se trata, hayan sido obtenidos a través de una violación especialmente crasa de la dignidad humana.“]). 89 La Convención Interamericana para prevenir y sancionar la Tortura (Adoptada en la Asamblea General de la OEA, en su 15to Período Ordinario de Sesiones, Cartagena de Indias, Colombia, 9/12/1985) tiene una regla similar en su Art. 10: “Ninguna declaración que se compruebe haber sido obtenida mediante tortura podrá ser admitida como medio de prueba en un proceso, salvo en el que se siga contra la persona o personas acusadas de haberla obtenido mediante actos de tortura y únicamente como prueba de que por este medio el acusado obtuvo tal declaración.” 90 Tal como narrado por BuRGER / DANELIuS, supra nota 42, p. 148. 91 A and others, HL, supra nota 78, para. 39 (Lord Bingham) [“wider principle“]. 92 La disposición no se extiende a los procedimientos administrativos llevados a cabo por la rama ejecutiva; para una discusión THIENEL, T., “Foreign Acts of Torture and the Admissibility of Evidence”, en JICJ, 2006, núm 4, pp. 401-409, p. 406. 93 A and others, HL, supra nota 78, para. 39 (Lord Bingham) [“abuse and degrade the proceedings“]. Lord Bingham remite a united States v. Toscanino, 500 F.2d 267, 276 (2d Cir. 1974) pero esta Corte lo expresó de una manera un poco diferente: “Drawing again from the field of civil procedure, we think a federal court’s criminal process is abused or degraded where it is executed against a defendant who has been brought into the territory of the united States by the methods alleged here” [“Partiendo otra vez del campo del proceso civil pensamos que un proceso penal ante una Corte federal es abusado o degradado cuando se ejecuta contra un acusado que ha sido traído al territorio de los EE.uu. por los métodos aquí alegados”]. 94 The people (Attorney General) v O´Brien (1965) IR 142, 150 [“involve the state in moral defilement.“]; reimpreso en A and others, HL, supra nota 78, par.17, 39 (Lord Bingham). 95 Esto es, prueba obtenida aplicando tortura al acusado o a otras personas que puedan incriminar al acusado; al respecto, véase THIENEL, supra nota 3, pp. 358-359; PATTENDEN, supra nota 40, p. 7; sobre la aplicación de prueba derivada, esto es, de prueba obtenida a partir de una declaración hecha bajo tortura, véase PATTENDEN, supra nota 40, pp. 8-10. 96 Para el mismo resultado BRuHA, T., “Folter und Völkerrecht”, en Das Parlament, Aus Politik und Zeitgeschichte, 2006, núm 36, disponible en internet: www.bundestag.de/ dasparlament/2006/36/Beilage/003.html (consultado por última vez el 25 de febrero de 2008); THIENEL, supra nota 3, pp. 360-361; PATTENDEN, supra nota 40, p. 10; ver también OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, segundo principio guía como citado supra en la nota 84. 97 NOWAK, M. / McARTHuR, E., The uN Convention against Torture, Oxford et al., OuP, 2008, Art. 15 nm. 2, p. 75 ss., 88; concordante ESSER, A. “EGMR in Sachen Gäfgen v. Deutschland (22978/05), urt. v. 30.06.2008”, en NStZ, 2008, pp. 657-662, p. 659; en el resultado también MÖHLENBECK, supra nota 46, p. 162 ss. 98 A and others v. Secretary of State for the home Department (No 2) [2004] EWCA Civ 1123, [2005] 1 WLR 414, también disponible en internet: www.bailii.org/ew/cases/ EWCA/Civ/2004/1123.html (consultado por última vez el 25 de febrero de 2008), par. 448 [en adelante A and others, EWCA]. 99 SCHARF, supra nota 62, p. 159 ss. 100 Véase www.eccc.gov.kh; para una explicación general del marco jurídico véase KASHYAP, S., “The Framework of Prosecutions in Cambodia”, en AMBOS, K./ OTHMAN, M., New Approaches in International Criminal Justice, Freiburg i.B., ed. iuscrim, 2003, pp. 189-205. 101 SCHARF, supra nota 62, p. 170. 102 [“evidentiary efficiency”] 103 [“flexibility”]; Véase AMBOS, K./ SAID, P., “Das Todesurteil gegen Saddam Hussein”, en Juristen Zeitung [“JZ”], 2007, núm. 62, pp. 822-828. 104 Respecto del Reino unido, véase A and others, HL, supra nota 78, par. 27 (Lord Bingham) con ulteriores referencias; respecto de Alemania véase el art. 59 (2) de la Ley Fundamental (Grundgesetz); ver también DOEHRING, K., Völkerrecht, Heidelberg, Müller, 2.ed. 2004, nm. 708 ss.; MALANCZuK, P., Akehurst’s modern introduction to international law, London, Routledge, 7.ed. 2007, p. 65 ss. 105 BGBl. 1990 II p. 246. 106 Véase DOEHRING, supra nota 100, nm. 731, 735; HERDEGEN, M., Völkerrecht, München, Beck, 7.ed. 2008, § 22 nm. 5; KuNIG, P., en VITZHuM, W. G. (ed.), Völkerrecht, Berlin, de Gruyter Recht, 3.ed. 2004, núm. 99. 107 Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 351 ss.108 A and others, EWCA, supra nota 94, par. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 167 AMBOS, K 435 [“each state party”]. Véase, por ejemplo, el art. 6 I CEDH; véase también OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2328; THIENEL, supra nota 3, p. 352. 110 Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 352. 111 BVerfG, decisión del 31 de mayo de 1994 reimpresa en: NJW, 1994, núm. 47, p. 2883 ss. 112 Para una discusión ver también THIENEL, supra nota 3, p. 353. 113 OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2326: “innerstaatlich unmittelbar geltendes und im Strafverfahren zu beachtendes Verbot der gerichtlichen Verwertung ….” [“directamente vigente en el derecho interno y prohibición de valoración judicial a observar en el proceso penal…”]. 114 Id. A and others, HL, supra nota 78, par. 27 (Lord Bingham): Los recurrentes “rely on the well established principle that the words of a united Kingdom statute, passed after the date of a treaty and dealing with the same subject matter, are to be construed, if they are reasonably capable of bearing such a meaning, as intended to carry out the treaty obligation and not to be inconsistent with it.” [“se basan en el muy afianzado principio de que el texto de una ley del Reino Unido, aprobada luego de la fecha de un tratado y referida al mismo tema, debe ser interpretado, si razonablemente es capaz de tener tal significado, como si estuviera destinado a cumplir la obligación del tratado y no como si fuera incompatible con él.”] (con cita de Garland v British Rail Engineering Ltd. [1983] 2 AC 751, 771). 115 Zur Begründung eines Verwertungsverbots nun ESSER, supra nota 93, p. 658 s. 116 Schenk v. Switzerland, Eur. Ct. H.R., Application no. 10862/84, par. 46 (12 de Julio de 1988); Miailhe v. France No.2 Eur. Ct. H.R., Application no. 18978/91, par. 43 (26 de septiembre de 1996). 117 Schenk v Switzerland, supra nota 112, par. 46 [“as a matter of principle and in abstract“]. 118 Id. par. 48. 119 Id. par. 47; Kahn v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application no. 35394/97, par. 38 (12 de mayo de 2000). 120 Kahn v. united Kingdom, supra nota 115, par. 34; véase también P.G. and J.H. v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application no. 44787/98, par. 76 ss. (25 de septiembre de 2001) enfatizando que la prueba viciada era “not the only evidence against the applicants” [“no era la única prueba contra los recurrentes”] (par. 79). 121 Kahn v. united Kingdom, supra nota 115, par. 38 ss.; P.G. and J.H. v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application no. 44787/98, par. 79 ss. (25 de septiembre de 2001). Véase también MEYER-LADEWIG, J. Europäische Menschenrechtskonvention, Handkommentar, Baden-Baden, Nomos, 2.ed. 2006, art. 6 nm. 55b. 122 En el caso Jalloh v. Germany la policía había suministrado por la fuerza al recurrente, que era sospechoso de tráfico de drogas, un vomitivo, con el fin obtener la droga escondida en su cuerpo y utilizarla como evidencia en su contra. 123 Jalloh v. Germany, Eur. Ct. H.R, Application no. 54810/00, par. 99 (11 de Julio de 2006). 124 Id. par. 107. 125 Id. par. 105. 109 168 Kahn v. united Kingdom, supra nota 115, par. 34 [“[i]ncriminating evidence – whether in the form of a confession or real evidence – obtained as a result of acts of violence or brutality or other forms of treatment which can be characterised as torture should never be relied on as proof of the victim’s guilt, irrespective of its probative value. Any other conclusion would only serve to legitimate indirectly the sort of morally reprehensible conduct which the authors of Article 3 of the Convention sought to proscribe (...).”]. 127 [“incriminating evidence (…) relied on as proof of the victims guilt”]. 128 Para un enfoque flexible PATTENDEN, supra nota 40, pp. 11, 36 ss., quien sostiene que la exclusión depende de la importancia de la prueba para el acusado; si es crucial para su defensa, la exclusion sería injusta; véase también infra nota 156 y en el texto principal. 129 Harutyunyan v. Armenia, Eur. Ct. H.R., Application no. 36549/03, par. 63 (28 de junio de 2007). 130 Id. par. 66 [“regardless of the impact of the statements obtained under torture had on the outcome of the applicant’s criminal proceedings, the use of this evidence rendered his trial as a whole unfair.”]. 131 Id. par. 67. 132 Véase también THIENEL, supra nota 3, pp. 356-357, 362; id., supra nota 88, p. 404 (sin otros argumentos). 133 MEYER-LADEWIG, supra nota 117, art. 6 nm. 52. Véase también, respecto de los tribunales penales internacionales: AMBOS, K., “The Right of Non Self-incrimination of Witnesses Before the ICC”, en Leiden Journal of International Law, 2002, núm. 15, pp. 155-177, p. 156 ss. 134 Saunders v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application no. 19187/91, par. 68 ss. (17 de diciembre de 1996). 135 Id. par. 68 ss. 136 Gäfgen v. Germany, Eur. Ct. H. R., Application no. 22978/05, par. 99, 105 ss. (30 de junio de 2008). 137 Ibid., par. 99 [“should never be relied on as proof of the victim’s guilt, irrespective of its probative value”]. 138 Ibid., par. 105 [„strong presumption”]. 139 Concordantemente PATTENDEN, supra nota 40, p. 34 ss.; GAEDE, K., Fairness als Teilhabe – Das Recht auf konkrete und wirksame Teilhabe durch Verteidigung gemäß Art. 6 EMRK, Berlin, Duncker & Humblot, 2007, p. 322; THIENEL, supra nota 88, 404; LuBIG, S./ SPRENGER, J., „Beweisverwertungsverbote aus dem Fairnessgebot des Art. 6 EMRK in der Rechtsprechung des EGMR”, en Zeitschrift für internationale Strafrechtsdogmatik („ZIS”, disponible en <www.zis-online.com>), 2008, núm. 3, pp. 433-440, p. 439, quienes sin embargo sólo quieren aceptar la prohibición de valoración en caso de violación de los derechos de participación; TALMON, S., „Der Anti-Terror-Kampf der uSA und die Grundrechte”, en KÄMMERER, A. (coord.), An den Grenzen des Staates, Berlin, Duncker & Humblot, 2008, p. 75, p. 94 ss., quien en forma similar resalta el „Anspruch auf materielle Beweisteilhabe” [„derecho a participación material en la producción de prueba”] (p. 98); ESSER, supra nota 93, p. 661 s. con una triple diferenciación; MÖHLENBECK, supra nota 46, p. 171. 140 Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 362. 141 A and Others, HL, supra nota 78, par. 26 (Lord Bingham). 126 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA Véase también PATTENDEN, supra nota 40, p. 13 enfatizando correctamente la gravedad de la violación. 142 A and others, HL, supra nota 78, par. 29 (Lord Bingham). 143 MAY, R./ POWLES, S., Criminal Evidence, London, Sweet & Maxwell, 5.ed. 2004, p. 369; La Human rights Act 1998 está disponible en internet: www.opsi.gov.uk/ acts/acts1998/ukpga_19980042_en_1 (consultada por última vez el 25 de febrero de 2008). 144 Adoptada el 22 de mayo de 1969; en vigor desde el 27 de enero de 1980, UN-Treaty Series vol. 1155, p. 331. 145 Selmouni v. France, E. Ct. H.R., Application no. 25803/94, par. 97 (28 de julio de 1999). 146 BELING, supra nota 4; véase también SENGE, supra nota 4, antes del § 48 nm. 20. 147 Decisión del 14 de junio de 1960, supra nota 9, p. 365 = 1582; véase también la decisión del BGH del 17 de marzo de 1983, supra nota 9, p. 309 = 1571. 148 BVerfG, decisión del 19 de octubre de 1983, en NJW, 1984, núm. 37, p. 428 ss., p. 428; BGH, decisión del 16 de febrero de 1954, en BGHSt 5, p. 332, p. 333 = NJW, 1954, núm. 7, p. 649 ss., p. 649. 149 BGH, decisión del 16 de febrero de 1954, supra nota 144, p. 333 = 649: “Der Beschuldigte ist Beteiligter, nicht Gegenstand des Strafverfahrens” [“El imputado es un sujeto, no un objeto del proceso penal”] (argumentando en contra del uso de un detector de mentiras). 150 El § 69 III OPP establece que el § 136 a OPP también es aplicable a testigos. 151 BGH, decisión del 6 de diciembre de 196, en BGHSt 17, p. 14, p. 19 = NJW, 1962, núm. 15, p. 598 ss., p. 598; MEYER-GOßNER, L., Kurzkommentar zur Strafprozessordnung, München, C.H.Beck, 50.ed. 2007, § 136 a, nm. 2. 152 MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 3. 153 OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, segundo principio guía tal como citado supra en la nota 84; MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136a nm. 3; JAHN, supra nota 4, C 102, 103; véase también la decisión del Tribunal Superior estadual de Celle (OLG Celle) del 19 de septiembre de 1984, en NJW, 1985, núm. 38, p. 640 ss., p. 641 (sobre la aplicación analógica del principio nemo tenetur a particulares); dejando la cuestión abierta recientemente BGH, NStZ, 2008, p. 643. Para una prohibición de valoración probatoria de resultados obtenidos por particulares por medios penalmente sancionados o mediante violación de la dignidad humana cfr. Decisiones 12 c) cc) und dd) de la Sección de Derecho Penal del 67. DJT 2008, supra nota 4 .154 OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, tercer principio guía tal como citado supra en la nota 84 p. 2329; en el mismo sentido también MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 3; GLEß, S., en LÖWEROSENBERG, Strafprozessordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, Tomo 2, Berlin et al., de Gruyter, 25.ed. 2004, § 136a nm. 79. 155 En el mismo sentido Lord Bingham, A and others, HL, supra nota 78, par. 34: “There is reason to regard it a duty of state, (…) to reject the fruits of torture inflicted in breach of international law” [“Hay razón para considerar un deber de Estado (…) rechazar el fruto de tortura infligida en infracción del derecho internacional”] (remitiendo a varias fuentes internacionales); también THIENEL, supra nota 3, p. 363 ss.; críticamente PATTENDER, supra nota 40, p. 15 ss.; SCHARF, supra nota 62, p. 23. 156 MEYER-LADEWIG, supra nota 117, art. 3 nm. 3. 157 Cf. art. 2 (1) CT-ONu: “bajo su jurisdicción”; art.3 CEDH en conexión con art. 1 CEDH: “de su jurisdicción”; concordantemente THIENEL, supra nota 3, p. 361; para una posible aplicación extra-territorial de la CEDH en casos de extradición véase infra C. III. 158 Para la mayoría de la doctrina alemana este efecto disuasivo es sólo un efecto colateral, véase VOLK, K., Grundkurs StPO, München, Beck, 5.ed. 2006, § 28 nm. 7; críticamente desde la perspectiva del common law ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 155 ss.; para MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 298, no es función de los tribunales el disciplinar a la policía; ZANDER, M., The Police and Criminal Evidence Act 1984, London, Sweet & Maxwell, 5.ed. 2005, p. 362, hace referencia a la crítica de la Philips Royal Commission [N. del T.: el autor se refiere a la Comisión Real sobre Procedimiento Penal Royal Commission on Criminal Procedure- presidida por Cyril Philips y que presentó su informe en enero de 1981]. 159 Véase VOLK, supra nota 154, § 28 nm. 35. 160 Éste es el punto de vista mayoritario: BAuJONG, K. en Karlsruher Kommentar zur Strafprozessordnung, München, Beck, 5.ed. 2003, § 136a nm. 37; DIEMER, H., en ibid., 6.ed. 2008, § 136a nm. 37; HANACK, E.-W., en LÖWE-ROSENBERG, Strafprozessordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, Tomo 2, Berlin et al., de Gruyter, 25.ed. 2004, p. 63; GLEß, supra nota 150, § 136a nm. 71; MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 27; VOLK, supra nota 154, § 28 nm. 24; para una excepción DENCKER, F., Verwertungsverbote im Strafprozeß, Köln et al., Heymann, 1977, p. 73 ss.; véase también BGH, decisión del 7 de mayo de 1953, en BGHSt 5, p. 290, pp. 290-291 según el cual la prohibición del § 136a OPP no depende del resultado obtenido (distinguiendo in casu entre una confesión verdadera y una falsa). Véase para la discusión internacional supra nota 124 y el texto respectivo. 161 Véase MAY/ POWLES, supra nota 139, pp. 285-286; ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 13, pp. 148 ss.; Zander, supra nota 154, p. 360. 162 Citado según MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 286. 163 Sobre la importancia de la relevancia como la primera cuestión de admisibilidad ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, pp. 96, 98 ss., pp. 150-151. 164 Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 286 ss. 165 Sobre su importancia ver ZANDER, supra nota 154, p. 360 ss. (366); ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 147. 166 La doctrina habla en este contexto de “constitucionalización” del derecho de la prueba penal, véase ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 175; véase también MAY/ POWLES, supra nota 139, pp. 304-306. 167 ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 162: “sensible relationship of proportionality between the seriousness of a rule violation and the implications for justice and public safety of excluding evidence …”. [“sensata relación de proporcionalidad entre la gravedad de la violación de Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 169 AMBOS, K una regla y las implicancias para la justicia y la seguridad pública de la prueba a excluir…”]. 168 [“oppression”], [“unreliable”], [“shall not”]. 169 Véase también A and others, HL, supra nota 78, par. 15, donde Lord Bingham expresa que la importancia del principio reside en el hecho “that common law has refused to accept that oppression […] should go to the weight rather than the admissibility of the confession” [“que el common law ha rechazado aceptar que la opresión […] deba referirse al peso más que a la admisibilidad de la confesión”]. 170 Id. par. 16-17 con otras referencias. Véase también ZANDER, supra nota 154, p. 342. 171 [oppression]; Véase ZANDER, supra nota 154, pp. 347 ss. 172 [“adverse effect on the fairness of the proceedings”]; El texto completo es más complicado: “In any proceedings the court may refuse to allow evidence on which the prosecution proposes to rely to be given if it appears to the court that, having regard to all the circumstances, including the circumstances in which the evidence was obtained, the admission of the evidence would have such an adverse effect on the fairness of the proceedings that the court ought not to admit it.” [“En cualquier proceso, la Corte puede negarse a aceptar prueba que la autoridad de persecución propone que sea tenida en cuenta, si la Corte estima, considerando todas las circunstancias, incluidas las circunstancias en que la prueba fue obtenida, que la admisión de la prueba tendría tal efecto adverso para un justo proceso que la corte no deba admitirla”.]. 173 Véase también la sección 82 (3) PACE que dispone que nada de la parte VIII de la Ley (referida a la prueba en el procedimiento penal en general) “shall prejudice any power of a court to exclude evidence at its discretion.” [“menoscabará el poder de la Corte para excluir evidencia a su discreción”]. Los antecedents históricos muestran que se quiso ampliar la discreción de la Corte en comparación con el common law tradicional (cf. ZANDER, supra nota 154, pp. 363-364; poco claro ARCHBOLD, Criminal Pleading, Evidence and Practice (RICHARDSON, P.J. et al. (eds.)), London, Sweet & Maxwell, 2007, § 15-453. Críticamente sobre el concepto de discreción judicial en este contexto ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 96, quienes conceden, sin embargo, en su análisis concreto de la sección 78 que “is no feasible substitute for trial judges’ good faith judgement in the exercise of their discretion …” [no hay un “sustituto posible para el juicio de buena fe de los jueces en el ejercicio de su discreción …”] (p. 174). 174 Véase Halawa v. F.A.C.T. [1995] 1 Cr.App.R. 21, 33. 175 Regina v. Governor o Brixton Prison, ex p. Levin [1997] AC 741, 748, HL [“has been obtained in a way which outrages civilised values.”]. 176 Sobre esta doctrina véase también id. p. 179; PATTENDEN, supra nota 40, p. 30 ss. 177 Véase A and others, EWCA, supra nota 94, par 248 [“the exercise of State power in an arbitrary, oppressive or abusive manner”], [“receive evidence in ongoing proceedings, if to do so would lend aid or reward to the perpetration of any such wrongdoing by an agency of the State.”]; ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 170 179.178 ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 180 [“moulded into a primary bulwark of fairness and moral integrity in English criminal proceedings”]. 179 Esto se sigue de la formulación: “… evidence on which the prosecution proposes to rely to be given …” [“prueba que la autoridad de persecución propone que sea tenida en cuenta”], véase también PATTENDEN, supra nota 40, p. 39. 180 Para un análisis crítico y riguroso véase ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 160 ss. (p. 164: “judicial task of developing an admissibility regime … remains an unfinished project …” [“la tarea judicial de desarrollar un régimen de admisibilidad … sigue siendo un proyecto inconcluso”]; p. 174: “little or no concrete guidance for trial judges …” [“poca o ninguna orientación concreta para los jueces de mérito …”] de parte de la Corte de Apelación); véase también ZANDER, supra nota 154, p. 367 ss. (p. 367: “on a case-by-case basis, without any clearly articulated theory.” [“sobre la base del caso concreto, sin una teoría claramente articulada”]; p. 378: “no general guidelines” [“sin pautas generales”]); MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 293 ss. (p. 301: “no hard and fast rules” [“sin reglas resistentes y rápidas”]); pero también ARCHBOLD, supra nota 169, señalando, por un lado, que el “precise scope [is] ... unclear” [“alcance exacto … no [es] claro”] (§ 15-453), por el otro, que hay una “substantial guidance” [“orientación sustancial”] por la jurisprudencia (§ 15-455) y, de nuevo, que “no general guidance” [no hay “ninguna orientación general”] (§ 14-457). 181 Véase A and others, EWCA, supra nota 94, par. 137, 252, 253: “given that the specific rule against involuntary confessions is not engaged (we are not dealing with tortured defendants), the general rule – evidence is admissible if it is relevant, and the court is not generally concerned with its provenance – applies.” [“dado que no está comprometida la regla específica en contra de confesiones no voluntarias (no estamos tratando con acusados torturados), es aplicable la regla general – la prueba es admisible si es relevante y si la Corte no está en general involucrada con su proveniencia”.]. Es interesente poner de relieve que ninguno de los Law Lords (jueces de la Cámara de los Lores) sostuvo esta posición en A and others, HL, supra nota 78. 182 Véase A and others, HL, supra nota 78, par. 19 (Lord Bingham) [“if the foundation for the case would be morally unacceptable”]. 183 [“a ticking bomb”]. 184 Véase A and others, HL, supra nota 78, par. 67 ss. (Lord Nicholls); A favor de flexibilidad y una ponderación similar, sin distinguir, sin embargo, entre tortura preventiva y represiva PATTENDEN, supra nota 40, p. 32 ss.; por la admisibilidad en el caso de una bomba a punto de explotar también ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 153. 185 Véase AMBOS, supra nota 1, p. 263 con nota 6. 186 Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 300. 187 Véase por ejemplo Soering v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application no. 14038/88, par. 111 (7 de julio de 1989); más recientemente también Tribunal Estadual de Thüringen, Thür. OLG Ausl 7-06 v. 25.1.2007, en StV, 2008, p. 650. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA 188 Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 366. [“jurisdiction”]; Véase supra nota 153 y THIENEL, supra nota 3, pp. 366-367. 190 Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 300. Sobre los paralelos con las extradiciones jurídicas con igual resultado también TALMON, supra nota 135, p. 93 s. 191 Sobre esto, con ulteriores referencias AMBOS, supra nota 1, p. 265 ss. 192 Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, § 04-35 (“The burden of establishing the conditions of admissibility of other evidence will fall on whichever side is seeking to adduce it.” [“La carga de establecer las condiciones de admisibilidad de otra prueba recaerá sobre la parte que busca aducirla”]); SEABROOKE, S./ SPRACK, J., Criminal Evidence & Procedure, London, Blackstone, 2.ed. 2004, p. 14 (“In general the burden of proof in the “voir dire” will be upon the party who asserts that the evidence should be admitted.” [“En general, la carga de la prueba en el “voir dire” recaerá sobre la parte que afirma que la prueba debe ser admitida”]); ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 331. [N. del T.: en el derecho estadunidense se llama “voir dire” al procedimiento en el cual las partes discuten la composión del jurado y cuestionan eventualmente su imparcialidad]. 193 BGH, decisión del 4 de abril de 1951, en BGHSt 1, p. 94, p. 96; BGH, decisión del 17 de octubre de 1983, en BGHSt 32, p. 115, p. 122 = NJW, 1984, núm. 37, p. 247 ss., p. 248. 194 BGH, decisión del 28 de junio de 1961, en BGHSt 16, p. 164, p. 167 = NJW 1979, 1980 (1961), núm. 14; MEYERGOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 32. 195 OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, pp. 2326, 2328. 196 A and others, HL, supra nota 78, par. 55 (Lord Bingham), par. 116 (Lord Hope). Por las mismas razones, Nigel Rodley, Relator Especial sobre la Tortura de la ONU, recomendó que no se requiera del detenido una “conclusive proof of physical torture“ [“prueba concluyente decisiva de tortura física”], en Report of Visit to Turkey, u.N. Doc. E/CN. 4/1999/61/ Add. 1 (1999), par. 113 (e)) disponible en internet http://daccessdds.un.org/doc/uNDOC/GEN/ G99/104/37/PDF/G9910437.pdf?OpenElement (consultado por última vez el 26 de febrero de 2008); similar NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93, nm. 81. 197 A and others, HL, supra nota 78, par. 56 (Lord Bingham) [“advance some plausible reason (...) that evidence has, or is likely to have, come from one of those countries widely known or believed to practice torture”]; también par. 116 (Lord Hope): “All he can reasonably be expected to do is to raise the issue (…)” [“Todo lo que razonablemente puede esperarse que él haga es que plantee la cuestión (…)”]. Conc. . NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93, nm. 84. Críticamente en relación con el art. 6 (1) CEDH THIENEL, supra nota 88, p. 407. 198 Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 308. 199 A and others, HL, supra nota 78, par. 56 (Lord Bingham); concordantemente par. 80 (Lord Nicholls), par. 98 (Lord Hoffmann); también conc. NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93, nm. 82, 84. Para otro punto de vista ZANDER, supra nota 154, pp. 380-381 según quien la defensa tiene que “to persuade the court that there is a serious issue as to 189 unfairness …” [“persuadir a la Corte de que hay una grave cuestión de injusticia [procesal] …..”] y que, en síntesis, llega “remarkably close” [“increiblemente cerca”] de la carga de la prueba que está en la defensa. De manera similar ARCHBOLD, supra nota 169, § 15-462: “evidential burden (…) that there is an issue to be decided (…) will rest on the defence.” [“carga probatoria (…) que hay una cuestión a decidir (…) recaerá en la defensa.”]. 200 P.E. v. France, Complaint. No. 193/2001, uN Doc. A/58/44, p. 150 (par. 6.3.); G.K. v. Switzerland, Complaint. No. 219/2002, ibid., p. 185 (par. 6.10); de esto THIENEL, supra nota 3, p. 355 deriva que el art. 15 reduce “any burden of proof on persons other than the state to an evidentiary burden only of triggering the positive obligation of the state.” [“toda carga de la prueba sobre personas diferentes al Estado a la carga probatoria de sólo provocar la obligación positiva del Estado”]. 201 BGH, decisión de 28 de junio de 1961, supra nota 190, p. 166 = 1980. 202 Véase por ejemplo VOLK, supra nota 154, § 18, nm. 22 en el caso del § 136 a OPP; en nuestro contexto también TALMON, supra nota 135, p. 84.. 203 Para la inversión de la carga de la prueba que allí se presenta también JAHN, supra nota 4, C 109; TALMON, supra nota 135, p. 84.204 BGH NStZ-Rechtsprechungsreport Strafrecht 2007, p. 80 ss., p. 81. 205 Supra nota 196 y texto principal. 206 Véase A and others, HL, supra nota 78, par. 120 ss., 121 (Lord Hope): “Is it established, by means of such diligent inquiries into the sources that it is practicable to carry out and on a balance of probabilities, that the information relied on by the Secretary of State was obtained under torture?” [“¿Está establecido, por medio de tales diligentes investigaciones que es factible llevar a cabo sobre las fuentes y con base en una ponderación de probabilidades, que la información confiada por el Secretario de Estado fue obtenida bajo tortura?] (bastardilla en el original); véase también ibid., par. 138 ss. (Lord Rodger), par.156 ss. (Lord Carswell), par. 172 ss. (Lord Brown). 207 El Oberlandesgericht de Hamburgo requirió la plena prueba de la tortura y consideró que las dudas existentes acerca de las circunstancias del interrogatorio conciernen al valor probatorio y no a la admisibilidad de las declaraciones (OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, pp. 2326, 2328); crít. GLEß, supra nota 150, § 136a nm. 79 con nota 351. Del mismo modo la Decisión Nr. 11 c) de la Sección Penal del 67. DJT („Die ein Beweisverwertungsverbot begründenden umstände bedürfen des vollen Nachweises im Einzelfall.” [„ Las circunstancias que fundan una prohibición de valoración probatoria requieren ser plenamente comprobadas en el caso concreto.”]). 208 Énfasis K.A. 209 Cfr. También JAHN, supra nota 4, C 109 (Prueba „praktisch unmöglich” [„prácticamente imposible”]); así como TALMON, supra nota 135, p. 84. 210 Para este argumento en relación con el art. 6 (1) CEDH véase también THIENEL, supra nota 88, pp. 408-409. Sobre las presunciones de hecho del TEDH cfr. ESSER, supra nota 93, p. 660. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 171 AMBOS, K Para el mismo resultado THIENEL, supra nota 88, p. 409; NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93, Art. 15 nm. 84. Véase también JAHN, supra nota 4, C 109 con fundamentación del derecho constitucional. 212 Véase la posición de los recurrentes citadas en A and Others, HL, supra nota 78, par. 28 (6) (Lord Bingham). 211 172 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA Artigo notAS SoBrE A inAPLiCABiLiDADE DA função SoCiAL à ProPriEDADE PúBLiCA Nilma de Castro Abe 1 rESumo: O presente trabalho tem como objetivo tecer considerações, sem a pretensão de esgotar o tema, sobre a impossibilidade de ampliação da noção de função social, para abranger a propriedade pública. Tem como ponto de partida a noção da propriedade privada no Direito e sua configuração hoje no Brasil após a consagração, pela Constituição de 1988, do instituto da função social (arts. 5.