II CONGRESO DE ESTUDIOS POSCOLONIALES
III JORNADAS DE FEMINISMO POSCOLONIAL
“Genealogías críticas de la Colonialidad”
MESA TEMÁTICA 10: Los márgenes y el centro. Literaturas poscoloniales
Como só existe Cervantes: Jorge Luis Borges, Jacques Derrida e a tradição
contando contos.
1
Edson Junio Dias de Sousa
“É preciso ainda notar isso. E terminar esta Segunda Carta: „...
Reflete, então, sobre isso e toma cuidado em não ter que te arrepender
um dia do que deixarias hoje divulgar-se indignamente. A maior
precaução será não escrever, mas aprender de cor... tò me gráphein
ali' ekmanthánein... pois é impossível que os escritos não acabem por
cair no domínio público. Por isso, para a posteridade, eu mesmo não
escrevi sobre tais questões... oud' éstin súngramma Platdnos oudèn
oud' estai, não há obra de Platão e jamais haverá uma. O que
atualmente designa-se sob esse nome Sokrátous estin kaloü kai neoü
gegónotos... é de Sócrates no tempo de sua bela juventude. Adeus e
obedece-me. Tão logo tenhas lido e relido esta carta, queima-a...‟”
Platão, carta II, 314 a.C
Jorge Luis Borges (1899-1986) deposita no truque e na falsificação a
verdadeira e única dignidade da literatura 2 ; por isso o golpe, por isso a burla com
poemas, com contos, com ensaios, associando-os e combinando-os, à primeira vista,
gratuitamente, como um divertimento. O jogo literário empreendido é um lance do
portenho prestidigitador, o Abre-te Sésamo! com que introduz e nos desencaminha pelo
falsificado, adulterado, mentiroso, enganador, equívoco.3 Pela cópia, pela imitação, pela
paródia. Com seu “Pierre Menard, autor do Quixote”, o escritor argentino nos coloca
frente a frente ao caráter fecundo da duplicidade dos possíveis 4 e assenta, com o
simulacro, a preocupação central de toda sua atividade crítica: a da leitura como a mais
1
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Membro Bolsista do Programa de
Educação Tutorial (PET-Dir UNB). Contato: [email protected]
2
(MONEGAL, 1997, p. 55)
3
(DERRIDA, 2005, p. 28)
4
(BLANCHOT apud MONEGAL, 1997, p. 23-24)
delicada e a mais importante operação que contribui para o nascimento de um livro5.
Manifesta-se, assim, o núcleo de especulações com que o exercício crítico e a obra
literária em Borges convergem e ultrapassam mutuamente as fronteiras convencionadas
de contribuição aceita a cada uma.
Poucos escritores ao longo do século construíram uma biblioteca de indecidíveis
(no sentido que lhe confere Derrida) com tanta originalidade. O escritor argentino
tornou-se reconhecido universalmente por contos e ensaios, em que sobressai uma
intrincada trama de caráter ficcional, repleta de citações (nem sempre) apócrifas,
fragmentos, alusões mitológicas, referências históricas, filosóficas, literárias e
teológicas. Utiliza-se também da intratextualidade, em que cita e parafraseia seus
próprios textos. Borges escreveu sobre escritores imaginários, fundamentando-se em
dados históricos falsificados, recorrendo a arquivos inexistentes. Em suma, esmerou-se
em desfazer as fronteiras entre o “sonho” e a realidade, em multiplicar as
fantasmagorias em sua ilimitada Biblioteca.
Também o filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004), ao matizar a
ambivalência com que a escritura foi reputada sempre, coloca em movimento a lógica
subversiva da substituição 6 . Na Farmácia de Platão, o autor observa que a escrita,
desde a antiguidade, foi relegada a um papel menor e secundário em relação ao
desempenhado pela fala, pela oralidade do discurso vivo. O privilégio concedido à fala
na aurora do Ocidente e que sustentou em seus sedimentos ocultos o que o autor
denomina, noutro lugar, filosofias da presença7, é o que Derrida tenta desconstruir8 a
partir e no Fedro de Platão.
