Jorge Luis Ribeiro dos Santos SUMÁRIO Introdução ..................................................................................................................................1 Capítulo I - O trabalho compulsório no Ocidente ......................................................................8 1 - A sociedade escravista grega ................................................................................................9 1.1 - O pensamento escravista de Aristóteles ..........................................................................11 2 - A escravidão romana........................................................................................................14 3 - A servidão medieval: o trabalho compulsório na tradição ibérica....................................17 3.1 - Servidão medieval e ética cristã .......................................................................................22 3.2 - América hispânica: escravidão e “encomienda” .............................................................26 3.3 - Ginés de Sepúlveda e a escravidão por “guerra justa”.....................................................30 4 - Escravidão na América portuguesa.....................................................................................41 4.1 - A escravidão do indígena..................................................................................................43 4.2 - A escravidão do africano..................................................................................................47 Capítulo II - O trabalho compulsório no século XX: “metamorfoses” da escravidão............57 1 - A “metamorfose dos escravos” da pós-abolição ................................................................58 2 - “Senzalas das florestas”: o trabalho compulsório da borracha e da castanha......................65 2.1 - Os escravos da borracha...................................................................................................67 2.2 - Castanheiros e castanhais cativeiros.................................................................................78 2.3 - Grandes Projetos sobre ombros escravos.........................................................................81 Capítulo III - “Trabalho escravo” contemporâneo: o sul e sudeste do Pará.............................88 1 - O contexto sócio-econômico...............................................................................................89 2 - O “trabalho escravo” contemporâneo: construção conceitual e caracterizações.................95 3 - Novos escravos e velha escravidão entre o moderno e o arcaico.....................................113 4 - Os Sujeitos submetidos ao novo “trabalho escravo” são escravos?..................................118 Conclusão................................................................................................................................124 Referencial bibliográfico.........................................................................................................130 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Introdução O presente estudo analisa alguns elementos de continuidade da imobilização, por dívida, da mão-deobra, tendo-se como referência fática as relações atípicas de trabalho rural verificadas nas frentes de expansão pecuária e madeireira da mesorregião do sudeste do Estado do Pará, Amazônia Oriental brasileira, com vistas a dar respostas à seguinte indagação? Dadas as condições de relações laborais indignas e atípicas existentes no contexto rural do sudeste paraense é possível afirmar a existência de “trabalho escravo” na região? As relações de compulsoriedade predominantes na trajetória destas relações laborais, na região, historicamente foram travestidas de contrato livre, o que reafirma a continuidade e similaridade de antigas organizações laborais compulsórias baseadas no “aviamento” e no “barracão”, características da economia extrativa da borracha (caucho e seringueira) e da castanha, com o contemporâneo trabalho rural compulsório ou chamado “trabalho escravo” por dívida baseado no sistema de endividamento do trabalhador com o “gato” e com o “barracão” e nas condições extremamente degradantes a que são submetidos estes trabalhadores. Aborda-se inda o embate semântico pela conceituação do atual fenômeno tendo-se em vista o uso do termo “trabalho escravo” para definir situações de trabalho involuntário, compulsório ou forçado. Mas antes de tudo, faz-se uma digressão à trajetória do trabalho compulsório no mundo ocidental, desde os gregos até os anos da pós-abolição do século XX para introduzir-se na temática do “trabalho escravo” na zona rural do sudeste paraense (cartografada como mesoregião do sudeste do Pará), a partir do final dos anos 60. Utilizando o instrumental da análise bibliográfica procurou-se delinear as trajetórias e continuidades do trabalho compulsório na região desde registros do trabalho compulsório na extração da borracha pelo sistema do “aviamento” e a reaparição do sistema na extração da castanha. Desta trajetória chega-se ao constatado uso, quase sistemático, do “trabalho escravo” nas frentes de expansão pecuária e de desmatamento, ocorridos da década de 60 em diante, práticas estas que guardam similares relações trabalhistas daquelas das épocas das “casas aviadoras”. Saliente-se que as fontes bibliográficas sobre “trabalho escravo” contemporâneo são raras, dada a novidade que esta temática em específico representa no cenário acadêmico brasileiro. Poucos são os precursores na pesquisa direta, no Brasil, com este objeto investigativo. Outros autores apontaram de forma indireta para a questão, mas sem focarem-na de forma exclusiva. Por outro lado, trabalhos dissertativos e teses ainda inéditas, tratando em específico da questão, começam a aparecer em algumas universidades brasileiras, assim como artigos esparsos tratam da questão principalmente sob o enfoque jurídico criminal-trabalhista. Com base nestas constatações buscou-se, ao final, a partir dos estudos antecedentes - seja da escravidão clássica antiga grega e romana, e da escravidão moderna das colônias européias nas Américas, seja na bibliografia disponível sobre o “trabalho escravo” contemporâneo e dos embates semânticos e fáticos do fenômeno - uma tentativa de formulação conceitual do termo “trabalho escravo” e sua afirmação como categoria adequada definidora de tais relações resguardadas, porém, as diferenças deste do trabalho escravo clássico e moderno. 2 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Trabalho escravo clássico e moderno, também denominado de antigo, aqui quer denotar a escravidão instituída (escravidão bíblica, grega, romana e colonial das Américas). Já o “trabalho escravo” contemporâneo refere-se aqui tanto às formas de escravidão verificadas no mundo nos anos de pós-abolição (servidão, trabalhos forçados, peonage, etc.), ou seja, ao longo do século XX até o “trabalho escravo” contemporâneo verificado na região pesquisada. Porém, resguardando as características próprias de cada modelo e afastando esta conceituação das possíveis tentativas de impropriedades de nomenclatura, em sentido estrito, pretende-se situar o problema do “trabalho escravo” no contexto das relações laborais em zonas rurais remotas do sudeste paraense especificamente. Assim posto, a presente pesquisa tem como referência fática central as “relações escravistas de trabalho” nas fazendas do sul e sudeste do Pará, Amazônia brasileira sem, no entanto, desconsiderar que o problema é detectado, com peculiares, similares ou idênticas características, em outras regiões brasileiras ou do mundo na atualidade. A problematização e as hipóteses partiram do pressuposto de que é possível afirmar que as práticas escravizantes e o “trabalho escravo” existem na realidade de expansão da zona de fronteira amazônica. E sua afirmação não denota inadequação histórica ou semântica apesar de que, muitas vezes, estas relações fáticas são interpretadas de forma descaracterizadas ou equivocadas, pois há divergentes opiniões e definições, conforme a concepção de quem conceitua ou do conhecimento técnico-jurídico de quem define. Pecuaristas da região admitiriam que em determinadas situações possa haver desrespeito às leis trabalhistas, mas negariam que possa existir “trabalho escravo”. Já os agentes de movimentos sociais e ativistas de direitos humanos usariam correntemente o termo “trabalho escravo” para definir, identificar e classificar relatos e denúncias de trabalhadores foragidos, ameaçados ou expulsos de fazendas da região, seja por dívidas, maus tratos ou não pagamento de salários. Portanto, há um embate semântico, além de haver, como se pretende abordar mais pormenorizadamente nos capítulos finais, certa relutância acadêmica (ou científica) no uso da expressão “trabalho escravo” contemporâneo. O problema inicial a ser focalizado se coloca: como construir, a partir de uma abordagem interdisciplinar, um conceito de trabalho escravo útil para a investigação teórica e a efetivação dos direitos humanos. Porém, o desdobramento central do problema gravita em torno da indagação, já exposta, ou seja, se dadas as condições de relações laborais indignas atípicas existentes no contexto rural do sudeste paraense é possível afirmar a existência de “trabalho escravo. A pesquisa se justifica dada a realidade exposta hoje no contexto do sul e sudeste do Pará, onde inúmeros trabalhadores são aliciados, principalmente dos estados do nordeste brasileiro, para o interior das grandes fazendas da região e são submetidos à escravidão. A incidência de “trabalho escravo” representa uma demanda crescente que necessita de um trabalho preventivo nos locais de aliciamento e de ações repressivas do governo e das entidades sociais não-governamentais. Mas necessita, sobretudo, ser pesquisada sob a ótica interdisciplinar por ser um fenômeno que persiste na atualidade das relações de trabalho na fronteira amazônica e no mundo do trabalho humano. 3 Jorge Luis Ribeiro dos Santos A pesquisa tece considerações sobre conceitos colhidos acerca da realidade da escravidão ao longo da história do trabalho compulsório no mundo ocidental e busca formular uma definição de “trabalho escravo” com ênfase na dignidade da pessoa humana lesada nas relações laborais no contexto investigado. Emerge daí a necessidade de desnudar o fenômeno nas relações laborais no campo do sul e sudeste do Pará e firmar a convicção quanto ao aspecto da dignidade humana lesada. Enfim, justifica-se a pesquisa pela relevância social do tema consoante os valores da dignidade humana, e do valor social do trabalho historicamente construído, bem como para eventual aporte teórico para futuras abordagens do problema. No que concerne ao objetivo geral pretende-se a construção de um conceito de “trabalho escravo”, afirmando sua adequação designativa das relações laborais indignas e coercitivas verificadas a partir de investigações com os seguintes desdobramentos específicos: a. Tecer um breve histórico do trabalho subordinado compulsório situando o trabalho escravo contemporâneo como resquício ainda persistente na cadeia deste fenômeno. b. Explicitar os fundamentos éticos que justificavam o trabalho subordinado compulsório em outras épocas e explicam a existência do trabalho escravo hoje no Brasil. c. Identificar e analisar os argumentos que negam a existência de escravidão nas relações trabalhistas existentes nas fazendas da região sul e sudeste do Pará, bem como a possível inadequação da terminologia “trabalho escravo”. Optou-se pela pesquisa bibliográfica como instrumento metodológico, como já explicitado. Neste sentido a revisão bibliográfica se estende desde a filosofia, história, sociologia, antropologia e direito. Portanto, como se trata de uma temática voltada sobre a dignidade da pessoa humana no trabalho a pesquisa abrange desde o âmbito histórico, ético, político e jurídico. Só o direito não dará conta de explicitar minimamente o problema do “trabalho escravo”. Trata-se de um fenômeno de causas e conseqüências bem mais amplas, por isto é que buscou-se em outros campos de saber uma abordagem que se pretende interdisciplinar para a compreensão do problema como o objeto ora pesquisado que, por mais anacrônico que seja, ainda se coloca diante de nós nos dias atuais de forma persistente e que requer, para sua interpretação, a análise de teorias e conceitos em questão e na relação das conclusões com dados da realidade da prática de “trabalho escravo” verificadas em algumas fazendas do sudeste do Pará. A pesquisa situa a análise do problema “trabalho escravo” contemporâneo em três partes distintas, sem ter a intenção de ser uma investigação histórica nem tampouco privilegiar uma linearidade. Antes, buscou-se os fundamentos fáticos do fenômeno em importantes marcos da história humana para uma abordagem do problema na nossa atualidade e extrair possíveis relações históricas. O primeiro capítulo considera aspectos da escravidão clássica e antiga até suas manifestações nas escravizações coloniais de índios e negros e culmina na abolição institucional da escravidão. O segundo capítulo vai abordar as novas manifestações da escravidão, ou seja, suas “metamorfoses” no século XX - a despeito de sua abolição - notadamente quando esta se manifesta na estrutura econômica extrativista da Amazônia (caucho, borracha, castanha) ao longo do século XX. Finalmente o terceiro e último capítulo 4 Jorge Luis Ribeiro dos Santos adentra no referencial fático do “trabalho escravo” contemporâneo propriamente dito no contexto do sudeste do Pará. A primeira parte situa o trabalho compulsório no Ocidente, desde os primeiros registros bíblicos de escravidão no médio oriente, passando pelas primeiras formulações conceituais de escravidão na Grécia antiga e de uma rápida abordagem da sociedade escravocrata romana a qual iria inspirar o direito concernente ao status de coisa e propriedade do escravo. Buscou-se em fontes especializadas em escravidão antiga a compreensão histórica do problema. Uma pausa na análise