º, xxxIII, 170, III, 182 e 186), também adotado pelo Código Civil de 2002 (arts. 421, 1.228, 1.239, 1.240). Em seguida, pretende apontar que a noção de “propriedade pública” não foi suficientemente desenvolvida pela doutrina pátria, inviabilizando a equiparação entre os dois conceitos, propriedade privada e propriedade pública, de modo que se conclui que a aplicação do instituto da função social à propriedade pública esbarra em diversos óbices, neste ensaio abordados, revelando-se incompatível com o regime de Direito Público, pois a sua incidência implicaria num afastamento e enfraquecimento injustificados do regime jurídico público (princípio federativo, autonomia de administração dos entes federados, obediência à lei orçamentária, imunidade tributária, indisponibilidade do interesse público), o que não se coaduna com uma leitura sistemática dos ditames da Constituição Federal que regem a gestão dos bens públicos no Brasil. Palavras-chave: função social. Propriedade pública. Gestão dos bens públicos ABStrACt: This work aims to make considerations, without claiming to exhaust the subject, about the impossibility of expanding the notion 1 Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Católica de São Paulo (PuC-SP). Advogada da união em São Paulo. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 173 ABE, N. C. of social function, to cover public property. Its starting point is the notion of private property in law and its configuration today in Brazil after the consecration by the Constitution of 1988 of the Social Function of Property (art. 5. No. xxxIII, 170, III, 182 and 186), also adopted by the Civil Code of 2002 (art. 421, 1228, 1239, 1240). Then it seeks to point out that the notion of “public property” was not sufficiently developed by the national doctrine, rendering it impossible to equate the two concepts, private property and public property, so that the application of the institute of the social function to property public encounters several obstacles discussed in this essay, proving to be incompatible with the system of public law, because their impact would involve unjustified separation and weakening of the legal public regime (federal principle, independent administration of federal entities, obedience to the budget law, tax immunity, unavailability of public interest), which is not consistent with a systematic reading of the dictates of the Constitution governing the management of public goods in Brazil. Keywords: Social function. Private propert., Management of public goods 1. introdução O presente trabalho tem como objetivo tecer considerações, sem a pretensão de esgotar o tema, sobre a impossibilidade de ampliação da noção de função social, para abranger a propriedade pública. Em outras palavras, procurar-se-á questionar a existência de uma “função social da propriedade pública” Num primeiro momento, se faz necessário, ainda que em breves linhas, apontar como se forjou a idéia do direito de propriedade privada no Direito e, como se configura hoje o direito de propriedade privada no Brasil, após a consagração, pela Constituição de 1988, do instituto da função social (arts. 5.º, xxxIII, 170, III, 182 e 186), também adotado pelo Código Civil de 2002 (arts. 421, 1.228, 1.239, 1.240). Em seguida, procura-se apontar que a noção de “propriedade pública” não foi suficiente174 mente desenvolvida pela doutrina pátria, existindo alguns óbices para a equiparação entre os dois conceitos: propriedade privada e propriedade pública. Neste passo, por conseqüência, surgem os obstáculos para a construção de uma “função social da propriedade pública” e para a aplicação ao Poder Público das mesmas sanções jurídicas imputáveis aos proprietários particulares quando descumpridores da função social. Por fim, busca-se apontar que às condutas omissivas do Estado em relação ao seu patrimônio deverá incidir o regime jurídico de Direito Público, incluindo a responsabilização do Estado por omissão. 2. Direito de Propriedade Privada. Direito de Propriedade Pública. Segundo José Reinaldo Lima Lopes2, o direito de propriedade privada, enquanto um direito unitário e individualista, é uma criação dos civilistas modernos, desenvolvida entre o final do século xVIII e o século xIx, pois no período medieval, era comum o exercício, sobre o mesmo bem, de diversos direitos por diferentes sujeitos, tanto que quase não havia distinção entre propriedade, soberania e posse3. A construção do direito de propriedade em seu sentido moderno passou pela unificação de diversos poderes em torno de um titular de direitos, que seria o proprietário, conforme esclarece José Reinaldo Lima Lopes4: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 “A noção moderna começa a modificar a antiga. Ela tenderá para o exclusivismo: a propriedade aos poucos passará a ser a soma de todos os direitos anteriormente dispersos entre os vários detentores. Em resumo, no período medieval, a detenção, a posse, as diferentes rendas devidas e recebidas convivem lado a lado. Não lhes parece natural que um só senhor tenha todos estes direitos: cada um, desde o lavrador até o rei tem, sobre a mesma terra, direitos próprios, embora distintos. Assim como a soberania é uma constelação de poderes partilhada entre muitos, a propriedade era uma constelação de poderes NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA partilhada entre vários titulares de direitos, privilégios, posses e detenções distintas.” Para forjar um conceito unitário de propriedade, foi preciso ignorar a diferença essencial existente entre as diversas espécies de bens: a terra, os bens de produção, os bens móveis, os bens consumíveis, pois “a teoria jurídica ignora solenemente a diferença que os antigos conheciam entre bens consumíveis e bens não consumíveis e trata todas as categorias de bens com o mesmo critério abstrato”5. Dessa forma, o direito de propriedade privada, tal como introduzido no Brasil pelo Código Civil de 1916, traduziu um feixe poderes sobre um bem, especificamente os poderes de usar, gozar, dispor e de perseguir o bem onde quer que ele esteja (direito de seqüela), apresentava como características primordiais, ser um direito absoluto, unitário, exclusivo, ilimitado e perpétuo. Constituía um direito unitário porque formava uma coletividade de direitos, que se unificam e sintetizam no direito de propriedade6. Absoluto porque oponível erga omnes, constituindo-se no mais extenso e completo de todos os direitos reais7. Era exclusivo porque excluía de terceiros o direito de exercer sobre a coisa qualquer dominação8, segundo prescrevia o art. 527 do Código Civil de 1916, “o domínio presumese exclusivo e ilimitado, até prova e contrário”. Era ilimitado porque o titular exercia o direito de propriedade sem limites, podendo exaurir a coisa tirando-lhe todos os serviços e benefícios sem restrições. Era irrevogável ou perpétuo9, no sentido de que subsistia independentemente de exercício, enquanto não sobreviesse causa legal extintiva. Não se extinguia pelo não uso, ainda que o proprietário nunca usasse a coisa, a propriedade permaneceria. Alerte-se que no âmbito público, não houve este esforço para construir um direito de propriedade pública unitário, absoluto, exclusivo, ilimitado e irrevogável, lembrando que os fundamentos do direito de propriedade privada e da propriedade pública são distintos. O fundamento do direito de propriedade privada consiste em garantir aos particulares poderes sobre bens que assegurem sua vida, existência, conforto, mobilidade, garantindo a circulação de riquezas e o comércio jurídico. O fundamento do direito de propriedade pública é assegurar, aos Estados, bens que constituam os meios ou instrumentos de atuação estatal para cumprimento do interesse da coletividade, de modo que o regime especial a que se submetem os bens públicos (inalienabilidade, impenhorabilidade, imprescritibilidade) constitui mero instrumento normativo para atender aos interesses da coletividade. Tanto é assim que Bartolomé Fiorini10 alerta que o direito de propriedade pública excede o conceito do exercício do direito subjetivo e individual sobre uma coisa, que é o direito exclusivo do senhor sobre um bem, pois é o direito de todos para todos e por isso mesmo o seu regime deve ser distinto do da propriedade civil. Acredita-se que a tentativa de construção de um direito de propriedade pública equivalente ou comparável ao direito de propriedade privada, esbarraria em diversos óbices. O primeiro deles seria o fato de o Estado manter vínculo de propriedade com diversos bens, submetidos a regimes jurídicos diversos, porque tais bens possuem natureza jurídica diversa e exigem regimes jurídicos diversificados11. Neste sentido esclarece Bartolomé Fiorini12: “La forma de manifestarse la potestad Del Estado sobre ellos es diversa, según la forma y extensión de sus beneficios públicos, pues no hay un régimen jurídico exclusivo de dominio estatal, aunque todos integren el instituto único de propiedad del estado o dominio estatal. Este debe ser el concepto fundamental que debe aplicarse a la cuestión; y es sustancialmente jurídico.” No Brasil, dentro da própria categoria dos imóveis públicos, existem diversas categorias jurídicas (terras indígenas, terras devolutas, terrenos de marinha, praias, imóveis urbanos, imóveis rurais, próprios nacionais, praças, ruas, parques, etc.), sujeitas a regimes diferenciados, pois cada categoria de imóvel pode atender a diversos fins públicos simultaneamente, embora alguns tenham a destinação prevista em lei ou na própria Constituição. Mesmo os imóveis dominicais (art. 99, III, CC/2002), que não estão afetados a um uso pú- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 175 ABE, N. C. blico concreto, possuem destinação legal13, isto é, a lei se encarrega de prever os usos públicos possíveis a que se destinam os imóveis públicos no Brasil, lembrando que os usos administrativos devem atender aos fins públicos, previstos em lei e no Texto Constitucional, inclusive como decorrência do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, CF/88) e dos objetivos constitucionais previstos no art. 3.º da Constituição. O Autor inclusive aponta um outro obstáculo, qual seja, a impossibilidade do uso exclusivo (exclusividade) pelo titular da propriedade pública, no caso o Estado, porque uma parte dos bens públicos são vocacionados para o uso direto (bem de uso comum do povo) ou indireto (bem de uso especial) da coletividade. Isso porque no fenômeno da propriedade pública ocorre a distinção entre o titular do bem (que seria a pessoa jurídica de Direito Público: união, Estados, Distrito Federal Municípios, autarquias e fundações), o administrador do bem (agentes públicos) e o beneficiário do bem (a coletividade). Novamente convém citar a importante lição de Bartolomé Fiorini14 sobre este tema: “El derecho de propiedad privada pertence a un sujeto, quien es a su vez titular, dueño y beneficiario. Hay identidad entre dueño, titular y beneficiario; realmente esto es el derecho de propiedad, perpetuo, exclusivo y absoluto, pero para el derecho público tal unidad no se presenta, pues el titular está separado del bien y este lo es en beneficio de quienes integran a un órgano estatal, que es quien ejerce el derecho de dominio público, pero el goce del bien pertenece a la colectividad. La titularidad que concede el señorío es totalmente relativa. La Administración sobre estas cosas estatales se realiza por normas que establecen o delegan los órganos que representan la voluntad popular; y esta administración adquiere mayor relevancia que la disposición. (...) Estos bienes del Estado separan en forma total al titular del ejercicio de derecho de disposición, al titular de su administración y alos titulares de sus beneficios.” Portanto, admite-se que a propriedade pública é categoria distinta da propriedade pri176 vada: i) pela inexistência de um regime jurídico unívoco de propriedade pública, equivalente ao da propriedade privada, tendo em vista a diversidade de categorias de bens públicos que ensejam a adoção de regimes jurídicos diversos, decorrentes da natureza do bem e do interesse jurídico a ser protegido; ii) pela impossibilidade do uso exclusivo (exclusividade) pelo titular da propriedade pública, no caso, o Estado, porque uma parte dos bens públicos são vocacionados para o uso direto (bem de uso comum do povo) ou indireto (bem de uso especial) da coletividade; iii) pela distinção entre o titular do bem (ente público), o administrador do bem (agente públicos) e o beneficiário do bem (a coletividade); iv) pela impossibilidade de se retirar do campo do Direito Público a disciplina dos vínculos jurídicos existentes entre o Estado e as diversas categorias de seus bens; v) pela indisponibilidade dos interesses públicos postos na esfera de cada ente público (união, Estados, Distrito Federal e Municípios); vi) pela vigência plena, na atividade estatal, do caráter funcional desta, que abole qualquer possibilidade de se falar em autonomia privada ou regime de direito privado, mormente quanto aos bens públicos. A concepção de função administrativa15, enquanto conjunto de deveres jurídicos a serem cumpridos pela Administração Pública e poderes instrumentais a serem manejados a fim de bem atender aos interesses da coletividade, é consentânea com o Estado Democrático, no qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1.º, parágrafo único, CF/88). Isto porque no Estado Democrático, todo exercício de poder só se justifica se for em nome da coletividade e para atender seus interesses, logo, toda a atividade estatal, inclusive a gestão de bens públicos, só poderá ser compreendida a partir da noção de função administrativa, a qual está vinculada aos interesses da coletividade. A história da propriedade privada moderna evolui da concepção de um feixe de poderes absolutos que o particular titulariza em oposição a todos (erga omnes) para a o surgimento de um conjunto de deveres jurídicos, que flexibilizam Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA e limitam simultaneamente este conjunto de poderes. Já a propriedade pública, concebida no Estado de Direito, e ainda mais no Brasil, onde a Constituição Federal consagra o Estado Democrático de Direito (art. 1º), já nasce como um conjunto de deveres jurídicos vinculantes para a Administração Pública, cujos poderes são meramente instrumentais e só poderão ser manejados para atender interesses da coletividade, indisponíveis e irrenunciáveis para o administrador público. 3. função social da propriedade privada. inaplicabilidade do instituto à propriedade pública. É inegável que a construção da doutrina da função social da propriedade teve como ponto de partida o direito de propriedade privada tal como traçado pelos civilistas modernos e objetivou a flexibilização de tal concepção absolutista de propriedade, tendo como pressuposto a noção de que o titular privado do direito de propriedade, é, ao mesmo tempo, o administrador e beneficiário de tal direito, o que torna uma tarefa árdua a transferência desta doutrina para o âmbito publicístico, e assim, conseqüentemente, a configuração de uma “função social da propriedade pública”. Inicialmente, o direito de propriedade tinha sido forjado como um direito absoluto em face do Estado, um direito intangível, constituindo a proteção do indivíduo em face do Estado – tal como foi previsto no Código Civil Brasileiro de 1916 –, mas, com o decorrer do tempo, essa noção é desafiada pela necessidade progressiva e impostergável de criação de normas que protejam efetivamente interesses da coletividade, em face do interesse do indivíduo, impondo uma flexibilização na sua disciplina jurídica. A Carta de 1934 (art. 113, n. 17) prescrevia que “é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo”, desaparecendo esta redação na de 1937, para ressurgir novamente na de 1946, “o uso da propriedade será condicionado ao bemestar social” (art. 147). Na esteira da Constituição de 1946, a Emenda Constitucional 10/64 refere-se à função social da propriedade, repetida na Constituição de 1967, por fim consagrada na Constituição de 1988 em diversos dispositivos (art. 5º, xxIII, art. 170, III, art. 182, § 2º, art. 184, caput, art. 185, art. 186). Para José Afonso da Silva, “a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade”16, e conclui que, “enfim, a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens”17. Não resta dúvida de que a Constituição Federal de 1988 abraçou o instituto da função social da propriedade, de modo que se pode afirmar que a função social da propriedade possui uma configuração constitucional, embora venha a ser detalhada pela legislação infraconstitucional. A partir da noção de função social ocorreu a reconfiguração do direito de propriedade na medida em que o uso deve ser exercido a fim de atender não apenas os interesses do proprietário (interesse individual), mas também os interesses coletivos18. O não exercício do direito de uso nesses termos pode levar à perda da propriedade pela desapropriação (arts. 182, § 2º, e 184 da CF/88). Consiste a função social da propriedade no dever de cumprir um destino economicamente útil, produtivo, de maneira a satisfazer às necessidades sociais preenchíveis pela espécie do bem (ou pelo menos não poderá ser utilizada de modo a contraditar esses interesses), de modo que o bem deve cumprir a exata funcionalidade que dele se espera em proveito da coletividade. Gustavo Tepedino defende que “a propriedade, todavia, na forma como foi concebida pelo Código Civil, simplesmente desapareceu do sistema constitucional brasileiro, a partir da Constituição de 1988. A substituição da idéia de aproveitamento pelo conceito de função de caráter social provoca uma linha de ruptura (linea di frattura)”19. Este entendimento parece correto, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 177 ABE, N. C. pois em contraposição ao conjunto de direitos (poderes) sobre os bens , surgem um conjunto de deveres jurídicos para os proprietários. Acolhemos o entendimento de Fabio Konder Comparato20, para quem a função social é um dever fundamental, cujo descumprimento significa violação ao direito fundamental de acesso à propriedade, reconhecido pelo sistema constitucional (arts. 183 e 191, CF/88). A função social não é mera recomendação ao legislador, trata-se de vinculação jurídica efetiva para os particulares. Trata-se de dever fundamental imposto ao particular, titular do direito de propriedade privada, de modo que pode-se dizer que, atualmente, no Brasil, o direito de propriedade privada consiste num conjunto de direitos e deveres, concomitantemente. Permanece como um direito absoluto, oponível a todos, desde que o titular cumpra o conjunto de deveres. Já não é mais ilimitado, pois o uso não pode ser irrestrito porque deve atender simultaneamente diversos interesses coletivos e difusos, tais como: preservar o meio ambiente, manter o potencial produtivo da terra, realizar uso adequado conforme o plano urbanístico da cidade, etc. Ainda é um direito exclusivo, porque o proprietário pode excluir a posse de outros sobre o bem, mas tem o dever de cumprir o conjunto de deveres, sob pena deste direito ser considerado como abuso de direito, nos termos do art. 187 do Novo Código Civil. Não é mais irrevogável ou perpétuo, pois não possui mais o direito de não usar (nãofruição) a terra, considerando que, em regra, o não-uso caracteriza descumprimento da função social, acarretando algumas sanções jurídicas. Convém mencionar que o Novo Código Civil proíbe o abuso de direito, isto é, o exercício de qualquer direito que transborde dos limites traçados no ordenamento jurídico, prevendo expressamente, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (art. 187). De fato, mantendo a coerência com esta linha de pensamento, o Novo 178 Código Civil também abraçou a concepção da função social, inclusive estendendo-a para outros aspectos da vida civil, como é o caso da função social do contrato (art. 421). Alerte-se que a Constituição Federal prevê expressamente a função social da propriedade urbana (art. 182) e a função social da propriedade agrária (art. 186), havendo dispositivos constitucionais que traçam o perfil de cada uma, embora, ambas venham a ser detalhadas no plano infraconstitucional. O art. 182, §4.º, da Constituição Federal, prevê que o imóvel urbano cumpre a função social quando atende as exigências da ordenação da cidade previstas no plano diretor. Ou seja, compete ao plano direto, que é uma lei municipal, definir a função social urbana que se traduz na indicação do uso adequado do solo urbano definido dentro do planejamento urbano da cidade. Compete ao Município exigir, do proprietário de imóvel urbano não edificado, nos termos do plano diretor, que promova o adequado aproveitamento, sob pena de vir sofrer sucessivamente as seguintes conseqüências jurídicas: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública. A regulamentação é disciplinada na Lei 10.257, de 10.07.2001 – Estatuto da Cidade (arts. 5.º a 8.º). Observa-se que, enquanto dever fundamental, a função social da propriedade, previsto no art. 5.º, xxIII, da Constituição Federal, deve ser atendida por todos os particulares e, não pelo Estado, pois as sanções jurídicas previstas para o descumprimento da função social da propriedade urbana são imputáveis apenas aos particulares, sendo inadequadas para punir os entes públicos (união, Estados, DF, Municípios) pelo descumprimento deste dever. Imagine-se que a união é titular de imóveis em certo Município. Este, verificando o descumprimento da função social por parte daquela, porque não atendem às exigências do Plano diretor, decide aplicar as sanções cabíveis, quais sejam: parcelamento ou edificação compulsórios, IPTu Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA progressivo no tempo e desapropriação (arts. 5º a 8.º da Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade). De início, o Município não poderia ordenar o parcelamento e edificação de imóveis públicos, porque isso traduziria invasão na autonomia de outro ente federativo (art. 18, CF), que pelo pacto federativo, recebeu o poder de auto-administração de seus bens. Demais disso, a operação dependeria de previsão orçamentária e liberação da verba pelo ente público federal para implementação das referidas sanções jurídicas21. No mesmo passo, a desapropriação promovida pelo Município, de imóvel público urbano da União implicaria numa invasão na autonomia de outro ente federativo, porque neste caso ocorreria a incidência da desapropriação-sanção, como conseqüência jurídica pelo descumprimento do dever de atender à função social urbana22. Não há título constitucional para que o Município promova o sacrifício de direitos de outros entes, somente tendo por fundamento o descumprimento da função social. Além de implicar ofensa à autonomia administrativa, sob o aspecto do princípio federativo, entender pela aplicação dos arts. 5.º a 8.º do Estatuto da Cidade aos imóveis públicos implica violação ao princípio da eficiência, uma vez que cabe à estrutura administrativa de cada ente público mobilizar seus recursos para fiscalizar o cumprimento dos fins coletivos que seus bens devem atender. quanto a possibilidade do Município cobrar IPTu progressivo, estaria vedada em face da imunidade constitucional (art. 150, VI, a). Também não seria aplicável o princípio da função social urbana aos imóveis dos Estados, do Distrito Federal e dos próprios Municípios. No tocante à propriedade rural, a Constituição Federal de 1988 definiu expressamente quando esta propriedade atenderá a função social rural, sendo que a Lei 8.629/93 apenas efetivou um detalhamento. A Constituição Federal prevê no art. 186 que “a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigências estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utiliza- ção adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância dos dispositivos que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. A Constituição considera que uma propriedade imobiliária agrária atende ao vetor da função social quando cumpre, simultaneamente, os requisitos da produção (uso racional e adequado), da ecologia (preservação e conservação dos recursos naturais) e social (respeito aos direitos trabalhistas e legislação de contratos agrários). Benedito Marques23 comenta que no caso de trabalho escravo e do trabalho de menores há descumprimento da função social, sendo cabível a desapropriação. O autor entende que cabe ao INCRA expedir certidão afirmando que há cumprimento da função social quanto à produtividade, cabe ao IBAMA certificar o cumprimento do aspecto ecológico24. A propriedade rural que não cumprir a função social é passível de desapropriação, nos termos da Lei 8.629/93, respeitados os dispositivos constitucionais. Segundo a Lei 8.629/93, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nessa lei, os seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 9.º). Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização e de eficiência na exploração (art. 6º). O grau de utilização da terra deverá ser igual ou superior a 80% calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e área aproveitável total do imóvel (art. 6.º, §1.º). O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% e será obtido de acordo com a seguinte sistemática (art. 6º, §2º): I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivo índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 179 ABE, N. C. Executivo, para cada Microrregião Homogênea; II – para exploração pecuária, divide-se o número total de unidades Animais do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder executivo, em cada Microrregião Homogênea; III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100, determina o grau de eficiência na exploração. Considera-se efetivamente utilizada: I – as áreas plantadas com produtos vegetais; II – as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação por zona de pecuária, fixado pelo Poder executivo; III – as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os índices de rendimentos estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada microrregião homogênea, e a legislação ambiental; IV – as áreas de exploração de floresta nativa, de acordo com o plano de exploração e nas condições estabelecidas pelo órgão competente federal; V – as áreas sob processo técnicos de formação ou recuperação de pastagens ou de culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e devidamente comprovadas, mediante documentação e Anotação de Responsabilidade Técnica (art. 6º, §3º). Ter-se-á como racional e adequado o aproveitamento do imóvel rural, quando esteja oficialmente destinado à execução de atividades de pesquisa e experimentação que objetivem o avanço tecnológico da agricultura (art. 8º). Considera-se adequada utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade (art. 9º, §2º). Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio ambiente e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas (art. 9º, §3º). A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de 180 trabalho, como as disposições que disciplinam os contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parcerias rurais (art.9º, §4º). A exploração que favorece a o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos ou tensões sociais (art. 9º, §5º). Considera-se propriedade produtiva aquela que explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente (art. 6º, caput). Não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que, por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens (passagens, erro na lei) tecnicamente conduzidas, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na exploração, exigidos para a espécie (art. 6º, §7º). Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimento regional, pelos Ministros de Estado Extraordinário de Política Fundiário e da Agricultura e do Abastecimento, ouvido o Conselho nacional de Política Agrícola (art. 11). A Constituição estabelece que, diante do descumprimento da função social da propriedade agrária, é cabível a desapropriação para fins de reforma agrária, com pagamento da indenização em títulos da dívida agrária (art. 184). Para Fábio Konder Comparato, aquele que não cumpre a função social perde as garantias, judiciais e extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes à propriedade, como o desforço privado (art. 502, CC) imediato e as ações possessórias, e também a perda da exclusividade da propriedade2525 Citamse algumas decisões judiciais que sintonizam com este entendimento: “EMENTA: Comarca de Presidente Médici Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA – Decisão Monocrática – Reintegração de posse – Função social da propriedade rural – Posse – Bem-Estar – Produtividade – Meio Ambiente – Legislação trabalhista. DECISÃO (...) A promoção do bem-estar do povo passou a ser missão primordial do Poder Público , fazendo com que a propriedade perdesse seu marcante caráter de direito subjetivo para ser analisada sob o prisma da função social. Não tendo ocorrido invasão da propriedade dos requerentes até a data do ajuizamento da ação; não tendo sido localizado os requerentes listados na inicial, tendo ficado demonstrado o desatendimento à função social da propriedade, julgo improcedente o pedido liminar, visando a expedição de reintegração de posse, determinado na forma do art. 930, do Código de Processo Civil, a citação dos requeridos para que contestem a ação. (...) Presidente Médici, 01 de julho de 1996. Cumpre frisar também que as sanções jurídicas impostas para o descumprimento do dever de cumprir a função social da propriedade (urbana e rural) são aplicáveis ao particular, o que é perfeitamente verificado pela inaplicabilidade jurídica de tais sanções contra o Poder Público. Isso porque o conjunto de deveres que caracteriza a função social, tal como traçado no Texto Constitucional, pressupõe que o proprietário é, simultaneamente o titular do direito, o administrador e o único beneficiário, ou seja, o proprietário é o titular dos direitos e deveres em relação ao imóvel. O art. 186 da Constituição, que define a função social rural e, os diversos dispositivos legais da Lei 8.629/93 pressupõe que o particular é, simultaneamente titular, administrador e beneficiário do imóvel rural e, por isso, deve realizar como atividade principal uma atividade agrária. No meio rural, é patente a inaplicabilidade das sanções jurídicas previstas para o descumprimento da função social aos entes públicos. Veja-se. Compete à união fiscalizar, através do INCRA, se os imóveis cumprem a função social (art. 184, CF e art. 22, da Lei 4.504, de 30.11.1964 – Estatuto da Terra). Caso constate que os imóveis do Distrito Federal, do Estado e do Município, não esteja cumprindo a função social rural, cumpre indagar que sanções seriam cabíveis. Em primeiro lugar, tais entes não estão obrigados a realizar prioritariamente uma atividade agrária, nos termos do art. 186 da Constituição e dos art.6.º, 7.º, 8.º e 9.