5
(MONEGAL, 1980, p.27)
6
(DERRIDA, 2005, p. 37)
7
Já se presente, portanto, que o fonocentrismo se confunde com a determinação historial do sentido do
ser em geral como presença, com todas as subdeterminações que dependem desta forma geral e que nela
organizam seu sistema e seu encadeamento historial (presença da coisa ao olhar como eidos, presença
como substância/essência/existência (ousia), presença temporal como ponta (stigmé) do agora ou do
instante (nun), presença a si do cogito, consciência, subjetividade, co-presença do outro e de si,
intersubjetividade como fenômeno intencional do ego etc.). O logocentrismo seria, portanto, solidário
com a determinação do ser do ente como presença (DERRIDA, 2008, p. 15).
8
Um motivo a mais para não renunciarmos a estes conceitos é que eles nos são indispensáveis hoje para
abalar a herança de que fazem parte. No interior da clausura, por um movimento oblíquo e sempre
perigoso, que corre permanentemente o risco de recair aquém daquilo que ele mesmo desconstrói, é
A cena da origem da escrita é apresentada por Sócrates no antigo mito egípcio
de Theuth. Nele, a escrita ou o phármakon é apresentada para avaliação do deus-rei
Thamous. Uma oferenda com valor incerto, uma vez que seu valor dependerá do
julgamento soberano; a escrita, portanto, não tem valor em si mesmo, só terá valia “na
medida em que o deus-rei a estime9”. Na leitura platônica, Thamous, sem recusar a
oferenda, manifestará não apenas a inutilidade da escrita, já que somente em aparência é
que ela é benéfica à memória, mas manifestará principalmente sua ameaça, uma vez que
ela é exterior à memória e produtora somente de opinião e não de verdade. Conforme a
leitura derridiana, Sócrates compara os textos escritos que Fedro trouxe consigo a uma
droga, “esse phármakon, essa ‛medicina‟, esse filtro, ao mesmo tempo remédio e
veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda ambivalência. Esse encanto, essa
virtude de fascinação, essa potência de feitiço, podem ser – alternada ou
simultaneamente – benéficas e maléficas” 10 . A escrita é apresentada como um
phármakon, irredutivelmente veneno e remédio.
Incomparável mestre em arte, oh, Theuth, uma coisa é o homem capaz de
trazer à luz a fundação de ma arte, outra aquele que é capaz de apreciar o que
esta arte comporta de prejuízo ou utilidade para os homens que deverão fazer
uso dela. Neste momento, eis que em tua qualidade de pai dos caracteres da
escritura, atribuiste-lhes, por complacência para com ele, todo o contrário de
seus verdadeiros efeitos. Pois este conhecimento terá, como resultado,
naqueles que o terão adquirido, tornar suas almas esquecidas, uma vez que
cessarão de exercer sua memória: depositando, com efeito, sua confiança no
escrito, é do fora, graças as marcas externas, e não do dentro e graças a si
mesmos. Não é, pois, para a memória, mas para a rememoração que tu
descobriste um remédio. Quanto à instrução é a aparência (doxa) dela que
ofereces a teus alunos, e não a realidade (alétheian): quando, com efeito, com
a tua ajuda, eles transbordarem de conhecimentos sem terem recebido
ensinamento, parecerão bons para julgar muitas coisas, quando, na maior
parte do tempo, estarão privados de todo julgamento; e serão, além disso,
preciso cercar os conceitos críticos por um discurso prudente e minucioso, marcar as condições, o meio e
os limites da eficácia de tais conceitos, designar rigorosamente a sua pertença à máquina que eles
permitem desconstruir; e, simultaneamente, a brecha por onde se deixa entrever, ainda inominável, o
brilho do além-clausura (DERRIDA, 2008, p. 17).