da escravidão grega ressalta o pensamento escravista de Aristóteles por sua importância crucial na justificação da escravidão com base no modelo de organização da natureza que vai de maneira decisiva influir na perpetuação do escravismo no mundo ocidental e em sua sustentação político-filosófica. Em Aristóteles a escravidão é constituinte da natureza partindo do princípio de que há seres que nascem para mandar e outros para obedecer, pois, “uma obra existe quando há comando de uma parte e obediência de outra” que não possui razão plena. Esta justificativa do escravo natural seria “atualizada” na escravidão romana, na escravização dos hereges na idade Média, no subjugo dos índios e negros pagãos nas colônias modernas escravizando-os sob o argumento de civilizá-los e tirá-los da barbárie. Contudo esta concepção aristotélica antiga, como se verá, não afasta a hipótese de continuidade nos dias contemporâneos, pois, ela ainda está implicitamente presente nas concepções da escravidão contemporânea verificadas, seja nos trabalhos forçados na África colonizada nos inícios do século XX pelos europeus, seja nos sistemas de coerção da peonage nas Américas que ainda hoje persiste em algumas zonas remotas, ou no “trabalho escravo” de hoje que é objeto central do presente estudo. A primeira parte encerra-se com a servidão medieval e a ética cristã na tradição do trabalho compulsório de modelo ibérico que vai fornecer as bases filosóficas e econômicas para a escravização de indígenas e negros nas colônias recém-ocupadas pelos europeus. Entretanto, este fato não se dá de forma pacífica para a consciência de uma elite moderna nascente. Os embates ético-teológicos entre as concepções antagônicas acerca da natureza do indígena e justificativas sobre sua conseqüente escravização colocarão frontalmente as teses de Gines de Sepúlveda, o qual reproduz a concepção aristotélica do escravo natural, com a do Padre dominicano Francisco de Vitória, que, segundo Rafael Ruiz, inaugura o direito internacional e invoca noções de direitos humanos extensivos aos homens e mulheres nativos do novo mundo. Bartolomé de las Casas será o principal porta-voz das idéias de Vitória nas contendas com Sepúlveda em Valladolid em 1550. Embora vencedora a tese de Vitória os imperativos comerciais e econômicos irão pisar sobre leis, preceitos teológicos e humanitários, escravizará índios e depois negros tanto nas colônias portuguesas quanto espanholas, inglesas, francesas, holandesas, etc., nas Américas ao longo de séculos. Será este o contexto escravocrata da hispano-américa e do Brasil. É esta a matriz social colonial que irá fornecer elementos para a gênese da sociedade brasileira colonial, pré-republicana e pós-republicana com seu traço escravocrata, patriarcal e autoritário naquele sentido ilustrado por vários estudiosos da formação histórico-social do Brasil. Será esta matriz social que, mesmo após a supressão da escravidão instituída do ordenamento jurídico brasileiro, irá dar contornos e sustentáculo para que uma outra escravidão antijurídica 5 Jorge Luis Ribeiro dos Santos encontre novas formas dissimuladas de continuidade mesmo durante as décadas pós-republicanas e pósabolição até nossos dias. É precipuamente sobre a neo-escravidão que trata o segundo capítulo. Primeiro dentro de uma visão mais globalizante, ou seja, a escravidão contemporânea não só como uma característica presente na sociedade brasileira, mas situando o “trabalho escravo”, forçado, involuntário, compulsório - como queira se chamar como uma marca presente em quase todos os continentes e países, tanto é que inspirou logo nas primeiras duas décadas do século XX normatizações internacionais acerca do problema, sem no entanto, conseguir extirpá-lo, mas demarcando de forma definitiva a repulsa ética de qualquer estado de servidão laboral. Contudo, o foco do segundo capítulo voltar-se-á para as “metamorfoses” do “trabalho escravo” no Brasil, principalmente na região amazônica, no intuito de reafirmar a hipótese de que as antigas formas exploratórias de “repressão da mão-de-obra” da economia extrativa da borracha e da castanha baseados nos sistemas do “aviamento” e “barracão” formam a gênese do “trabalho escravo” contemporâneo nas frentes de expansão da fronteira no sudeste paraense. Importante salientar que a bibliografia referenciada nesta análise do trabalho compulsório da borracha é extensa e privilegiou-se, num primeiro instante, autores cujos relatos são marcadamente contemporaneizados com as relações vivenciadas no momento histórico do ciclo da borracha no Brasil dos inícios do século XX. Já na análise da Amazônia contemporânea buscamos suporte entre autores regionais contemporâneos e outros nacionalmente reconhecidos pela abordagem das problemáticas amazônicas especificamente. O terceiro e último capítulo centra-se no “trabalho escravo” contemporâneo no sudeste do Pará de hoje, aborda o contexto sócio-econômico da região e sua (re)inserção no contexto da expansão do capitalismo “modernizante” que precisa da natureza “virgem” e de mão-de-obra barata e abundantemente disponível para se expandir. No rastro desta “modernização” o paradoxo do trabalho “escravo contemporâneo” recrudesce. Mas suas manifestações, por mais paradoxais e fatídicas que pareçam ainda levariam algumas décadas para serem visualizadas pela sociedade brasileira. Para que isto ocorresse um longo caminho de construção conceitual e de caracterizações é percorrido. Aqui deu-se destaque às significativas e recentes (e raras) pesquisas sobre a contemporânea escravidão. A abordagem específica da temática do “trabalho escravo” contemporâneo na academia é nova, portanto o aporte bibliográfico é de difícil acesso, alguns ainda estão nos bancos de teses. E será disto que se tratará na última parte da pesquisa, ou seja, o tema central do problema inicialmente colocado: dadas as condições de relações laborais atípicas existentes no contexto do sudeste paraense é possível afirmar a existência de “trabalho escravo”? Para se aproximar de uma resposta a esta indagação faz-se um regresso no uso de diversos termos usados por diversas normatizações legais nacionais e internacionais e de estudiosos da questão do “trabalho escravo” contemporâneo no Brasil e especialmente na Amazônia Oriental para, por fim, questionar a adequação ou inadequação do termo dentro de um embate semântico. E a conclusão responderá: é possível retirar as aspas da expressão “trabalho escravo” definidor destas relações laborais indignas e coercitivas que se evidenciam no mundo do trabalho contemporâneo? 6 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Capítulo I 1. O trabalho compulsório no Ocidente Temos duas formas básicas de trabalho subordinado na história do trabalho subordinado no Ocidente: o trabalho compulsório e o trabalho livre que é contratualmente acordado. O trabalho compulsório diferencia-se do trabalho livre ou assalariado pelo fato de que o trabalho assalariado exige que “se abstraia conceitualmente a força de trabalho do homem que a possui”, segundo a conceituação de Finley. Em outras palavras o trabalhador livre é separado de sua força de trabalho a qual é vendida mediante paga do salário, já na compulsoriedade não se separa a força de trabalho do homem que a possui, ele próprio é vendido, é todo mercadoria e acompanha sua força de trabalho. A compulsão pode assumir várias modalidades como servil, escrava, a compulsão advinda por dívida, a peonagem, os escravos denominados hilotas1 e outras mais variadas denominações sejam passadas ou contemporâneas2. Aparecem entre os judeus registros bíblicos de trabalho escravo por dívida em Israel no livro de Neemias (Ne 5,1-13). Calixto Vendrame informa que a fome e as altas taxas de impostos submetia muitos trabalhadores e pequenos proprietários israelitas à situação de escravos. Muitos colocavam seus filhos e suas filhas a serviço dos credores, hipotecavam suas casas, seus campos de plantações, chegavam até mesmo a vender seus filhos e filhas. “A fonte principal, para não dizer a única, de escravidão de israelitas é constituída por fatores de ordem econômica. É o estado de miséria e insolvência que justifica a venda da pessoa humana.”3. A escravidão era vista com naturalidade, é o que atesta a ausência de discussão do tema na literatura antiga, afirma Milton Meltzer. A escravidão estava presente em todas as sociedades e fazia parte da vida econômica, mas a maioria dos autores antigos não via isso como problema, apenas teceram conjecturas sobre sua origem ou falaram da vida do escravo, sendo que poucos imaginavam a extinção da escravidão4. Mário Maestre Filho afirma que Escravos e escravizadores tinham um comportamento determinado pelo nível de desenvolvimento histórico da sociedade. Não devem provocar demasiada indignação as desumanidades da escravidão. Existe maior injustiça na situação de desemprego e 1 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 78. Cf. Meltzer, “hilotas” era o escravo espartano servo do estado. Já Calisto Vendrame em “A escravidão na Bíblia” o chama este servo público de de ilota (p. 26). 2 - FINLEY, Moses I. Escravidão antiga e ideologia moderna. p. 70. 3 - VENDRAME, Calisto: A escravidão na bíblia. p 129, 126. 4 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 19. 7 Jorge Luis Ribeiro dos Santos miséria no Brasil do que em todos os crimes escravistas, pois então não existiam recursos técnicos e materiais que permitissem alternativas de vida melhor5. O que tem sua parcela de razão, porém, esta assertiva deve ser relativizada, pois, como se verá, a escravidão nunca foi uma unanimidade, sempre houve vozes que contra ela se insurgiram seja nos ensinamentos bíblicos de igualdade dos homens perante Deus, seja nos discursos dos opositores de Aristóteles, sejam nas teses de Padres da igreja nos tempos da colonização nas Américas e por fim os humanistas e abolicionistas modernos e contemporâneos. 1 - A sociedade escravista grega Na Grécia antiga a escravidão assumiu concomitantemente diferentes formas de manifestação de acordo com as leis, a cultura e os modos de produção de cada cidade-estado. Os primeiros registros de submissão servil de seres humanos na Grécia Micênica, que compreendia Iolco, Tebas, Atenas, Micenas, Pilos e outras cidades menores, encontram-se nas obras homéricas6. Na Grécia antiga escravo era designado pelos termos doero/doera, mais tarde passou a se denominar doulo/doule, também com o sentido de submissão jurídica e psicológica. Há autores que identificam a derivação destes termos na raiz indo-européia da partícula dos (dos-e-lo), que significa “inimigo”, “bárbaro”, “estrangeiro”, “servidor”7. Vê-se que desde os primórdios o escravo, pelo menos em termos designativos, era um ente de fora, um estranho ao lugar e à cultura, sem laços e vínculos com o escravizador. O escravo poderia ser tanto capturado ou aprisionado na guerra, quanto alugado, comprado, ou ser escravizado por motivos religiosos. O escravo religioso, na Grécia, gozava de status superior ao demais e era chamado de “escravo divino”, este participava de cultos aos deuses e podia ter um nome composto, o que o distinguia dos demais escravos privados.8 “Com escravos e outros criados, os aristocratas formavam um sofisticado corpo de assistentes domésticos” na Grécia Homérica, informa Milton Meltzer9. Acrescenta o autor que no sistema familiar patriarcal da Grécia de Homero o escravo era de certo modo “adotado pela família”. Numa economia tão pequena, a escravidão tornava-se mais branda que nas grandes propriedades de outras sociedades. O quadro que Homero descreve sobre a vida escrava não é lúgubre, embora os escravos vivessem em condições bem inferiores às 5 - MAESTRE FILHO, Mário. Escravismo antigo. p 08. - MAESTRI FILHO, Mário. Escravismo antigo. ps. 08 e 09. 7 - ibid. p. 11. 8 - ibid. p. 11 9 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 52. 6 8 Jorge Luis Ribeiro dos Santos do senhor. Como parte da família coesa, não era considerado uma besta de carga (...). O escravo era visto como um ser humano e estava incluído num sistema de trabalho familiar, compartilhando o quanto houvesse de afeição por parte da família.10 Na medida em que os escravos se ocupavam cada vez mais do trabalho os cidadãos perdiam o respeito pelo trabalho a ponto deste ser considerado atividade restrita a pessoas naturalmente inferiores, servos e escravos. Para a sociedade patriarcal grega a escravidão tornou-se cada vez mais necessária. A democracia e a liberdade emergentes na polis grega jamais a questionou. Os cidadãos passaram a dedicar seu tempo aos negócios públicos, às artes, à guerra e à filosofia enquanto o trabalho manual foi sendo transferido compulsoriamente a outros homens escravizados11. Estes jamais seriam aptos a se tornarem cidadãos, estavam fora da esfera dos direitos democráticos. Porém de onde provinham estes escravos? A origem dos escravos é diversa. Havia aqueles que se tornavam escravos pela sua condição de miséria, aqueles camponeses expropriados de suas terras, outros, pelo rapto e outros ainda porque haviam sido vendidos pelos pais por não poderem sustentá-los. Estrangeiros apenados também poderiam vir a ser reduzidos à escravidão, assim como poderiam vir a sê-lo os cidadãos devedores insolventes. O comércio de escravos tornou-se uma atividade muito rentável na Grécia, aliás sempre foi muito lucrativo comerciar pessoas na história da escravidão humana. 1.1. - O pensamento escravista de Aristóteles Em Aristóteles vamos encontrar uma justificação da escravidão com base no modelo de organização da natureza. Para Aristóteles há, por ação da natureza e para a manutenção das espécies, um ser que manda e outro que obedece. Aquele que tem inteligência para exercer a função de mando e os que têm força física devem executar, obedecer e servir. Neste sentido o escravo é inerente à constituição da família porque é parte do interesse do amo e com ele se identifica, enquanto posse deste12. O escravo para Aristóteles era uma propriedade viva do amo, um instrumento indispensável da vida doméstica. Era o quarto elemento constitutivo da família, depois da autoridade do senhor, a autoridade marital e a geração de filhos. Aristóteles refuta a tese dos que afirmavam ser a escravidão contrária à natureza partindo do princípio de que há seres que nascem para mandar e outros para obedecer pois “uma obra existe quando há comando de uma parte e obediência de outra”. Embora Aristóteles não negasse que o escravo era um homem, e, portanto, dotado de alma e corpo, ele por instinto natural pertence a outro por não possuir uma razão plena. 