º da Lei 8.629/93, pois eles têm o dever-poder de decidir a que usos afetarão seus imóveis, tendo em vista as exigências dos diversos interesses titularizados pelos mesmos no exercício das respectivas competências administrativas, tais como construir escolas, presídios, hospitais, escolas técnicas agrícolas, alienar, doar, criar reserva ambiental, etc. O dever de destinar os imóveis rurais a atividade agrária produtiva (agricultura, pecuária, agroindústria, extrativismo), atender à legislação trabalhista, ao dever de preservar o meio ambiente e aos demais elementos que consubstanciem a função social, é, pois, do particular. Acredita-se que os entes públicos se vêem obrigados a cumprir a Constituição Federal e a legislação infra-constitucional que prevê inúmeros usos de interesse público; devem simplesmente cumprir os deveres de boa gestão, que são inúmeros, conforme será adiante tratado. A caracterização da função social como um dever jurídico a ser atendido pelo ente público, esbarraria na imposição de uma responsabilização ao ente público, lembrando que a responsabilização da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (titulares do direito sobre o imóvel público) não alcança efetivamente o agente público, que, via de regra, foi quem deixou de cumprir diversos deveres em relação à gestão do patrimônio imobiliária público. Por exemplo, um determinado Município declarar desapropriado imóvel da união, porque Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 181 ABE, N. C. este não atende ao plano diretor, logo, à função social da propriedade urbana e, a União por sua vez, declarar desapropriado imóvel rural de um Município que não realizou a atividade agrária produtiva nos termos do art. 186 da Constituição, portanto, descumpriu a sua função social. Ora, se a união já é titular de inúmeros imóveis que pode destinar para fins de reforma agrária, como prevê o art. 188 da Constituição, portanto, o que fará com o imóvel desapropriado do Município? Este imóvel integrará o seu patrimônio e, será mais um imóvel público, agora federal, que deverá ser bem administrado pela união, em relação ao qual os agentes administrativos do órgão competente terão inúmeros deveres de gestão a serem cumpridos. Tendo em vista a idéia de que o imóvel público possui um titular (ente público) totalmente distinto do administrador (agente público) e do beneficiário (coletividade), deve-se em linha de princípio, identificar os deveres jurídicos existentes, as sanções jurídicas imputáveis aos administradores dos imóveis públicos, e fazer efetivamente incidir as conseqüências jurídicas decorrentes do descumprimento dos deveres de gestão. Afastada a “função social” do regime de bens públicos, não significa que o Poder Público não tenha deveres jurídicos em relação ao seu patrimônio público, no que pertine ao atendimento dos interesses coletivos normativamente postos. Se o particular deve exercer o direito de propriedade atendendo à função social sob pena de vir a ser desapropriado ou mesmo sofrer a perda das garantias possessórias ou da própria propriedade, é inconteste que existe o dever do Poder Público, ao exercer o direito de propriedade pública, de atender aos interesses da coletividade. Do mesmo modo que o direito de propriedade privada deve ser exercido pelo particular em conformidade com os interesses da coletividade, mutatis mutandi, o Poder Público deve gerir os bens públicos a fim atender os interesses públicos. Todavia, este dever decorre do próprio regime de Direito Público, inerente ao exercício da função administrativa, e não das normas que resguardam a função social. 182 Convém registrar que, em sentido contrário, se manifestam Maria Sylvia Zanella Di Pietro26 e Sílvio Luis Ferreira da Rocha27. Defendem que o fato do Poder Público ter o dever de afetar seus bens a fins de interesse da coletividade não exclui a incidência do princípio da função social da propriedade. Data venia, a função social da propriedade caracteriza-se como um conjunto de deveres jurídicos impostos apenas ao proprietário particular por força do Texto Constitucional (arts. 5.º, xxxIII, 170, III, 182 e 186). O delineamento no Texto Constitucional não permite esta ampliação para alcançar a propriedade pública, pelos motivos já mencionados acima: i) pela inexistência de um regime jurídico unívoco de propriedade pública, equivalente ao da propriedade privada, tendo em vista a diversidade de categorias de bens públicos que ensejam a adoção de regimes jurídicos diversos, decorrentes da natureza do bem e do interesse jurídico a ser protegido; ii) pela impossibilidade do uso exclusivo (exclusividade) pelo titular da propriedade pública, no caso, o Estado, porque uma parte dos bens públicos são vocacionados para o uso direto (bem de uso comum do povo) ou indireto (bem de uso especial) da coletividade; iii) pela distinção entre o titular do bem (ente público), o administrador do bem (agente públicos) e o beneficiário do bem (a coletividade), de modo que as sanções jurídicas previstas no ordenamento jurídico pelo descumprimento da função social são inaplicáveis aos entes públicos, sob pena de afronta aos traços característicos do regime jurídico de Direito Público, tais como, o princípio da federação (art. 1º CF), da autonomia de administração dos entes federados (art. 18 CF), da previsão orçamentária (art. 167 CF), da imunidade tributária (art. 150, VI, CF), da indisponibilidade do interesse público; iv) pela impossibilidade de se retirar do campo do Direito Público a disciplina dos vínculos jurídicos existentes entre o Estado e as diversas categorias de bens, inclusive quanto à forma de sancionamento de ilícitos na gestão pública dominial; v) pela indisponibilidade dos interesses postos na esfera de cada ente público (união, Estados, Distrito Federal e Municípios); vi) pela vigência plena, na atividade estatal, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA do caráter funcional desta, que abole qualquer possibilidade de se falar em autonomia privada, mormente quanto aos bens públicos; vii) pela vinculação do Poder Público ao cumprimento dos diversos deveres de gestão de seus bens decorrentes de diversas normas constitucionais e normas infra-constitucionais, que não buscam fundamento direto ou indireto na função social da propriedade. A nosso ver, está obrigado a afetar diretamente e prioritariamente a usos que atendam o interesse público primário28, portanto, interesses da coletividade e, apenas subsidiariamente poderia atender ao interesse público secundário29, por exemplo, a exploração econômica de um imóvel a fim de auferir renda. Protegidos pela nota da indisponibilidade, há, pois, uma hierarquia de usos que decorre do próprio Texto Constitucional, especialmente dos art. 1.º e art. 3.º. Todas as categorias de bens públicos, inclusive os dominicais, devem ser vinculados prioritariamente a usos que atendam ao interesse da coletividade, por incidência do princípio democrático, de que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido, logo, em seu nome e em seu favor os bens públicos devem ser geridos. Os bens dominicais são bens sem afetação porque a Administração Pública não cumpriu na atividade administrativa concreta os ditames constitucionais e não por ausência ou inexistência de usos públicos que atendam ao interesse da coletividade. quando se afirma que o Poder Público deve afetar seus bens para atender aos interesses da coletividade, este dever decorre de diversos dispositivos presentes no Texto Constitucional e não do princípio da função social da propriedade, o qual, interpretado em sentido estrito, nos exatos termos da Constituição, ou seja, traduz um dever que tem o particular de realizar uma atividade agrária, se for imóvel rural (nos termos do art. 186 da Constituição e arts. 6.º, 7.º, 8.º, 9.ºda Lei 8.629/93), e atender ao disposto no plano diretor, se for imóvel urbano (art. 182). Apenas para citar um exemplo, quando o Poder público destina um imóvel público para a instalação de um hospital, ou uma escola, ou uma creche, ou uma instituição de atendimento aos idosos, às mães solteiras, aos deficientes físicos, às crianças desamparadas, está simplesmente cumprindo o disposto nos arts. 196 (saúde é direito de todos e dever do Estado), 203 (a assistência social será prestada a quem dela necessitar), 205 (a educação, direito de todos, dever do Estado e da família) da Constituição Federal e, portanto, gerindo e afetando imóveis públicos segundo os objetivos do Texto Constitucional. Não está na dicção da Constituição que a função social da propriedade é sinônimo de atendimento de qualquer interesse público ou de qualquer objetivo constitucional, por isso, o conjunto de deveres de gestão do patrimônio público imobiliário, imputáveis ao Poder Público, não decorre do instituto da função social da propriedade e sim de diversos dispositivos constitucionais e legais, especialmente dos arts. 1.º e 3.º que protegem os valores sociais do trabalho, da dignidade da pessoa humana, da igualdade, etc. A gestão do patrimônio público imobiliário engloba diversos deveres, tais como: os deveres de utilização e conservação dos bens, o dever de destinação, o dever de delimitação de imóveis públicos (que se desdobra, no âmbito federal, no dever de discriminar terras devolutas, dever de demarcar terras de marinha, terrenos marginais e terras de interiores) e o dever de fiscalização sobre imóveis públicos (que se desdobra nos deveres zelo, guarda, conservação, regularização, recuperação de imóveis sob a ocupação de terceiros e, de arrecadação de receita patrimonial). O descumprimento dos deveres de gestão origina a responsabilidade do Estado e dos agentes públicos nos termos do ordenamento jurídico pátrio. A responsabilidade por comissão é objetiva, ou seja, basta a comprovação do ato estatal, do dano e do nexo causal. A existência de dolo ou culpa é indiferente para gerar o efeito de reparar o dano, tornando-se questão subsidiária, cujos únicos efeitos jurídicos são o direito de regresso do Estado em relação ao agente público e as punições administrativas (art. 37, §6.º, CF). quanto à responsabilidade por omissão, há divergência doutrinária quanto a sua natureza, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 183 ABE, N. C. subjetiva ou objetiva. A doutrina majoritária entende que é subjetiva, ou seja, haverá responsabilidade por comportamentos omissivos, quando houver dolo ou culpa dos agentes públicos, originando o dever de reparação pelo dano causado e, ainda diversas sanções de natureza política e administrativa previstas na Lei 8.429/92 – Lei da Improbidade Administrativa, bem como a responsabilidade administrativa do agente público, nos termos da Lei 8.112/91. Todavia, a maior parte da jurisprudência aderiu à natureza objetiva da responsabilidade por comportamentos omissivos do Estado e, inclusive, em inúmeros casos, consagra a teoria do risco administrativo para responsabilizar o Estado por omissão, independentemente de culpa ou dolo dos agentes públicos, impondo ao Estado, o dever de indenizar os prejuízos causados. No caso de culpa anônima, se não ocorreu o dano a alguém, mas tão-somente o descumprimento dos deveres de gestão, os quais violam interesses coletivos protegidos pela ordem jurídica, a responsabilidade estatal resume-se ao dever de realizar obrigação de fazer, como decorrência do ajuizamento de ação civil pública apenas para obrigar o Estado ao cumprimento de tais deveres. 4. Conclusão É inegável que a construção da doutrina da função social da propriedade teve como ponto de partida o direito de propriedade privada tal como traçado pelos civilistas modernos e objetivou a flexibilização de tal concepção absolutista de propriedade, tendo como pressuposto a noção de que o titular privado do direito de propriedade, é, ao mesmo tempo, o administrador e beneficiário de tal direito, de modo que a história da propriedade privada moderna evolui da concepção de um feixe de poderes absolutos que o particular titulariza em oposição a todos (erga omnes) para a o surgimento de um conjunto de deveres jurídicos, que flexibilizam e limitam simultaneamente este conjunto de poderes. Já a propriedade pública, no Estado de Direito, e ainda mais no Brasil, onde a Constituição Federal consagra o Estado Democrático 184 de Direito (art. 1º), nasce como um conjunto de deveres jurídicos vinculantes para a Administração Pública, cujos poderes são meramente instrumentais e só poderão ser manejados para atender interesses da coletividade, indisponíveis e irrenunciáveis para o administrador público. A aplicação do instituto da função social à propriedade pública esbarra em diversos óbices, neste ensaio abordados, revelando-se incompatível com o regime de Direito Público, de modo que a sua incidência implica num afastamento e enfraquecimento injustificados do regime jurídico público (princípio federativo, autonomia de administração dos entes federados, obediência à lei orçamentária, imunidade tributária, indisponibilidade do interesse público), o que não se coaduna com uma leitura sistemática dos ditames da Constituição Federal que regem a gestão dos bens públicos no Brasil. 5. notas O direito na história – lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 404. 3 José Reinaldo Lima Lopes esclarece que “se o domínio é um poder, pode-se, sobre a mesma coisa exercer outro poder, que não domínio: o domínio pode ser um composto de vários poderes, que se podem dividir. E de fato, assim foi durante o período medieval. O senhorio, ou o domínio, no período medieval também era entendido como um poder de direção (político) ligado à terra. O senhor detinha, junto com direitos sobre os frutos da terra, rendas ou serviços, uma jurisdição, isto é, certa competência normativa.”. Op. Cit. p.402-403. 4 Op. cit. p.405. 5José Reinaldo Lima Lopes. O direito na distória – lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 408 . 6 Darcy Bessone. Direitos Reais. São Paulo: Saraiva, 1996.p.75. 7 Arnaldo Rizzardo. Direito das Coisas. Vol I. Rio de Janeiro: Aide, 1991.p.287 8 Darcy Bessone. Op. cit. p.77. 9 Darcy Bessone. Op. cit. p. 76. 10 Bartolomé a Fiorini. Derecho Administrativo. Tomo II. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p.353. 11 “Labor esclarecedora será – después Del método expuesto – demonstrar lãs diferencias que incierran estas distintas clases de bienes que tiene el Estado. No existe una sola clase de bien estatal; hay varios e reglados por distintos regímenes.” Bartolomé A. Fiorini. Derecho Administrativo. Tomo II. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 300. 12 Derecho Administrativo. Tomo II. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 1997, p. 302. 2 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA A autora adota a noção de afetação em sentido estrito, enquanto ato concreto e individual, de natureza constitutiva, que cria uma situação nova para o bem, que é alçado à categoria de bem de uso comum ou de uso especial. Embora a Constituição de 1988 enumere nos seus arts. 20 e 26 as espécies de bens públicos da união e dos Estados, não define todos os usos a que se destinam cada uma das espécies mencionadas. Caberá à legislação ordinária definir quais os usos a que se destina dado bem público, bem como os fins que se pretenderá alcançar com essas destinações, tocando à Administração Pública emitir atos de afetação, complementares à lei, individualizando o bem, o uso a que se destina e os fins públicos a que visa atender. Veja-se um exemplo. O Decreto-lei 2.398, de 21.12.1997, prevê que um ato, no caso uma Portaria, designará o imóvel público de interesse do serviço público necessário ao desenvolvimento de projetos públicos, sociais ou econômicos de interesse nacional, à preservação ambiental e à defesa nacional. quando essa portaria for expedida, terá a natureza de um ato administrativo de afetação porque individualizará o imóvel público que será destinado a um uso público, entre os usos públicos mencionados. Os usos públicos possíveis aos quais podem ser afetados os bens públicos variam conforme a categoria jurídica a que pertencem, as suas características físicas e, ainda, a utilidade que podem gerar para a sociedade brasileira em determinado contexto histórico. 14 Op. cit. p.300-301. 15 Celso Antônio Bandeira de Mello explica que “a Administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desimcumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os utiliza, maneja na verdade ‘deveres-poderes’, no interesse alheio“. Curso de direito administrativo, p. 62. 16 Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 284-285. 17 Op. cit., p. 287. 18 Gustavo Tepedino, Contornos constitucionais da propriedade privada, Revista de Direito Comparado, p. 253. 19 Op. cit., p. 251. 20 Fábio Konder Compararato, Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, in: Juvelino Strozake (coord.), A questão Agrária e a Justiça, p. 145. 21 Diógenes Gasparini defende que os entes públicos (Estados e a união) não seriam destintários dessas imposições, mesmo que seus imóveis estejam em área incluída no plano diretor e haja lei municipal disciplinando o seu parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios, porque seria uma intervenção de um ente federado em outro, e cada ente tem competência para usar, gozar e dispor de seus bens públicos urbanos segundo o interesse público que lhe compete perseguir. Estatuto da cidade.São Paulo: NDJ, 2002. p. 28. 22 O impedimento ventilado pela autora refere-se a desapropriação-sanção por descumprimento da função social. 13 Benedito Marques. Direito Agrário Brasileiro. Goiânia: AB, 199. p. 57-58. 24 PORTARIA INCRA/P n.º 12, de 24 de janeiro de 2006: “Art. 1.º §5.º Constatada irregularidade quanto à utilização dos recursos naturais e preservação do meio ambiente e das disposições que regulam as relações de trabalho, o INCRA comunicará o fato em parecer circunstaciado ao Ministério do Trabalho e Emprego - Tem e ao Instituto Barsileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis – IBAMA.”Dr. Mário José Nilane e Silva Juiz de Direito.” (grifos nossos) 25 Citam-se algumas decisões judiciais que sintonizam com este entendimento: “EMENTA: Comarca de Presidente Médici – Decisão Monocrática – Reintegração de posse – Função social da propriedade rural – Posse – Bem-Estar – Produtividade – Meio Ambiente – Legislação trabalhista. DECISÃO (...) A promoção do bem-estar do povo passou a ser missão primordial do Poder Público, fazendo com que a propriedade perdesse seu marcante caráter de direito subjetivo para ser analisada sob o prisma da função social. Não tendo ocorrido invasão da propriedade dos requerentes até a data do ajuizamento da ação; não tendo sido localizado os requerentes listados na inicial, tendo ficado demonstrado o desatendimento à função social da propriedade, julgo improcedente o pedido liminar, visando a expedição de reintegração de posse, determinado na forma do art. 930, do Código de Processo Civil, a citação dos requeridos para que contestem a ação. (...) Presidente Médici, 01 de julho de 1996. Dr. Mário José Nilane e Silva Juiz de Direito.” (grifos nossos) “ACóRDÃO Agravo de Instrumento – Decisão Atacada: Liminar que concedeu a reintegração de posse da empresa arrendatária em detrimento dos ‘sem-terra’. Ementa: Liminar deferida em primeiro grau suspensa através de despacho nos autos do agravo, pelo Desembargador de plantão. (...) Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas em detrimento do direito puramente patrimonial de uma empresa. Propriedade: garantia de agasalho, casa e refúgio do cidadão. Inobstante ser produtiva a área, não cumpre ela sua função social, circunstância esta demonstrada pelos débitos fiscais que a empresa proprietária tem perante a união. Imóvel penhorado ao INSS. (...) (Décima Nona Câmara Cível – São Luiz Gonzaga – Agravo de Instrumento 598360402 – Agravantes: José Cenci e Aldair José Morais de Sousa – Agravados: Merlin S.A. Indústria e Comércio de óleos Vegetais – Interessado: Movimento dos Sem Terra).” (grifos nossos) 26 Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende que “Com relação aos bens de uso comum do povo e bens de uso especial, afetados, respectivamente, ao uso coletivo e ao uso da própria Administração, a função social exige que ao uso principal a que se destina o bem sejam acrescentados outros usos, 23 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 185 ABE, N. C. sejam públicos ou privados, desde que não prejudiquem a finalidade a que o bem está afetado. Com relação aos bens dominicais, a função social impõe ao poder público o dever de garantir a sua utilização por forma que atenda às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, dentro dos objetivos que a Constituição estabelece para a política de desenvolvimento urbano”. Função social da propriedade pública. Direito Público: estudos em homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 572. 27 “O fim obrigatório que informa o domínio público não acarreta sua imunização aos efeitos emanados do princípio da função social da propriedade, de modo que o princípio da função social da propriedade incide sobre o domínio público, embora haja a necessidade de harmonizar o referido princípio com outros. O princípio da função social da propriedade incide sobre os bens de uso comum mediante paralisação da pretensão reintegratória do Poder Público, em razão de outros interesses juridicamente relevantes, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana; incide também sobre os bens de uso comum mediante paralisação da pretensão reivindicatória do Poder Público com fundamento no art. 1228, §4.º, do Código Civil. O princípio da função social incide, também, sobre os bens de uso especial mediante submissão dos referidos bens aos preceitos que disciplinam a função social dos bens urbanos, especialmente ao atendimento da função social das cidades. O princípio da função social incide, outrossim, sobre os bens dominicais conformando-os à função social das cidades e do campo e viabilizando a aquisição da propriedade dos referidos bens pela usucapião urbana, rural e coletiva.” Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 159-160. 28 Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem” Curso de direito administrativo, p. 53. Esclarece, outrossim, que a doutrina italiana faz distinção entre os interesses públicos ou interesses primários, que são os interesses da coletividade, e os interesses secundários, “que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade”. Op. Cit. p. 63. 29 Os interesses secundários só serão perseguidos quando coincidirem com os interesses primários, pois a Administração não tem a autonomia e a liberdade típicas de direito privado, porque exerce função. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 57. No âmbito do exercício da gestão de bens públicos, o Poder Público deve atender aos interesses públicos primários que se encontram previstos no ordenamento jurídico brasileiro, verificandose que as leis apontam os usos públicos preferenciais para os imóveis públicos, mas deixam margem de liberdade de eleição para a Administração Pública.Op.Cit. p. 58. 186 6. Bibliografia BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17 ed. ref., amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. BESSONE, Darcy. Direitos Reais. São Paulo: Saraiva, 1996. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In: Juvelino Strozake (coord.), A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: RT, 2000. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. Direito público: estudos em homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 572. FIORINI, Bartolomé A. Derecho administrativo. Tomo II. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997. GASPARINI, Diógenes. Estatuto da cidade.São Paulo: NDJ, 2002. LIMA LOPES, José Reinaldo de. O direito na história – lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. MARquES, Benedito. Direito Agrário Brasileiro. Goiânia: AB, 1999. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Vol I. Rio de Janeiro: Aide, 1991. ROCHA, Sílvio Luis Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. Revista de Direito Comparado. V. 12, n. 2, mar. 1998. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010 A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO Artigo A rELAção intrínSECA EntrE o DirEito, LinguAgEm E ComuniCAção Rodrigo de Abreu Rodrigues1 rESumo: Este trabalho visa uma análise comparativa entre os elementos da comunicação e do direito principalmente com vistas à obtenção de justificativas acerca dos procedimentos, elementos e objetivos da atividade normativa. Palavras-chave: Linguagem Jurídica. Elaboração Normativa. Teoria da Comunicação. ABSTRACT: This study aims a comparative analysis of the elements of communication and right, especially with a view to obtaining explanations about procedures, elements and goals of the normative activity. Keywords: Legal language. Drawing up legislation. Theory of communication. 1. introdução É cediço que o direito surge como uma atividade social, ou seja, necessariamente esta ciência volta-se para os reflexos externos das atuações humanas e seus impactos para os demais elementos e seres humanos que o circunscrevem. Analisando a própria natureza intrínseca do ser humano pode-se observar que este a necessidade natural do homem em se agrupar e viver em sociedade. Segundo esta linha leciona a Professora REGINA TOLEDO DAMIÃO2: “Já é sabido e, mesmo, consabido que o ser humano sofre compulsão natural, inelutável necessidade de se agrupar em sociedade, razão por que é denominado ens sociale.” 1 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da universidade Presbiteriana Mackenzie. Exerceu monitoria de Linguagem Jurídica e Direito Civil sob orientação da Professora Titular Regina Toledo Damio Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010 187 RODRIGuES, R. A. Há uma relação intrínseca entre o Direito e a Sociedade na qual a sua atuação tem por impacto os seus resultados na sociedade como um todo. Por isso é possível observar o desinteresse do legislador em situações de autolesão ou da tentativa de suicídio como tipos penais. Por outro lado existem determinadas atitudes personalíssimas que não podem ser renegadas tendo em vista o impacto que tais atitudes gerariam no âmbito social, tais como, o consumo de substâncias interpocentes ou a renúncia de determinados direitos vinculados á personalidade. Ou seja, as ações humanas que verdadeiramente importam à ciência jurídica dizem respeito aos reflexos que estas podem gerar à sociedade ou aos demais membros que o circunscrevem. Denota-se que a existência do Direito tem por objetivo a regulamentação dos atos que geram impactos aos membros da sociedade. Com base nesta conclusão é possível observar um terceiro elemento integrante entre o Direito e a Sociedade. Para tanto temos que compreender a sociedade como entes comunicantes e o direito como a plataforma de comunicação que têm por objetivo precípuo a regulamentação das relações humanas. Segundo DOMENICO TOSINI3 as organizações sociais devem ser compreendidas sob a ótica das redes de comunicação, ou seja, sem uma plataforma de comunicação não é possível encarar os membros que convivem conjuntamente como membros de uma organização social ou de uma sociedade. A partir da teoria de NIKLAS LuHMANN extrai-se três elementos que tornam possível a compreensão dos sistemas sociais: (i) interação (diz respeito às relações entre os agentes comunicativos); (ii) organizações (consistentes em rede de decisões) e (iii) sociedades (sistema que inclui tudo o que é social). Estes três elementos trazem à tona, através da teoria dos sistemas, que a sociedade é composta de microsistemas relativamente fechados e mantêm determinados graus de comunicação e 188 impactos com os demais microsistemas sociais. Assim não há como dissociar a linguagem e a comunicação do direito, tendo em vista o caráter teleológico que esta disciplina carrega consigo. Neste sentido o jusfilósofo MIGuEL REALE4 leciona acerca deste caráter indissociável: “O Direito é, por conseguinte, um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. uma das características da realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social.” Como compreender a interação entre o sistema jurídico posto e a sua aplicação na sociedade? uma das respostas plausíveis de explicação pode ser observada na semiótica, principalmente através de um de seus precursores Ferdinand de Saussure e sua análise diacrônica do processo comunicativo. A aplicação dos conceitos de linguagem desenvolvidos por Ferdinand de Saussure expandiu conceitos nas mais diversas áreas do conhecimento, extrapolando sua configuração do campo lingüístico, visto a concepção sociológica que abarcam nesta teoria. 2. A língua e a palavra Através da teoria da linguagem de Saussure denota-se claramente a necessidade de se separar o social e o individual, fruto de uma perspectiva diacrônica, conforme mencionado acima. Sob a perspectiva de WATERMAN5, tal teoria pode ser compreendida através de dois enfoques: (i) um herdado sistema social de signos arbitrários e (ii) a atividade social de uso do sistema exposto. Ou seja, ao ser humano lhe é imediatamente imposto um conjunto de elementos, denominados de signos arbitrários, fruto de um desenvolvimento hereditário desenvolvido no âmbito de cada sistema social. Porém, através desta base estrutural lingüística, o ser humano no seu contexto social irá desenvolvê-la e, acima Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010 A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO de tudo, aplicá-la de acordo com o seu prisma individual. A fala promove a existência da linguagem como processo comunicativo, ou seja, a língua é um sistema abstrato que se manifesta através de um procedimento individual denominado “fala”. Conforme as lições de COELHO NETTO6, “a fala surge assim como um instrumento legitimador da existência da língua, que por sua vez autoriza a fala”. Segundo o Professor TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ Jr.7 a “abstração implica sempre em um aumento de complexidade no interior da própria língua, no sentido de que não podemos apenas falá-la mas, metalinguisticamente, falar sobre ela” No contexto jurídico é possível denotar que os comandos da comunicação essencialmente jurídicos encontram-se nos mais diversos âmbitos dos ordenamentos jurídicos, podendo ser observados desde a Constituição Federal até uma circular ou uma resolução conferindo aplicabilidade ou regulamentação a um instituto previsto em lei. A norma, inicialmente, é um sistema de regulamentação aparentemente hereditário e abstrato que é imposto fruto de uma experiência jurídica anterior e de suas relações intersubjetivas. É possível observar o grau de aproximação da estrutura da linguagem proposta pelo filósofo estruturalista e da estrutura normativa, cada qual nos seus respectivos âmbitos de observação e atuação. Segundo ELDEMAN e SuCHMAN8, o direito apresenta-se como um modelo de uma vida organizacional, definindo normas para a organização dos “agentes” e significados dos eventos organizacionais. Isto significa que a partir do momento em que aos agentes são imputados ordenamentos jurídicos e normas de conduta, a estes cabe a adaptação destas com a presente realidade. Justamente por ser um modelo de conduta coercitivo a ser adotado, a fala confere ao agente a capacidade de assimilar tal sistemática proposta e exteriorizá-la. 3. A teoria da argumentação e a importância do processo comunicativo A comunicação jurídica, principalmente com relação à elaboração e aplicação normativa consiste em um diálogo sinalagmático entre os agentes envolvidos nestes respectivos processos. A linha comunicativa tradicionalmente conhecida consiste em uma linha de comunicação unilateral entre o emissor e receptor, denominada tecnicamente como direção semasiológica e onomasiológica, não pode ser concebida na sua integralidade no âmbito das relações jurídicas, tendo em vista a complexidade das linhas comunicativas. Assim, a comunicação jurídica assume dois pólos de emissão e recepção simultâneos, resultando assim em um processo comunicativo na qual o receptor, ao assimilar a experiência exposta pelo emissor, posiciona-se nesta experiência como via de estabelecimento de seu particular ponto de vista9. Este papel de assimilação do posicionamento realizado pelo emissor é denominado por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ Jr. como roletaking e este se apresenta como um elemento essencial para o transporte da norma abstrata ao mundo real. Pode-se tomar como exemplo da natural manifestação deste fenômeno comunicacional as disciplinas processuais que são asseguradas pelo princípio da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV da Constituição Federal), exigindo para a aplicação normativa a realização desta comunicação emissor-receptor, que tem por base a formação da convicção e do entendimento do julgador. Em que pese a participação do juiz como um componente de um dos pólos do triângulo processual, a comunicação gira em torno do emissor-receptor, variando de posições com o objetivo de atingir o mútuo-consentimento ou a consentimento final do Magistrado que determi- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010 189 RODRIGuES, R. A. na o posicionamento final do órgão jurisdicional da lei abstrata com relação caso concreto. 