9
(DERRIDA, 2005, p. 22)
10
(DERRIDA, 2005, p. 14)
insuportáveis, já que terão a aparência de homens instruídos em vez de serem
homens instruídos.11
É no mito narrado por Sócrates que se estabelece a oposição entre o discurso
falado e a escrita, como analisado por Derrida. Platão deseja dominar a definição de
ambiguidade da escrita ou do phármakon, “na oposição simples e nítida: do bem e do
mal, do dentro e do fora, do verdadeiro e do falso, da essência e da aparência”, mas
adverte que não é suficiente dizer que a escritura é pensada a partir de tais ou tais
oposições dispostas em série; “Platão a pensa, e tenta compreendê-la, dominá-la a partir
da própria oposição”12. A leitura derridiana sobre a cena da origem da escrita no diálogo
platônico se desenvolve expondo o sem-lugar-fixo do phármakon. No momento
historial do aparecimento da escrita acontece uma decisão exclusiva e excludente por
um de seus sentidos, o de remédio, em prejuízo do outro possível e também necessário,
o de veneno. A escolha de um polo em detrimento do outro é o que marca e sustem a
metafísica ocidental presa ao dualismo inaugurado com Platão, “é através do
phármakon que o logos filosófico encontra, a um só tempo, sua fundação e seu
fundamento no elemento da idealidade” 13 . O filósofo helênico estabelece, então, a
lógica intolerante à passagem entre os dois sentidos contrários de uma palavra,
justamente por se tratar de algo irreduzível à simples confusão ou alternância 14 . O
phármakon – ou a escritura – é, assim, o meio original e transbordante em que se opera
essa decisão; é o signo que não se deixa manejar com segurança, que resiste, à
interpretação filosófica
15
. Não pode ser completamente subsumido ao que,
concomitantemente, e nisso, possibilita à metafísica ocidental sua diacriticidade. A
escrita ou phármakon não tem essência estável – já que não-identidade – nem se
constitui numa substância, assim como não se individualiza por ser uma síntese
dialética; simplesmente escapa a qualquer caracterização açambarcante. “É antes o meio
anterior no qual se produz a diferenciação em geral e a oposição entre o eidos e seu
11
(PLATÃO apud DERRIDA, 2005, p. 49)
12
(DERRIDA, 2005, p. 50)
13
(NASCIMENTO, 2005, p. 32)
14
(DERRIDA, 2005, p. 46)
15
(DERRIDA, 2005, p. 50)
outro”16. O phármakon oscila entre os termos em oposição: não é nem o remédio nem o
veneno, nem o bem nem o mal, nem a fala nem a escrita (no sentido corrente) e isso
acontece porque a escrita, conforme entendida pelo filósofo franco-argelino, precede
estruturalmente à constituição das oposições metafísicas.
Há jogo ou artifício nessa aproximação cruzada? É que existe, sobretudo, o
jogo num tal movimento e esse quiasma é autorizado, até prescrito, pela
ambivalência do phármakon. Não apenas pela polaridade bem/mal, mas pela
dupla participação nas regiões distintas da alma e do corpo, do invisível e do
visível. Esta dupla participação, ainda uma vez, não mistura dois elementos
previamente separados, ela remete ao mesmo que não é o idêntico, ao
elemento comum, ao intermediário de toda dissociação possível. Assim, a
escritura é dada como suplente sensível, visível, espacial da mnéme; ela se
verifica em seguida nociva e entorpecente para o dentro invisível da alma, da
memória e da verdade. Inversamente, a cicuta é dada como um veneno
nocivo e entorpecente para o corpo. Ela se verifica em seguida benéfica para
a alma, que libera do corpo e desperta para a verdade do eidos. Se o
phármakon é "ambivalente", é, pois, por constituir o meio no qual se opõem
os opostos, o movimento e o jogo que os relaciona mutuamente, os reverte e
os faz passar um no outro (alma/corpo, bem/mal, dentro/fora,
memória/esquecimento, fala/escritura etc). E a partir desse jogo ou desse
movimento que os opostos ou os diferentes são detidos por Platão. O
phármakon é o movimento, o lugar e o jogo (a produção de) a diferença. Ele
é a diferencia da diferença. Ele mantém em reserva, na sua sombra e vigília
indecisas, os diferentes e os diferindos que a discriminação virá aí recortar.
As contradições e os pares de opostos levantam-se sobre o fundo dessa
reserva diacrítica e diferante. Já diferante, essa reserva, por "preceder" a
oposição dos efeitos diferentes, por preceder as diferenças como efeitos, não
tem pois a simplicidade pontual de uma coincidentia oppositorum. Desse
fundo a dialética extrai seus filosofemas. O phármakon, sem nada ser por si
mesmo, os excede sempre como seu fundo sem fundo. Ele se mantém sempre
em reserva, ainda que não tenha profundidade fundamental nem última
localidade. Nós o veremos prometer-se ao infinito e se escapar sempre por
portas secretas, brilhantes como espelho e abertas sobre um labirinto. E
também essa reserva de fundo que chamamos a. farmácia17.