10 - ibid. p. 54 - ibid. p 58 12 - ARISTÓTELES. Política. Livro Primeiro - § 1 a 20, p. 15 a 21. 11 9 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Tampouco ele possui a virtude, senão na estrita medida da necessidade de virtude para desincumbir bem suas tarefas. Esta virtude, no entanto, é dependente e é parte das virtudes do seu amo13. Nedilso Brugnera sustenta que “a respeito da participação do escravo na virtude, através de sua ligação com seu amo, há de se ressaltar que, quando falamos da virtude do escravo, aqui neste contexto, precisamos ter claro que a virtude significa cumprimento de sua missão”.14 Aristóteles vai tratar pormenorizadamente da escravidão no Livro Primeiro de sua “Política”. A cidade ou sociedade política é uma associação tendo em vista um bem que é fim de qualquer homem e todas as cidades propõem-se a algum bem. Ele parte da análise dos seres que compõem a sociedade política. Primeiramente identifica o homem e a mulher cuja natureza lhes inspira a reprodução. A natureza, além de inspirar-lhes a reprodução para a manutenção da espécie, impingiu-lhes também o instinto de mando e de obediência. Mandam – naturalmente – aqueles que têm habilidades para prover, aqueles que detêm poder e chefia. Obedecem, por sua vez, aquele que possui senão força física para executar. O poder do senhor não é ensinado, ele é natural, afirma Aristóteles. E, ainda que naturalmente subordinada, a mulher difere do escravo, apesar dos dois servirem a uma única finalidade que é o interesse do amo, o que afinal é conseqüentemente em interesse deles também, pois, eles são partes que compõem a virtude do senhor, mesmo que cada qual sirva a uma distinta finalidade. A união do homem e da mulher e entre senhor e escravo forma a família que é uma sociedade constituída para atender às necessidades diárias. E é a família que vai constituir a aldeia, que é uma sociedade de famílias reunidas visando o bem comum. E deste modo se completaram as famílias e as aldeias até constituírem uma cidade subsistindo a si mesmos. Deste modo a cidade participa das coisas da natureza e o homem é um homem político por natureza porque deve viver nesta sociedade. Na ordem natural, portanto, a polis o se sobrepõe à família e a cada indivíduo. Constituída assim a noção de polis, Aristóteles retorna à unidade menor do Estado que é a família. Os elementos da economia doméstica para Aristóteles são formados pelos servos e pelos indivíduos livres e inter-relacionados: senhor e escravo, marido e mulher, pais e filhos. Do senhor dimana, por natureza, a autoridade em relação à mulher, aos filhos e em relação ao escravo. Mas a escravidão nunca foi uma unanimidade, pelo menos dentre as concepções que lhe justificavam. Mesmo no tempo de Aristóteles havia aqueles pensadores que não aceitavam a escravidão passivamente. Aristóteles parte de uma análise da necessidade que liga o escravo ao senhor e deste ao escravo para debater e contestar as idéias contrárias sobre o assunto na polis do seu tempo. Contemporâneos a Aristóteles havia pensadores que entendiam não existir poder natural do amo sobre o escravo, pois homem livre e servo não diferem naturalmente entre si, mas o que os torna desiguais é a lei. Para estes pensadores a aludida diferença era realmente imposta pela injustiça, pela força e violência. Aristóteles refuta os argumentos desta concepção sob o argumento de que se os bens produzidos servem para manter a família, a arte de os conseguir faz parte da economia, pois sem eles os homens não 13 14 - ibid. – Livro Primeiro, § 1 a 5, p. 8 a 16 - BRUGNERA, Nedilso Lauro. A escravidão em Aristóteles. p. 81. 10 Jorge Luis Ribeiro dos Santos saberiam como viver em felicidade, posto que as coisas não se fabricam sozinhas. Para conseguir estes bens a ciência da economia doméstica tem necessidade de instrumentos e a riqueza é um composto infindável de instrumentos. Alguns instrumentos são inanimados e outros animados: o operário nas artes, por exemplo, é tido como instrumento e a propriedade é um instrumento e o servo é uma propriedade viva. Os instrumentos podem ser de uso e produção, o escravo serve para facilitar o uso e sendo o escravo propriedade – termo que deve ser entendido como parte – constitui-se não somente servo, mas parte de seu amo. Deste modo não se pertence, mas pertence a outro, sem deixar de ser homem, pois é um homem possuído, é um instrumento de uso, separado do corpo a que pertence. Mas, pergunta Aristóteles: será justo ou lucrativo ser escravo? Não seria tal situação contrária à natureza? Para responder a estas indagações Aristóteles parte da análise de que a obediência além de necessária é útil. Porque a obediência é de ordem predestinada e natural. Alguns nascem para obedecer e outros para mandar. A espécie se aperfeiçoa na justa medida em que um manda sobre os demais, uma obra só faz se há comando de uma parte e obediência de outra. E é assim que se estruturaram muitas relações de trabalho involuntárias que atravessou séculos e ainda trouxe resquícios para as sociedades contemporâneas. O mundo aristotélico era organizado por uma ordem natural perfeita e hierarquizada na gradual disposição das virtudes. O ser vivo, ensinava Aristóteles, constitui-se de corpo e alma. O espírito comanda o corpo, isto nos homens virtuosos, assim como o amo comanda o servo. O entendimento dirige o instinto, como o juiz aos cidadãos e o soberano aos súditos. A razão guia a afetividade, isto tudo é da natureza. A igualdade de governo a cada qual é prejudicial a ambos. Para o filósofo esta relação se repete na natureza. É mais perfeito ao macho dirigir e à fêmea obedecer. Na espécie humana existe seres tão diferentes e inferiores a outros quanto o corpo é da alma, os mais inferiores são aqueles cuja melhor faculdade é a força física. Segundo Aristóteles estes indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão porque para estes não há nada mais simples do que a obediência. O escravo o é por instinto, por isso é propriedade de outro, ele não tem razão plena sendo tão útil quanto os animais domésticos, portanto, para os escravos é justo e proveitoso viver assim, justifica Aristóteles. Tal argumento seria atualizado para justificar a escravidão de hereges na idade Média e de índios e negros pagãos nas colônias americanas modernas, principalmente por motivos de conversão e catequização cristã, para civilizar e tirá-los da barbárie. Mas se existe a servidão natural, também existe aquela servidão convencional, estabelecida pelo direito, ou seja, aquela na qual o vencido na guerra torna-se cativo do vencedor. Sobre esta forma de escravidão Aristóteles reconhece as divergentes opiniões, se é ou não justa. Para Aristóteles a “superioridade da coragem não é uma razão para sujeitar os outros”, mesmo porque a guerra pode ser injusta, neste sentido mesmo que se aceite a lei de guerra que estabelece a escravidão, deve-se ter cautela em relação a ela para não se escravizar alguém que não mereceu a escravidão. Mesmo porque, se poderá incorrer no perigo de escravizar pessoas nobres e contrariar o princípio de “que só são escravos os que foram destinados à servidão 11 Jorge Luis Ribeiro dos Santos por natureza”, pois algumas pessoas são escravas em qualquer lugar e outras não são escravas em lugar nenhum15. Aqui podemos também perceber como as idéias de justa escravização por guerra no mundo colonial podem ter sido inspiradas nos pressupostos aristotélicos, principalmente quando estes princípios ressonaram nos escritos de Gines de Sepúlveda e foram contrapostos às idéias de Bartolomé de Las Casas. Sepúlveda endossava a escravização de povos sobre a justificativa de guerra justa, segundo pressupostos aristotélicos e é óbvio que toda guerra das potências coloniais eram presumidas “justas”. Enfim existem escravos pela própria ação da natureza, afirma Aristóteles. É preciso que aquele sirva e este mande segundo o direito natural de sua autoridade plena. Mas o vício num ou noutro é nocivo a ambos, pois o escravo é como um membro do senhor. Por esta característica é que deve existir interesse mútuo e amizade entre aos dois, pois quando não é assim é feito por lei e violência. Aristóteles conclui que a ciência do senhor consiste no uso que ele faz do seu escravo. Seu poder é natural e sua autoridade doméstica é uma monarquia, porque “governa sozinho” a família dos servos. Diferente do magistrado que é uma autoridade de homens livres. O senhor é amo por se utilizar de escravos, não por tê-los. Ele deve saber ordenar o que o escravo deve executar. Mas esta ciência é pequena e desinteressante, todos que podem deixam-na a um criado e entregam-se à política ou à filosofia16. 2 - A escravidão romana Sobre o status do escravo na antiguidade clássica romana Moses Finley afirma que quando os juristas romanos definiam o escravo como alguém sob o dominium de outrem, empregavam a denominação perfeita e acabada da propriedade – dominium e o fato de serem humanos não os dissuadia de assim considerá-los, explorá-los, vendê-los, torturá-los e até matá-los17. Finley acentua que os direitos de um proprietário de escravos sobre seu escravo-propriedade eram totais. “Este poder do proprietário sobre o escravo era facilitado pelo fato do escravo ser um estrangeiro, desenraizado, sem parentesco algum”18, acentua. O escravo como tal, sofria não apenas de uma “perda total do controle sobre seu trabalho” mas também do controle sobre sua personalidade. “O que há de único na escravidão”, frisa o autor, “é o fato de o próprio trabalhador ser uma mercadoria, e não meramente seu trabalho ou força de trabalho”. Este é para Finley o distintivo que identifica o trabalhador compulsório do trabalhador livre. 15 - Aristóteles. A Política, p. 16. - Ibid. Livro Primeiro, §22, p. 21. 17 - FINLEY, Moses I.. Eescravidão antiga e ideologia moderna. p. 76. 18 - ibid. p.77 16 12 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Na Roma antiga desenvolveu-se uma hierarquia no seio da população escrava. Os escravos das minas da Espanha, ou os escravos nas fazendas da Itália, por exemplo, estavam no mais baixo e indigno escalão hierárquico, já os escravos do serviço público imperial, os escravos capatazes e supervisores nos campos e escravos urbanos, gozavam de certas “regalias” como a liberdade para desenvolver algumas atividades autônomas (comércio, manufatura) pelo uso do peculium. O peculium consistia em uma pequena economia acumulada pelo escravo, afirma Finley19. A demanda por escravos era grande no mundo greco-romano. As atividades eram predominantemente agrárias, a propriedade privada da terra estava concentrada na mão de poucos e a mão de obra devia ser buscada fora, era uma força de trabalho estrangeira devido à inexistência de mão de obra interna disponível, traço também característico do “trabalho escravo” contemporâneo em zonas rurais remotas. Havia um desenvolvimento dos bens de produção e mercado para venda que se dirigiam para os centros urbanos ou para exportação. Neste mundo agrário antigo Homem livre era quem não vivia sob o domínio nem trabalhava para outrem; era quem vivia, de preferência, em seu lote de terra herdado, com seus altares e templos herdados. A criação deste tipo de homem livre, num mundo pré-industrial, de baixa tecnologia, levou ao estabelecimento de uma sociedade escravista. Não havia uma alternativa realista disponível20. Em Roma a demanda da mão de obra escrava deveu-se não só ao desenvolvimento das diversas formas de indústria, mineração, manufaturas, construção de estradas e da agricultura, mas também, às exigências da suntuosidade da vida dos senhores romanos. Eram comuns as caravanas de bárbaros acorrentados que da periferia eram conduzidos ao centro do império para serem serviçais nos castelos e casas de nobres21. As condições demandantes da força de trabalho escravo, segundo Finley, são três: a concentração privada da grande propriedade agrária com demanda crescente de mão-de-obra; o desenvolvimento dos meios de produção e um mercado consumidor e por último a falta de mão-de-obra interna disponível22. Estas condições são reveladoras para a persecução de sua correlação com as condições em que se efetivam a utilização de “trabalho escravo” na estrutura agro-latifundiária no sudeste paraense contemporâneo, pois, passíveis de comparação, a grosso modo, com aquele, resguardadas as diferenças de espaço e tempo. O escravo romano era considerado coisa, objeto, instrumento, res. Mais tarde os escravos conquistaram alguns direitos como o matrimônio, o direito de assistirem aos cultos e o pecúlio. Mesmo assim, eles não tinham o status de cidadãos, ou seja, serem sujeitos de direitos e terem plenas capacidades de 19 - ibid. p. 79. - ibid. pgs. 89 e 93 21 - VENDRAME, Calisto. A escravidão na Bíblia. p. 31, 32. 22 - FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e ideologia moderna. P. 89. 