4. Conclusão O direito constitui-se por ser uma ciência eminentemente comunicativa, ou seja, sem a existência de um procedimento comunicativo não é possível afirmar a manifestação da atividade jurídica. Justamente através desta relação intrínseca que a comunicação mantêm com o direito, com base na teoria da comunicação introduzida por Ferdinand de Saussure, é possível analisar determinados elementos, e.g., língua e a fala, que possuem suas devidas correspondências com o mundo jurídico, demonstrando a correspondência da norma abstrata e da existência de determinados procedimentos individuais de aplicação desta norma de cunho abstrato a uma determinada situação real. Este procedimento é baseado na teoria da argumentação nas quais os sujeitos da comunicação exercer alternativamente os papéis de emissores e receptores, tendo por objetivo final o mútuo entendimento ou o posicionamento final do poder jurisdicional. Um aprofundamento do entendimento dos procedimentos da comunicação apresenta-se atualmente como uma solução aos diversos conflitos que circunscrevem a presente ciência. notas DAMIÃO, Regina Toledo; HENRIquES, Antônio. Curso de Português Jurídico 8. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2000. p. 17 3 “According to Luhmann social systems have to be understood as (“operatively closed“, to use his expression) network og communications“ (TOSINI, D. Re-conceptualizing Law and Politics: Contributions from System Theory. Contemporary Sociology. v. 35, n. 2, p. 123-125, mar. 2006.) 4 REALE, Miguel. Lições Premilinares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 2 5 WATERMAN, John T. Ferdinand de Sussure – Forerunner of Modern Structuralism. The Modern Language Journal. v. 40, n. 6, p. 307-309, out. 1956. 2 190 COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, Informação e Comunicação. 3. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980 p. 17 7 FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. 2. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997. p. 6 8 ELDEMAN, L. B.; SuCHMAN, M. C. The Legal Environments of Organizations. Anual Review of Sociology. v. 23, p. 479-515, 1997. 9 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Op. cit. p. 48 6 Bibliografia ALENCAR, Claudiana Nogueira de. Identidade e Poder: Reflexões sobre a linguística crítica in Kanavillil Rajagopalan, Dina Maria Martins Ferreira (coord.). Políticas em Linguagem: perspectivas identitárias. São Paulo: Editora Mackenzie, 2006. BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Trad. de Izidoro Blikstein. 16. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. BOBBIO, Noberto. Il linguaggio del Diritto. Milano: Edizioni Universitarie di Lettere Economia Diritto, 1994. p. 95. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, Informação e Comunicação. 3. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980. DAMIÃO, Regina Toledo; HENRIquES, Antônio. Curso de Português Jurídico 8. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2000. p. 17. ELDEMAN, L. B.; SuCHMAN, M. C. The Legal Environments of Organizations. Anual Review of Sociology. v. 23, p. 479-515, 1997. FERRAZ JúNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. Ix. ______. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ______. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010 A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO GARCIA, Othon. Comunicação em prosa moderna. 15. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. REALE, Miguel. Lições Premilinares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. TOSINI, D. Re-conceptualizing Law and Politics: Contributions from System Theory. Contemporary Sociology. v. 35, n. 2, p. 123-125, mar. 2006. WATERMAN, John T. Ferdinand de Saussure – Forerunner of Modern Structuralism. The Modern Language Journal. v. 40, n. 6, p. 307309, out. 1956. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010 191 192 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? Artigo ExiStE EStE DirEito DE nASCEr PArA morrEr? Rodrigo Gonçalves Oliveira* rESumo: Este Trabalho tem como objetivo esclarecer algumas dúvidas sobre a possível regulamentação, por parte do Estado, da Antecipação Terapêutica do Parto no caso de fetos anencefálicos, promovendo conseqüentemente uma reflexão sobre um tema que está na fronteira dos direitos fundamentais, da moralidade, da saúde pública, e da religião. Levar-se-á em conta nessa análise os Direitos Fundamentais que serão concretizados com essa operação terapêutica, tomando como base o princípio da dignidade humana, garantindo condições mínimas de vida e desenvolvimento do ser humano. Palavras - Chave: Anencefalia; Autonomia de Vontade; Dignidade da Pessoa Humana; Laico; Liberdade. ABSTRACT: This work aims to clarify some doubts on the possible regulation, by the state, of Anticipation of Childbirth therapy in the case of anencephalic fetuses, thus promoting a reflection on a topic that is on the borderline of fundamental rights, morality, public health , and religion. Bringing will regard this analysis Fundamental Rights which will be achieved with this operation therapy, based on the principle of human dignity, ensuring minimum living conditions and human development. Keywords: Anencephaly; Autonomy of Will; Dignity of the Human Person; Lay; Freedom. 1.introdução Com a chegada da Constituição de 1988 houve um grande avanço no tocante aos direitos * Graduando da universidade Federal da Paraíba. Monitor bolsista da disciplina direito do trabalho Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 193 OLIVEIRA, R. G. fundamentais, porém 11 anos após esses direitos terem sido fundamentados, existe o problema da proteção (efetivação) destes. Norberto Bobbio [2] assevera com muita propriedade que: “o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual á a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”. A sociedade brasileira passa por uma discussão importante no que se refere à antecipação do parto nos casos em que o feto possui uma anomalia incompatível com a vida extra-uterina, pois o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em incidências de partos de fetos com anencefalia. No caso da anencefalia, o feto em cem por cento dos casos morre antes de ser retirado do ventre materno ou morre logo após o parto. Nesse caso não se fala na legalização da prática do aborto, mas numa antecipação terapêutica do parto que trará um maior conforto para mãe e seus familiares, pois ela não será obrigada a carregar um bebê que não terá a menor chance de sobrevida, diminuindo com isso o vínculo existente entre eles. Com o brilhantismo que lhe é peculiar, pondera o professor Rene Ariel Dotti [3]: “Não pode haver preceito legal, principio ético ou mandamento religioso que obrigue uma desditosa mulher a acalentar no ventre e na alma o fruto de uma dolorosa concepção definida pelo dicionário como” monstruosidade em que não há abóbada craniana e os hemisférios cerebrais ou não existem, ou se apresentam como pequenas formações aderidas à base do crânio”. Há uma luta das mulheres de concretizar os seus direitos fundamentais à saúde, à liberdade, à vida, à autonomia de vontade. Pois cabe a elas, baseadas em seus princípios éticos e religiosos, decidir se querem antecipar o parto ou se continuam com a gestação na esperança de o feto torna-se viável, fato que até hoje não aconteceu. 194 A questão da antecipação do parto de anencéfalos possui um caráter social, pois os dados do Ministério da Saúde apontam que na grande maioria dos casos o pedido feito ao poder Judiciário acontece por parte de mulheres pobres. Isso ocorre, pois as mães que possuem melhores condições financeiras não buscam uma autorização para interromper a gravidez, e sim, vão até uma clínica particular, pagam e o procedimento é realizado, ficando as pessoas menos favorecidas dependentes de autorização para que a gestação seja interrompida. Outro fator social na antecipação terapêutica do parto em conseqüência de anencefalia é que muitos casos decorrem da falta de ácido fólico, que é importante no momento do fechamento da abobada craniana, diminuindo em 40% a incidência da doença quando bem administrado noventa dias antes da mulher engravidar. Mostra-se mais uma vez que as mulheres menos favorecidas economicamente são mais acometidas por essa fatalidade, pois não possuem uma alimentação adequada. Tentando minimizar a desigualdade o governo autorizou que o ácido fólico fosse acrescentado à farinha, já que ela está presente nas mesas dos menos favorecidos financeiramente. 2. Anencefalia A anencefalia é uma má-formação fetal congênita, incompatível com a vida extra-uterina, decorrente de um defeito no momento do fechamento do tubo neural. Essa má-formação pode ser diagnosticada previamente, a partir da décima segunda semana de gestação, com o exame de ultra-sonografia, pois estes fetos possuem uma característica ímpar: a ausência dos ossos cranianos. O não fechamento da calota craniana traz como conseqüência a inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central, só restando um resquício do tronco encefálico. Marília Andrade [4] com grande sabedoria expõe o seguinte: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 “O que se observa é que, em realidade, a anencefalia não se refere à lesão de todo o encéfalo, mas somente de uma de suas partes - mesmo que a maior e mais impor- ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? tante delas - o cérebro. Disso resulta que as funções superiores do Sistema Nervoso Central, como “consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade”. Em 65% dos casos o feto morre antes de completar o período da gestação, já os remanescentes duram apenas algumas horas para deixar o convívio com sua mãe. Não há nada que possa ser feito do ponto de vista clínico quando se diagnostica que o feto esta acometido com a anencefalia, não existe tratamento ou possibilidade de reversão, a única coisa a fazer é esperar a morte precoce deste indivíduo que será inevitável e certa. Com uma vasta experiência no ramo da medicina José Aristodemo Pinotti [5] pondera sobre a anencefalia: “A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente de fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. A diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência, daí sua maior freqüência nos grupos sociais menos favorecidos, existem, entretanto muitos outros fatores causais, inclusive genéticos. O Brasil é um país com incidência alta (4º do mundo) cerca de 18 casos para cada 10 mil nascidos vivos, e um dos poucos onde a interrupção não é autorizada. “O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultrasom, existem dois diagnósticos fetais que se fazem com 100% de segurança: óbito fatal e anencefalia, esta última, a partir da 12ª semana de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese. A maioria dos anencéfalos sobrevive dias após o nascimento. quando a etiologia é brida amniótica podem sobreviver um pouco mais. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), pelas alterações do processo fetal de deglutição, levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado. A manutenção da legislação atual, que precede em muitas décadas os avanços científicos que garantem o diagnóstico de certeza da anencefalia, obriga as mulheres a levarem adiante uma gestação que contém feto com morte cerebral e certeza de impossibilidade de sobrevida ao nascerem. Para essas mães, a alegria de pensar em berço e enxoval será substituída pela angústia de preparar vestes mortuárias e sepultamento. Para alguns desses casos se tem obtido, nos últimos anos, um número crescente de ordens judiciais de interrupção da gravidez. Em 2001 Thomaz Gollop relatou 3000 casos e hoje acredita-se que essas ordens judiciais ultrapassam 5000.” A sociedade médica ainda não sabe ao certo o que causa a anencefalia. Provavelmente ela é desencadeada por uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Não se expõe que haja um só fator para que essa doença acometa o feto, essa anomalia é multifatorial e um dos fatores é a falta do ácido fólico, popularmente conhecido como vitaminas do complexo B12. Levar-se-á em consideração que nos casos em que a gestante tem o acido fólico bem administrado noventa dias antes da concepção diminui em até 40% a ocorrência dessa má-formação. Há uma confusão feita por algumas pessoas ao considerar anencefalia um tipo de deficiência. A anencefalia é uma má-formação incompatível com a vida, já a deficiência não é considerada incompatível, porque os deficientes possuem condições de vida, que são limitadas de alguma forma, todavia nada que impeça sua evolução natural. O Brasil possui, segundo o censo, 14,5 % da população com algum tipo de deficiência. Por esse motivo não podemos igualar anencefalia Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 195 OLIVEIRA, R. G. à deficiência, pois nunca foi visto um anencéfalo andando pelas ruas, ou levando a vida com algumas limitações ou restrições de participação. “[...] (a) que a questão do aborto anencefálico é muito relevante; (b) que no atual estágio há muita insegurança nessa área; (c) que são muito relevantes os direitos e interesses envolvidos (vida do feto, liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que há muitas decisões discrepantes sobre a matéria; (e) que não há outro meio jurídico mais idôneo para se discutir o tema; (f) que é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de constitucionalidade por se tratar de direito pré-constitucional, etc.” 3. Antecipação terapêutica do parto Muitas mulheres têm lutado pelo direito de interromper sua gestação, pois em seu ventre está um feto, cuja anomalia torna inviável a vida extra-uterina. A gestação de um feto que não possui concretização do desenvolvimento cerebral é um risco para as gestantes, algo que fere os direitos fundamentais à vida e à saúde. Alguns deputados, a exemplo da Deputada Luciana Genro, já apresentaram projetos para descriminalizar a prática do aborto no caso de anencefalia, contudo há setores de nossa sociedade ligados ao dogmatismo religioso que não aceitam essa prática, o que fez com que o congresso protelasse o assunto. Comentando o fato, expõe Hungria [6]: “O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto.” Tendo em vista que o nosso Código Penal foi escrito em 1940, torna-se ele um tanto conservador, não acompanhando o avanço tecnológico que ocorreu ao longo desses quase 70 anos. Faz-se necessário observar que o Código Penal somente permite o abroto em duas hipóteses: risco de vida para gestante e estupro. Não se faz menção ao caso dos fetos anencefálicos que põem a vida das gestantes em risco. Com o brilhantismo que lhe é peculiar comenta Tereza Rodrigues Vieira [7]: “a Justiça não pode se distanciar dos avanços científicos, devendo sempre acompanhar as mudanças éticas e culturais da sociedade [...]”. Será que não está na hora de observar o caso dos fetos anencéfalos? Luiz Flávio Gomes [8] com excelência, pondera: 196 Com o avanço da medicina já é possível diagnosticar, em alguns casos, por meio de exame, quando a criança vingará ou não, sendo no caso da anencefalia inexistente a chance de um diagnostico incorrer em erro. Em decorrência desse fato várias mulheres buscam concretizar o seu direito fundamental à liberdade, que neste caso será utilizado para interromper a gravidez. Fazendo complemento do que foi afirmado, expõe Francisco Muñoz [9]: “Normalmente, o direito exige comportamento mais ou menos incômodos ou difíceis, mas não impossíveis. O direito não pode, contudo, exigir comportamentos heróicos: toda norma jurídica tem um âmbito de exigência, fora do qual não se pode exigir responsabilidade alguma. Essa exigibilidade, ainda que seja dirigida por padrões objetivos, é, em última instância, um problema individual: é o autor [...], no caso concreto, que tem que se comportar de um modo ou de outro. Quando a exigência da norma coloca o indivíduo fora dos limites da exigibilidade, faltará esse elemento e, com ele, a culpabilidade.” A continuidade da gestação poderá trazer muitas conseqüências negativas para a mulher, ficando a antecipação terapêutica do parto responsável por preservá-la tanto física como psicologicamente. Comenta Cernicchiaro [10]: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 “[...]. Não se trata de sacrifício de futuro ser humano, em circunstâncias injustificadas. Ao contrário, antecipa-se à natureza, cientificamente demonstrada, que a gravidez não levará a reprodução a bom ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? termo. Com isso, evitar-se-á também o trauma da decepção de haver concebido um ser anômalo, com os dias contados de vida. [...].” Podemos citar como exemplos de conseqüências negativas da continuação da gestação de feto inviável, a maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo, necessidade de bloqueio da lactação, associação com vasculopatia periférica de estase. Podemos citar também como efeitos negativos do prosseguimento da gestação de feto sem cérebro, a sua associação com o aumento do volume do liquido amniótico e os danos psicológicos, evidenciando-se a depressão, frustração, tristeza, entre outros aspectos negativos. Sérgio Habib [11] comenta sobre o exposto acima: “[...] negar à mulher o direto de praticar o abortamento de um indivíduo que não traz consigo características humanas, a capacidade de conhecer o mundo, entende-lo, de amá-lo ou odiá-lo, não parece ser a trilha mais justa. O Estado não pode ser intervencionista e esse ponto, sob pena de, em nome de um pretenso direito à vida, negar outro direito não menos importante, o da liberdade, [...].” A mulher deve possuir o direito de decidir se sofrerá o risco de uma gravidez problemática ou se a interromperá, tentando amenizar o seu sofrimento e de seus entes queridos. É sempre válido citar o comentário de Cristine Moises Dantas [12]: “O princípio da autonomia requer que os indivíduos, capacitados de deliberarem sobre suas escolhas pessoais, devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. As pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e a sua vida. Quaisquer atos médicos devem ser autorizados pelo paciente. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), por meio do seu Comitê para Assuntos Éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher, divulga, desde 1994, em um dos seus marcos de referência ética para os cuidados ginecológicos e obstétricos: O princípio da autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua escolha e respeitando suas opiniões.” Não é responsável obrigar uma mulher a continuar com uma gestação que já é considerada, por muitos, de risco levando-se em conta apenas aspectos religiosos, confundindo-se direito e religião. 4. Direitos fundamentais: precisamos que eles sejam concretizados Com o advento da Constituição de 1988, chamada de Constituição cidadã, tida por muitos com a mais democrática, afinada com a evolução constitucional contemporânea e o direito internacional, houve um agasalhamento de muitos bens jurídicos importantes para o bem estar do homem, estando boa parte desses direitos elencados nos artigos quinto e sexto. É com uma propriedade extrema que José Afonso da Silva [13] versa sobre os direitos fundamentais: “Direitos Fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se aos princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 197 OLIVEIRA, R. G. integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir da forma mais contundente no período que sucedeu a Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo.” como macho de espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos humanos fundamentais. É com esse conteúdo que a expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no art. 17. “A expressão Direitos Fundamentais do homem, como também já deixamos delineado com base em Pérez Luño, não significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem. Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações econômicas e sociais de cada momento histórico. A Constituição, ao adotá-los na abrangência com que o fez, traduziu um desdobramento necessário da concepção de Estado acolhida no art. 1°: Estado Democrático de Direito. O fato de o direito positivo não lhes reconhecer toda a dimensão e amplitude popular em dado ordenamento jurídico (restou dar, na Constituição, conseqüências coerentes na ordem econômica) não lhes retira aquela perspectiva, porquanto, como dissemos acima, na expressão também se contêm princípios que resumem uma concepção do mundo que orienta e informa a luta popular para a conquista definitiva da efetividade desses direitos.” Mesmo com a regulamentação de muitos direitos fundamentais o homem continua sofrendo muitos abusos aos seus direitos. Isso acontece porque apesar de legislados os direitos fundamentais não estão sendo efetivados. O Estado precisa efetivar esses direitos, pois é responsável pela prestação material, e “de nada serve definir regras quando elas não são desrespeitadas” [15]. Com a propriedade que lhe é peculiar, José Joaquim Gomes Canotilho [16], professor da Faculdade de Direito de Coimbra, assevera: “O reconhecimento e garantia de direitos econômicos, sociais e culturais, a nível constitucional, é, pois, uma resposta à tese da impossibilidade de codificação de valores sociais fundamentais (Soziale Grundrechte) na Constituição e à tese do principio da democracia social como simples linha de atividade do Estado. Por outro lado, não se trata de reconhecer apenas o direito a um standard mínimo de vida ou de afirmar tão somente uma dimensão subjectiva quanto a direitos a prestações de natureza derivada (derivative Teilhaberechte), isto é, os direitos sociais que radicam em garantias já existentes (ex: direito à reforma, ao subsídio de desemprego, à previdência social). Trata-se de sublinhar que o status social do cidadão pressupõe, de forma inequívoca, o direito a prestações sociais originarias como saúde, habitação, ensino - originare Leistungsanpruchen.” Esses direitos fundamentais foram fundamentados com a intenção de estabelecer limites ao Poder Público, tornando nosso país mais democrático, devendo ter uma aplicação imediata. Ingo Wolfgang Sarlet [14] pondera com muita propriedade sobre os direitos fundamentais: “Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí seu conteúdo axiológico), 198 Levando em consideração o que foi exposto acima podemos citar o caso das mães gestantes Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? de fetos com anencefalia. Será que essas mães não possuem o direito de interromper uma gravidez que não vingará, trazendo muito sofrimento não só para ela, mas para toda família? Será que o direito a vida dessa mãe fica só na teoria? Essas mães não podem ser constrangidas a continuar a gestação, pois um de seus principais direitos fundamentais, direito à vida, estaria sendo ameaçado. Os aplicadores devem levar em conta que em alguns casos a legislação a ser consultada já está ultrapassada, como é o caso do código penal. O direito do cidadão não pode ficar a mercê de um código ultrapassado, já que o desenvolvimento tecnológico ajudaria em muitos casos, para que a legislação fosse complementada, deixando o individuo amparado judicialmente. O código penal foi elaborado em 1940, época em que não havia sido criado o exame ultra-sônico, que diagnostica as anomalias fetais, por isso não se pode fechar os olhos para as inovações tecnológicas pelo simples fato que o código não versa sobre determinado assunto. A sociedade passa por avanço grande e as leis que administram essa sociedade devem estar adaptadas ao tempo dela, caso contrário haverá uma colisão de direitos. É importante que os legisladores deixem o caráter anacrônico religioso e entendam que vivemos em um país laico, onde não se tem uma religião que nos represente, cada um é livre para fazer suas escolhas, não podendo o legislador ao analisar os projetos deixem seus princípios religiosos e morais atrapalharem o desenvolvimento de matérias para o bom andamento da sociedade. 5. Princípios constitucionais Os princípios são definidos por Laurenz [17] como um tipo de norma que possui grande importância para o ordenamento jurídico, já que tem como finalidade estabelecer fundamentos normativos para que haja uma interpretação e aplicação do direito, decorrendo deles, normas do tipo comportamental. Alguns princípios são deixados de lado quando nos referimos à operação terapêutica para retirada de feto anencefálico. Ao descobrir que está grávida a mulher já faz muitos planos para essa criança e em momento posterior, quando há a descoberta que esse feto não prosperará, há um sofrimento muito grande, que é aumentado quando não existe a possibilidade legal de retirada desse feto. Levando em consideração essa mesma linha, a ilustríssima Débora Diniz [18] discorre: “[...] o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser considerado fundamental para a ética da antecipação terapêutica. O diagnóstico da má formação fetal incompatível coma vida é uma situação de extremo sofrimento para as mulheres e os futuros pais. São situações em que todos os recursos científicos disponíveis para reverter o quadro da má formação são nulos.” Nesse momento há a violação inútil e cruel da integridade física e psicológica da gestante, em situação equiparada a tortura, atingindo de maneira muito incisiva o princípio da dignidade humana. Fazendo referencia ao principio exposto, RABENHORST [19] acrescenta: “[...] assumamos que a dignidade humana não é uma propriedade observável e que, como tal, não pode ser provada ou negada sobre bases meramente fáticas. Isto significa que ela seria apenas uma ideologia criada pela visão de mundo ocidental? Não necessariamente. Ela pode significar, também, que a idéia de que todos os homens são indistintamente dignos repousa em um conjunto de crenças morais que não podem ser plenamente justificadas. Essas crenças, escreve o filósofo canadense Charles Taylor, se agregam em torno do sentido de que a vida humana deve ser respeitada e de que as proibições que isso nos impõe contam-se entre as mais ponderáveis e sérias de nossa vida.” Outro principio afetado com a falta de legislação da antecipação do parto no caso de anencefalia é o principio da autonomia de vontade, pois a capacidade potencial de decidir sobre a continuidade ou não da gestação é dos pais. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 199 OLIVEIRA, R. G. Nessa linha, Flávia Piovesan e Daniel Sarmento formulam questionamentos contundentes: “Com fundamento nos direitos à liberdade, à autonomia e à saúde, entendemos caber à mulher e aos casais, na qualidade de plenos sujeitos de direitos, a partir de suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha quanto ao procedimento médico a ser adotado em caso de anencefalia fetal. A responsabilidade de efetuar escolhas morais sobre a interrupção ou o prosseguimento da gravidez não apenas assegura à mulher o seu direito fundamental à dignidade, mas permite a apropriada atuação dos profissionais de saúde. Impedir a antecipação terapêutica do parto, em hipótese de patologia que torna absolutamente inviável a vida extrauterina, significa submeter a mulher a um tratamento cruel, desumano ou degradante, equiparável à tortura, porque violatório de sua integridade psíquica e moral. Além disso, se a interrupção do parto for caracterizada como aborto, recairá sobre a mulher o aparato penal repressivo e punitivo, por meio das sanções que prevêem a pena de detenção de um a três anos, nos termos do artigo 124 do Código Penal. A resposta da legislação brasileira à problemática do aborto viola flagrantemente os parâmetros internacionais que demandam do Estado compreender o aborto como grave problema de saúde pública, exigindo-lhe a imediata revisão de legislação punitiva.” [20]: Os princípios constitucionais devem ser respeitados, pois tem uma importância fundamental para que haja um abrandamento das condições sociais negativas. A utilização desses princípios de maneira apropriada traz como conseqüência a maior possibilidade de respeito por parte do Estado sobre eles fazendo com que a democracia seja cada vez mais efetiva, deixando de lado as disparidades e fazendo com que os direitos fundamentais sejam não só fundamentados, mas que na prática haja uma concretização destes. 6. Laicização e argumentos falhos da igreja católica um país laico não é um país ateu, mas sim aquele país onde há um respeito ao pluralismo religioso, não influenciando as pessoas a adotarem determinada crença. Levando em consideração o Brasil como Estado laico, aponta a antropóloga Débora Diniz [21]: “[...] vivemos em um país onde a liberdade de culto fundamenta o direito inalienável à expressão moral de nossas crenças. Não apenas buscamos apenas um estado que garanta nossa pluralidade, mas também que proteja todas as mulheres em suas escolhas, quaisquer que sejam elas.” Complementado, pondera Nery e Junior “O princípio da autonomia requer que os indivíduos, capacitados de deliberarem sobre suas escolhas pessoais, devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. As pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e a sua vida. Quaisquer atos médicos devem ser autorizados pelo paciente. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), por meio do seu Comitê para Assuntos Éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher, divulga, desde 1994, em um dos seus mar- 200 cos de referência ética para os cuidados ginecológicos e obstétricos: O princípio da autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua escolha e respeitando suas opiniões.” Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, trazendo em seu texto que o Brasil é um país laico, não se encerraram as discussões seculares entre religiosidade e Estado. Celso Ribeiro Bastos [22] com muita propriedade pondera sobre esse panorama: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 “A liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito importante no seu re- ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? lacionamento com o Estado. Três modelos são possíveis: fusão, união e separação. O Brasil enquadra-se inequivocadamente neste último desde o advento da República, com a edição do Decreto119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado.” No Brasil há uma predominância de pessoas católicas. Fica evidente que a busca pela concretização de alguns direitos fundamentais não está ligada a crença alguma. As pessoas tem direito de exercer seus direitos elencados na Constituição, sem nenhum constrangimento, não dando margem para que grupos religiosos as tratem diferentemente. Ocorre que em matérias importantes, como o caso da anencefalia, há um predomínio de questionamentos infundados da igreja, fazendo com que esse tema não tenha uma abordagem aberta e sem preconceitos. Essa atitude preconceituosa deixa pessoas que precisariam antecipar o parto, por motivo de risco de vida, desamparadas, evidenciando que por conta de algumas religiões os direitos fundamentais não podem ser efetivados. Na maioria dos casos, juízes e promotores concedem o alvará para que a mãe retarde o sofrimento de uma gestação que não prosperará. Abaixo estão elencados alguns motivos pelos quais a Igreja considera que a antecipação terapêutica do parto não deve ter sua matéria aprovada. 