Com efeito, a escritura/phármakon chega a Platão como essa sedução fatal da
reduplicação. A pureza do centro só pode ser restaurada, desde então, acusando a
exterioridade sob a categoria de um suplemento, inessencial e, no entanto, nocivo à
essência, de um excedente que não se deveria ter acrescentado à plenitude impenetrada
do dentro. Um acessório, um acidente, um excedente18. No gesto platônico é possível
rastrear o gesto inaugural de toda a lógica, de todo o bom senso, do exorcismo e da
catarse que prescreve, didaticamente, o texto-enquanto-tal, fechado sobre si mesmo, em
16
(DERRIDA, 2005, p. 73)
17
(DERRIDA, 2005, p. 74-75)
18
(DERRIDA, 2005, p. 77)
clausura. De forma antagônica, Derrida aponta para o “transbordamento” da escrita que
“sobrevém no momento em que a extensão do conceito de linguagem apaga todos os
seus limites”19. Este transbordamento é uma abertura para a pluralidade irrecorrível e a
não fixação de um sentido único e trans-epocal que caracteriza o contato com o escrito.
No pensamento derridiano há latente uma inospitabilidade à sistemas hermeticamente
fechados. Em sua obra, o discurso, como sistema linguístico incompleto, já que
irredutivelmente no por-vir, é produzido pelo jogo de diferenças que se interpõem e
organizam a experiência. Instituem-se, assim, maneiras diferenciadas e não excludentes
de leitura, não pretendendo os textos como unidades originárias de sentido, como blocos
homogêneos e harmônicos; destaca-se, em Derrida, o impossível de textos esgotados em
sua leitura, já que inscritos num jogo de remetimentos, numa relação, não de múltiplos
sentidos, mas de uma escrita/escritura como disseminação, como indecidível20.
Repitamos. A desaparição do bem-pai-capital-sol é, pois, a condição do
discurso, desta vez compreendido como momento e não como princípio da
escritura geral. Esta escritura (é) epekéina tês ousías. A desaparição da
verdade como presença, o se furtar da origem presente da presença é a
condição de toda (manifestação de) verdade. A não-verdade é a verdade. A
não-presença é a presença. A diferencia, desaparição da presença originária,
é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade e a condição de
impossibilidade da verdade. Ao mesmo tempo. "Ao mesmo tempo" quer
dizer que o ente-presente (ón)na sua verdade, na presença de sua identidade e
a identidade de sua presença se duplica desde que ele aparece, desde que ele
se apresenta. Ele aparece, na sua essência, como a possibilidade de sua
própria duplicação. Ou seja, em termos platônicos, de sua não-verdade a mais
própria, de sua pseudoverdade refletida no ícone, no fantasma ou simulacro.
Ele só é o que ele é, idêntico e idêntico a si, único, acrescentando-se a
possibilidade de ser repetido como tal. E sua identidade se escava com este
acréscimo, se furta no suplemento que a apresenta 21.
Os indecidíveis surgem na necessidade de uma suspensão entre os elementos
que compõe os pares de oposição, ou seja, não cedem à lógica binária que domina a
linguagem da metafísica. Derrida, com isso, não pretende evadir-se ao caráter lógicolinguístico. Inseridos na linguagem, os indecidíveis são conceitos, porém, como eles
denunciam a violência da conceitualização e o apagamento da diferença que ela
implica, seria mais apropriado, conforme o filósofo francês, chamá-los “quaseconceitos”. Antes de tudo, devemos ter a precaução de não tomá-los como filosofemas
19
(DERRIDA apud KUIAVA; ZEVALLOS, 2010, p. 10)
20
(KUIAVA; ZEVALLOS, 2010, p. 10)
21
(DERRIDA, 2005, p. 122)
e, sobretudo, os termos na cadeia dos indecidíveis, não podem ser compreendidos como
sinônimos. As substituições realizadas se deslocam num jogo de efeitos nominais
permitindo abrir e visualizar o que no sistema conceitual da metafísica se encontra
reprimido, encoberto. A paralisação, produzida pelos indecidíveis nos termos de uma
oposição, permite mostrar o jogo, ou seja, um ir e vir constante entre um termo e outro.
Com esta noção, Derrida nos conduz também a uma experiência do pensamento que não
se esgota mais na procura dos fundamentos, mas que abre, abrindo a si mesma, uma
sucessão infinita de impossibilidades22.