20 13 Jorge Luis Ribeiro dos Santos exercer seus direitos, o que consistia em ter: status civitatis, status libertatis e status familiae23. Só eram cidadãos os ingênuos e os libertos24. Aos escravos faltava o status libertae. Segundo Rolim, em Roma uma pessoa poderia se tornar escrava pelo nascimento, pelo aprisionamento em guerra, pela condenação a penas capitais ou a trabalhos forçados e pela inadimplência. Também os ladrões, desertores militares e aqueles que se recusavam a inscrever-se no senso poderiam cair em escravidão. Havia ainda situações de “quase-servidão” onde uma pessoa livre dependia e era submissa a outrem como os addictus que eram os devedores insolventes os quais ficavam submetidos ao credor; os colonos servi terrae que eram lavradores servos da terra que a elas se vinculavam mediante paga de renda ao proprietário; os redemptus que eram prisioneiros de guerra resgatados; os auctoractus que eram gladiadores submetidos às ordens de um empresário. Havia também a venda dos filhos para saldar dívida e, por fim, a própria servidão voluntária por gratidão25. Embora vastamente praticada na Roma antiga a escravização natural também encontrava seus opositores, assim como na Grécia. Sêneca foi talvez o mais influente deles. O filósofo romano defendia a igualdade de todos os homens. Sêneca sustentava que só se escraviza o corpo pois o espírito é livre. A escravidão para ele era uma instituição humana e não natural como acreditavam os gregos. Embora não tenha trabalhado para sua abolição, Sêneca, elaborou leis que atenuavam o tratamento rigoroso aos escravos26. Ullmann traduz a recomendação do filósofo: Não quereis refletir um pouco sobre o fato de que aquele a quem chamas escravo tem a mesma origem que tu; que frui do mesmo céu; que respira o mesmo ar e que, como tu, vive e morre? Tanto tu podes considerá-lo como livre, quanto ele te pode ter em conta de escravo27. Comungaram da mesma opinião de Sêneca os filósofos Ulpiano e Flotentino ao defenderam que a escravidão violava a lei natural de igualdade dos homens28. Mas mesmo estas considerações “humanitárias” e até revolucionárias para época não suplantaram a necessidade de manutenção da escravidão. Com a desagregação do império romano não houve necessariamente declínio da escravidão em Roma. As mudanças forçaram uma lenta e gradativa transformação nas relações de trabalho como a gradual predominância de formas não-escravas de trabalho dependente29, mas o trabalho escravo não desapareceu, ao contrário, conviveu com outras formas de servidão e até mesmo ao lado do trabalho livre por toda a Idade Média. 23 - ROLIM, Luis Antônio. Instituições de Direito Romano. p. 142. -TABOSA, Agerson. Direito Romano. p. 112. 25 - ROLIM, Luis Antônio. Instituições de direito Romano. p. 144 a 148. 26 - ULLMANN, Reinhold Aloysio. O Estoicismo romano. p. 28. 27 - ibid. pg. 35. 28 - MELTIZER, Milton. História ilustrada da escravidão. 146. 29 - FINLEY. Moses. A escravidão antiga e ideologia moderna. pp. 133 e 138 24 14 Jorge Luis Ribeiro dos Santos 3 - A servidão medieval: o trabalho compulsório na tradição ibérica. Durante toda a Idade Média o trabalho compulsório continuou na modalidade de servidão, não por uma mudança de mentalidade que negasse a escravidão, mas devido a crise e decadência do império romano e à crise econômica30. A “servidão da gleba”, afirma Vendrame, “apesar de mais branda, traz consigo todas as notas da dominação do homem pelo homem”31. Os servos da gleba pertencem a seus senhores e estão ligados à gleba, dela permanecendo como extensão da propriedade do senhor. Tanto é que o servo passa, juntamente com a terra, a outro patrão quando a terra é alienada. Aliás, ele não pode deixar a terra sem que o senhor lhe dê permissão, nem para casar-se sem consentimento senhoril. Neldilso Brugnera afirma que em muitos aspectos o servo vivia em piores condições do que o escravo devido ao sistema espoliativo de impostos32. O camponês medieval vivia numa choça miserável, afirma Huberman33, trabalhava mais de dezesseis horas por dia nas imensas propriedades rurais do senhor. Ele cultivava uma pequena faixa de terra para sustento da família, mas tinha que trabalhar sem nada receber, dois ou três dias por semana para o seu senhor. Havia aqueles que faziam os serviços domésticos e também outros que dedicavam totalmente seu tempo de trabalho ao senhor. O trabalho nas terras do senhor tinha prioridade suprema sobre qualquer outra obrigação sua. Ele também era chamado para qualquer eventual necessidade do senhor se este o requisitasse, fossem construções, reparação, abertura de estradas ou outros serviços emergenciais. Para Huberman o camponês não era um escravo no sentido literal que hoje se define, porque mesmo que este não tenha liberdade plena, que esteja subordinado à vontade do senhor e para este devia trabalhar involuntariamente, o servo não é propriedade do senhor como o escravo clássico que inclusive poderia ser vendido. O servo não podia ser vendido, pelo menos isoladamente, mas somente como parte da terra, como “gado humano necessário ao trabalho da terra”. E esta “era uma diferença fundamental, pois concedia ao servo uma espécie de segurança que o escravo nunca teve”, afirma Huberman. Se o feudo fosse vendido, ou de qualquer outra forma transferido, o servo nele continuava e passava a ser servo do outro senhor que assumisse a propriedade, a terra não podia ser vendida sem o servo e nem este podia deixá-la. “O título de posse mantinha o servo, não o servo ao título”.34 Aliás, tal diferença apontada por Huberman parece mais aproximar a condição do servo do escravo clássico do que diferenciá-los uma vez que se o servo também era computado como valor agregado da terra, sua venda junto com a propriedade também o reduz a mera mercadoria. Dependendo das qualificações profissionais do servo - pedreiro, carpinteiro, ferreiro, etc. - ele influía no total do preço da terra, isto o fazia, de certa forma, uma “mercadoria agregada”, mas, uma mercadoria, mesmo que fixa. Salienta ainda o autor 30 - BRUGNERA, Nedilso. A escravidão em Aristóteles. p. 29. - VENDRAME Calisto. A escravidão na Bíblia. p. 57. 32 - BRUGNERA, Nedilso. A escravidão em Aristóteles. p. 29. 33 - HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. p. 14. 34 - ibid. p. 15. 31 15 Jorge Luis Ribeiro dos Santos que o senhor manejava o servo como se maneja o gado. No século XI, afirma o autor, um servo francês valia 38 soldos, enquanto um cavalo valia 100 soldos. Ademais, os termos escravo-servo e escravidão-servidão se expressam também pelos termos gregos doundos e douleia, nomes próprio que se dá ao escravo, assinala Jesus Maria G. Anõveros35: Como diz Corominas o termo escravo deriva do grego bizantino eslabos, o qual posteriormente, referiu-se aos povos do Oriente Medieval, vítimas do comércio de escravos, e que derivou a palavra escravo, que no século VII tomou o sentido de servo. Mesmo que na Idade Média se utilizasse o termo servus (servo), sem embargo, pouco a pouco, foi-se impondo o termo escravo e a palavra latina servus se traduziu indistintamente ao espanhol por servo ou escravo, prevalecendo o termo escravo. (...) uma bula de Pio V na qual se diz “mancipia quaeque sclavos vulgariter nuncupata” (...) indica que os sevos já eram chamados vulgarmente de escravos. Parece, a rigor, haver pouca diferença entre escravidão e servidão. Esta diferença seria mais formal e ligada aos costumes sócio-econômicos do feudo que propriamente em relação à compulsão laboral. A diferença que se evidencia entre escravidão e servidão - se é que resiste a uma acurada comparação no que respeita à compulsoriedade e a uma comparação mais radical - aparece também nas condições de relação ao dominador. Parece haver no servo uma “gratidão”, uma subjugação mais conformada ao seu senhor, em troca de certa proteção de seu senhor, do que há no escravo. Enquanto no escravo clássico a subjugação é mais violenta, mais forçada, os limites ao corpo e à mobilidade são bem mais expressivos, e ele é um “estrangeiro”, um “estranho”, “bárbaro”, um “desgarrado” de seu meio pois trazido de fora para ser submetido compulsoriamente ao trabalho. Quanto ao servo parece haver uma pequena, porém maior, liberdade de ação, de mobilidade e de autonomia produtiva e auto-subsistente. Ademais, o servo já está na “sua” terra, muda-se o senhor e o servo fica, mesmo que servil a outro senhor. No entanto, embora não tivesse a liberdade de abandonar o seu senhor, muitos servos eram capturados ao tentarem fugir e os casamentos, se implicassem uma mudança do servo, eram muito difíceis de serem concedidos pelo senhor. Se o escravo era parte da propriedade e poderia ser comprado ou vendido em qualquer parte, a qualquer tempo, o servo, ao contrário, não podia ser vendido fora de sua terra. Seu senhor deveria transferir a posse do feudo a outro, isto significava, apenas, que o servo teria novo senhor; ele próprio permanecia em seu pedaço de terra. Esta era uma diferença fundamental, pois concedia ao servo uma espécie de segurança que o escravo nunca teve. Por pior que fosse o seu tratamento, o servo possuía família e lar e a utilização da terra36. 35 - AÑOVEROS, Jesús M. García. El pensamiento y los argumentos sobre la esclavitud em el siglo XVI y su aplicación a los indios americanos y a los negros africanos. p. 26. Tradução minha. 16 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Outro fato que pode ser evidenciado é que a produção feudal não visava predominantemente ao comércio, mas à auto-suficiência do feudo, ao passo que a produção do escravo da idade moderna estava principalmente mais voltada à expansão comercial. Daí deduz-se que o servo produzindo a cota suficiente ao consumo do senhorio do feudo dele não era exigido maiores esforços, salvo necessidades de urgência e imprevisíveis, tendo o mesmo liberdade de cuidar de seus trabalhos e de suas pequenas criações. Já na escravidão – especialmente a escravidão moderna - a demanda crescente de manufaturas imposta pelo mercado e um capitalismo em expansão impunha a racionalização do trabalho do escravo com maior vigilância, a exigência de produtividade para aumento e otimização da lucratividade, isto a torna mais visivelmente violenta do que a servidão. Os servos, em todos os reinos europeus, eram compungidos a fornecer o excedente da produção de alimentos, prestar serviços, pagar impostos específicos e obrigatórios aos nobres, aos governantes e ao clero. Meltzer afirma que Sem a imposição de qualquer lei, a não ser a vontade do senhor, o camponês feudal agora era orientado pelo costume do feudo (...). Ele era o responsável pelo suprimento de suas necessidades. Pagava aluguel, controlava boa parte de seu tempo, vivia uma vida provavelmente melhor do que a do escravo da latifundia romana. Às vezes tinha menos para comer, mas sempre dispunha de mais liberdade pessoal37. Entretanto, a servidão medieval convive com formas de escravidão propriamente ditas com as quais irá, aos poucos, se mesclando, e suplantando, pelo menos até o início da colonização, na Europa Medieval através do tráfico de escravos não-cristãos e também de europeus escravizando-se mutuamente. Os portos de Espanha, sul da França e da Itália nos séculos XIV e XV possuíam intensa movimentação de vários produtos e comércio, mas também de tráfico de escravos em cidades portuárias da Europa mediterrânea como as da Espanha, do sul da França e Itália. “Lyon, Florença, Roma e Veneza tinham mercados de escravos muito ativos”38. Vendrame constata: “Achava-se bastante normal que os cristãos pudessem reduzir à escravidão os maometanos (...) e também os judeus, sobre cuja cabeça se acreditava tivesse caído, como uma maldição, o sangue de Cristo”39. A península ibérica que recebera o impacto das invasões bárbaras e o esfacelamento do escravismo romano tenta organizar o reino visigodo, mas este é destruído pela invasão muçulmana, predominando um sistema islâmico de cobrança de tributos pelo uso da terra. Mas ainda persiste nas regiões de predomínio cristão. O feudalismo bem centralizado nos pequenos reinos cristãos que permanentemente lutavam pela reconquista dos territórios tomados pelos mouros através da “guerra santa aos infiéis”. A vitória dos 36 - HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem p. 15 - ibid p. 179. 38 - VENDRAME, Calisto. A escravidão na Bíblia. p. 58. 37 17 Jorge Luis Ribeiro dos Santos castelhanos contra o Islã também era uma vitória da Igreja. A reconquista ibérica suscitava nos aventureiros e vitoriosos a busca por riquezas e prestígio e na igreja acenou para a busca de milhares de almas à espera de salvação, acompanhados também de compensações materiais. Estava aberto o caminho para a conquista para além dos limites continentais, qual seja, o lado oposto às cercanias orientais do império turco-otomano empreendimento ao qual os portugueses já se adiantavam. O desejo de acumular metais preciosos era uma tendência da transição do mercantilismo para o capitalismo. Esta era uma característica econômica dos reinos ibéricos e Portugal já se adiantava nesta nova economia na qual retinha já ouro, comerciava escravos e açúcar africanos, constituindo sua base monetária para financiar a expansão ultramarina. 40 Em 1444 Portugal conquista a costa senegalesa e Lisboa também se converte em importante centro mercantil de escravos. As grandes navegações e a descoberta e ocupação das Américas só fizeram expandir este mercado agora disputado por todas as nações imperialistas da Europa como Espanha, França, Inglaterra, Holanda, afirma Vendrame. Há por conseguinte um incremento da utilização do serviço escravo como o mais importante aspecto da produção industrial agroexportadora nas colônias das Américas para a sustentação econômica das potências européias. 3.1 - Servidão medieval e ética cristã A Igreja teve papel fundamental na estrutura estamental do período medieval. A própria Igreja foi a maior proprietária de terras no feudalismo. Ela também era “senhor” de milhares de servos e deles se utilizava, salienta Heers, principalmente nas cidades mediterrâneas, após a reconquista ibérica dos mouros na Espanha, Itália e França nos fins séculos XII e início do século XIII. Nos mosteiros era comum o uso de trabalho escravo como nas cidades da Catalunha, Maiorca, Nápoles, Barcelona, Gênova, Marselha, Florença, Veneza, Siracusa e Constantinopla. Os povos escravizados eram principalmente os tártaros, russos, circasianos, abkhuzes, mouros, búlgaros, bosniacos, migrelianos, gregos, albaneses, húngaros, canários, negros e turcos41. Heers aduz que: Os escravos pagãos, muçulmanos, heréticos ou cismáticos parecem ser todos tratados da mesma maneira, pelos eclesiásticos como pelos seus outros senhores. Na verdade, esta atitude das gentes da Igreja pode surpreender e chocar. De facto, inserem-se perfeitamente no seu meio social e seguem exactamente os usos dele. Todos os religiosos possuem, nos lugares em que a servidão faz parte dos costumes, escravos. 