1º Caso: Eugenia. Os grupos que são contra a antecipação do parto consideram que este tipo de procedimento é igual ao aborto eugênico. Eugenia segundo o dicionário Aurélio [23] “é o estudo das condições mais propícias à reprodução e melhora da raça humana”. Busca-se com a antecipação do parto que os direitos fundamentais da mulher sejam respeitados, que os faça valer, já no tocante a eugenia os direitos fundamentais e suas liberdades foram totalmente desrespeitados, pois fizeram parte de um período obscuro da história da humanidade. Não há a busca de selecionar indivíduos para ter-se uma raça melhor, há apenas um incessante luta para que a mãe tenha os seus direitos reprodutivos garantidos, não a obrigando a nenhuma prática, mas sim deixando-a decidir o que é melhor para si, já que essa criança não amadurecerá. 2º Caso: Ladeira escorregadia. Os que são contra a liberação da antecipação do parto acreditam que se o Supremo Tribunal Federal autorizar a operação terapêutica no caso de anencefalia abrirá precedente para autorizar futuramente a interrupção em outros casos de má-formação como lábio leporino ou ausência de dedos. Para os adeptos dessa teoria, para não abrir precedente é melhor que não se permita qualquer mudança. 3º Caso: Comparação entre Anencefalia e deficiência. Neste caso há uma equiparação entre anencefalia e deficiência. Não há motivos para que haja essa equiparação já que a anencefalia é uma má-formação incompatível com a vida extra-uterina. Não há registro de adulto vivo não possuidor da parte principal do cérebro, contudo nos deparamos diariamente com pessoas portadoras de deficiência, pois 14,5 % da população possui algum tipo de deficiência. Os casos citados acima mostram o despreparo e a falta de conhecimento de pessoas que fazem comentários de assuntos tão sérios, vindo a influenciar de forma negativa nossos legisladores e juristas. Não há como continuarmos com um legislativo que se baseia em princípios religiosos para organizar um Estado que é laico. Por tudo que foi demonstrado devemos nos utilizar do nosso direito a autonomia de vontade no momento de escolhermos nossos representantes, para que situações como essas não se repitam, fazendo com que as nossas leis sejam mais inclusivas. 7. Jurisprudência O código Penal que está em vigência no país deixa um pouco a desejar no tocante aos no- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 201 OLIVEIRA, R. G. vos avanços tecnológicos e técnicas medicinais, pois em alguns casos com a utilização desses novos atributos, muitos litígios seriam resolvidos de forma ágil, trazendo maior conforto para as partes autoras. Como conseqüência de um código desatualizado há o aparecimento de lacunas, que em muitos casos não são preenchidas de forma satisfatória para sociedade, sendo o legislativo responsável pela caducidade de muitas leis. A questão da antecipação do parto no caso de anencefalia trás consigo uma divergência muito grande, entretanto muitos procedimentos são liberados, sendo que são constatados mais de cinco mil alvarás para que a gestação seja interrompida neste caso. Devemos levar em conta que em muitos casos o judiciário dá sua resposta tardiamente. A seguir, vejamos como a jurisprudência se posiciona sobre o tema. HABEAS CORPuS - ANENCEFALIA - ABORTO - ALVARA DE AuTORIZACAO “Habeas Corpus”. Anencefalia. Alvará de autorização para intervenção cirúrgica. Presença do “fumus boni iuris” e do “periculum in mora”. Feto portador de anencefalia, observada a presença de diversas anomalias. A Comissão de Ética Medica do Instituto Fernandes Figueira, vinculado a Fundação Oswaldo Cruz, emitiu parecer favorável a interrupção da gravidez, por se tratar de concepto portador de graves más formações no sistema nervoso central, incompatíveis com a vida extra-uterina, tornando a gestação freqüentemente complicada por polidramnia, que acarreta graves conseqüências a saúde da gestante. Precedentes jurisprudenciais. A intervenção se faz necessária, justificada a realização da intervenção cirúrgica para remoção de feto anencefálico pelo estado de necessidade, reconhecendo-se o perigo de grave dano a pessoa, em face das conseqüências morais, familiares e sociais do parto. Conduta atípica por não atingir qualquer bem jurídico penalmente tutelado. Ordem concedida. PROCESSO: 2004.059.06681 (TJRJ). DES. DES. SUELY LOPES MAGALHAES. JULGADO EM 27/01/2005 202 ADPF-QO 54 / DF. ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia.( GRIFOS NOSSOS) DECISÃO: O Tribunal, por decisão unânime, deliberou que a apreciação da matéria fosse julgada em definitivo no seu mérito, abrindo-se vista dos autos ao Procurador-Geral da República. Presidência do Senhor Ministro Nelson Jobim. Plenário, 02.08.2004. Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, Relator, resolvendo a questão de ordem no sentido de assentar a adequação da ação proposta, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Carlos Britto. Em seguida, o Tribunal, acolhendo proposta do Senhor Ministro Eros Grau, passou a deliberar sobre a revogação da liminar concedida e facultou ao patrono da argüente nova oportunidade de sustentação oral. Prosseguindo no julgamento, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da liminar concedida, no que diz respeito ao sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, vencido o Senhor Ministro Cezar Peluso. E o Tribunal, também por maioria, revogou a liminar deferida, na segunda parte, em que reconhecia o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, vencidos os Senhores Ministros Relator, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Falaram, pela argüente, o Dr. Luís Roberto Barroso e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles,Procurador-Geral da República. Plenário, 20.10.2004. Decisão: Renovado o pedido de vista do Senhor Ministro Carlos Britto, justificadamente, nos termos do § 1º do artigo 1º da Resolução nº 278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência do Senhor Ministro Nelson Jobim. Plenário, 09.12.2004. Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, entendeu admissível a argüição de descumprimento de preceito fundamental e, ao mesmo tempo, determinou o retorno dos autos ao relator para examinar se é caso ou não da aplicação do artigo 6º, § 1º da Lei nº 9.882/1999, vencidos os Senhores Ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso, que não a admitiam. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Plenário, 27.04.2005. STJ - HABEAS CORPUS: HC 54317 SP 2006/0029919-3 EMENTA HABEAS CORPUS. ABORTO. INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. FETO ANENCÉFALO. PARTO. PERDA DO OBJETO. 1. Constatada a realização do parto pela chegada a termo da gravidez, perde seu objeto o presente writ que visava o deferimento de autorização para realizar o procedimento abortivo, por ser o feto anencéfalo. 2. Writ julgado prejudicado Acordão Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, julgar prejudicado o pedido. Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Felix Fischer e Gilson Dipp votaram com a Senhora Ministra Relatora. 8. Considerações finais A sociedade clama para que seus direitos individuais e coletivos elencados na Constituição, que estão acima de qualquer outra norma hierarquicamente, sejam postos em evidência, fazendo com que a democracia seja vivida na prática. Apresentou-se como exemplo dessa falta de efetivação dos direitos fundamentais a questão da anencefalia. Mulheres são obrigadas a manter uma gestação que poderá na grande maioria dos casos trazer conseqüências negativas, ficando a mercê da decisão de um juiz. Considera-se esse tipo de atitude uma tortura, pois em alguns casos quando a decisão é proferida a gestante deu à luz ao bebê e este já está enterrado e com sua certidão de óbito lavrada. Outra questão muito bem suscitada é a da tentativa de o legislativo acompanhar as mudanças que a sociedade vem passando nos últimos tempos, devendo utilizar as inovações tecnológicas que poderão ajudar no desenvolvimento do judiciário, fazendo com que os códigos não fiquem tão defasados. Não podemos ficar nos baseando em códigos que mantêm uma postura com caráter religioso do legislador, pois vivemos em um país laico, e a partir do momento que decisões forem tomadas levando em conta os princípios religiosos, não estaremos mais diante do Direito, mas sim de uma nova religião. A população menos favorecida deve ter uma assistência de qualidade, seja no tocante a saúde, seja na educação, ou seja, na sua participação no momento de utilizar o poder judiciário. O direito à vida digna, à alimentação, deve estar acima de tudo, pois segundo o principio da igualdade não se admite uma discrepância tão grande só porque um indivíduo possui poder econômico maior que o outro. 9. notas 1. Indagação feita pelo Ministro Carlos Ayres Brito no julgamento da argüição de descumprimento de preceito Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 203 OLIVEIRA, R. G. fundamental que anulou a possibilidade de haver antecipação terapêutica do parto sem a necessidade de buscar-se uma autorização judicial (alvará). 2. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1996, Pág.25. 3. DOTTI, Rene Ariel. Aborto de uma tragédia - Não há nada que obrigue mulher a ter um filho sem cérebro. Disponível em: HTTP://conjur.uol.com.br/textos/247634/2005. (Acesso em: 19/12/2008) 4.SANTOS, Marília Andrade dos. A Aquisição de Direitos pela Anencéfalo e a Morte Encefálica. Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8007/ (Acesso em: 21/01/2009) 5.PINOTTI, José Aristodemo. Anencefalia: Opinião. Disponível em: http://www.febrasgo.org.br/anencefalia2.htm. (Acesso em 03/12/2008) 6. HuNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, vol. v, Pág. 207-208 7. VEIRA, Tereza Rodrigues. Aborto por Anencefalia Fetal e o Direito Atual. Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004; 8. GOMES, Luiz Flávio. Aborto Anencefálico: exclusão da tipicidade material. Elaborado em junho de 2006 e disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=8561 (Acesso em: 18/11/2008) 9. CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito - Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, Pág. 132. 10. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Interrupção da Gravidez e o Anteprojeto de Reforma do Código Penal. Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004; 11. HABIB, Sérgio. O Aborto por Anencefalia e a Cassação da Liminar do Ministro Marco Aurélio. Ano VIII - nº. 188. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004; 12. MOISÉS DANTAS, Cristine Elaine et alli. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. São Paulo: Funpec Ed. universidade de São Paulo - Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, 2005, Pág. 20. 13. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14ª. Ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1997, p. 174. 14. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, Pág. 68. 15. ISRAEL, Jean-Jacques. Direito das Liberdades Fundamentais. Barueri: Monole, 2005, Pág. 287. 16. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1995, Pág. 544. 204 17. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 575. 18. DINIZ, Débora &. RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres, 2004, Pág. 81. 19. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, Pág. 46. 20. Junior, N. N.; Nery, R. M. A. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante.. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, Pág. 8-9. 21. Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras Livres, 2004, Pág.14. 22. BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, Pág. 184. 23. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, Pág. 235. 10. Bibliografia BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. BARROSO, Luis Roberto. Novo olhar - Ministro resolveu sofrimento de mães de fetos sem cérebros. Disponível no site: http://conjur.uol. com.br/textos/248490 (Acesso em: 19/12/2008) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1996. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1995. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Interrupção da Gravidez e o Anteprojeto de Reforma do Código Penal. Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito - Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988; DINIZ, Débora &. RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres, 2004. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER? Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. GOMES, Luiz Flávio. Aborto Anencefálico: exclusão da tipicidade material. Elaborado em junho de 2006 e disponível no site: http://jus2. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8561 (Acesso em: 18/12/2008) HABIB, Sérgio. O Aborto por Anencefalia e a Cassação da Liminar do Ministro Marco Aurélio. Ano VIII - nº. 188. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004; HuNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958. ISRAEL, Jean-jacques. Direito das Liberdades Fundamentais. Barueri: Manole, 2005. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Descomplicada. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. MOISÉS DANTAS, Cristine Elaine et alli. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Disponível em: http://www.febrasgo.org.br/ anencefalia2.htm. (Acesso em: 03/12/2008) MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas. 2002 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. RIBEIRO, Diaulas Costa. Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil. Artigo publicado no livro Aborto por anomalia fetal, de DINIZ, Débora &. RIBEIRO, Diaulas Costa. Brasília: Letras Livres, 2003. SANTOS, Marília Andrade dos. A Aquisição de Direitos pela Anencéfalo e a Morte Encefálica. Disponível no site: http://jus2.uol.com. br/doutrina/texto.asp?id=8007/. (Acesso em: 21/12/2008) SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14ª. Ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1997. VEIRA, Tereza Rodrigues. Aborto por Anencefalia Fetal e o Direito Atual. Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010 205 206 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA Artigo ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL viSão CrítiCA SoBrE A ConvEnção DA BioDivErSiDADE - SEuS oBJEtivoS, SoBErAniA EStAtAL E ACESSo Ao ConhECimEnto trADiCionAL Sandra Akemi Shimada Kishi1 rESumo: A aplicação integrada dos princípios relacionados ao acesso ao conhecimento tradicional e ao patrimônio genético com os objetivos da CDB constitui o link jurídico entre o direito indígena e das minorias com o direito da sociedade envolvente, desdobrando-os com efetividade e ligando todo o sistema jurídico de modo suficientemente elástico e eficaz, para então alcançar a compatibilidade entre o direito consuetudinário, na prática, com o direito positivo vigente. Essa aplicação integrada dos princípios e do devido procedimento do consentimento prévio informado parece ser em última ratio a meta da CBD ao compor o tríade de objetivos: conservação da biodiversidade, utilização sustentável de seus componentes e repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante acesso adequado. Palavras-chave: Acesso ao conhecimento tradicional e repartição de benefícios. Princípios. Objetivos do CDB. Aplicação integrada. Link entre o direito indígena e das minoriais com o direito da sociedade envolvente. ABStrACt: The integrated application of principles related to access to traditional knowledge and to genetic patrimony with the objectives of the CBD constitutes the legal link between indigenous and minority law and the law 1 Procuradora Regional da República; mestre em direito ambiental, professora convidada nos cursos de pós-graduação lato sensu em direito ambiental na universidade Metodista de Piracicaba. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre águas do Ministério Público Federal e coordenadora adjunta do VI Curso de Ingresso e Vitaliciamento da Escola Superior do Ministério Público da união – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Pesquisadora no grupo de pesquisa DFG/Brasil-Alemanha em parceria com a universidade de Bremen-Alemanha, sobre acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios (2007-2009). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 207 KISHI, S. A. S. of the surrounding society, clearly exposing them and holding together the overall legal system in a sufficiently flexible and effective manner, so as to achieve compatibility in practice between customary law and prevailing statutory law. The integration of the application of these principles and the due observance of prior informed consent procedures seems to be the ultimate goal of the CBD’s three objectives: conservation of biodiversity, sustainable use of its components and fair and equitable sharing of benefits derived from the use of genetic resources, through appropriate access. Keywords: Access to traditional knowledge and benefit sharing. Principles. Objectives of CBD. Integrated application. Link between indigenous and minority law and the law of the surrounding society. introdução uma leitura do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, a partir de um olhar crítico sobre os objetivos da Convenção da Diversidade Biológica e noções principiológicas em matéria de soberania estatal é o mote deste trabalho para ajudar na estruturação de esperadas e eficientes normas jurídicas de proteção dos mecanismos de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade e de repartição de benefícios. São destacadas ainda neste trabalho algumas inovações previstas em projetos de lei que levam a necessárias reflexões críticas sobre essa instigante temática. 1. objetivos da convenção da diversidade biológica 1.1. Três objetivos e suas três premissas Os objetivos da Convenção da Diversidade Biológica (CDB)2 elencados logo no seu art. 1º são “...a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios 208 derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado.”3 Tal art. 1º, assim como os seguintes dispositivos da Convenção, tratam do termo “acesso” sob dois contextos distintos de um mesmo fato jurídico. De um lado, há o acesso aos recursos genéticos e, de outro, o acesso à tecnologia, numa linha horizontal de trocas na relação jurídica do acesso. No entanto, no Brasil, de todas as mais de 75 autorizações de acesso para pesquisa e para bioprospecção concedidas desde 2003 pelo CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético4, não houve, em contrapartida, acesso à tecnologia, em nenhum dos casos. O acesso à tecnologia é um campo ainda obscuro, sobre o qual há poucas publicações elucidando sua implementação. A metodologia do acesso ou suas finalidades não se confundem com a tecnologia que será aplicada sobre o bem acessado. Mas, se na coleta de conhecimentos tradicionais com o “modus operandi” para a formulação de um remédio, em contrapartida, não for informado ou facilitado o acesso à tecnologia que será aplicada para a produção do remédio em laboratório, então, a relação jurídica já se inicia desfalcada e em desequilíbrio. O acesso à tecnologia empregada, como uma forma de repartição de benefícios, já deve ser disponibilizado desde o início da relação jurídica sinalagmática de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, em contrapartida aos conhecimentos tradicionais divulgados. Isto se pode depreender dos objetivos da Convenção da Biodiversidade. A CBD estabelece ademais que o acesso deva ser “adequado” e mediante “adequado” financiamento. Se houver financiamento, haverá prestação de contas e auditoria. São instrumentos jurídicos que fatalmente poderão incidir no acesso à sociobiodiversidade, num momento a posteriori da relação jurídica. 1.2. Objetivos, premissas e correlações Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL O art. 1º da CDB prevê ainda que mediante tais acessos buscam-se os seguintes objetivos: a) conservação da diversidade biológica; b) utilização sustentável de seus componentes; c) repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. Resulta deste enunciado do art. 1º que o acesso ao patrimônio genético e em contrapartida o acesso à tecnologia só se justificam se tiverem como objetivos a conservação da diversidade biológica, utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. Do modo como está disposto no artigo 1º da CDB, verifica-se que a transferência de tecnologias antecede a repartição de benefícios. Duas correlatas obrigações jurídicas podem ser extraídas desse art. 1º da CBD: a) o acesso adequado com utilização sustentável de recursos genéticos, e b) a transferência apropriada de tecnologias com direitos de propriedade intelectual. Extrai-se ainda do art. 1º da CBD que apenas um “financiamento adequado”, voltado ao primado da sustentabilidade, da preservação da diversidade biológica e para as políticas da biodiversidade, pode apoiar o acesso ao patrimônio genético e a transferência de tecnologias. Estes objetivos da sustentabilidade, da preservação da diversidade biológica e da repartição justa e eqüitativa da CDB decorrem da gênese histórica desse Tratado global que deveria expressar “a necessidade da partilha de custos e benefícios entre países desenvolvidos e em desenvolvimento” e também “procurar formas de apoiar as comunidades locais, em políticas de conservação”.5 A CDB acabou assumindo contornos político-econômicos, porque reconhece o componente econômico, além dos puramente éticos, culturais e ambientais, dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais durante todo o processo de acesso, até a propriedade intelectual, numa valoração conjunta lógica-temporal dessas referências – ambientais, econômicas e culturais - no patrimônio genético e no conhecimento tradicional a ele associado. 1.3 Acesso “adequado” e o acesso “eqüitativo” O termo “acesso adequado aos recursos genéticos” no art. 1º CDB remete ao acesso eqüitativo aos recursos naturais, que no Brasil tem força de princípio geral do direito ambiental6. Paulo Affonso Leme Machado, ao tratar do princípio do acesso eqüitativo aos recursos naturais, observa que é preciso “verificar as necessidades de uso dos recursos ambientais. Não basta a vontade de usar esses bens ou a possibilidade tecnológica de explora-los. É preciso estabelecer a razoabilidade dessa utilização, devendo-se quando a utilização não seja razoável ou necessária, negar o uso, mesmo que os bens não sejam atualmente escassos. (...) A eqüidade dará oportunidades iguais diante de casos iguais ou semelhantes”7 2. Soberania estatal 2.1. Direitos soberanos e o bem tutelado O preâmbulo (§ 4º), o art. 3º e o art. 15, I da Convenção da Diversidade Biológica fundamentam a soberania dos Estados para estabelecer sua política de gestão do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado. A CDB foi ampla no tratamento do bem jurídico tutelado pelos direitos soberanos dos Estados “recursos biológicos”, os quais consoante o art. 2º da CBD: “compreende recursos genéticos, organismos ou partes destes, populações, ou qualquer outro componente biótico de ecossistemas, de real ou potencial utilidade ou valor para a humanidade”. Mas no acesso, conforme previsão do art. 15, da CBD, o bem jurídico restringe-se aos recursos genéticos. É uma distinção relevante. Significa dizer que em matéria de acesso, “os recursos genéticos devem ser compreendidos como recursos biológicos necessários ou utilizados por seu material genético e não por outras funções que os mesmos possuam. A extração de madeiras ou a caça, por exemplo, não estão incluídos no mandamento do art. 15.”8 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 209 KISHI, S. A. S. 2.2. Soberania e propriedade O expresso reconhecimento da soberania nacional sobre os recursos biológicos, pertencentes ao território de um dado país, não compreende o conceito de propriedade. Os países não possuem a titularidade dos recursos naturais, mas possuem competência constitucional9 para legislar e autonomia10 para fiscalizar o controle e o uso desses recursos . É importante ressaltar que a soberania dos Estados-nações para autorizar o acesso aos recursos genéticos do seu território não implica em propriedade sobre esses recursos genéticos, mas em gestão desses bens. A relação não é de domínio, mas sim, de gerenciamento. Como ato internacional, a CDB, ao tratar de soberania reporta-se em verdade, à autonomia do país para dispor sobre seus recursos genéticos e permite a apropriação estatal dos recursos genéticos, dependendo do que regular o Estado parte na implementação da CDB em nível nacional. 2.3. Soberania e responsabilidade por danos transfronteiriços Observa-se que, à luz do art. 3º da CBD11, há uma responsabilidade imposta aos Estados sobre danos transfronteiriços, que devem ser evitados, sejam decorrentes de atividades sob a sua jurisdição ou mesmo sob seu controle12. 2.4. Soberania e políticas públicas dos estados-partes Embora sem força vinculante, é importante destacar o princípio nº 2 da Declaração do Rio de Janeiro/92, como ato declaratório de relevância jurídica: “Conforme a Carta das Nações unidas e aos princípios de direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos em conformidade às suas próprias políticas em matéria de ambiente e desenvolvimento”. A Convenção da Diversidade Biológica13, que reúne normas com força cogente, é o primeiro tratado internacional a incorporar o princípio 21 da Declaração de Estocolmo, de 1972, que 210 versa sobre o direito soberano dos Estados de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, na parte operacional de seu texto (artigo 3º), não se restringindo em simplesmente expressá-lo em seu preâmbulo14. Este direito soberano de exploração dos próprios recursos à luz de sua política de gestão orientar-se-á por princípios cujo objetivo geral será a promoção de forma integrada da conservação da biodiversidade e da utilização sustentável de seus componentes, com a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, de seus componentes e dos conhecimentos tradicionais associados a esses recursos15. Neste último caso, mediante o consentimento prévio fundamentado e com a autorização do Estado provedor dos recursos.16 A notável relevância da variabilidade biológica e a necessidade de sua preservação dependem de uma política de meio ambiente, voltada ao desenvolvimento sustentável. Mas, não basta a implementação de tal política em nível interno por determinados países (art. 3º, CBD) , mesmo porque, em escala planetária, há a invocação a uma política global de preservação da diversidade biológica (par. 3º, preâmbulo da CBD) e de utilização sustentável dos recursos biológicos (par. 5º, preâmbulo da CBD). É de suma relevância, destarte, que o Poder Público efetivamente implemente a preservação da integridade dos recursos biológicos e a proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, através de políticas públicas de gestão de seu uso eqüitativo. No sistema brasileiro, isto vem prescrito na Constituição Federal de 1988 (artigo 225, § 1º, I e II), no art. 1º da Convenção da Diversidade Biológica, que tem força normativa cogente, porque incorporada ao sistema jurídico interno através de sua ratificação pelo Congresso Nacional17 e ainda no art. 1º do Decreto 6040/2007. 2.5. Soberania e cooperação internacional Da mesma forma, a cooperação internacional em matéria de acesso à sociobiodiversidade não deve tender a abolir as autonomias de outros níveis de governo. Isto porque as nações estão Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL jungidas ao dever universal de desenvolvimento sustentável, que corresponde a um direito fundamental da humanidade; Cabe a elas bem cooperar de forma a reconhecer as peculiariedades locais, regionais e nacionais, propiciando sinergias e integração dessas ações nacionais com convenções, tratados e acordos internacionais. É da gênese da Convenção da Biodiversidade “a idéia da responsabilidade compartilhada pela manutenção da biodiversidade do planeta”, como enfatizado por Aurélio Veiga Rios18. Da leitura do preâmbulo, bem assim dos artigos 5, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da CBD depreendem-se as seguintes conclusões: Os Estados, em ações de cooperação internacional em matéria de biodiversidade, estão vinculados aos princípios da sadia qualidade de vida e do desenvolvimento sustentado, do acesso eqüitativo aos recursos naturais, da precaução, da informação e da participação e da reparação integral. Os objetivos da preservação e da utilização sustentável da biodiversidade são uma preocupação comum à humanidade (par. 3º do preâmbulo da CBD), com responsabilidades diferenciadas, incumbindo aos países desenvolvidos o aporte de recursos financeiros novos e adicionais e a facilitação do acesso às tecnologias pertinentes para atender às necessidades dos países em desenvolvimento. O compromisso de cooperação científica e de apoio financeiro (artigos 18 e 20) é uma compensação pelo acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado aos recursos genéticos. Essa compensação deve repousar em criteriosas bases jurídicas, de maneira a permitir a ruptura do processo crescente de desigualdade social e tecnológica entre o bloco dos países desenvolvidos e o dos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, sob pena de se tornar um perverso instrumento de reafirmação dessas diferenças. A cooperação internacional e os direitos soberanos são conciliáveis, de modo que uma não deve anular ou enfraquecer a outra. 