A oposição spoudélpaidiá nunca será de simples simetria. Ou bem o jogo
não é nada (é sua única chance), não pode dar lugar a nenhuma atividade, a
nenhum discurso digno desse nome, ou seja, carregado de verdade ou ao
menos de sentido. Ele é então álogos ou átopos. Ou então o jogo começa a
ser alguma coisa e sua presença mesma dá ensejo a alguma confiscação
dialética. Ele ganha sentido e trabalha a serviço do sério, da verdade, da
ontologia. Apenas os lógoi peri ónton podem ser levados a sério. Assim que
chega ao ser e à linguagem, o jogo se desfaz como tal. Da mesma forma que
a escritura deve se desfazer como tal diante da verdade etc. E que não há
como tal da escritura e do jogo. Não tendo essência, introduzindo a diferença
como condição da presença da essência, abrindo a possibilidade do duplo, da
cópia, da imitação, do simulacro, o jogo e a grafia vão, sem cessar,
desaparecendo. Eles não podem, pela afirmação clássica, ser afirmados sem
ser negados23.
O jogo retorna ao literário exatamente com os vários tomos de indecidivéis24
confeccionados por Jorge Luis Borges. Sua Biblioteca constitui algumas das mais
refinadas desestabilizações da metafísica ocidental, em que realidade, tempo, verdade,
memória, autoria, dentre outros conceitos canônicos, são embaralhados e revertidos em
outra coisa. O escritor argentino não recorre à dúvida como método de investigação para
alcançar a verdade, mas a insere, juntamente com a certeza, no campo ficcional:
“Sonhei a dúvida e a certeza”. Assim como Derrida e sua différance, que sustenta a
ausência e a presença em seu processo de diferencialidade, Borges alicerça o
pensamento do logos em uma base de simulacro; portanto, no litoral que separa
realidade e ficção. A escritura não é uma boa tékhne, não é uma arte capaz de
22
((KUIAVA; ZEVALLOS, 2010, p. 3)
23
(DERRIDA, 2005, p. 111)
24
[...]O indecidível não é apenas a oscilação entre duas significações ou duas regras contraditórias e
muito determinadas, mas igualmente imperativas. O indecidível não é somente a oscilação ou a tensão
entre duas decisões. Indecidível é a experiência daquilo que, estranho, heterogêneo à ordem do calculável
e a regra, deve, entretanto entregar-se à decisão impossível. (DERRIDA, 2007, p. 46).
engendrar, de produzir, de fazer aparecer o claro, o seguro, o estável 25. O escrito, em
Borges evidente com mais força, cria um signo à disposição de todo mundo, errante,
sob o permanente – e criativo – risco da disseminação.
O duplo é uma das marcas recorrentes na obra borgeana. Ultrapassa e suprime a
existência estanque dos pares platônicos, em que se destaca apenas o caráter lógico de
exclusão, de segundo termo decaído. Borges avança em uma concepção mais afeita à
disseminação com seu “Pierre Menard, autor do Quixote”, e que muito influirá na
contemporânea teoria literária. Na história, o protagonista propõe a si mesmo a árdua
tarefa de produzir, não uma nova edição da obra, mas o próprio Dom Quixote,
repetindo palavra por palavra cada linha do romance original. Para tanto, resolveu que o
melhor era ser o próprio Miguel de Cervantes: “Conhecer bem o espanhol, recuperar a
fé católica, guerrear aos mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre
os anos de 1602 e de 1918. 26 ” Foi assim, repetindo “num idioma alheio um livro
preexistente” que o hipotético escritor francês firmou, de fato, sua obra – enquanto
leitor, enquanto interprete e enquanto tradutor hodierno – em seu contanto
extemporâneo com os fragmentos da obra.