39 - VENDRAME, Calisto. A escravidão na Bíblia. p. 59. Sobre o tema ver também DAVIS, David Brion. O problema da Escravidão na cultura ocidental e LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África. Uma história de sua transformação. Rio de Janeiro. 40 - WASSSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Barcellos. História da América Latina – do descobrimento a 1900. p.31. 18 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Como traço comum nas outras épocas e culturas os escravos do clero medieval “são estrangeiros, muitas vezes inimigos”, muitos capturados nas guerras. Outras vezes são os heréticos e os cismáticos, sobre os quais cai o ódio e o desejo de retirar-lhes do meio. Os orientais, mesmo os cristãos, também corriam o risco de serem escravizados pelos latinos. Há, subjacente à escravidão dos “infiéis”, a justificativa de salvaguarda das suas almas e a conversão destes, mas mesmo assim o batismo não muda a condição jurídica e material do escravo42. Santo Agostinho, afirma Meltzer43, dizia que a escravidão é imposta por Deus ao pecador, ela não era apenas punição, mas também um remédio e que todo escravo merece ser escravo. O Direito Canônico considerava o escravo uma propriedade sem os direitos comuns da personalidade. A igreja, constata o autor, protegia o interesse do senhor sobre seu escravo- propriedade e mandava os escravos obedecerem até aos piores senhores conforme uma parábola de Cristo: “Bem aventurado o escravo cujo senhor, ao retornar, o encontra realizando a sua incumbência”, ou de Pedro (I Pedro 2:18): “Servos, sujeitai-vos a vossos senhores com todo o temor; não só ao bom e gentil, mas também ao intransigente”, mesmo porque o juízo final, acreditavam os cristãos, estava perto, então não fazia diferença ser senhor ou escravo, pois o homem medieval vivia para a morte, condição para alcançar o reino dos céus. A posição dos cristãos frente à escravidão é ambígua, afirma Calisto Vendrame, ao tratar do escravismo entre os cristãos em sua obra “A escravidão na Bíblia”. A escravidão entre os cristãos é derivada de Aristóteles e ora eles oscilam entre julgá-la desumana, mas, ao mesmo tempo “natural” como instituição que sempre existiu e como parte da estrutura da sociedade. Na doutrina dos Padres da igreja, vem em primeiro plano o aspecto moral que justifica a escravidão: aquele que não é capaz de governar a si próprio, especialmente por causa de sua inferioridade moral, deve ser guiado por aqueles que lhe são moralmente superiores. A escravidão aparece assim como castigo, e, ao mesmo tempo, como meio de salvação. (...) A escravidão existe como um fato social, para não dizer como uma fatalidade, com a qual é necessário conviver, como com a fatalidade da dor e da morte, em face das quais a humanidade toma uma série de medidas para torná-las menos amargas, mas não pretende, nem acha possível, eliminar44. Ademais, a escravidão era vista até como algo benéfico no sentido do sofrimento do corpo purificar o espírito. O homem medieval era um homem voltado para as glórias celestes, a materialidade terrena não era preponderante, era um homem que vivia para a morte, pois, só com ela ele alcançaria a eternidade e 41 - HEERS, Jaques. Escravos e servidão doméstica na Idade Média no mundo mediterrâneo. p.79. - ibid. p. 88. 43 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 175. 44 - VENDRAME, Calisto. A escravidão na bíblia. p. 81 42 19 Jorge Luis Ribeiro dos Santos imortalidade do paraíso e podia finalmente gozar das delícias de Deus, mas na terra o padecimento era comum e aceito. Contudo, o cristianismo influenciou o direito relativo a um melhor e mais “humanizante” trato aos escravos, assegura Vendrame. Lei inspiradas da doutrina cristã atenuaram e até extirparam algumas formas de castigos corporais aos escravos. Por influência do cristianismo é que no Direito encontramos normas com conteúdos morais afirmando, por exemplo, que “o escravo também é pessoa”, e ainda, que “todos os homens são iguais na sua natureza e dignidade” e “a moral é igual para todos”. Paulo dizia que não havia judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos eram um em Jesus Cristo, mas na prática esta concepção era negada. O Direito Canônico, no início da Idade Média, até permitia que escravos fossem padres: “o idealismo cristão que vê no escravo um irmão com a mesma dignidade de pessoa humana e filiação divina do homem livre e que, portanto, não vê nenhum inconveniente a que lhe sejam abertas as portas do sacerdócio ministerial.”45 No entanto, a escravidão nunca teve uma justificação unânime, diversos pesadores contestavam a escravidão natural defendida por Aristóteles. Constata Vendrame que estes achavam “que não era a noção do homem escravo que devia ser mudada, mas sua posição na sociedade”, pois, como afirmavam os filósofos opositores, à época, das idéias de Aristóteles: todos têm “idêntico nascimento” e todos “respiram pela boca e pelas narinas”, e por ser escravo, ninguém é menos que outro, pois todos são feitos da mesma carne. “Ninguém é escravo por natureza; é o destino que escraviza os corpos”46. Segundo Vendrame, nas culturas antigas do Oriente Médio o escravo é simples coisa, é peça, res que é vendida, comprada, avaliada, garantida. O Código de Hamurabi já previa que o escravo é tido como coisa do proprietário. Na Bíblia não é diferente, embora permaneça a contradição bíblica do homem criado à semelhança de Deus em conflito com a condição dos homens e mulheres escravos como coisas e meros instrumentos47. Narra o livro do Êxodo que “Se alguém bate em seu escravo ou sua escrava a tal ponto que eles venham a falecer das pancadas, deverão ser vingados. Mas se eles agüentam um dia ou dois, o patrão não sofrerá vingança, pois eles são sua propriedade” (Ex. 21, 20-22)48. Por outro lado Jó questiona a escravidão: Se eu desconheci os direitos do meu escravo e da minha escrava nos seus litígios contra mim, que haverei de fazer quando Deus se levantar contra mim? Quando ele abrir inquérito, que lhe poderei responder? Ele que plasmou a mim no seio materno, porventura não plasmou também a ele? O mesmo Deus fez a ambos (Jó 31, 13-15). Diante de tantas contradições dos primeiros cristãos sobre à natureza do escravo Vendrame diz que as condições da vida dos israelitas explicam estas ambigüidades e antinomias do seu sistema escravista. Três 45 - ibid. p. 81. - ibid. p. 54. 47 - ibid. p. 147-148. 48 - ibid. p. 154. 46 20 Jorge Luis Ribeiro dos Santos fatores explicam estas contradições do escravo ser coisa, mas ao mesmo tempo ser pessoa, ou seja, homem concebido por Deus e escravo herdado da história, quais sejam: 1) o fato da escravidão, com seu aspecto brutal na vida quotidiana do povo, influenciado por um meio ambiente onde predomina a lei do mais forte; 2) as leis que tentam regulamentar o fato brutal, visando sempre à proteção do mais fraco, leis que dependem da legislação comum do Oriente Médio antigo, mas que apresentam aspectos que só se podem explicar por uma visão superior do homem: 3) do ideal, sonhado pelas elites do pensamento e da religião, positivamente revelado por Deus, que haveria de levar paulatinamente à eliminação de toda forma de escravidão, mas que já influía no espírito das leis que, para não serem utópicas, deviam encarnar-se no contexto sócio-cultural da época.49 Os profetas afirmavam que o escravo é um homem como todos os outros, vítima da ganância e do egoísmo dos seus semelhantes. A escravidão é, portanto, algo absurdo que deverá desaparecer na restauração messiânica, quando o homem será reintegrado na sua justiça50. Resulta daí mostras também de intolerância dos cristãos frente à escravidão, fato que irá se repetir com os renhidos debates entre Jesuítas e Dominicanos contra outros setores do clero ou da corte já na modernidade. Aqueles condenando e estes justificando a escravidão, como o clássico debate entre Batolomé de Las Casas e Juan Guines de Sepúlveda, em Vallodolid, sobre a escravização indígena na América recém ocupada por europeus colonizadores. Mas prevaleceu mesmo, seja por tolerância de alguns setores da igreja medieval ou por impotência de outros, a escravidão sob os auspícios da Igreja. Para Vendrame a comunidade cristã distinguia também nitidamente a esfera espiritual da social e deu mostras de grande indiferença em face da instituição jurídica da escravidão. Resulta que tanto a Igreja como os eclesiásticos possuíam escravos sem suspeitarem que isto pudesse contrastar com a lei divina. Aquilo que importava era igualdade no aspecto espiritual; no aspecto terreno o esforço se concentrava no impedir os maus-tratos irlhes a livre profissão e exercício do culto51. Havia também um corpo jurisprudencial antigo na Igreja que consolidava as justificativas morais da escravatura ao lado de leis atenuantes. Heers destaca que em 1311 o papa proibiu, através do “Concílio de Viena”, a venda de escravos cristãos a infiéis nas regiões muçulmanas.52. 49 - ibid. p. 200. - ibid. p.225 51 - ibid. p. 76. 52 - HEERS, Jacques. Escravos e servidão doméstica. p. 86 50 21 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Mesmo assim, dadas as condições não podia ser diferente, a igreja era a maior proprietária de terras na idade média, e necessitava de mão-de-obra abundante para produzir em suas terras, nisto resultou que ela tinha sua face escravagista. Assim as gentes da igreja não manifestavam nenhuma repugnância em adquirir escravos. Esta atitude testemunha uma perfeita conformidade social e responde a necessidades econômicas e financeiras. Ela justifica talvez, do ponto de vista religioso, pelo desejo de salvar almas, de consolidar uma conversão recente, ainda que superficial porque imposta; assim podia-se pensar que esta conversão seria mais certa se os novos baptizados ficassem num meio religioso.53 3.2 - América hispânica: escravidão e “encomienda” O escravismo na economia colonial se impõe como exigência do desenvolvimento e até mesmo para a manutenção e sobrevivência das economias européias. Para tanto, as colônias devem produzir a baixíssimo custo para o mercado consumidor europeu e isto só se conseguiria com as variadas formas de trabalho compulsório. Mas como se justificaria a submissão de populações nativas “inocentes”, “puras”, ou vivendo em “estado natural” nos paraísos tropicais recém descobertos? Os gregos já aplicavam o princípio do domínio dos sábios sobre os ignorantes, afirma Añoveros, e desta conclusão deriva a escravidão e a servidão54. Esta doutrina foi aceita pela maioria dos pensadores medievais, prevaleceu no pensamento iluminista e foi, na prática, o fundamento justificador da escravidão dos habitantes nativos das Américas. Sendo o índio “naturalmente” inferior ao branco europeu é justo e bom que este se sujeite ao mando e sabedoria do conquistador civilizado europeu. Gines de Sepúlveda, jurista espanhol foi um dos grandes apologistas do direito natural dos conquistadores e defensor da submissão dos nativos americanos à servidão em conseqüência do direito de guerra justa. Segundo sua tese “é princípio e dogma natural: o império e domínio da perfeição sobre a imperfeição, da fortaleza sobre a debilidade, da virtude excelsa sobre o vício” (tradução minha), pois A parte dotada de razão governa e impera, todavia, a outra à qual falta razão, se submete ao domínio daquela e a obedece, e tudo isto faz por decisão e lei divina e natural segundo a qual as coisas mais perfeitas e melhores dominam as imperfeitas e desiguais55. 53 - ibid. p. 81 - AÑOVEROS, Jesús María García. El pensamiento y los argumentos sobre la esclavitud en el siglo XVI y su aplicación a los indios americanos y a los negros africanos. p. 128. 55 - SEPULVEDA, Juan Gines. Demócrates Segundo - De las justas causas de la guerra contra los indios. p. 20. Tradução minha. 