2.6. Soberania e patrimônio comum da humanidade versus preocupação comum da humanidade Em matéria de preservação da diversidade biológica, fala-se num princípio da soberania sobre o patrimônio genético, à luz das regras e princípios norteadores da Convenção da Biodiversidade. A Convenção da Biodiversidade não considerou os recursos genéticos “patrimônio comum da humanidade”, termo utilizado na Declaração de Estocolmo em relação ao bem ambiental e a Convenção das Nações unidas sobre o Direito do Mar, de 198219, relativamente aos fundos marinhos. O que é comum da humanidade para a Convenção da Biodiversidade (conforme seu preâmbulo e art. 5º) e para a Convenção-quadro da Mudança do Clima (art. 3º) é a preocupação pública com a conservação da diversidade biológica. Portanto, a leitura adequada de patrimônio comum da humanidade é preocupação comum da humanidade. Com efeito, como observa Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, embora a Declaração de Estocolmo/72, no princípio 18, prescreva meio ambiente como patrimônio comum da humanidade, em verdade, principalmente, com relação aos recursos genéticos, o que deve existir é um “pensar coletivo, em prol da realização de ideais comuns da humanidade”.20 Desde 1972, já constava tal princípio da soberania dos Estados para estabelecer sua política ambiental e de desenvolvimento com cooperação internacional, no art. 21 da Declaração de Estocolmo, consoante segue: “ de acordo com a Carta das Nações unidas e com os princípios de direito internacional os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos de acordo com sua política de meio ambiente”21. Insta anotar que a Convenção da Biodiversidade relacionou o conceito de soberania nacional sobre os recursos biológicos com o conceito de preocupação comum da humanidade (preâmbulo da CBD) e não utilizou o termo “patrimônio comum da humanidade”. Tratase de uma expressão inovadora que vem em substituição ao conceito de patrimônio comum da humanidade, previsto na Declaração de Estocolmo/72. Ao substituir o termo patrimônio comum, res communes, pelo de “preocupação comum”, a CBD derrubou a concepção de que os recursos naturais pertenceriam à humanida- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 211 KISHI, S. A. S. de, autorizando-se um livre acesso sem levar em conta as particularidades distintas de cada Estado nacional. O conceito de patrimônio comum revela-se inadequado diante das diferenças do atual sistema global, das distintas situações de cada Estado nacional e das distintas capacidades científicotecnológicas e econômicas das corporações transnacionais.22 Pode-se afirmar que a expressão patrimônio comum da humanidade já a partir de 1982 adquiria significado de necessária preocupação global com a biodiversidade. Com efeito, em 1982, a Convenção Internacional sobre o Direito do Mar reconheceu em seu artigo 136 que o leito do mar, os fundos marinhos e seu subsolo, além dos limites da jurisdição nacional constituem patrimônio da humanidade. Tal concepção, no entanto, está inserida numa perspectiva claramente solidária, pois devem ser considerados, de modo particular, “os interesses e as necessidades especiais dos países em desenvolvimento, quer costeiros quer sem litoral, como declarado no preâmbulo da Convenção23. 2.7. Direitos soberanos e limitações Considerando o item 1, do artigo 15 da Convenção da Biodiversidade, que prescreve: “Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional”. Pode-se concluir, inicialmente, que em matéria de preservação dos recursos naturais e seus ecossistemas, nenhum país tem a soberania absoluta para usá-los para causar poluição, à luz também do artigo 3º da CBD. A idéia de soberania do país em não utilizar recursos biológicos para degradar ou poluir nem autorizar que outro país assim o faça, também está refletida no par. 2 do art. 15 da CBD, que diz que “cada parte deve procurar criar condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável por outras partes contratantes e não impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção.”24 Como anota Francisco Eugênio M. Arcan212 jo, o direito internacional ambiental não fica só no reconhecimento da soberania dos Estados na gestão de seus bens ambientais, exige mais, pois invoca a regulação e implementação em nível nacional das normas do CBD, numa obrigatoriedade da intervenção pelo poder público25. 2.8. Obrigatoriedade da intervenção pelo poder público Essa obrigatoriedade da intervenção do Estado, decorrente dos direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos como prevista na CBD, desde 1972, já estava na Declaração de Estocolmo, verbis: “Deve ser confiada às instituições nacionais competentes a tarefa de planificar, administrar e controlar a utilização dos recursos ambientais dos Estados, com o fim de melhorar a qualidade do meio ambiente.” (artigo 17) Conforme encerrado no artigo 225, caput e § 1º, II, da Constituição Federal de 1988, o Poder Público tem o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País, verbis: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” § 1º - “Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” Esses comandos diretivos conformam constitucionalmente o Estado de Direito Ambiental e consagram o paradigma da sustentabilidade como meta no sistema brasileiro. Segundo José Manuel Pureza, o “eixo ordenador do Estado ambiental é antes o primado da conservação do patrimônio natural”, porquanto, invocando a lição de Bellver Capella, trata-se afinal de “forma de Estado que se propõe aplicar Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável orientado para a procura da igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural”.26 A despeito desse dever universal de desenvolvimento sustentado, assevera Fábio Konder Comparato que o cumprimento desse dever “não pode ser deixado por conta do livre funcionamento dos mercados. É o Estado que deve atuar, precipuamente, como o administrador responsável dos interesses das futuras gerações”.27 Este direito negativo imposto ao Estado-gestor, dirigido à proteção ambiental, corresponde a um dever de não agir de modo a pôr em risco a diversidade e a integridade do patrimônio genético. O peso dos interesses públicos envolvidos na gestão do patrimônio genético impede o Estado de querer reservar para si o poder de decisão política relativamente àqueles interesses, impedindo o concurso de grupos, das associações civis ou das organizações não-governamentais28, seja num regime de colaboração como canais de comunicação, seja até como agentes provocadores da defesa desses interesses coletivos lato sensu. No Brasil, como tais atores são legitimados a defesa desses interesses coletivos em juízo, certamente podem atuar extra-judicialmente na defesa daqueles direitos29. 3. Acesso ao conhecimento tradicional e repartição de benefícios (art. 8,”j”, cdb) O art. 8º, “j” trata da conservação in situ e diz que em conformidade com a legislação nacional é necessário respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas, e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas. Vê-se que a CDB reconhece que o conhecimento, inovações e práticas dessas comunidades são relevantes para o manejo sustentável da biodiversidade. A primeira parte do artigo 8º, “j” ressalta o valor intrínseco da diversidade biológica em suas dimensões social e cultural, merecedor de ser mantido e preservado mediante políticas públicas adequadas. Na legislação brasileira (art. 1º, I do Decreto 6040/2007), a preservação do conhecimento, das inovações e das práticas das comunidades tradicionais dá-se mediante ações voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Segundo o art. 1º, xIV do Dec. 6040/2007, a preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória cultural e a identidade racial e étnica são um dos princípios da política de desenvolvimento dos povos tradicionais. Pode-se concluir que a CDB faz um link entre desenvolvimento sustentável, valor comercial30 e acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional diante da expressão “incentivar sua mais ampla aplicação”. Assim, a CDB sustenta-se em uma tríade em que cada vértice da base está representada pela “utilização sustentável (art. 1º) e o valor econômico (art. 8º, “j”), a “conservação da diversidade biológica” (art. 1º) e o valor cultural (art. 8º, “j”) e “acesso adequado” (art. 1º) e repartição de benefícios, ligados por cipoais ou pontes em que transitam em direções opostas e por vezes convergentes mas com certa flexibilidade, o sistema positivo de proteção jurídica da sociedade envolvente e o direito das minorias das comunidades tradicionais envolvidas no procedimento de acesso. O termo “aprovação” no art. 8º, “j” da Convenção da Diversidade Biológica, base estrutural do consentimento prévio fundamentado pelas comunidades tradicionais, é repetido expressamente no § 5, do artigo 15, da CBD. Da expressão “participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas” extrai-se que a representatividade das comuni- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 213 KISHI, S. A. S. dades tradicionais realiza-se, por elas próprias ou por suas organizações, no exercício do direito fundamental à autodeterminação. No Brasil, a CF/88 (art. 232) atribui ao povo indígena um sistema próprio de representação, munus que não deve ser exercido por órgão do poder público, especialmente do Poder Executivo. Portanto, os povos indígenas detêm legitimidade para figurarem como partes no consentimento prévio informado e no contrato de utilização e repartição de benefícios, respeitando-se seus próprios métodos tradicionais de escolha de seus representantes. Para a efetividade dessa participação, é preciso que as trocas de informações constantes e as tratativas para o contrato de acesso e utilização dêem-se na língua ou dialeto dos detentores, com assessoria jurídica e apoio de profissionais das multidisciplinas de interface. O laudo antropológico independente é um dos instrumentos de política de acesso que pode abrigar informações técnicas sobre a cultura e o sistema de organização sócio-político da comunidade tradicional e sobre o grau da dinâmica de troca de informações e de esclarecimento por parte dos provedores sobre as finalidades do acesso. Tudo isso deve ser precedido da prévia revelação da metodologia de pesquisa; das conseqüências previsíveis, da completa identificação, com todos os dados, da pessoa física ou jurídica interessada no acesso. 4. Considerações sobre o acesso à luz do artigo 15 da cdb 4.1. Condições para o acesso. O 2º § desse dispositivo da Convenção prescreve que cada Estado deve procurar “criar condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável por outros Estados e não impor restrições contrárias aos objetivos” da CBD. A expressão “deve procurar criar condições para permitir” e que a recomendação “a não impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção” leva a duas conclusões: a de que “o acesso a recursos genéticos não constitui um dever do Estado que os possui nem um direito de outras partes contratantes ou particulares que pretendam aceder”31 e a de que 214 a CDB “limita a liberdade de um país de fechar a porta de seu invernadouro”32. 4.2. Irretroatividade da lei O § 3º do art. 15 da CDB estabelece que os recursos genéticos providos por um Estado “são apenas aqueles providos por Partes Contratantes que sejam países de origem desses recursos ou por Partes que os tenham adquirido em conformidade com esta Convenção”, invoca-se o princípio da irretroatividade da lei. Ou seja, não há a obrigação de repartição dos benefícios das aquisições e utilizações realizadas antes da CDB. 4.3. Natureza jurídica do acesso O § 4º, art. 15 da CDB valoriza o aspecto contratual do acesso, mediante mútuo consentimento e consentimento prévio informado após a concessão para o acesso pelo órgão competente. Assim, concebe-se que tanto o consentimento prévio informado quanto o contrato de utilização e repartição de benefícios detêm natureza de transação. Não há um modelo estanque ou padrão para este contrato, diante das distintas circunstâncias de cada hipótese de acesso. 4.4.Consentimento prévio informado. O § 5º do art. 15 vem na mesma linha de valoração da vontade legítima da parte provedora, tomada previamente ao contrato de acesso, através do consentimento prévio informado, “a menos que de outra forma determinado por essa parte”. O consentimento prévio informado é o instrumento jurídico garantidor da observância dos demais princípios relacionados no artigo 15, da CDB, imprimindo legitimidade ao acesso e segurança jurídica ao solicitante. Além disso, a gama de informações encerrada nesse procedimento de consentimento prévio informado ajudará na indicação dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional acessados e de sua repartição, de forma justa e eqüitativa. Com efeito, o consentimento prévio informado está longe de se resumir a um mero ato formal de anuência prévia. Trata-se de um procedimento formado Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL por trocas de informações e esclarecimentos em sede de reuniões, palestras e audiências públicas, que culmina na anuência ou na decisão de negar o acesso. Autores ressaltam que “não é exagero sustentar que o consentimento prévio fundamentado é a questão chave do art. 15”33. Esse fundamental caráter da essencialidade do consentimento prévio informado impede qualquer interpretação ampliativa quanto à expressão “a menos que de outra forma determinado” pela parte provedora, sob pena de ofensa aos demais princípios prescritos na CDB. Neste diapasão, Márcia Rodrigues Bertoldi observa que esta excepcionalidade expressa no art. 15, § 5º não significa que o consentimento prévio informado é apenas uma sugestão, pois constitui uma condição ao acesso.34 Demais disso, se não fosse uma condição essencial, mas uma opção apenas, não se utilizaria o verbo “deve”, mas sim “pode”, no § 5º do art. 15, da CDB. A hermenêutica jurídica recomenda que referida expressão poderia no máximo significar que a parte provedora tem autonomia para regular determinados casos em que não se aplicaria o consentimento prévio informado, justificadamente e num regime de exceção e desde que a situação seja excepcionada mediante lei. Com efeito, sobre essa expressão, Glowka, Burhenne-Guilmin e Synge ilustram hipóteses passíveis de não aplicação do consentimento prévio informado: “Por exemplo, o “PIC”35 poderia aplicar-se a todos os recursos genéticos dentro de sua jurisdição ou somente a categorias particulares”36. 4.5. Facilitação à repartição de benefícios Os §§ 6º e 7º, do art. 15 tratam do retorno dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. A obrigação do usuário de recursos genéticos, como prevista no § 7º começa no procedimento do PIC, ocasião em que as condições a serem mutuamente acordadas num contrato de acesso são informadas e discutidas. Em contrapartida à facilitação ao acesso pelos provedores vem a facilitação à repartição justa e eqüitativa dos benefícios e dos resultados37 derivados das biotecnologias baseadas em recursos genéticos ou no conhecimento tradicional a eles associa- dos, aliada à obrigação de facilitar o acesso e a transferência de tecnologias38 e a obrigação de realizar e promover investigações científicas com base nos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais acessados39, assegurada a participação nas atividades de investigação sobre biotecnologias40, mediante a efetiva adoção de medidas administrativas e legislativas. Algumas medidas relevantes para a efetivação da obrigação de facilitação do acesso e transferência da tecnologia já foram implementadas na legislação brasileira. Por exemplo, a demonstração de provas do consentimento prévio informado na permissão de importação do recurso genético importados; os registros dos recursos genéticos importados, indicando a origem e demais informações; o formal requerimento de distribuição de resultados por associação de países provedores em atividades de pesquisa e desenvolvimento, dentre outras medidas41. 4.6. Os vários projetos de lei de acesso no Brasil No Brasil, há 5 projetos e anteprojetos de lei de acesso, sendo que a última, de dezembro de 2007 que não exclui as demais, prevê a figura do conhecimento tradicional disseminado42 , dispensando, neste caso43, a licença do CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (art. 32) assim como para acessos para pesquisas. Mas, ainda permanece a necessidade de licença para a remessa para o exterior de material biológico com a finalidade de pesquisa científica ou tecnológica, gerando dúvidas sobre uma suposta facilitação ao acesso para a pesquisa44. Atualmente, já há previsão legal de uma licença permanente a determinados pesquisadores45 para a coleta e transporte de materiais biológicos46 com finalidade científica ou didática no território brasileiro47. A licença permanente de acesso para pesquisador não é válida para recebimento ou envio de material biológico ao exterior48. 4.6.1. Conhecimento tradicional disseminado: Segundo o mais recente anteprojeto de lei de dezembro de 2007 49 (art. 7º, xIx) é Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 215 KISHI, S. A. S. aquele conhecimento tradicional difundido na sociedade brasileira, de uso livre de todos, não reconhecido como sendo associado diretamente à cultura de comunidades indígenas, quilombolas ou tradicionais identificadas. A dificuldade está em identificar o alcance do significado de não associado “diretamente” à cultura de comunidades tradicionais “identificadas”. Diante dessa redação, não há como se afastar o procedimento de formalização do consentimento prévio informado no acesso ao conhecimento tradicional disseminado. Isto porque o procedimento do consentimento prévio informado com trocas de informações, reuniões, palestras e elaboração de laudo antropológico proporcionaria chegar-se à identificação dos detentores do conhecimento tradicional. A maior dificuldade reside em se esclarecer o que significa como distinguir conhecimento tradicional “diretamente” ou “indiretamente” associado à cultura de comunidades tradicionais. Se não for diretamente relacionado seria ainda assim um conhecimento tradicional? Estar-se-ia criando uma nova modalidade de conhecimento tradicional associado à cultura e não ao material biológico? Neste caso, o folclore estaria incluído como conhecimento tradicional disseminado? E se o conhecimento tradicional disseminado não for difundido em toda a sociedade brasileira, ciente de que o Brasil é um país de grande extensão territorial e multicultural? Conclusão No acesso aos conhecimentos tradicionais e ao patrimônio genético, diversas são as questões ainda desafiantes e em aberto. O texto buscou evidenciar os aspectos principiológicos encontrados na Convenção da Diversidade Biológica, que merecem sempre ser aplicados de forma integrada na matéria. Talvez, melhor que vivenciar uma hipertrofia legislativa, seria buscar a práxis, sempre sustentada em princípios atinentes ao acesso ao conhecimento tradicional e à repartição de benefícios e que jamais desconsidere os objetivos da Convenção da Diversidade Biológica, já incorporados no nosso ordenamento jurídico. Isso certamente contribuiria para um 216 eficiente sistema jurídico de proteção do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional no Brasil. notas A Convenção da Diversidade Biológica foi incorporada no nosso ordenamento jurídico, visto que ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto legislativo 2, de 3.2.2004 e promulgada pelo Decreto n. 2519, de 16.3.1998 (DOU de 17/3/98). 3 In Convenção da Biodiversidade, Entendendo o Meio Ambiente, Secretaria de Estado do Meio Ambiente de São Paulo, São Paulo: SMA, 1997, p. 15-16. 4 http://www.mma.gov.br/cgen 5 BuRHENNE apud ALENCAR, Gisela S. de, Biopolítica, biodiplomacia e a Convenção sobre Diversidade Biológica/1992: Evolução e Desafios para Implementação in BENJAMIN, Antonio Herman e MILARÉ, Edis (coord), Revista de Direito Ambiental, nº 3, São Paulo, Editora RT, jul-set, 1996, p. 91. 6 MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito Ambiental Brasileiro, 16ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2008, p. 59. 7 Op.cit., p. 59 e 60. 8 COSTA E SILVA, Eugênio da, “Ciência, Direitos Intelectuais e Biodiversidade”, in Revista da ABPI, Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, nº 21, São Paulo, mar/abr 1996, p. 3. 9 Art. 24, VI da Constituição da República Federativa do Brasil: “Compete à união, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: ... VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”. 10 Art. 23 , VI da Constituição da República Federativa do Brasil: “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”. 11 responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional” 12 O art. 13 da Declaração do Rio de Janeiro expressa nesse mesmo sentido a responsabilidade dos Estados por danos transfronteiriços 13 Convenção foi ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto legislativo 2, de 3.2.2004 e promulgada pelo Decreto n. 2519, de 16.3.1998 (DOu de 17/3/98) 14 SANDS, Philippe, Principles of international environmental law, frameworks, standarts and implementation, vol. I, Manchester, uK: Manchester university Press, 1995, p. 382. 15 No Brasil, há previsão legal neste sentido (Decreto 6040, de 7/2/2007, art. 1º). 16 PEA 2186-16 provides about the institution of prior consent by the providers and authorization and approval of the agreement by the GRMC. (art. 16, § 9 c.c. art. 8, § 1 and art. 9, II and art. 11, IV, “b”, and V, all included in PEA 2186-16/81). 2 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL Assinada no Rio de Janeiro, na Conferência das Nações unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 05.06.1992, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 2, de 03.02.1994 e promulgada pelo Decreto 2.519, de 16.03.98 (DOu de 17.03.98). 18 RIOS, Aurélio Veiga Rios, O Direito da Biodiversidade, in Seminário Internacional sobre Biodiversidade e Transgênicos, Brasília: Senado Federal, 1999, p. 112. Anais. 19 No Preâmbulo da Convenção sobre o Direito do Mar de 1982, afirma-se que os “fundos marinhos e seu subsolo além dos limites da jurisdição nacional (“a Zona”) e os recursos da Zona são patrimônio comum da humanidade”. 20 Castro e Costa Neto, Nicolau Dino, Proteção Jurídica do Meio Ambiente - Florestas, Del Rey Editora , Belo Horizonte/MG: 2003, p. 138. 21 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e, Direito Ambiental Internacional, Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial, Rio de Janeiro: Thex Editora, 2002, p. 325. 22 ALENCAR, Gisela S. de, Biopolítica, biodiplomacia e a Convenção sobre Diversidade Biológica/1992: Evolução e Desafios para Implementação in BENJAMIN, Antonio Herman e MILARÉ, Edis (coord), Revista de Direito Ambiental, nº 3, São Paulo, Editora RT, jul-set, 1996, p. 95. 23 COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 404. 24 Art. 15, item 2, da Convenção da Biodiversidade. 25 ARCANJO, Francisco Eugênio M., Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Sei do Senado 306/95, in BENJAMIN, Antônio Herman e MILARÉ, Édis, Revista de Direito Ambiental, nº 7, Ano 2, São Paulo: Editora RT, jul/set. 1997, p. 148. 26 PuREZA, José Manuel, O Estatuto do Ambiente na Encruzilhada de Três Rupturas, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, nº 102, dez/97, p. 15. 27 COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 425. 28 Conforme Rodolfo de Camargo Mancuso, em seu Interesses Difusos, Conceito e Legitimação para agir, 3ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 99/100: “...nos países mais civilizados e democráticos, admite-se a colaboração dos indivíduos, agrupados ou não, servindo como canais de comunicação para os interesses difusos, conduzindo-os até os centros de decisão do Estado. Assim se passa nos Estados Unidos, com a instituição do ideological plaintiff, onde uma pessoa ou grupo funciona como porta-voz de todos os indivíduos abrangidos numa situação homogênea; na França, onde associações se fazem portadoras de interesses difusos, como dos consumidores ou de certas minorias; na Suécia, onde associações de consumidores os representam junto à Corte de Mercado; na Itália, onde associações são admitidas à tutela de interesses difusos, como os de proteção à paisagem.” 29 Art. 5º da Lei 7347/1985 (Lei da Ação Civil Pública). 30 COSTA E SILVA, Eugênio, Ciência, Direito Intelectuais e Biodiversidade, in Revista da ABPI n. 21– Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, São Paulo, mar-abr, 1996, p. 5 17 BERTOLDI, Márcia Rodrigues, Regulação Internacional do acesso aos recursos genéticos que integram a biodiversidade” in Revista de Direito Ambiental nº39, jul-set, 2005, pág. 131. 32 GOLLIN, M., La Convención sobre la Diversidad Biológica y los Derechos de Propiedad Intelectual, VV.AA, in La Prospección de la Biodiversidade: el uso de los recursos genéticos para el desarrollo sostenible. EuA: World resources Institute (WRI), 1994, p. 333. 33 HENDRICKS, F.; KOESTER, V.; PRIP., C; Convention on Biological Diversity, access to Genetic Resources: A Legal Analysis, in Environmental policy and law, 23/6, 1993, p. 252. 34 BERTOLDI, Márcia Rodrigues, Regulação Internacional do acesso aos recursos genéticos que integram a biodiversidade” in Revista de Direito Ambiental nº 39, jul-set, 2005, p. 136. 35 PIC ou prior informed consent é a sigla em inglês para consentimento prévio informado. 36 GLOWKA, L.; BuRHENNE-GuILMIN, F.; SYNGE, H., apud BERTOLDI, Márcia Rodrigues, op. cit, p. 136. 37 Art. 19, § 2º, CBD 38 Art. 16, §§ 3º e 4º, CBD 39 art. 15, § 6º, CBD. 40 Art. 19, § 1º, CBD. 41 DOC uNE/CDB/EP-ABS/2. apud BERTOLDI, Márcia Rodrigues, op. cit. p. 140/141. 42 Art. 7º, xIx, Anteprojeto de lei acesso , de dezembro de 2007. 43 Art. 45, par. único, Anteprojeto de lei de acesso (2007), embora o caput e o seu par.único versem sobre distintas matérias não resguardando relação de pertinência. 44 Art. 58, caput, do Anteprojeto de lei de acesso (2007) 45 pesquisador cadastrado junto ao SISBIO Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade, com título de doutor ou equivalente, reconhecido no Brasil, e vínculo empregatício efetivo com instituição científica (art. 11, da IN 154, de 1/3/2007, do IBAMA) 46 Art. 3º, I e IV da IN 154/2007 do IBAMA. 47 Art. 3º, caput, da IN 154/2007 do IBAMA 48 Art. 12, III, da IN 154/2007 do IBAMA. 49 www.mma.gov.br/cgen0 31 Bibliografia ALENCAR, Gisela S. de, Biopolítica, biodiplomacia e a Convenção sobre Diversidade Biológica/1992: Evolução e Desafios para Implementação in BENJAMIN, Antonio Herman e MILARÉ, Edis (coord), Revista de Direito Ambiental, nº 3, São Paulo, Editora RT, jul-set, 1996. ARCANJO, Francisco Eugênio M., Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Sei Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 217 KISHI, S. A. S. do Senado 306/95, in BENJAMIN, Antônio Herman e MILARÉ, Édis, Revista de Direito Ambiental, nº 7, Ano 2, São Paulo: Editora RT, jul/set. 1997. BERTOLDI, Márcia Rodrigues, Regulação Internacional do acesso aos recursos genéticos que integram a biodiversidade” in Revista de Direito Ambiental nº 39, jul-set, 2005. BURHENNE apud ALENCAR, Gisela S. de, Biopolítica, biodiplomacia e a Convenção sobre Diversidade Biológica/1992: Evolução e Desafios para Implementação in BENJAMIN, Antonio Herman e MILARÉ, Edis (coord), Revista de Direito Ambiental, nº 3, São Paulo, Editora RT, jul-set, 1996. CASTRO E COSTA NETO, Nicolao Dino, Proteção Jurídica do Meio Ambiente - Florestas, Del Rey Editora, Belo Horizonte/MG: 2003. 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PuREZA, José Manuel, O Estatuto do Ambiente na Encruzilhada de Três Rupturas, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, nº 102, dez/97. RIOS, Aurélio Veiga Rios, O Direito da Biodiversidade, in Seminário Internacional sobre Biodiversidade e Transgênicos, Brasília: Senado Federal, 1999, p. 112, Anais. SANDS, Philippe, Principles of international environmental law, frameworks, standarts and implementation, vol. I, Manchester, uK: Manchester university Press, 1995. SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e, Direito Ambiental Internacional, Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial, Rio de Janeiro: Thex Editora, 2002. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010 O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS Artigo o triBunAL PEnAL intErnACionAL (tPi) E CriAnçAS Em SituAçõES DE ConfLitoS ArmADoS Sylvia Helena F. Steiner1 rESumo: Responsabilização pessoal do líder militar Thomas Lubanga Dyilo, da República Democrática do Congo, levado a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, pelo crime de guerra de recrutamento e utilização de crianças-soldado por grupos armados atuantes no território. Violações a direitos fundamentais, e por isso previstas como crimes de guerra, que põem em risco a paz e a sobrevivência da humanidade. Danos físicos e psicológicos de toda natureza. Utilização das crianças como combatentes e em atos de terrorismo. Afirma a autora a idéia de que o ciclo de impunidade começa a ser desafiado, que há arcabouço legal à disposição da comunidade internacional e resta apenas efetividade. Palavras-chave: Tribunal de Haia. Crime de guerra. Crianças-Soldado. Arcabouço Legal. Efetividade. Responsabilização pessoal de líder militar. ABStrACt: Personal liability of the military leader Thomas Lubanga Dyilo, from the Democratic Republic of Congo, brought to trial by the International Criminal Court of Hague for war crime of recruitment and use of children-soldiers by armed groups operating in the territory. Violations of fundamental rights, and therefore typified as war crimes, which threaten peace and the survival of humanity. Physical and psychological damage of all nature. Use of children as combatants and in acts of terrorism. The author advocates the idea that the cycle of impunity is beginning to be challenged, that there is a legal 1 Juíza brasileira junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI) desde 2003, presidente da Câmara Preliminar I. Foi Procuradora da República de 1982 a 1995 e Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da Terceira Região de 1995 a 2003. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 219 STEINER, S. H. F. framework available to the international community and we only need effectiveness. Keywords: International Criminal Court of Hague. War crime. Children-soldiers. Legal framework. Effectiveness. Personal liability of military leader. O primeiro caso submetido a julgamento pelo recém criado Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, refere-se ao crime de guerra de recrutamento e utilização de crianças-soldado por grupos armados atuantes no território da República Democrática do Congo. A conduta é considerada como crime de guerra, nos termos do artigo 8 do Estatuto de Roma.2 Tendo atuado como juíza na fase preliminar do processo, que culminou com a decisão que enviou o acusado a julgamento, creio que posso tentar traduzir, em poucas palavras, o impacto que o recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados produz sobre milhares de crianças em diversas partes do mundo. Essas condutas são consideradas pelo Estatuto de Roma como dentre as mais sérias violações a direitos fundamentais, e por isso previstas como crimes de guerra, que põem em risco a paz e a sobrevivência da humanidade. Começo chamando a atenção para as palavras de Chérif Bassiouni, jurista considerado como um dos principais idealizadores do Tribunal Penal Internacional, segundo o qual « depois de conhecidas as atrocidades cometidas durante a segunda guerra mundial, a comunidade internacional prometeu que ‘nunca mais’. Entretanto, desde então ocorreram cerca de 250 conflitos armados, internos, regionais e internacionais. Esses conflictos, ao lado de violações de direitos fundamentais perpetradas por regimes repressivos, produziram de 70 a 170 milhões de mortos. O alcance em conjunto de todas essas consequências danosas excede nossa capacidade de compreensão, mas temos que confrontar a realidade. É trágico, mas não foram desenvolvidos quaisquer mecanismos de responsabilização e, em consequência, não tem havido nenhuma prevenção. »3 Pode-se sem dúvida afirmar que a maior parte dos conflitos armados ocorridos desde a 220 segunda grande guerra aconteceram, e ainda acontecem, em situações de lutas internas ou regionais. Em outras palavras, em conflitos de caráter não internacional. Como uma das consequências desse fato, o perfil das partes envolvidas nesses conflitos também mudou. Hoje, se pode afirmar que a quase maioria das partes envolvidas em conflitos armados são civis, e que a quase maioria das vítimas desses conflitos armados são também civis não envolvidos de qualquer modo nas hostilidades. Ao assassinato sistemático, à transferência forçada de populações inteiras, à destruição de vilas e cidades, soma-se nesses conflitos o recrutamento cada vez mais intenso de meninos e meninas e sua utilização como combatentes, por grupos armados que se estruturam, geralmente, sobre as bases da nacionalidade, etnia ou religião de seus membros. Em verdade, é necessário distinguir-se, em breves palavras, o conflito inter-étnico como base da realização de condutas consideradas como crimes de guerra, do conflito inter-étnico assim considerado como consequência de uma disputa gerada por outros interesses, em geral econômicos, de outros atores distintos daqueles que se enfrentam em combate. Em outras palavras, distingue-se o conflito inter-étnico que é a causa do cometimento de crimes, do conflito interétnico que é o meio utilizado para a obtenção de determinados resultados. Essa última forma de conflito que, a nosso ver, nem deveria ser considerado como « interétnico » no sentido estrito do termo, está na origem de grande parte dos conflitos armados de caráter não internacional que vêm merecendo a atenção da comunidade internacional. Esse parece ser, a exemplo, o caso do conflito armado na região de Ituri, na República Democrática do Congo, primeiro caso trazido ao Tribunal Penal Internacional, onde as rivalidades tribais são estimuladas, manipuladas, e muitas vezes mesmo geradas, por grupos, empresas ou estados interessados na apropriação de áreas ricas em recursos minerais. Assim, vemos que na maioria dos conflitos armados da atualidade a disputa por terras, por Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS riquezas naturais, por espaços de poder político, terminam por apropriar-se das diferenças entre grupos raciais, religiosos, étnicos, a fim de fomentar o ódio racial, religioso ou étnico. Nesse quadro, fica mais simples entenderse a relação causal entre os conflitos assim chamados de « inter-étnicos » e a vitimização cada vez mais de meninos e meninas, incluindo-se aí sua utilização como combatentes. Esses meninos e meninas são recrutados, geralmente, à força, mas muitas vezes são entregues às milícias por seus próprios pais, pois estes se sentem incapazes de proteger a sua própria comunidade. Muitas vezes, as crianças se alistam voluntariamente, porque vêem nos grupos armados a única maneira de protegerem às suas famílias. Outros, porque ficaram órfãos, e querem vingar a perda dos pais e parentes assassinados por outros grupos rivais. Não é incomum o alistamento voluntário como forma de obtenção de comida e de uma suposta proteção. Há depoimentos e provas incontestáveis de sequestro de crianças, de suas casas ou de suas escolas, ou mesmo em plena rua, à luz do dia. São enviados a campos de treinamento, onde são submetidos a rigoroso treinamento nas mesmas condições de soldados adultos. São ameaçados e punidos em caso de tentativa de deserção. Muitas vezes permanecem nas milícias para proteger suas famílias contra retaliações. Ao lado do treinamento militar rigoroso, as meninas são destinadas a prestar todo tipo de serviços domésticos, além de servirem de “esposas” aos comandantes do campo militar. A escravidão sexual de meninas menores de quinze anos é a lamentável prática comum de quase todos os grupos armados. As crianças acabam envolvidas, à força ou voluntariamente, em conflitos internos que, em suas manifestações externas, parecem adequar-se ao conceito de “conflitos inter-étnicos” – embora, como mencionado anteriormente, não o sejam na maior parte das vezes. Contudo, a aceitação da existência de uma disputa étnica é fator fundamental de motivação para o recrutamento forçado ou o alistamento voluntário de crianças, uma vez que se lhes é cobrada a lealdade e a defesa de suas tribos, aldeias, etnias. Por fim, afirma-se haver uma relação direta entre o tráfico cada vez mais intenso de armas leves, cujo manejo por crianças é mais fácil, fazendo com que a participação de crianças em conflitos armados passasse a ser de efetiva participação em combate, e não mais como anteriormente, quando eram utilizados quase sempre como mensageiros, espias, carregadores de apetrechos etc.. Não seria possível, no espaço destas poucas páginas, levar a cabo uma análise completa de todas as consequências desastrosas dos conflitos armados nas crianças. Portanto, vamos nos referir, ainda que brevemente, ao melhor e mais completo estudo já apresentado sobre o tema, que é o relatório do grupo de experts nomeados pela Assembléia Geral das Nações unidas4, entitulado « As repercussões dos conflitos armados em crianças »5. As conclusões desse relatório pioneiro podem ser também encontradas na obra publicada em 2001 pela relatora Graça Machel6. A partir das conclusões do referido relatório, começamos por compartilhar a idéia segundo a qual os conflitos armados da atualidade são muito mais letais para as crianças, uma vez que pouca ou nenhuma diferença se faz entre combatentes e não combatentes, ou entre combatentes e civis que não estejam tomando parte nas hostilidades, estes últimos protegidos pelas Convenções de Genebra e seus dois Protocolos Adicionais. Segundo a relatora, nos anos 90 mais de dois milhões de crianças foram mortas em consequência de conflitos armados, muitas vezes deliberadamente feridos ou assassinados. Apurou-se ser três vezes maior o número de crianças permanentemente incapacitadas. Cresceu o número de crianças vítimas de desnutrição e de enfermidades. Por fim, o número de crianças vítimas de todos os tipos de violência sexual atingiu cifras assustadoras. à época do relatório, calculou-se em cerca de vinte milhões o número de crianças sem teto, vivendo como refugiados ou em campos de pessoas internamente deslocadas.7 A vitimização de meninos e meninas nos conflitos armados, além das consequências diretamente ligadas às Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 221 STEINER, S. H. F. hostilidades, envolve também a fome, as doenças, os abusos sexuais, a perda de pais e mães, o abandono, o deslocamento forçado, enfim, danos físicos e psicológicos de toda natureza.8 Os informes apresentados anualmente às Nações unidas sobre crianças afetadas por conflitos armados definem, como exemplo de graves abusos cometidos contra meninos e meninas, o assassinato, a mutilação, o recrutamento e utilização de crianças- soldado em combates, os ataques contra escolas e hospitais, a denegação de acesso à ajuda humanitária, o sequestro e o estupro ou outras formas de violência sexual. Igualmente se dá ênfase à atenção especial necessária para atender crianças deslocadas para campos de refugiados como consequência dos conflitos, já que nesses campos acabam por enfrentar novas formas de perigo, inclusive de recrutamento forçado, e de atentados à integridade física e mental, especialmente a separação forçada de suas famílias, os abusos sexuais e a sujeição ao tráfico de seres humanos. Como dito anteriormente, após a apresentação do relatório Machel, o Conselho de Segurança da ONU incluiu em sua agenda o tema de crianças afetadas por conflitos armados, através da Resolução S/1261/1999, assinalando que a violência contra crianças em situações de conflito armado constitui uma ameaça legítima à paz e a segurança da humanidade. Desde então, o Conselho de Segurança adotou mais seis Resoluções sobre esse tema.9 Criou-se igualmente a partir desse marco, como já mencionado anteriormente, um sistema de informes periódicos enviados ao Secretário Geral das Nações unidas, e deste ao Conselho de Segurança.10 Em seu último informe, o Secretário Geral refere ao Conselho de Segurança a situação sobre utilização de crianças-soldado e outras violações graves cometidas contra crianças em conflitos armados relativas ao período entre setembro de 2007 e dezembro de 2008, referentes aos conflitos armados existentes no Afeganistão, Burundi, República Centroafricana, Costa do Marfim, Chad, República Democrática do Congo, Georgia, Haiti, Iraque, Libano, Mianmar, Nepal, Somalia, Sudão, territórios ocupados da Palestina e Israel, todos considerados como 222 situações de preocupação intensa e por tal motivo presentes na agenda do Conselho de Segurança. Nessas situações se constata a utilização mais frequente de crianças como combatentes, e nas quais se vêem presentes outras graves infrações e abusos cometidos contra crianças.11 Vale lembrar que existe um extenso rol de diplomas legais internacionais relativos aos direitos das crianças em conflitos armados, a exemplo, as Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais de 1977, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e seu Protocolo Adicional sobre a utilização de Crianças em Conflitos Armados, de 2000, e a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil, de 1999, entre outros.12 No último informe, a utilização de crianças por todos os grupos armados envolvidos no conflito cresceu expressivamente, conforme acima mencionado, constata-se que em algumas regiões, como na República Democrática do Congo, o alistamento e recrutamento de crianças junto às forças armadas decresceu. No entanto, com a proliferação de grupos armados atuantes principalmente na região dos Kivus, a utilização de crianças por todos os grupos envolvidos no conflito cresceu expressivamente. Já na região de Ituri, na qual os líderes dos principais grupos rebeldes armados foram detidos e entregues ao Tribunal Penal Internacional, não foram constatados novos casos de recrutamento de crianças. Ainda assim, o informe de 2008 dava conta da existência de pelo menos 3.500 crianças-soldado em campos de batalha na República Democrática do Congo. Do infome consta ainda que, desde 2004, mais de 31 mil crianças haviam sido desmobilizados e liberados, tanto das forças armadas como de grupos rebeldes. Já em 2006, havia referências, no informe anual, sobre a existência de indícios de que a utilização de crianças-soldado começava a “migrar” dentro de certas regiões.No último informe, há relatos de crianças sendo sequestradas na República Democrática do Congo pelo movimento rebelde LRA ( Lord’s Resistance Army), originário de uganda13. Outros fenômenos preo- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS cupantes seriam a utilização de crianças-soldado por grupos de mercenários e, mais recentemente, a comprovada utilização de crianças em atos de terrorismo. O último informe relata, a exemplo, três casos de crianças menores de quinze anos que foram utilizadas no Iraque para transporte de explosivos e como suicidas, além de centenas sendo recrutadas e treinadas para combate14. No conflito entre Israel e Palestina, há relatos sobre a utilização, por ambas as partes, de crianças como escudos humanos.15 O primeiro caso trazido a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional trata exatamente do crime de recrutamento e utilização de crianças no conflito armado que se desenrola na República Democrática do Congo. A gravidade excepcional da situação pôde ser verificada no informe preparado pela Missão Especial das Nações unidas para o Congo (MONuC), apresentado pelo Secretário Geral ao Conselho de Segurança em 2004.16 O caso trazido ao TPI envolve exatamente os fatos narrados nesse informe especial. Nos termos desse informe, milhares de crianças, com idades entre 7 e 17 anos, foram levados a lutar, voluntariamente ou à força, pelos grupos armados. A partir do final de 2001, o conflito entrou em uma nova etapa de violência com a intensificação de ataques com motivações étnicas, sendo que distintas facções rebeldes continuaram tirando proveito de antigos ressentimenos étnicos criados pela disputa e distribuição de terras. Na região de Ituri, existem cerca de 18 etnias, mas os conflitos mais significativos ocorreram entre a população Hema e a população Lendu, como herança de antigas rivalidades fomentadas pelos colonizadores entre esses grupos étnicos. Segundo o informe, todos os grupos armados rebeldes cometeram, de maneira contínua, graves violações de direitos humanos, incluindose aí crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Ainda, que todos os grupos armados recrutaram e treinaram crianças para utilizá-las como combatentes. Segundo a MONuC, as condições de treinamento eram extremamente difíceis para as crianças em termos de raciona- mento de comida, de exercícios físicos levados até à fadiga, e de castigos físicos que incluíam tortura e execuções. De acordo com estimativas, cerca de 40% das principais milícias eram compostas, à época, por crianças com menos de 18 anos de idade17. Seguindo a lógica da sobrevivência, essas crianças seguiram os grupos representativos de suas etnias, e participaram ativamente de ataques, assassinatos, pilhagens, abusos sexuais etc. Na fase preliminar da ação penal18 movida pelo promotor do TPI contra Thomas Lubanga Dyilo19foram apresentados à câmara os relatos de cinco meninos e meninas cujas trajetórias de vida ilustram o que foi destacado pelo informe acima mencionado. O menino número 1, de etnia hema, foi retirado à força de sua casa quando tinha 12 anos, e levado a um campo de treinamento no qual sua primeira tarefa foi a de construir uma cabana para abrigar-se. O menino descreve seu treinamento dizendo que era acordado às 4 horas da manhã, corria por 4 horas, treinava o manejo e limpeza de armas e a disparar. A comida era escassa, e somente a recebia uma vez ao dia. As crianças eram também orbigadas a cantar canções que incitavam ao ódio étnico. O menino participou de vários ataques, e foi ferido. O menino número 2, também de etnia hema, foi retirado à força de sua casa quando havia completado 12 anos de idade. Sua história não é distinta da anterior. Em seu testemunho, acrescentou que o comandante de um dos campos de treinamento por onde passou tinha duas meninas como “esposas”, da mesma idade que ele. Uma das meninas tinha que fazer os serviços domésticos, e a outra era abusada sexualmente. O menino também participou de vários ataques, e por sua ‘bravura’ acabou sendo escolhido como escolta de um dos comandantes. A menina número 3, de etnia hema, foi recrutada à força quando tinha 14 anos, diante de ameaças de morte à sua mãe. Recebeu o mesmo treinamento destinado aos adultos, e depois foi enviada aos campos de combate. Descreve que a estratégia militar que era ensinada no treinamento consistia em matar a todos os inimigos, os Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 223 STEINER, S. H. F. lendus, que fossem encontrados pelo caminho, sem importar se eram civis ou combatentes. Foi tomada como “esposa” por um dos comandantes do campo de treinamento, aceitando por temer por sua vida e a de sua família. Faz ainda referência ao fato de ter presenciado outras meninas que não somente eram obrigadas a relacionar-se com seus “maridos”, como também tinham que cozinhar para todos os outros comandantes. A menina número 4, recrutada sob as mesmas condições, acrescenta que durante seu treinamento sofreu tentativa de estupro por parte de um comandante de menor posto. Participou de ataques até que foi ferida. Passou então a fazer escolta de comandantes. Por fim, a menina número 5 diz que foi sequestrada junto com outras crianças no meio da rua. Tinha 13 anos de idade e todos foram levados imediatamente para um campo de treinamento. Foi também destinada a servir como escolta de um dos comandantes, e afirma que tal escolha foi para ela uma ‘honra”, já que assim receberia alguns trocados para poder comprar sabão para se lavar. Afirma também que essa forma de servir lhe trazia proteção contra qualquer tentativa de abuso sexual por parte de outros soldados. Esses e outros testemunhos, ao lado dos informes das Nações unidas e de organizações não governamentais envolvidas no trabalho de desmobilização de crianças-soldado foram considerados como provas suficientes para que o líder militar Thomas Lubanga Dyilo fosse levado a julgamento. Esse é um breve relato do procedimento levado a cabo no primeiro caso em julgamento perante o Tribunal Penal Internacional. O caso apresenta um quadro emblemático da situação que ocorre atualmente em dezenas de países. Apesar de serem uma dezena os países objeto de ‘preocupação especial’ pelo Conselho de Segurança, há informes confiáveis sobre a existência de crianças diretamente envolvidas em situações de conflito armado em pelo menos 86 países, aí incluindo-se recrutamento forçado por grupos armados, recrutamento ou alistamento pelas forças armadas governamentais, e recrutamento por milícias locais20. 224 São considerados como conquistas fundamentais da comunidade internacional os primeiros passos dados no sentido de responsabilizar pessoalmente aqueles que recrutam e utilizam crianças como soldados. Nesse sentido, a exemplo, os procedimentos diante do Tribunal Penal Internacional, a condenação, em 2007, pela Corte Especial de Serra Leoa de quatro pessoas envolvidas em recrutamento forçado de crianças durante a guerra civil, a criação da Comissões de Verdade naquele país, no Timor Leste e mais recentemente na Libéria, todas elas investigando igualmente o recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados21. Confirma-se assim, a meu ver, a idéia de que o ciclo de impunidade, que levou o mundo do pós guerra à situação descrita por Chérif Bassiouni na introdução deste relato, começa a ser desafiado, ao menos no que diz respeito à proteção das crianças desta e das futuras gerações em situações de conflito armado. Estão colocados à disposição da comunidade internacional o necessário arcabouço legal, e instituições legais internacionais, regionais e locais de responsabilização individual. Resta a pressão da comunidade internacional para que tais instrumentos e instituições sejam efetivamente utilizados para acabar com essa forma dramática de vitimização de crianças. notas 2 O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1 de julho de 2002. Essa data marca o início da jurisdição temporal do TPI. O Estatuto de Roma é um tratado, e conta atualmente 110 Estados Partes. 3 Bassiouni, Chérif M., Nota Explicativa sobre el Estatuto de la Corte Penal Internacional, in Revue Internationale de Droit Penal ( Extracto). Toulouse : Érès, 1er et 2ème trimestre, p.1 ( tradução livre) 4 Resolução A/48/157, de 1993, busca em www.un.org 5 A/51/306 e Add. 1, de 6.9.96. Ver também : A/55/749, de 26.1.2001 ; A/61/529-S/2006/826. O relatório, conhecido como Relatório Machel ( pois que coordenado por Graça Machel), gerou o estabelecimento, pela Assembléia Geral, de uma função permanente de Representante Especial do Secretário Geral para a questão de Crianças e Conflitos Armados ( A/RES/51/77, 20.2.1997). A partir daí, informes periódicos são apresentados à Assembléia Geral (Terceiro Comitê sobre Direitos da Criança), ao Conselho de Segu- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS rança e ao Conselho de Direitos Humanos. Ver : www. un.org/children/conflict 6 Machel, Graça, The Impact of War on Children. London: Hurst &Company, 2001 7 Opus cit., p.1 8 Ibis,ibidem. Ver também : David Nosworthy (ed), Seen, but not heard: Placing Children and Youth on the Security Governance Agenda. Graça Machel, Foreword. Geneva Centre for Democratic Control of Armed Forces (DCAF), 2009, p. vii 9 S/1314(2000); S/1379(2001),S/1460(2003),S/1539(2004), S/1612(2005) e S/1882(2009); 10 Ver, a exemplo: A/61/275(2006),A/62/228(2007) ,A/63/227/2008; A/64/254(2009); Ver ainda: S/2007/757 ,S/2008/532,S/2009/158; 11 A/63/785-S/2009/158 12 Sugere-se a consulta igualmente aos Princípios de Paris ( The Principles and Guidelines on Children Associated with Armed Forces or Armed groups), de 2007, assim como ao Machel 10 Year Review, A/62/228, em www.un.org/ children/conflict/english/keydocuments 13 A/63/785-S/2009/158, para.45 14 Idem, paras.60 e 61 15 Idem, paras.87, 88 e 92 16 UN, Special Report on the Events in Ituri, January 2002-December 2003. S/2004/573 17 Vale aqui lembrar que o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo à participação de crianças em conflitos armados, considera como “criança”o menor de 18 anos, e proíbe expressamente não somente a utilização de crianças em conflitos armados, mas também seu recrutamento.O Protocolo já foi ratificado por 120 países. Igualmente, a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho estabelece que os Estados devem abster-se de recrutar e utilizar menores de 18 anos em conflitos armados, e que atos de recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados são equiparados às piores formas de trabalho infantil. O Estatuto de Roma, entretanto – e inexplicavelmente, a nosso ver – fixou a idade de 15 anos como limite para recrutamento e utilização de crianças-soldado ( art. 8(2)(b)(xxvi) e art. 8(2)(c)(vii), constituindo, assim, a nosso ver, um retrocesso. 18 De acordo com as Regras de Procedimento e de Prova, um caso tem início no TPI perante a Câmara de questões Preliminares com a expedição de um mandado de prisão, ou uma ordem de comparecimento, contra um suspeito. Após uma série de atos processuais, quando as provas incriminatórias, exculpatórias ou dirimentes são comunicadas pela Promotoria à Defesa, e dando-se à Defesa prazo razoável para sua preparação, realiza-se a audiência de confirmação da acusação, na qual a Câmara deverá decidir se o caso merece ser levado a julgamento pela Câmara de Julgamento. 19 Ver: www.icc-cpi.int – situations and cases – case The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo – ICC-01/4-01/06, agora em fase de julgamento perante a Câmara de Julgamento I ( Trial Chamber I ). As sessões de julgamento podem ser acompanhadas peloao vivo site do TPI – www.icc-cpi. int – proceedings- courtroom I, em inglês ou francês. 20 Child Soldiers Global Report 2008, Coalition to Stop the use of Child Soldiers, p. 12 Ver: www.child-soldiers.org 21 Idem, p.12 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010 225 226 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS Artigo A ProtEção PrEviDEnCiáriA DoS SErviDorES PúBLiCoS APóS AS rEformAS ConStituCionAiS1 Zélia Luiza Pierdoná 2 rESumo: Com as reformas constitucionais implementadas pelas EC nº 20/98, 41/03 e 47/05, a proteção previdenciária dos servidores públicos sofreu profundas alterações. A aposentadoria deixou de ser integral, para a ser calculada com base na média das remunerações. Os seus reajustes passaram a ser iguais aqueles concedidos ao Regime Geral da Previdência Social e não mais com base na mudança da remuneração dos servidores ativos. Além disso, foi introduzida uma idade mínima para fins de aposentadoria por tempo serviço. A pensão, acima de determinado valor, não é mais integral. As referidas emendas instituíram regras de transição. Palavras-chaves: Previdência social. Servidores públicos. Reformas constitucionais. Regras de transição ABStrACt: With the constitutional reforms implemented by the EC nº 20/98, 41/03 and 47/05, the protection of social security to public servants has gone through substation changes. Retirement shall no longer be a full payout calculated based of the average of the remunerations. His adjustments have to be equal to those granted to the general social security and no longer based on the change of the remuneration of public servants. Furthermore, it introduced a minimum age for service time retirement. Pensions above of determined value are not full anymore. These amendments have instituted transistion rules. Keywords: Social security. Public servants. Constitutional reforms. Transition rules. 2 Procuradora da República em São Paulo; Mestre e Doutora pela PuC/SP; Professora de Direito Previdenciário da Graduação e da pós-graduação da universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo; autora do livro “Contribuições para a seguridade social”, LTr, 2003, e de diversos artigos em revistas especializadas. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 227 PIERDONá, Z. L. Os direitos sociais estão elencados no Capítulo II, do Título II da Constituição Federal, o qual versa sobre os direitos e garantias fundamentais. Dentre os direitos fundamentais, o nosso ordenamento constitucional inclui os direitos sociais. No art. 6º da CF estão arrolados referidos direitos, nos quais se incluem a saúde, a previdência e a assistência, que juntas formam o que a Constituição denomina seguridade social. No entanto, cada uma das subáreas integrantes da seguridade apresenta preceitos específicos, o que nos leva a diferenciar o regime jurídico aplicável a elas. O art. 196 dispõe que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”; por sua vez, o art. 203 estabelece que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social”. Assim, tanto os direitos relativos à saúde como os vinculados à assistência independem de contraprestação direta dos beneficiários para terem acesso as suas prestações. Já no que se refere à previdência social, as disposições do art. 201, bem como do art. 40, ambos da Constituição, exigem contribuição dos segurados para que eles e seus dependentes façam jus às prestações previdenciárias. Definindo previdência social, assim nos manifestamos3: direito fundamental social assegurado a todos os trabalhadores e seus dependentes, que garante recursos nas situações em que não poderão ser obtidos pelos próprios trabalhadores, em virtude de incapacidade laboral. É, no entanto, direito fundamental que depende do cumprimento de um dever fundamental correlato: necessidade de contribuição do segurado (...). Apresenta proteção obrigatória e facultativa. Aquela abrange todos os trabalhadores que estarão vinculados ao regime geral ou aos regimes próprios. O regime geral é abrangente e residual e tem por finalidade proteger todos os trabalhadores, excetuando apenas aqueles vinculados aos 228 regimes próprios, os quais são instituídos pelos respectivos entes federativos para dar proteção previdenciária aos seus servidores titulares de cargos efetivos. Assim, a proteção obrigatória se dá pelo regime geral e pelos regimes próprios dos entes federativos, sendo que os citados regimes excluem-se mutuamente. Por meio dos dois regimes o Estado viabiliza a todos o acesso à previdência e, com isso, o trabalhador estará protegido das contingências geradoras de necessidades, uma vez que será garantido recurso quando o trabalhador, em virtude de sua incapacidade laboral, não os obtém com o fruto de seu trabalho. A proteção previdenciária obrigatória apresenta limites de proteção, os quais, ainda, são diversos no regime geral e nos regimes próprios: o limite aplicável ao regime geral é de dez salários-de-contribuição4; e, o limite do regime dos servidores públicos está previsto no art. 40, § 11, da Constituição, o qual determina que aos proventos de inatividade deverá ser aplicado o limite fixado no art. 37, xI (teto remuneratório dos servidores públicos). Dessa forma, ainda há limites diferenciados para os dois regimes obrigatórios. No entanto, a Constituição preceitua que os entes federativos poderão adotar o mesmo limite aplicado ao regime geral, devendo, para isso, criar previdência complementar aos seus servidores, nos termos dos §§ 14 a 16 do art. 40. Além da proteção previdenciária obrigatória acima referida, a CF prevê proteção complementar, prevista no art. 202. O regime de previdência complementar, de forma diversa dos regimes obrigatórios, é facultativo e tem como objetivo garantir a manutenção do mesmo padrão de vida do trabalhador, complementando a aposentadoria dos regimes obrigatórios. Citado regime é estruturado pelas Leis Complementares 108 e 109, de 2001. Assim, feitas as considerações gerais em relação à previdência, passaremos a abordar o regime previdenciário dos servidores públicos previsto, conforme já referido, no art. 40 da CF, o qual foi profundamente alterado pelas ECs nº 20/98; 41/03 e 47/05. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS O regime próprio de previdência abrange os servidores públicos titulares de cargos efetivos, excluindo, nos termos do § 13 do art. 40, os servidores ocupantes, exclusivamente, de cargo em comissão, bem como os ocupantes de cargo temporário ou de emprego público, aos quais se aplica o regime geral de previdência social. As normas gerais sobre os regimes próprios estão preceituadas no art. 40 da Constituição e na Lei 9.717/98. Além disso, conforme dispõe o § 12 do art. 40, o regime de previdência dos servidores públicos deve observar, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social, o qual é considerado regime básico. O § 20 do art. 40 da CF veda a existência de mais de um regime próprio para os servidores titulares de cargos efetivos, bem como de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal. As ECs nº 20/98 e 41/03 introduziram profundas mudanças na previdência dos servidores públicos. A EC nº 47/05 amenizou as mudanças da EC nº 41/03. A EC nº 20/98 impôs a contributividade e a observância de critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. Além disso, proibiu a contagem de tempo fictício; introduziu um limite mínimo de idade para a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição; e determinou a permanência mínima de 10 anos de serviço público e 5 anos de cargo para as aposentadorias por tempo de serviço/contribuição e por idade. Também vedou a concessão do auxílio-reclusão aos dependentes dos servidores que recebiam, antes da prisão, proventos superiores a determinado limite5. A EC nº 41/03, por sua vez, terminou com a integralidade (última remuneração como base de cálculo das aposentadorias e pensões, tendo mantido apenas nas regras de transição) e com a paridade (reajuste dos benefícios de acordo com o reajuste da remuneração dos servidores em atividade); extinguiu definitivamente a aposentadoria proporcional6, ao revogar o art. 8º da EC nº 20/98; permitiu a cobrança de contribuição dos aposentados e pensionistas, para os benefícios acima de determinado valor7; e criou um redutor de 30% para as pensões, nos valores que superarem o limite do regime geral de previdência social. A EC nº 41/03 tinha garantido o reajuste paritário (mesmo reajuste concedido aos servidores em atividade) apenas aos servidores que já estavam aposentados quando da publicação da referida emenda (31-12-03) e àqueles que já tinham direito adquirido à aposentadoria (tinham preenchidos todos os requisitos para sua concessão). A EC nº 47/05 garantiu a paridade para a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição a todos os servidores que ingressaram no serviço público antes da publicação da EC nº 41/03 (31-12-03). Além disso, criou uma regra de transição para os servidores que ingressaram no serviço público antes da EC nº 20/98 (16-12-98), permitindo que se aposentem antes de atingir a idade mínima. Assim, feitas as considerações gerais sobre as ECs nº 20/98, 41/03 e 47/05, passaremos, a seguir, a apresentar os preceitos constitucionais relacionados aos benefícios após as três emendas referidas. Em relação às aposentadorias, a Constituição prevê cinco tipos: por invalidez, compulsória, por idade, por tempo de serviço/contribuição (com inclusão de idade mínima) e especial. Aposentadoria por tempo de serviço/contribuição: Os servidores que preencherem os requisitos para a aposentadoria e optarem por permanecer em atividade farão jus a um abono de permanência, equivalente ao valor da contribuição previdenciária. O mencionado abono será concedido tanto aos servidores que já tinham direito adquirido à aposentadoria, quando da publicação da EC nº 41/03 (§1º do art. 3° da Ec nº 41/03), como aos que preencherem os requisitos posteriormente (§5º do art. 2º da EC nº 41/03 e § 19 do art. 40 da Constituição). Conforme já referimos, com a publicação da EC nº 41/03, foi definitivamente extinta a Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 229 PIERDONá, Z. L. aposentadoria proporcional do servidor público. Assim, apenas aqueles que na data da publicação da referida emenda (31-12-2003) tinham preenchidos todos os requisitos previstos no art. 8º da EC nº 20/98 têm direito a aposentar-se proporcionalmente. os servidores que ingressaram8 no serviço público até a promulgação da EC nº 20/98 (16-12-98) têm três opções para a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição: 1ª opção - Poderão aposentar-se quando, cumulativamente, preencherem os seguintes requisitos: 1) 53 anos de idade, se homem, e 48 anos, se mulher; 2) 5 anos de exercício no cargo em que se der a aposentadoria; 3) contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de: a) 35 anos, se homem, e 30, se mulher; e b) um período adicional de contribuição equivalente a 20% do tempo que, na data de publicação da EC nº 20/98, faltaria para atingir o limite de tempo constante acima. O servidor que cumprir as mencionadas exigências terá os seus proventos de inatividade reduzidos para cada ano antecipado em relação aos limites de idade (60 anos, se homem e 55, se mulher) na proporção de 3,5%, para aquele que completar as exigências para aposentadoria até 31 de dezembro de 2005 e requerer o benefício até a mencionada data; e, de 5%, para aquele que completar as exigências a partir de 1º de janeiro de 2006. Importante ressaltar que os servidores que optarem pela aposentadoria de acordo com essa opção terão seu benefício calculado com base na média das suas contribuições nos dois regimes (próprio dos servidores e regime geral) e os reajustes serão de acordo com critérios fixados em lei, ou seja, tanto a apuração do valor da aposentadoria como de seu reajuste seguirá a sis230 temática atualmente adotada para os benefícios concedidos pelo regime geral (INSS). O cálculo considerará as remunerações a partir de jul/94 ou da data em que houver remunerações quando posterior àquela data (a MP 167/04, convertida na Lei nº 10.887/04, determina que se utiliza 80% dos salários-de-contribuições, retirando-se, para o cálculo da média, os 20% menores). O caput do art. 86 da Orientação Normativa nº 02, de 31-03-2009 (publicada no DOu de 02-04-2009) estabelece que o servidor fará jus ao abono de permanência quando preencher os requisitos acima elencados. O seu § 2º preceitua que o recebimento do abono, na forma desta opção, não constitui impedimento à concessão do benefício de acordo com outra regra vigente, inclusive as previstas nos arts. 68 e 69 (2ª e 3ª opções abaixo comentadas) desde que cumpridos os requisitos previstos para essas hipóteses. 