A empreitada é guiada por duas leis contrárias, e que sintetizam o próprio
movimento – e a lei – a que toda a cultura periférica e latino-americana está submetida:
a primeira permitiria que ele manifestasse sua criatividade e colocasse no papel
variações formais ou psicológicas, “cuidando que não lhe sobrevivessem”; a segunda, o
obrigava a seguir fielmente o Quixote. A antinomia aqui evidente, e por isso inevitável,
irredutível e essencial, é que já no Quixote há sua perversão. No primeiro Quixote já
coabitam as leituras possíveis, necessárias e desconstrutoras 27 – subversivas – de um
Quixote. Não se pode mais separá-las uma da outra, pensá-las à parte, etiquetá-las,
delimitá-las. A reversibilidade original do phármakon/escritura não permite distinguir
25
(DERRIDA, 2005, p. 85)
26
(BORGES, 2007, p. 39)
27
Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na Gramatologia, o termo „desconstrução‟ foi
tomado da arquitetura. Significa a deposição decomposição de uma estrutura. Em sua definição
derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente („isso se desconstrói‟), e que consiste em
desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante. Desconstruir é de
certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em que é
enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes
(DERRIDA &ROUDINESCO, 2004, p.9)
o remédio do veneno, o bem do mal, o verdadeiro do falso, o dentro do fora, o vital do
mortal, o primeiro do segundo 28 . “Essa técnica povoa de aventuras os livros mais
pacíficos”. Até os clássicos. O múltiplo, a diferença, o heterogêneo, estrutura e alinha a
leitura única e incontornavelmente aberta a outras, mesmo em Pierre Menard, mesmo
quando verbalmente idênticos os paratextos.
A obra crítica de Jorge Luis Borges também ampliará o papel desempenhado
pela leitura e pelo leitor. Escoramo-nos aqui no amplo estudo levado a cabo por Emir R.
Monegal29 sobre a obra do autor portenho. Há principalmente dois importantes ensaios
que tangenciam e explicitam a problemática do livro por vir30, personificada – tornada
literária – em Pierre Menard. No primeiro, “Kafka e sus precursores”31, Borges conclui
que cada escritor cria seus precursores, já que seu trabalho modifica nossa concepção
do passado, como há de modificar o futuro. Um livro, assim, não é um sentido acabado;
o tempo das obras não é o tempo definido do ato de escrever, mas o tempo indefinido da
leitura e da memória. Já no segundo aporte crítico apontado, “La flor de Coleridge”32,
também presente em Otras Inquisiciones (1952), resta inequívoco que basta atribuir a
um escritor contemporâneo trechos de obras pretéritas para que tais textos mudem seu
significado inicialmente evidente. Portanto, é essa intuição do conto borgiano que nos
permite edificar em paradigma teórico, assim como premonitoriamente anunciado por
Monegal, o que chamamos acima de poética da leitura, em contraposição a tradicional
poética da escritura, centrada na figura do autor, dando-se maior relevância ao ato da
leitura – e o incessante diálogo de textos que esta pressupõe, já de princípio – e
liberando a literatura da excessiva preocupação biográfica e com as fontes. Ao fim do
conto, o próprio Borges arremata e conclui o argumento:
Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte
fixa e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das
atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita nos leva a percorrer a
Odisséia como se fosse posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Centaure de
28
(DERRIDA, 2005, p. 122)
29
(MONEGAL, 1980)
30
(BLANCHOT, 2005, p.136-140)
31
(MONEGAL, 1997, p. 307-309)
32
(MONEGAL, 1997, p. 210-214)
Madame Henri Bachelier como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa
técnica povoa de aventura os livros mais pacíficos. Atribuir a Louis
Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente
renovação dessas tênues advertências espirituais?33
33
(BORGES, 2007, p.45)
Referências Bibliográficas:
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução por Leyla Perrone-Moisés. 1ª Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução por Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã ... diálogos. Trad. André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
________________. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
________________. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GUIMARÃES, Rodrigo. Jorge Luis Borges e Maurice Blanchot: Os pharmakós da
escritura. Acta Literaria Nº 37, II Sem. (97-109), 2008. Disponível em :
http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0717-68482008000200008&script=sci_arttext
KUIAVA, Evaldo Antônio; ZEVALLOS, Verónica Pilar Gomezjurado. A escrita e o
phármakon: um estudo a partir da desconstrução derridiana. V Congresso Internacional de
Filosofia
e
Educação,
2010.
Disponível
em:
http://www.ucs.br/ucs/tplcinfe/eventos/cinfe/artigos/artigos/arquivos/eixo_tematico8/A%2
0escrita%20e%20o%20pharmakon%20um%20estudo%20a%20partir%20da%20descon
strucao%20derridiana.pdf
MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: Uma Poética da Leitura. 1ª Ed. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1980.
MONEGAL, Emir Rodríguez (comp.). Jorge Luis Borges – Ficcionario. 2ª Ed. México: Fondo
de Cultura Económica, 1997.
NASCIMENTO, Evando (org). Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
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