54 22 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O pensamento de Gines de Sepúlveda deriva da concepção aristotélica. Sepúlveda usa o dualismo escravista grego-bárbaro da concepção grega para descrever a relação escravista espanhol-índio ao afirmar a superioridade daqueles que usam prudência e o engenho, dos que são senhores por natureza; por outro lado, os lerdos e idiotas habilitados a executar as tarefas necessárias, são escravos por natureza. Marilena Chauí faz análise da justificação da escravidão colonial do indígena a partir da concepção do estado de natureza desenvolvida pelas teorias inspiradas no direito natural objetivo e subjetivo. Na teoria do direito natural objetivo, afirma, Deus é o legislador supremo e criador de uma ordem jurídica natural que ordena hierarquicamente os seres segundo o grau de poder e perfeição determinando regras de mando e obediência. É óbvio que nesta ordem o superior domina e subordina o inferior. Já o Direito natural subjetivo afirma a racionalidade do homem, a sua vontade, o sentimento de justiça, do certo e do errado, a sociabilidade natural56. Assim, em conformidade com as teorias do direito natural objetivo e subjetivo, a subordinação e o cativeiro dos índios serão considerados obra espontânea da Natureza. De fato, pela teoria da ordem jurídica natural, os nativos são juridicamente inferiores e devem ser mandados pelos superiores naturais, o conquistador– colonizador. Por outro lado, graças à teoria de Natureza subjetiva diz-se que alguém é sujeito de direito quando está na plena posse da vontade, da razão e dos bens necessários à vida – seu corpo, suas propriedades móveis e imóveis, e sua liberdade. Modernizado, este direito subjetivo natural consagra a idéia de propriedade privada incondicional ou absoluta, tal como definida pelo antigo direito romano. Em outras palavras, a vida, o corpo, a liberdade são concebidos como propriedades naturais que pertencem ao sujeito racional e voluntário. Ora, dizem os teóricos, considerando-se o estado selvagem (ou de brutos que não exercem a razão), os índios não podem ser tidos como sujeitos de direitos, e como tais são escravos naturais57. Foi conforme procederam os colonizadores portugueses e espanhóis. Colombo, quando desembarcou na América escreveu aos reis de Espanha sobre a facilidade de se capturar índios e do quão lucrativa poderia ser esta empreitada nos comércios escravistas de Sevilha e outros portos da Europa. Os “índios são próprios para receber ordens e trabalhar”, afirmou o navegador italiano58, e assim o fizeram. Foi uma catástrofe para as populações autóctones: captura, torturas, morte, doenças, aniquilamento. Mas, por outro lado, vozes se ergueram na defesa dos índios, principalmente de Padres jesuítas e dominicanos, testemunhas da brutalidade dominadora dos espanhóis. Dentre estes teve especial destaque o 56 57 - CHAUÍ, Marilena. História do povo brasileiro. Brasil, mito fundador e sociedade autoritária. p. 63-64. - ibid. p. 64 23 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Padre Dominicano Bartolomé de Las Casas, grande contendedor com Gines de Sepúlveda na defesa dos indígenas americanos. Las Casas chega em 1502 na América Central e vive até 1506 entre as ilhas de São Domingos e Cuba. Volta à Espanha, sagra-se padre e em 1511 retorna à Espanhola, hoje São Domingos. Recebe lotes de índios. Por esta época assiste ao Sermão do Padre Antônio de Montesinos que diante de uma multidão de colonos espanhóis prega veementes condenações da escravidão dos índios, dizia Montesinos: Com que direito haveis desencadeado uma guerra atroz contra estas gentes que viviam pacificamente em seu próprio país? (...) Os matais a exigir que vos tragam diariamente seu ouro. Acaso não são eles homens? Acaso não possuem razão, e alma? (...) Podeis estar certos que, nestas condições, não tereis maiores possibilidades de salvação do que um mouro ou um turco...59 Conta-se que este sermão influenciou de maneira determinante a vida apostólica de Las Casas. Las Casas é testemunha de massacres contra os índios. Ele relata e denuncia na corte as atrocidades cometidas pelos espanhóis e relata-os de forma minuciosa. Em 1548 torna-se bispo e mora no México. Volta à Espanha em 1566 e morre aos 92 anos de idade deixando uma vasta obra humanitária. Sua luta em defesa dos indígenas influenciou as políticas legislativas coloniais da Espanha em relação aos povos dominados nas Américas. Se Sepúlveda defendia a escravização justificada na guerra justa para impor a fé católica aos nativos das Américas, Las Casas via na escravidão somente a finalidade econômica, a ambição e a cobiça: “A causa por que têm matado e destruído tantas e tão infinito números de almas cristãs tem por fim último o outro e a riqueza rápida e a ascensão social” 60. Aqueles colonizadores que vieram da Espanha, afirmava Las Casas, usaram duas maneiras para exterminar as nações que viviam na América; “a guerra injusta, cruel, tirânica e sangrenta (...) na guerra não deixam viver senão as crianças e mulheres: e depois oprimem-nos com a mais horrível e áspera servidão a que jamais se tenham submetido homens ou animais”61. Estas denúncias empreendidas por Las Casas e outros defensores dos índios, como Antônio de Montesinos e Francisco Vitória iriam ecoar na corte da Rainha Isabel da Espanha e suscitar a discussão sobre a legitimidade da escravidão dos índios. Os índios não eram infiéis como os mouros, por exemplo, uma vez que não lhes foi dada a chance de conhecer a Jesus nem sua Igreja, não poderiam ser escravizados e mereciam ser catequizados e salvas suas almas. A rainha, por conseguinte, já autorizara a introdução de africanos na 58 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão.p. 219 - BUENO, Eduardo. Genocídio de ontem e de hoje. Prefácio. In: O paraíso destruído. Brevíssima relação da destruição das Índias, p. 14. 60 - MANRIQUE, Nelson. Colonialismo y pobreza campesina. Caylloma y el Valle del Colca siglos XVI-XX. p. 54. Obra citada: DE LAS CASAS, Bartolomé. Opúsculos, Cartas y Memoriales, p. 134. (Tradução minha). 61 - LAS CASAS, Bartolomé. O paraíso destruído. Brevíssima relação da destruição das Índias. p. 29. 59 24 Jorge Luis Ribeiro dos Santos colônia em 150162. Quarenta e oito anos depois era proibida legalmente a escravização dos índios pela coroa da Espanha. Mas a escravidão na prática continuava a dizimar povos americanos inteiros. Para suprimir a demanda por mão-de-obra, uma vez que os investidores nas colônias precisavam de retorno imediato a baixo custo, somando isto ao fato de que a escravidão do indígena fora abolida, foi introduzido o sistema das encomiendas. Neste sistema, soldados e colonizadores espanhóis recebiam uma faixa de terra ou uma aldeia, acompanhada de seus habitantes. Como tributo, o índios de Hispaniola eram obrigados a extrair ouro dos leitos dos rios. Exigia-se deles uma certa quantidade a cada três meses. A pressão era intolerável, e os índios fugiam ou rebelavam-se. Colombo castigava-os com tortura ou execução63. A encomienda era um misto da tradição servil ibérico-espanhola com costumes tributários da mesoamérica e tradição andina, destacam Wassserman e Guazzelli. Nesta modalidade de trabalho compulsório Uma determinada quantidade de indígenas era assignada a dignitários nomeados pela coroa por serviços prestados. O encomendero, que prestava serviços à metrópole, podia exigir tributos em gêneros (encomienda de tributos) ou prestação de trabalho (encomienda de serviços), mas não tinha qualquer direito à terra dos índios (salvo eventuais defraudações). A intermediação entre encomenderos e encomendados era realizada pelas chefias comunitárias64. Ao receber uma encomienda o encomendero recebia o conjunto de chefes daquele povo, assumia alguns compromissos e recebia os serviços dos índios como depósito para servirem nas haciendas e na garimpagem do ouro das minas. Afirma Manrique: “Como se vê, a encomienda permitia encomendero, em primeiro lugar, o controle da força de trabalho indígena, sem que se definisse os limites dentro dos quais esta deveria ser utilizada65. Os índios são encomendados aos espanhóis para serem catequizados e protegidos. O preço pago da salvação era o trabalho intenso, constante, involuntário e não remunerado em suas próprias terras expropriadas pelos conquistadores e colonizadores. Até 1536, afirma Eduardo Galeano, os índios eram entregues aos encomenderos sob outorga real junto com seus descendentes pelo prazo de duas gerações: a do encomnedero e a do seu herdeiro imediato. A partir de 1629 o regime se estendeu até a terceira geração e em 62 - WASSSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Barcellos. História da América Latina – do descobrimento a 1900. p.57. 63 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 219 64 - WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Barcellos. História da América Latina – do descobrimento a 1900. p.71. 65 - MANRIQUE, Nelson. Colonialismo y pobreza campesina. Caylloma y el Valle del Colca - siglos XVI – XX, p. 53. 25 Jorge Luis Ribeiro dos Santos 1704 chegou até à quarta geração nos locais da colônia onde as Nuevas Leys, sancionadas sob a pressão de Las Casas, não foram adotadas66. As encomiendas eram concedidas por lei pela corte de Castela para os conquistadores os quais teriam a seu cargo um determinado “lote” de índios para com os quais teria “dever legal e de consciência de exercer as funções atribuídas pela Bula pontifícia à pessoa do Rei”, destaca Rafael Ruiz. Estes deveres consistiam em cristianizar e desenvolver socialmente os índios. Este sistema se fundiu com os repartimientos criados informalmente pelos próprios colonos para subjugar os índios vencidos e capturados. Contudo o sistema de trabalho das encomiendas imposta ao indígena sempre foi compulsório e variou desde escravidão pura e simples, passando pelo sistema de servidão pessoal, pelo sistema da mita (trabalho temporário remunerado) e o sistema tributário67. 3.3 - Sepúlveda, Las Casas e Vitória: a escravidão por “guerra justa”. Teria ou não o índio alma? Poderia ou não ser escravizado? Tornar-se-ia cristão? Eram dúvidas éticas que assolavam a metrópole colonial. Neste contexto é que se notabilizaria Guines de Sepúlveda como um teórico da escravidão natural do indígena. Juan Gines de Sepúlveda nasceu em 1510. Era influente na corte espanhola, filósofo, teólogo, tradutor e comentarista de Aristóteles e defensor do império espanhol, foi inclusive cronista do reino de Espanha. Sepúlveda não discute se os índios são fortes ou débeis, mas insiste, entretanto, em sua barbárie mental, sua condição de sub-homens (homunculi), sua covardia, seus vícios imundos e superstições tenebrosas frente às quais impõe o valor, a prudência, a sagacidade e a piedade dos espanhóis. Entra em contenda com o Padre Bartolomé de las Casas em 1550 por causa de sua obra “Demócrates Segundo: o de las justas causas de la guerra contra los Índios” a qual não chega a ser autorizada para publicação, mas cujos manuscritos causam os mais acirrados debates nos meios acadêmicos de Salamanca, Bolonha, Valadollid e em todo o reino espanhol e no clero de sua época. Tratava-se da batalha ideológica que agitava as incursões colonizadoras de Portugal e Espanha: seria justo ou não a escravização das populações nativas do continente americano recém colonizado pelos europeus? Las Casas e os jesuítas e dominicanos, dentre os quais Francisco de Vitória eram peremptoriamente contra o subjugo dos índios à escravidão. Las Casas afirmava que “os índios sempre tiveram mui justo motivo de guerra contra os espanhóis”, e não o contrário, pois todas as guerras dos espanhóis foram “diabólicas e muito injustas, mais que as que se possam atribuir a qualquer tirano que exista no mundo”68. A contenda extrapolou os limites da política e virou questão teológica tendo em Sepúlveda o principal jus-teórico defensor da escravização dos indígenas desde que vencidos em guerra justa. Era a tese de sua obra “Demócrates Segundo” a qual só viria a ser publicada em 1892, ou seja, trezentos anos depois de 66 - GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. - RUIZ, Rafael. Francisco de Vitória e os direitos dos índios americanos. A evolução da legislação castelhana no século XVI. p. 159. 68 - LAS CASAS, Bartolomé. O paraíso destruído. Brevíssima relação da destruição das Índias. p.37. 67 26 Jorge Luis Ribeiro dos Santos escrita, segundo seu prefaciador Angel Losada69. A obra centra-se nas teses que justificam as guerras justas e o domínio dos povos vencidos pelos vencedores. “Demócrates Segundo” é um diálogo escrito por Sepúlveda onde o personagem Leopoldo debate com Demócrates acerca da guerra justa contra os índios. Sepúlveda, dialogando pela voz de Demócrates afirma que a guerra, segundo os sábios, deve-se fazer pelos homens bons de tal maneira, que seja somente um meio para se lograr a paz. Em suma, nunca há de empreender-se senão depois de madura deliberação e motivada por causas justíssimas e necessárias70. Para Demócrito a guerra é um preceito da lei natural segundo o qual a todos é permitido responder à força com a força - mas nos limites da justa defesa - e quando se faz por direito e lei natural se faz também por direito divino e a lei do evangelho. Contudo, uma guerra justa exige causas que justifiquem seu início, uma legítima autoridade e boa intenção de quem promove. Os três motivos que justificam a guerra seriam: o direito natural de rechaçar a força com a força; a recuperação da propriedade injustamente arrebatada e o castigo a quem tenha efetuado ofensa. Mas há outras causas não muito usuais, mas que se fundam no direito natural como aquela que se aplica aos índios 71, afirma o jurista espanhol: “Aqueles cuja condição natural é tal que devam obedecer a outros, se recusam seu império e não há outro recurso, sejam dominados pelas armas”, pois assim é da conformidade com o Direito Natural. No entanto, contra-argumenta Leopoldo: “Acaso alguém já nasceria alguém tão infeliz que seja condenado a viver em servidão?” Não ensinam os filósofos e jurisconsultos que “Desde o princípio todos os homens nasceram livres e a servidão foi introduzida pelo direito das gentes (...) fora da natureza?72”. Demócrates então recorre aos princípios aristotélicos para responder à difícil argumentação de Leopoldo. Primeiro expõe a diferença entre o conceito de servidão para os filósofos e jurisconsultos. Para os jurisconsultos a servidão consiste numa condição adventícia que tem sua origem na força do homem já os filósofos dão à servidão um significado de torpeza ingênita e de costumes inumanos e bárbaros. Para o jurisconsulto o domínio se exerce de variadas formas pois tem diversos fundamentos jurídicos. Veja-se por exemplo o domínio do pai sobre o filho, do marido sobre a esposa, do senhor sobre o servo, do rei sobre o povo, todos sob um só fundamento do Direito Natural, pois, assim é conforme a natureza onde as coisas mais importantes têm domínio sobre as demais que a ela estão submetidas, as mais perfeitas presidem as menos perfeitas como se esta fosse sua serva, é como o corpo que está submetido à alma, a razão preside a outra parte desprovida de razão, 69 - SEPÚLVEDA, Juan Gines. Demócrates Segundo o de las justas causas de la guerra contra los Indios. Introdução pg. XXV. 70 - ibid. p. 3 – Tradução minha. 71 - ibid. p. 4, 5, 13, 17. 72 - ibid. ps.19, 20, 21. Tradução minha. 