2ª opção - Poderão optar pela seguinte situação, devendo atender cumulativamente, as seguintes condições9: 1) 60 anos de idade, se homem, e 55, se mulher; 2) 35 anos de contribuição, se homem, e 30, se mulher; 3) 20 anos de efetivo exercício no serviço público; e 4) 10 anos de carreira e 5 anos no cargo10. Com a EC nº 41/03, os proventos da aposentadoria concedida na forma acima mencionada serão integrais e sua revisão será na mesma proporção e na mesma data em que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, nos termos da lei (paridade mitigada). A esses aposentados a EC nº 41/03 não estendia os benefícios e vantagens posteriormente concedidas aos servidores em atividade, como fazia para os que eram aposentados e pensionistas e para aqueles que já haviam preenchido todos os requisitos em 31-12-2003. A EC nº 47/05 estendeu a esses servidores os benefícios e vantagens mencionados. 3ª opção - Poderão ainda optar pela seguinte situação: A EC nº 47/05 amenizou a ausência de regras de transição, permitindo que os servidores Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS públicos que ingressaram no serviço público até a publicação da EC nº 20/98 (16-12-98), aposentem-se com proventos integrais, desde que preencham, cumulativamente, as seguintes condições: 1) 35 anos de contribuição, se homem, e 30, se mulher; 2) 25 anos de serviço público, 15 anos de carreira e 5 no cargo em que se der a aposentadoria; 3) idade mínima resultante da redução, a qual considera o mínimo de idade de 60 anos, se homem, e 55, se mulher, e o tempo de contribuição do servidor. Reduz-se um ano de idade para cada ano de contribuição que exceder a 35 de contribuição, se homem, e 30, se mulher. A regra acima é aplicada apenas aos servidores que ingressaram no serviço público até a data da publicação da EC nº 20/98, ou seja, 16-12-98, não sendo aplicada aos servidores que ingressaram no serviço público de 17-12-98 a 31-12-98. Entendemos correta a aplicação da referida regra apenas aos que ingressaram no serviço público até a EC nº 20/98, uma vez que esta emenda já havia fixado a idade mínima de 60 anos para o servidor e 55 para a servidora. Assim, não há que se falar de regra de transição para redução de idade. Servidores que ingressaram no serviço público até a promulgação da EC nº 41/03 (31-12-2003): Para eles obterem a aposentadoria deverão cumulativamente atender as seguintes condições: 1) 60 anos de idade, se homem, e 55, se mulher; 2) 35 anos de contribuição, se homem, e 30, se mulher; 3) 20 anos de efetivo exercício no serviço público; e 4) 10 anos de carreira e 5 anos no cargo. Com a EC nº 41/03, os proventos da aposentadoria seriam integrais e revistos na mesma proporção e na mesma data em que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade, na forma da lei. A EC nº 41/03 não lhes estendia os benefícios e vantagens posteriormente concedidas aos servidores em atividade, como o fazia para os que eram aposentados e pensionistas e para aqueles que já haviam preenchido todos os requisitos em 31-12-2003. A lei é que determinaria se as vantagens seriam ou não estendidas. Assim, a EC nº 41/03 instituiu uma paridade mitigada, a qual foi modificada pela EC nº 47/05. A EC nº 47/05 prevê a extensão dos benefícios e vantagens mencionados, como a EC nº 41/2003 fez para quem já era aposentado. Dessa forma, em termos de reajuste, com a EC nº 47/05, tem-se a garantia de que os proventos serão iguais aos vencimentos dos servidores em atividade. Assim, podemos afirmar que, com a última emenda, temos a paridade integral para todos os servidores que ingressaram no serviço público até 31-12-2003, quer seja antes da EC nº 20/98 ou entre ela e a EC nº 41/03. De maneira diversa dos servidores que ingressaram no serviço público antes da EC nº 20/98 (os quais têm três opções de aposentadoria por tempo de serviço/contribuição), os servidores que ingressaram entre 17-12-98 e 31-12-2003 somente poderão aposentar-se atendendo os requisitos acima (opção única). Aos que ingressaram depois dessa data, aplica-se a situação descrita no parágrafo seguinte. Servidores que ingressarem no serviço público após a publicação da EC nº 41/03: Para eles aplica-se o art. 40, § 1º, III, “a” da Constituição, com redação atual, o qual exige, para a concessão da aposentadoria: 1) 10 anos no serviço público e 5 anos no cargo; 2) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher. Os requisitos elencados no item dois acima (idade e tempo de contribuição) serão reduzidos em 5 anos para o professor que comprove, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 231 PIERDONá, Z. L. exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio (§ 5º do art. 40 da Constituição). Os proventos de aposentadoria e as pensões serão calculados de acordo com as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor ao seu regime próprio e ao regime geral (INSS), nos casos em que o servidor antes tenha laborado na iniciativa privada. Após a concessão do benefício, o reajuste atenderá a critérios fixados em lei, preservando em caráter permanente, o seu valor real. Ressaltamos que o valor da aposentadoria é a média encontrada, a qual poderá ser superior ao limite do regime geral. Teremos a aplicação do mencionado limite apenas se e quando for criada a previdência complementar. Sobre os proventos da aposentadoria e da pensão haverá incidência de contribuição quando superarem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral (INSS), com percentual igual ao estabelecido para os servidores em atividade. Ressaltamos que a EC nº 47/05 dobrou mencionado limite11 para fins de incidência de contribuições quando o beneficiário for portador de doença incapacitante. Por fim, caso os entes federativos (união, Estados, Distrito Federal e Municípios) instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores, poderão fixar, para o valor da aposentadoria e pensão, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral - INSS (atualmente R$ 3.416,54). No entanto, destacamos que isso somente ocorrerá com a instituição, pelos entes federativos, da previdência complementar. Enquanto isso não ocorrer o servidor, mesmo aquele que ingressar no serviço público após a EC nº 41/03 (31-12-2003), não está sujeito ao limite aplicável aos segurados do regime geral – INSS. Ele contribuirá sobre a totalidade de sua remuneração, sendo que na apuração do valor de sua aposentadoria serão considerados os salários de contribuição no regime próprio e no regime geral, caso ele antes tenha trabalhado na iniciativa privada. Portanto, serão consideradas as remunerações de toda sua vida laboral e sua aposentadoria terá o 232 valor da média das mencionadas remunerações, mesmo que seja superior ao limite do regime geral. Os reajustes da aposentadoria serão efetuados com base em critérios estabelecidos em lei. Aposentadorias por invalidez, por idade e compulsória: O art. 40, § 1º, da CF estabelece as regras aplicáveis às aposentadorias no serviço público. Além da aposentadoria por tempo de serviço/ contribuição, acima referida, o mencionado artigo constitucional trata das aposentadorias por invalidez, por idade e compulsória. No que tange à aposentadoria por invalidez, o texto constitucional estabelece que os proventos serão proporcionais ao tempo, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável. O fato gerador da citada aposentadoria é a incapacidade total e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade laboral, a qual deve ser constatada por meio de perícia médica. A base de cálculo será a média dos salários de contribuição (tanto para os servidores que ingressaram antes da emendas constitucionais referidas como para aqueles que ingressaram depois), sobre a qual é aplicada a alíquota de 100%, no caso de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável e proporcional ao tempo, nos demais casos. As aposentadorias compulsórias e por idade sempre serão com proventos proporcionais ao tempo de serviço. Ressaltamos que, desde a redação originária da Constituição, os proventos são proporcionais ao tempo de serviço. Para a aposentadoria compulsória não há requisito de tempo mínimo no serviço público ou no cargo, a qual ocorre quando o (a) servidor (a) atinge a idade de 70 anos (há PEC em andamento para alterar a idade para 75 anos). Os proventos são proporcionais ao tempo de serviço, no qual é incluído, também, o tempo laborado na iniciativa privada. quanto à aposentadoria por idade, a CF exige tempo mínimo de 10 anos de serviço públi- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS co e 05 no cargo, bem como a idade mínima de 65 anos, se servidor e 60 anos, se servidora. Da mesma forma que a aposentadoria compulsória, os proventos são proporcionais ao tempo de serviço (de serviço público e de iniciativa provada). Entretanto, a questão que se coloca não está relacionada à proporcionalidade em relação ao tempo de serviço/contribuição, mas em relação à base de cálculo utilizada para efeitos de apuração do valor do benefício, ou seja, à proporcionalidade relacionada ao tempo é aplicada a uma base que pode ser a última remuneração ou a média das remunerações. As administrações públicas federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal, em razão de normas gerais infraconstitucionais editadas, têm entendido que a base de cálculo será sempre apurada com base no § 3º do art. 40, o qual preceitua que “para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei”. Assim, a base sobre a qual é aplicada uma alíquota (proporcional ao tempo de serviço/contribuição) sempre será a média das remunerações e não a última remuneração recebida, mesmo para aqueles servidores que ingressaram no serviço público antes das ECs nº 20/98 e 41/03. Ressaltamos que referida forma de apurar o benefício foi instituída pela EC nº 41/03. O entendimento administrativo acima referido baseia-se no fato de que as emendas constitucionais ressalvaram apenas a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição. Entretanto, entendemos que é necessário interpretar sistematicamente a Constituição, aplicando-se a nova base de cálculo apenas aos servidores que ingressaram no serviço público após a EC nº 41, de 31-12-03, sob pena de se violar o princípio da segurança jurídica, o qual abrange o princípio da proteção da confiança.12 A nova sistemática de cálculo deverá ser aplicada a todos os tipos de aposentadorias, apenas aos servidores que ingressaram no serviço público depois da EC nº 41/03. àqueles que ingressaram antes da referida emenda constitucional, a base de cálculo a ser aplicada deverá ser sempre a última remuneração, pois, do contrário, estar-se-á privilegiando a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição, que é exceção à regra em termos de benefício previdenciário, em detrimento daquelas aposentadorias que protegem a incapacidade real (invalidez) ou presumida (idade avançada). O equilíbrio financeiro e atuarial determinado constitucionalmente será atingido com a proporcionalidade relacionada ao tempo (alíquota aplicada à base de cálculo). Aposentadoria Especial: A Constituição, no art. 40, § 4º, com redação dada pela EC nº 47/05, permite que lei complementar adote critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos servidores portadores de deficiência, aos que exercem atividades de risco, bem como àqueles cujas atividades sujeitam-se a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. Na redação original do referido parágrafo, havia a previsão apenas da adoção de critérios diferenciados no caso de atividades exercidas sob condições especiais que prejudicassem a saúde ou a integridade física. Também havia a exigência de lei complementar que definisse referidas atividades. Mencionada lei complementar ainda não foi editada, o que tem levado muitos servidores a buscar na Justiça13 regras para a adoção de critérios diferenciados, por meio de mandado de injunção, nos termos do art. 5º, LxxI, da Constituição Federal. Há os que defendam a aplicação analógica das regras do regime geral de previdência social, as quais estão fixadas nos artigos 57 e 58 da Lei 8.213/91. Na decisão do mandado de Injunção nº 721 (transcrito na nota de rodapé), o STF determinou a aplicação das regras do regime geral. Ressaltamos que também para este regime de previdência, atualmente, há a necessidade de regulamentação por meio de lei complementar. Entretanto, a EC nº 20/98 estabeleceu que até a edição do citado instrumento normativo, de- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 233 PIERDONá, Z. L. verão ser aplicados os mencionados artigos da Lei 8.213/91. Em razão da ausência da edição da lei complementar acima referida, Estados, como por exemplo o de Santa Catarina, já fixaram regras para a aposentadoria especial. Entendemos que, nos termos do §3º do art. 24 da CF, é possível mencionada regulamentação. Quando for editada norma geral pela união, nos termos do inciso xII e §1º do art. 24 da CF, deverá ser aplicado o §4º, do citado artigo. Entendemos que a aposentadoria do professor é uma espécie de aposentadoria especial, cujos requisitos foram fixados pela própria Constituição. Assim, o professor e a professora que comprovem, exclusivamente, tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio poderão aposentar-se, desde que atendidos os seguintes requisitos: 1) 10 anos no serviço público e 5 anos no cargo; 2) 55 anos de idade e 30 de contribuição, se professor, e 50 anos de idade e 25 de contribuição, se professora. Servidores aposentados e aqueles que já eram pensionistas em 31-12-03: A única mudança introduzida pela EC nº 41/03 para os servidores que já eram aposentados ou pensionistas foi a instituição14 de contribuição sobre seus proventos. Os valores a partir dos quais há a incidência da contribuição hoje equivalem a R$ 3.038,99, ou seja, o limite do regime geral de previdência social, conforme decisão do STF, na ADIN 3099/DF, Rel. Min. Ellen Gracie. Lembramos, conforme já mencionamos, que a EC nº 47/05 dobrou mencionado limite15 para fins de incidência de contribuições sobre os proventos de aposentadoria e pensão quando o beneficiário for portador de doença incapacitante. Pensão por morte: 234 O § 7º do art. 40 estabelece regras sobre a pensão por morte, a qual será igual ao valor da totalidade dos proventos do servidor falecido, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social (a EC nº 41/03 estabeleceu em R$ 2.400,00, atualmente R$ 3.416,54), acrescido de 70% da parcela excedente a este limite, caso aposentado à data do óbito; ou ao valor da totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se deu o falecimento, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral, acrescido de 70% da parcela excedente a este limite, caso em atividade na data do óbito. Sobre os valores da pensão também incidem contribuições, no que exceder ao limite acima referido. Assim, considerando a nova sistemática de cálculo, o preceito constitucional está criando uma situação de extrema desigualdade entre os pensionistas nos casos de o servidor ainda estar em atividade ou aposentado, já que se estiver em atividade será considerada sua remuneração integral e se estiver aposentado será considerado o valor da aposentadoria, a qual, pelas novas regras, é a média dos salários-de contribuição (remunerações no serviço público e sobre o valor recolhido para o INSS). A forma de reajuste das pensões é a mesma que no regime geral (INSS), ou seja, pelos índices estabelecidos em lei, os quais devem garantir a manutenção do valor real. Assim, não é mais aplicado o mesmo reajuste dos servidores em atividade, exceto na hipótese das pensões decorrentes das aposentadorias concedidas pela regra de transição criada pela EC nº 47/03, prevista no art. 3º (opção 3, acima comentada), aplicável aos servidores que ingressaram no serviço público até a EC nº 20/98. Nesta hipótese, será adotado o critério de paridade às pensões derivadas dos proventos de servidores falecidos que tenham se aposentado em conformidade com o mencionado artigo. Dessa forma, se o servidor falecido se aposentar com outras regras que não a de transição acima mencionada, a pensão terá uma forma de atualização (correção com base na lei, preservando o valor real); se a aposentadoria for deferida com Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS base nas citadas regras, o critério será outro (paridade com os servidores em atividade). Previdência complementar para os servidores públicos titulares de cargos efetivos: A Constituição, no art. 40, §§ 14 a 16 prevê que os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) podem adotar no regime dos servidores públicos o mesmo limite do valor dos benefícios adotado pelo regime geral. Para tanto, devem instituir regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo. Nesse caso, a proteção obrigatória no serviço público será limitada nos valores do regime geral (INSS). Assim, a manutenção do mesmo padrão de vida do servidor será “garantida” pela previdência complementar. A instituição da previdência complementar depende de lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo e deve observar, no que couber, as disposições do art. 202 da CF. Serão entidades fechadas de previdência complementar, com planos de benefícios na modalidade de contribuição definida (define-se previamente o valor das contribuições e não dos benefícios). O limite referido acima será aplicado, obrigatoriamente, aos servidores que ingressarem no serviço público após a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar. Aos que ingressarem antes da mencionada data será dada opção para, caso queiram, aderirem à previdência complementar. A lei instituidora deverá fixar data para a citada adesão. Ressaltamos que se e quando instituído o regime de previdência complementar, os servidores estarão protegidos obrigatoriamente até o limite do regime geral (atualmente R$ 3.416,54). Acima do mencionado valor será dada a possibilidade de terem proteção complementar, cuja adesão será facultativa. A possibilidade de criação da previdência complementar para os servidores públicos é uma demonstração do caminho traçado pelo ordenamento jurídico atual: a criação de uma proteção única a todos os trabalhadores, quer da iniciativa privada, quer do setor público. Considerações finais: Apresentamos acima, de forma sintética, a proteção previdenciária dirigida aos servidores públicos titulares de cargos efetivos, após as reformas previdenciárias implementadas pelas EC nº 20/98, 41/03 e 47/05. Entendemos que era necessário reformar o sistema anterior, uma vez que representava, em alguns casos, verdadeiros privilégios em relação à população em geral, a qual financiava uma proteção em que não havia qualquer exigência de tempo mínimo no serviço público, bem como não havia contribuição para custear as aposentadorias (os servidores pagavam contribuição para a pensão e saúde) etc. Entretanto, observamos que as reformas não foram acompanhadas por regras de transição adequadas e proporcionais, quando, qualquer mudança no ordenamento jurídico previdenciário deve vir acompanhada das citadas regras. Assim, algumas disposições das emendas referidas, bem como interpretações administrativas (como por exemplo a base de cálculo das aposentadoria por idade, por invalidez e compulsória para os servidores que ingressaram no serviço público antes da EC nº 41/03) devem ser afastadas pelo Poder Judiciário, haja vista que violam princípios fundamentais do Estado instituído pela Constituição de 1988, em especial o da segurança jurídica, o qual inclui o princípio da proteção da confiança. notas 3 Zélia Luiza PIERDONá, previdência social in Dimitri DIMOuLIS (Coord.), Dicionário brasileiro de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 296-297. 4 5 A partir de 01-01-2010 o limite corresponde a R$ 3.416,54. Entendemos que o referido preceito não encontra fundamento de validade no ordenamento jurídico, já que veda o acesso ao benefício e, com isso, viola o art. 60, §4º da Constituição, conforme sustentamos no artigo “A proteção previdenciária dos dependentes dos trabalhadores presos: a inconstitucionalidade do limite instituído pela EC nº 20/98 ao auxílio-reclusão” in http://conpedi.org/manaus/arquivos/ anais/brasilia/13_187.pdf. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 235 PIERDONá, Z. L. A aposentadoria proporcional, antes da EC nº 20/98 era devida aos 25 anos de contribuição, se servidora e 30 anos, se servidor. A referida emenda garantiu a aposentadoria proporcional apenas aos servidores que tivessem ingressado no serviço público até a sua publicação (1612-98), tendo estabelecido, em seu art. 8º, uma regra de transição, a qual previa uma idade mínima e um período adicional de tempo. Como a aposentadoria proporcional foi extinta definitivamente pela EC nº 41/03, apenas aqueles servidores que na data da publicação da mencionada emenda (31-12-2003) tinham completado o citado tempo, mais o adicional (pedágio) a que se refere a letra “b” do inciso I do § 1º do art. 8º da EC nº 20/98 (40% do tempo que em 16-12-98 faltava para 25 anos de contribuição, se mulher e 30 anos, se homem) e a idade mínima mencionada no inciso I do art. 8º da EC nº 20/98 (53 anos de idade, se homem e 48, se mulher) têm direito à aposentadoria proporcional, a qual poderá ser requerida a qualquer tempo. Sendolhes aplicada a legislação vigente quando da publicação da EC nº 41/2003, caso optem pela referida aposentadoria. Ou seja, o valor de sua aposentadoria considerará o tempo de serviço existente no dia 31-12-2003, não sendo acrescido o tempo posterior. 7 A EC nº 41/03 estabeleceu que, para os servidores da união, a contribuição incidiria sobre a parcela que superasse 60% do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social (INSS), o qual, a emenda em discussão fixou em R$ 2.400,00, que atualmente está em R$ 3.416,54. Já para os servidores dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a contribuição incidiria sobre o que superasse 50% do limite retro referido. Entendemos que a diferença entre os valores de contribuição dos servidores da União e dos demais entes federativos não se justificava, uma vez que violava o princípio da isonomia, previsto no art. 150, II, da Constituição Federal. Melhor seria se tivesse sido considerado o limite aplicado aos segurados filiados ao regime geral de previdência social (R$ 3.416,54), haja vista a imunidade prevista no art. 195, II da CF. Em nosso artigo “as questões tributárias da reforma da previdência dos servidores públicos – EC nº 41/03” publicado no Repertório de Jurisprudência IOB – 1ª quinzena de junho de 2004, nº 11, defendemos a constitucionalidade da contribuição dos aposentados e pensionistas sobre os valores que excedam ao limite fixado pelo regime geral. Essa diferença foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, tanto no que se refere à diferença entre os valores fixados para os servidores da união e dos demais entes federativos, como à diferença entre os mencionados valores e o limite do regime geral de previdência social citado, o qual é aplicado aos servidores que ainda estão em atividade e aqueles que ingressaram no serviço público depois de 31-12-2003. O STF (na ADIN 3099/DF, Rel. Min. Ellen Gracie) decidiu que a contribuição é constitucional. Entretanto, a incidência é devida apenas nos valores que superem o limite do regime geral de previdência social (atualmente R$ 3.416,54). 8 A Orientação Normativa nº 02, de 31-03-2009 (Publicada no DOu de 02-04-2009), da Secretária de Políticas de Previdência Social, em seu art. 70 estabelece que, para fins de verificação do direito de opção pelas regras de transição, será considerada a data da investidura mais remota dentre as ininterruptas no serviço público na Administração Pública direta, autárquica e fundacional, em qualquer dos entes federativos. 9 Aplica-se também aos servidores que ingressaram no serviço público entre as EC nº 20/87 e 41/03, ou seja, entre 17-12-98 e 31-12-2003. 10 O Tribunal de Contas da união, no Acórdão 473/2005, entendeu que, para garantir tratamento isonômico entre os servidores públicos e membros do Ministério Público, o prazo referente ao cargo deve ser entendido como carreira. Sustentamos isso em palestras proferidas desde a edição da EC nº 20/98, tanto em relação ao Ministério Público, quanto à Magistratura. 11 Incidirá apenas sobre as parcelas que superarem o dobro do limite do regime geral. Considerando que atualmente o limite é de R$ 3.416,54, a contribuição incidirá no que exceder a R$ 6.833,08. 12 J. J. Gomes CANOTILHO. Direito constitucional e teria da constituição, 3ª ed. Coimbra, Livraria Almedina, 1999, p. 250. “(...) O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a idéia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações 6 236 13 14 15 jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas”. MANDADO DE INJuNÇÃO - DECISÃO - BALIZAS. Tratandose de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇõES ESPECIAIS - PREJuíZO à SAúDE DO SERVIDOR - INExISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITuIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral - artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91. (STF, Mandado de Injunção nº 721, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 30/08/2007). Desde a edição da EC nº 41/03 nos manifestamos favorável a instituição da contribuição sobre aposentadorias e pensões, conforme artigo de nossa autoria, já referido acima, “as questões tributárias da reforma da previdência dos servidores públicos – EC nº 41/03” publicado no Repertório de Jurisprudência IOB – 1ª quinzena de junho de 2004, nº 11. Incidirá apenas sobre as parcelas que superarem o dobro do limite do Regime Geral. Considerando que atualmente o limite é de R$ 3.416,54, a contribuição incidirá no que exceder a R$ 6.833,08. Bibliografia Zélia Luiza PIERDONá, previdência social in Dimitri DIMOuLIS (Coord.), Dicionário brasileiro de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 296-297. J. J. Gomes CANOTILHO. Direito constitucional e teria da constituição, 3ª ed. Coimbra, Livraria Almedina, 1999, p. 250. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010 normAS PArA PuBLiCAção 1. Os trabalhos encaminhados para publicação na REID – Revista Eletrônica Internacional Direito e Cidadania, editados pela Editora Habilis deverão ser inéditos e originais. Entretanto, excepcionalmente, poderão ser aceitos artigos relevantes que já tenham sido publicados, desde que sejam concedidas as devidas autorizações. Se o artigo já foi publicado, o autor deve informar, em nota de rodapé, onde e quando. No que se refere aos direitos autorais, a Revista REID utiliza a Licença Creative Commons 2.5 para a publicação de seus artigos. 2. Os trabalhos devem ser enviados exclusivamente pelo correio eletrônico, para o endereço [email protected]. Recomendamos a utilização do processador de texto Microsoft Word 97. Pode-se, no entanto, utilizar qualquer processador de texto, desde que os arquivos sejam gravados no formato RTF (Rich Text Format), que é um formato de leitura comum a todos os processadores de texto. 3. Nos textos enviados para publicação, os parágrafos devem ser alinhados à esquerda. Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve utilizar o tabulador para determinar os parágrafos: o próprio já determina, automaticamente, a sua abertura. Como fonte, usar Times New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens, superior e inferior, 2,0 cm e as laterais 3,0 cm. O tamanho do papel deve ser A4. O artigo deve ter no máximo 20 laudas. 4. Os trabalhos deverão ser precedidos por um breve Resumo (6 linhas no máximo) e com a indicação de 3 a 4 palavras-chaves, ambos em português. 5. Dos trabalhos, deverá constar a qualificação completa do autor, em nota de rodapé. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 237 6. As referências bibliográficas deverão conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição (a partir da segunda); ponto; local; dois pontos; editora (não usar a palavra editora); vírgula; ano da publicação; ponto. 7. Todo destaque que se queira dar ao texto impresso deve ser feito com o uso de itálico. Jamais deve ser usado o negrito ou a sublinha. Citações de textos de outros autores deverão ser feitas entre aspas, sem o uso de itálico. 8. Não será prestada nenhuma remuneração autoral pela licença de publicação dos trabalhos em nossas revistas ou qualquer tipo de mídia, impressa ou eletrônica. 238 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010 9. Os trabalhos que não se ativerem a estas normas serão devolvidos a seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações necessárias. 10. A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Conselho Editorial da REID. Todos os trabalhos serão primeiramente lidos pelas coordenadoras da Revista que os distribuirão, conforme a matéria, para os conselheiros. Será adotado o método double blind review. 11. Eventualmente, os trabalhos poderão ser devolvidos ao autor com sugestões de caráter científico que, caso as aceite, poderá adaptá-lo e reencaminhá-lo para nova análise. Os trabalhos recebidos e não publicados não serão devolvidos.