27 Jorge Luis Ribeiro dos Santos tudo isto se faz pela decisão e lei divina e natural segundo a qual as coisas mais perfeitas e melhores mantêm seu domínio sobre as imperfeitas e iguais. Nisto tudo se vê com clareza que é natural e benéfico o domínio da alma sobre o corpo, da razão sobre o apetite, ao passo que a paridade ou a desigualdade de domínio é perniciosa para todos. E, segundo ensinam, por esta mesma medida e lei se regem os homens e os animais. E ensinam que esta mesma razão vale para os demais homens em suas mútuas relações, pois deles há a classe dos que são senhores por natureza e outros que por sua natureza são servos. Os que sobressaem em prudência e talento, mesmo que não em robustez física, estes são senhores por natureza, já os atrasados e torpes de entendimento, mesmo que vigorosos fisicamente para cumprir os deveres necessários, são servos por natureza, para estes não só é justo, mas também é útil, que sirvam aos que por natureza são senhores. E vemos que isto está sancionado também por lei divina73. Para Demócrates os povos bárbaros e inumanos estão apartados da vida civil e da prática da virtude, portanto, para eles é mais benéfico o Direito Natural de seu submetimento ao império das nações e príncipes mais humanos e virtuosos que lhes ensinem a virtude, a prudência, o cumprimento das leis para que abandonem a barbárie pois é justo e naturalmente benéfico para ambos que os excelentes por virtude, inteligência e prudência imperem sobre os inferiores. Tal doutrina tem aceitação universal74, assevera, e “se negam seu império, podem ser obrigados pelas armas, e esta guerra os filósofos ensinam que é justa por natureza”75. Tudo isto justificava a guerra justa contra os índios americanos e por conseqüência dela a sua sujeição à escravidão, pois, ao ser eles derrotados na guerra contra os espanhóis “tanto eles como seus bens cairão em poder do príncipe vencedor para que este decida sobre eles segundo melhor lhe parecer” 76. Como se vê os princípios da tese de Sepúlveda estão ancorados na concepção aristotélica de escravidão. Suas idéias iriam se chocar frontalmente com a doutrina de Francisco de Vitória. Vitória, frade dominicano espanhol, nascido em 1482, era professor na Universidade de Salamanca. Suas teses em defesa dos índios americanos iriam dar base teórica e teológica aos defensores dos indígenas e aqueles que lutavam contra sua escravização, como Las Casas, em pleno reinado de Carlos V da Espanha. As concepções de Vitória iriam influenciar as ações do mundo colonial hispânico e suas leis de colonização, bem como, forneceu a Las Casas a base argumentativa no seu célebre debate como Sepúlveda, em 1550 na Universidade de Valladolid acerca da legitimidade da escravização dos índios. O mundo cristão estava dividido diante desta questão. Para Rafael Ruiz 73 - ibid. ps. 22,23. Tradução minha. - ibid. ps. 24 e 26. 75 - ibid. p. 24. Tradução minha. 76 - ibid. p. 30. Tradução minha. 74 28 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O conflito americano não foi apenas um confronto armado. Foi, também, um conflito entre teólogos, juristas e homens da corte: de um lado, aqueles que, ainda sujeitos a uma visão medieval do mundo e do Direito, defendiam a escravização dos índios, como decorrência da sua própria natureza; e de outro, aqueles que, abrindo caminho para uma visão moderna, colocavam como ponto de partida para o relacionamento entre Castela e América o reconhecimento dos índios77. Era o efervescente contexto histórico no qual as teses de Sepúlveda contrapunham-se com a luta e os preceitos práticos e teóricos de Las Casas. Las Casas contrariando Sepúlveda afirmava, com base na filosofia de São Tomás de Aquino que “a igreja não pode castigar aqueles que nunca receberam a fé”, portanto não se pode converter os pagãos pela força, nem se combater pela força da guerra a idolatria, mas pela brandura atraí-los e educá-los na fé. De tudo, conclui Las Casas: “Todos os índios que se tem feito escravos nas Índias do mar Oceano, desde a descoberta até hoje, foram injustamente escravizados, e aqueles que os espanhóis hoje possuem e que ainda estejam vivos, os possuem de má fé”78. Isto porque foram feitos cativos em injustas guerras por vários motivos, dentre os quais: não havia justa causa nem autoridade do príncipe para fazê-la; não havia injúrias por parte dos índios contra os espanhóis que justificasse a beligerância, nem tampouco houve perseguição, impugnação ou inquietação por parte dos índios aos espanhóis. Nem os índios detinham terras usurpadas dos espanhóis, não houve hostilidades próprias nem os índios eram inimigos capitais da fé dos espanhóis, nem a perseguiram como fizeram os turcos e mouros, nem tampouco havia razão de guerra baseada na defesa de inocentes. Por todas estas razões - as quais se fossem de modo contrário justificariam a guerra – quedam-se todas estas guerras injustas. E “assim não haveriam de fazer nenhum índio justamente e segundo o direito, escravo”, porque os fizeram movendo contra eles injustas guerras mediante fraudes, “dolosas maquinações”, engodos e maldades79, por isso haveriam os espanhóis de restituir-lhes a liberdade, os bens e as terras usurpados80, mesmo porque, procedendo de modo contrário, preceituava Las Casas, “os espanhóis que têm os índios por escravos injustamente e de má fé, estão sempre em pecado mortal, e por conseguinte não vivem uma vida cristã e não se salvarão”81. Todos estes argumentos de Las Casas estavam registrados em cartas, requerimentos, denúncias e pedidos reiterada e insistentemente enviados à corte de Castela. Eram as armas que Las Casas usava para defender os índios e que de certa forma encontraram eco e respaldo científico e teológico do outro lado do Atlântico na pena de Francisco de Vitória. Vitória foi uma das mais importantes, influentes e respeitadas vozes a se posicionar pela injustiça da guerra contra as populações nativas das Américas no meio acadêmico, jurídico, teológico e na própria corte. Para Vitória nenhum poder é soberano a outro, portanto todos os povos são soberanos (inclusive os indígenas), e o papa não tem poder temporal nem é senhor do mundo, ele só rege entre seus fiéis. Estas idéias 77 - RUIZ, Rafael. Francisco de Vitória e os direitos dos índios americanos. A evolução da legislação indígena castelhana no século XVI. ps. 17,18. 78 - LAS CASAS, Bartolomé de. Obra Indigenista. p.176 a 182. 79 - ibid. p. 284 - 287. 80 - ibid. p. 335, 346 29 Jorge Luis Ribeiro dos Santos trariam conseqüências inusitadas sobre a “ética da colonização”, pois sendo assim não deviam os indígenas curvarem-se aos colonizadores espanhóis nem serem obrigados pela espada à fé cristã, nem tampouco se justificaria guerra justa contra eles e sua redução à escravidão. Vitória defendia sua tese com base no Direito Natural de inspiração também aristotélica, o mesmo direito que serviria aos propósitos de Sepúlveda, embora para fins contrários. Para Vitória o Direito Natural advém do justo natural o qual independe da vontade ou pensamento humano, já o justo legal depende da razão e vontade humanas. O Direito Natural é “naturalmente” deduzido pelos homens, ele pode ser descoberto para “dar-se conta das justiças e das injustiças dos governos, como é o caso dos índios que, por natureza, conhecem que nem o Rei da Espanha, nem o Papa podem ter poder para desapropriá-los de suas terras. O grande gênio de Vitória foi reverter o Direito Natural em benefício dos índios, ou seja, o Direito Natural sob uma perspectiva hermenêutica do dominado. Com sua tese ele encampa um enfrentamento frontal com as legislações primeiras da colonização. A primeira era a Bula Iter Coetera de 1493 que doava todas as terras descobertas e a descobrir aos reis de Espanha e os Requerimientos de 1513 os quais ditavam aos índios, dentre outras recomendações, o seguinte82: Agora vós sois convidados a reconhecer a Santa Igreja como senhora dominadora do mundo inteiro e a prestar vossa homenagem ao Rei espanhol, como o Senhor vosso. Se assim não acontecer, agiremos violentamente com vós e obrigrar-vos-emos a dobrar a cerviz sob o jugo da Igreja e do Rei, como convém a vassalos rebeldes, com a ajuda de Deus. Privar-vos-emos das posses e reduzir-vos-emos a vós, vossas mulheres e filhos à escravidão83. Os requerimientos eram cartas reais legais de Castela cujo conteúdo era lido e entregue aos índios antes dos espanhóis darem início à “conquista”. Tal instrumento jurídico baseava-se no direito de invenção, de descoberta. Vitória inverte esta lógica argumentativa e propõe que seja discutido “não o direito dos Reis da Espanha sobre o Novo Mundo, mas o direito dos príncipes soberanos indígenas sobre seus súditos.” Vitória defende que os índios fazem uso da razão, têm costumes e organizações próprias. Eles, antes da chegada dos colonizadores, eram donos e senhores privada e publicamente de suas terras e portanto têm direitos com base na ordem do direito natural, o que derruba a tese da escravidão natural. Neste sentido, afirma Rafael Ruiz, “Vitória estabelecia o princípio filosófico e jurídico, de enorme transcendência para o direito”, o de que tanto indígenas como espanhóis “eram iguais, pelo fato de terem a mesma natureza humana”, portanto os requerimientos e o direito de “proclamação” não tinham legitimidade, sobretudo, não “pode haver consentimento livre diante de tantas armas e violências”84. Vitória vai além de Las Casas, pois, Las Casas não contesta a tese aristotélica de que algumas pessoas já nascem escravos e são escravos naturais. Las Casas 81 - ibid. p. 327. - RUIZ, Rafael. Francisco de Vitória e os direitos dos índios americanos. A evolução da legislação indígena castelhana no século XVI. ps. 17,18. p. 63, 67,71 83 - ibid. p. 77. 84 - ibid. p. 81, 82, 83. 82 30 Jorge Luis Ribeiro dos Santos defendia que a tese da escravidão natural não poderia ser aplicada aos índios porque os índios são bárbaros sim, mas não são daquela “terceira classe” de bárbaros perversos, brutais, de pouco entendimento, selvagens, sem organização política, sem leis nem ritos, estes sim são escravos naturais na concepção aristotélica. Já Vitória nega a tese aristotélica da escravidão natural o que curiosamente, como explicitado, não chega a ser contestado por Las Casas em seu debate com Sepúlveda. Mas, e quanto às justificativas de guerra contra os bárbaros em virtude de muitos de seus males, aludidos por Sepúlveda, tais como os seus costumes sacrílegos de antropofagia, dos seus pecados contra a natureza, contra o direito natural e o direito divino, dos seus ritos profanos, pela sodomia, fornicação, pelos sacrifícios humanos e por que não querem receber os predicados da fé. Não seria lícito e bom obrigá-los pela espada à fé cristã e à vida servil ao espanhol superior na cultura, na virtude e no intelecto? Vitória rebate a cada um destes argumentos afirmando que ninguém pode castigar a outro a não ser que tenha potestade sobre este, os índios não eram súditos e nem o papa tinha potestade religiosa sobre os índios pois não eram batizados, nem tampouco o rei sobre eles tinha potestade temporal. Quanto ao argumento de guerra contra os índios por infidelidade, paganismo, sadomia e outros pecados não se sustenta, pois daria o mesmo direito aos pagãos de fazer tal guerra contra cristãos que cometessem estes mesmos “delitos”, posto que estes pecados e outros mais graves são de cometimento comum entre os fiéis cristãos, no entanto contra eles não se pode fazer guerra justa por isso. Se os fiéis podem fazer guerra aos infiéis por pecarem contra a natureza, contradiz o jurista de Salamanca, Se seguiria que os príncipes infiéis poderiam fazer guerra aos cristãos que pecam contra a natureza. E não vale dizer que os cristãos têm isto como abominável, pois é mais grave cometer este pecado com consciência que por ignorância. Se prova a conclusão porque não têm maior potestade os fiéis sobre os infiéis que os infiéis sobre os cristãos. Ao menos, se seguiria que o rei dos franceses poderia fazer guerra aos italianos porque cometem pecados contra a natureza85. No plano formal as teses de Vitória irão influenciar o corpo legislativo colonial da Espanha composto nas 35 Leis de Burgos de 1512, as quais prescreviam algumas garantias e liberdades aos índios uma vez que eram considerados humanos, regulamentava o trabalho de mulheres e adolescentes, tratava de horas e férias, além de tratar dos direitos de personalidade aos índios, sem no entanto extinguirem as encomiendas. Em 1518 são promulgadas pelo imperador Cisneros as quarenta Ordenanzas inspiradas nas Leis de Burgos as quais suspendem o regime de encomiendas, estabelece fixação dos índios em reducciones, proíbe trabalho obrigatório para mulheres, estabelece autonomia administrativa para os indígenas bem como participação nos lucros das minas, enfim que os índios possam ser titulares de direitos, ter livre vontade e exercê-la dentro da lei. 85 - VITÓRIA, Francisco de. Escritos Políticos. p. 265. 31 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Apesar de leis tão avançadas as tensões entre encomenderos e evangelizadores da igreja cresciam e também aumentava a violência dos encomenderos contra os índios. Las Casas foi um incansável denunciador de tais atrocidades na corte, chegando ao ponto de o papa Paulo III ameaçar de excomunhão quem escravizasse índios. Vitória antevendo um conflito entre as posições de Las Casas e Sepúlveda elabora um conceito explicativo de “escravidão por natureza” em Aristóteles. O verdadeiro sentido da afirmação de Aristóteles quando reconhece a existência de pessoas curtas de entendimento que não pertencem a si próprias mas a outrem sendo portanto escravos por natureza, está no fato de que estas pessoas de pouca inteligência têm “necessidade natural de serem regidas e governadas por outras (...) assim como os filhos aos pais, e a mulher ao marido”, mas não que devam ser privados de seus bens, vendidos e escravizados, Aristóteles, assegurava Vitória, fazia referência à submissão natural, à obediência, pois todos nascem livres, embora nem todos sejam dotados das faculdades de mando86, neste sentido Vitória rebatia as bases aristotélicas da escravidão natural e da escravidão por guerra justa. Para Vitória, uma guerra só seria lícita se fosse contra malfeitores, fosse efetivada para repelir injúria, para repelir a força com a força, fosse efetivada contra opressores, fosse declarada para restituir o que foi tomado indevidamente ou como guerra defensiva, por outro lado não é justa causa de uma guerra a diversidade de religião, não é justa a guerra aos bárbaros que não aceitam a fé católica, não é justa a guerra feita para ampliar o território e também não o é aquela perpetrada para glória ou vingança particular do príncipe.87. Nestes conturbados embates entre vice-reis das colônias, evangelizadores católicos nas colônias, teólogos, corte e encomenderos é que Vitória sedimenta suas teses nas suas lições de cátedra como sua De potestade civil de 1528 e na sua Relactio de temperantia de 1537, onde Vitória afirma a liberdade, autonomia e soberania dos povos indígenas. Dois anos depois lecionou De Indis, cujos ensinamentos iriam inspirar as Leys Nuevas de 1542 promulgadas por Carlos V. Essas leis previam dentre outros o direito à liberdade do índios, direitos trabalhistas, direitos de capacidade jurídica plena, isenção e igualdade tributária, livre acesso à justiça, direito à paz e proteção e tutela de direitos. Leis protetivas nos sucessivos reinados que se seguiram a Carlos V e todas elas de cunho humanitário e de inspiração no conceituado professor de Salamanca, como as Leys de Población y Pacificación de Felipe II em 1573, as quais garantiam liberdade de credo aos índios88. Contudo, a despeito de tão avançadas conquistas no âmbito legislativo a aplicabilidade destas leis não se efetivou, logo as estas leis caíram em desuso, algumas sequer foram aplicadas e assistiu-se a um recrudescimento da exploração involuntária da força de trabalho indígena na proporção do incremento das atividades econômicas empreendidas pelos espanhóis nas colônias. Apesar destas constatações, assegura Rafael Ruiz, “a mentalidade jurídica espanhola tinha sofrido uma conversão, através das batalhas travadas por Vitória e Las Casas”. Para o autor, Francisco de Vitória significou uma revolução copernicana no direito espanhol89. 86 - ibid. p. 137, 138. - VITÓRIA, Francisco de. Escritos Políticos. p. 222 a 228; p. 231,232. 88 - RUIZ, Rafael. Francisco de Vitória e os direitos dos índios americanos. A evolução da legislação indígena castellana no século XVI, p. 100 a 117, 203. 89 - ibid. p. 107 e 117. 87 32 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Os costumes arraigados em profundas raízes feudais plantados pelos colonizadores espanhóis e muitas vezes apoiados pela cultura local iriam determinar pelos séculos vindouros as relações compulsórias de trabalho na América espanhola em suas diversas facetas encomenderas, a despeito de todo arcabouço legal que ecoou sem o menor efeito deste lado do Atlântico. Vitória vence no plano teórico e permite o sucesso de Las Casas em sua contenda teológica com Sepúlveda, mas os imperativos econômicos e a hipocrisia da política imperial colonialista e dos investidores e produtores coloniais driblam as intenções humanitárias e normativas, sejam elas de quaisquer ordem, e sobrepõem seus ganhos em ouro, prata e dinheiro sobre os direitos dos homens e mulheres indígenas os quais ainda, nos dias atuais, são vítimas de trabalho compulsório que vitima pessoas nas modernas encomiendas costumeiras dos Andes, dos chamadas colonos e huasipungos, segundo afirma Chevalier, citado por Rafael Ruiz90. Vence no plano prático a tese aristotélica de Sepúlveda e imperaria ainda, por séculos, seus preceitos de inferioridade natural e tendência natural aos trabalhos escravos a que estavam sujeitos os povos africanos os quais logo foram traficados para as lavouras e minas das Américas. Várias formas de trabalho compulsório combinaram entre si apesar de diferentes modalidades e de diferentes denominações recebidas na América Espanhola. A encomienda prevaleceu nos países platinos e no Equador e Chile. A crise demográfica levou os espanhóis a criarem os repartimientos de índios instituição na qual as comunidades deveriam fornecer uma determinada quantidade de trabalhadores para a colônia. Estes trabalhos eram mais ou menos assalariados, combinando trabalho involuntário com assalariamento e variava de forma e nome conforme a região. No entanto, afirmam Wassserman e Guazzelli, Essa relação aparentemente livre, encobria formas variadas de endividamento da mão-de-obra, especialmente através das tiendas de raya, armazém onde os índios encontravam a preços exorbitantes os meios de subsistência, já que estavam muito afastados das suas comunidades e não podiam assim produzir o alimento91. Vê-se que a prática contemporânea de escravidão por endividamento na Amazônia não é original nem nova. As “casas de aviamento” do ciclo da borracha amazônico nos fins do século XIX e inícios do século XX e os “barracões” e “cantinas” dos latifúndios na mesma Amazônia dos séculos XX e XXI encontram similaritude com estas formas de endividamento das tiendas de raya. Aliás, as mesmas encomiendas irão evoluir para formas compulsivas de trabalho escravo moderno na forma de peonage em países latino-americanos. Acrescentam os autores que o repartimiento dos índios foi outra forma de reduzir à compulsão laboral e dizimação de povos inteiros. O repartimiento produziu uma dependência destas populações frente ao colonizador92. Nesta modalidade de trato com os indígenas vemos uma aproximação maior destes 90 - ibid. p. 148. - WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Barcellos. História da América Latina – do descobrimento a 1900. p.72 92 - ibid. p. 73. 91 33 Jorge Luis Ribeiro dos Santos trabalhadores à realidade escravista contemporânea na Amazônia. Os índios eram retirados de suas regiões para prestarem serviços em localidades da colônia que reclamassem força de trabalho. O afastamento de suas comunidades e tradições deu origem aos chamados laborios, que eram trabalhadores livres, mas desenraizados e endividados, portanto em situação de dependência próxima à escravidão e na melhor das hipóteses da servidão da gleba medieval. Já nas haciendas predominava a imobilização do índio cativo pela insolvência das dívidas. Este sistema altamente predatório das haciendas deram origem ao sistema da peonage, onde o índio recebia provisões de um armazém e um lote de terra para sua subsistência. Esta modalidade se espalhou pela América, principalmente em regiões mais despovoadas, assumindo variadas denominações e não raro terminava em formas de escravidão por dívida ao passo que nas regiões mais populosas ou naquelas áreas onde as condições eram mais propícias à agroprodução exportável foi introduzida o trabalho escravo africano. As formas de peonagem não param no século XVII, como informam Wassserman e Guazzelli. O fenômeno da peonagem, afirma Frederico Brito Figueroa, antropólogo da Universidade Central de Venezuela, teve incremento depois da abolição da escravidão na Venezuela pelas chamadas “cartillas de libertad”, obrigação dada pela Lei de 23 de março de 1834. Em sua obra “El problema tiera y esclavos em la historia de Venezuela”93 o autor destaca que os libertos (isto é, os ex-escravos e ex manumitidos) permaneciam presos, na prática, ao regime de trabalho na plantation, pelas relações sociais de endividamento e à cadeia de dívidas que herdavam de outras gerações que passavam de um proprietário a outro. Esta é uma das características da peonagem na Venezuela, uma forma dissimulada de escravidão que predomina no campo venezuelano, em termos quase absolutos, desde a abolição legal da escravidão até a primeira década do século XX, e subsiste, todavia nos anos quarenta, em algumas regiões do país, quando já se haviam desenvolvido novas formas de exploração na estrutura econômico-social impulsionada pela dominação colonial imperial. As narrativas de Euclides da Cunha pela Amazônia andina do Peru e Acre, no início do século XX, mais precisamente em 1905, quando das querelas de limites daquele país com o Brasil, atestam a vigência do estado de servidão, senão da escravidão, sobre os trabalhadores “livres” na produção gomífera na floresta. Abaixo do caucheiro opulento, numa escala deplorável, do mestiço loretano que ali vai a busca de fortuna, ao quíchua deprimido trazido das cordilheiras, há uma série indefinida de espoliados. (...). ali mourejam improficuamente longos anos; enfermam devorados por moléstias; e extinguem-se no absoluto abandono. (...) dispersos por 93 - FIGUEROA, Frederico Brito. El problema tiera y esclavos em la historia de Venezuela. pp. 227, 228. Tradução minha. 34 Jorge Luis Ribeiro dos Santos aquelas quebradas, e mal aparecendo de longe em longe no castelo de palha do acalcanhado barão que os escraviza. O “conquistador” não os vigia. Sabe que lhe não fogem. (...) a região, inçada de outros infieles, é intransponível. O deserto é feitor perpetuamente vigilante. Guarda-lhe a escravatura numerosa94. Embora contemporaneamente na realidade agro-latifundiária da Amazônia Oriental, especialmente no sudeste paraense, realidade não muito distante geograficamente desta encontrada por Euclides há um século atrás, o cenário é muito similar. Apesar da modalidade produtiva hoje ser outra o caboclo migrante também é “escravizado” nos dias atuais na mesma Amazônia descrita por Euclides. 4 - A escravidão na América portuguesa Gilberto Freire afirma que para que o português escravizasse não foi necessário “nenhum estímulo” posto que não havia “Nenhum europeu mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele”. Mas no caso brasileiro, ressalva o autor, “O meio e as circunstâncias exigiram o escravo. A princípio o índio. Quando este por incapaz e molengo, mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro”. Em Freire a escravidão retorna a tomar ares de uma necessidade “natural”, que não poderia ser de outra forma, enfim justificada pelas “naturais” circunstâncias adversas do clima, fauna e flora da colônia, uma vez escolhido o critério agrário escravista de colonização: Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz do esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo95. Jacob Gorender afirma que o modo de produção feudal português não se transferiu para o Brasil nos princípios da colonização, nem prevaleceu o modo de produção da população nativa brasileira que aqui vivia. Não resulta tampouco de uma síntese entre os dois modos de produção. O autor defende a tese de que, apesar do modo de produção colonial não ter sido uma invenção arbitrária, este surge de complexos fatores sócioeconômicos enquanto “um modo de produção de características novas”96. Para o autor o modo de produção 94 - CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido. p. 166. - FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. p. 244. 96 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. p. 40. 95 35 Jorge Luis Ribeiro dos Santos escravista colonial no Brasil foi um fenômeno historicamente novo, embora Portugal ao iniciar a colonização já trouxesse consigo a “experiência conjugada da escravidão e da plantagem”97. A colonização, acentua Alfredo Bosi, é um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre buscar (...) ocupar um novo chão, explorar seus bens, submeter seus naturais. Mas os agentes desse processo não são apenas suportes físicos de operações econômicas; são também crentes que trouxeram nas arcas da memória e da linguagem aqueles mortos que não devem morrer. Mortos bifrontes, é bem verdade: servem de aguilhão ou de escudo nas lutas ferozes do cotidiano, mas podem intervir no teatro dos crimes com vozes doridas de censura e remorso. Santiago de Compostela excita os matamoros nas lutas da reconquista ibérica; a Cruz vencedora do Crescente será chantada na terra do paubrasil, e subjugará tupis, mas, em nome da mesma cruz, haverá quem peça a liberdade para índios e misericórdia para negros98. A função da produtividade, acrescenta Bosi, requer o domínio do homem sobre a matéria e sobre outros homens, aculturando-o, ou seja, sujeitando-o, adaptando-o tecnologicamente a um padrão dito como o superior99. Já Herbert S. Klein identifica traços de similitude entre escravidão romana com a escravidão colonial moderna ocidental no que diz respeito à produção de bens e serviços, a qual teve inclusive, segundo o autor, sua legislação inspirada no direito romano100, que por sua vez inspira-se na teoria da escravidão natural grega. A produção comercial da colônia voltada para o mercado internacional, para se efetuar em larga escala e a custos baixos, foi estruturada com base no trabalho compulsório. “O escravismo americano nasceu”, afirma Mário Maestre, de contingências histórico-econômicas tais que para rendas mercantis mais lucrativas e compensatórias na proporção dos investimento “deviam produzir, a baixo preço, mercadorias comercializáveis na Europa”, como o foram a indústria açucareira e a mineração, as quais para se tornarem rentáveis “exigiam um alto nível de exploração do produtor direto”101. O próprio tráfico e comercialização de escravos sempre foi um rentável negócio, seja na Roma Antiga, na África ou na América. Gorender já dizia que “o tráfico se tornou um dos negócios mais lucrativos 97 - ibid. p. 117. - BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. p. 15. 99 - ibid. p. 17. 100 - KLEIN, Herbert S. Escravidão africana, América Latina e Caribe. p.15 101 - MAESTRE, Mário. A servidão negra. p.33 98 36 Jorge Luis Ribeiro dos Santos da época do mercantilismo”102. Alencastro acrescenta a observação de que o tráfico de escravos africanos por si mesmo já era um grande negócio e importante fonte de receita103 para os portugueses. No grande negócio negreiro, a demanda portuguesa de escravos – fosse ela metropolitana ou colonial – estava longe de reter exclusividade. Escravos das conquistas africanas continuam a ser exportados para o estrangeiro com a finalidade de avolumar as receitas do Tesouro.104 4. 1 - A escravidão do indígena Durante a colonização do Brasil, onde havia grande densidade de populações autóctones, a exploração servil do índio foi a primeira mão-de-obra utilizada. Nas regiões onde escasseavam a captura a escravização plena foi logo implantada até ser gradativamente superada pela introdução do escravo africano. A escravidão de índios só veio a ser legalmente proibida no Brasil em meados do século XVIII, mas na prática perdurou até a abolição da escravatura africana e mesmo além dela em regiões isoladas do país105. Segundo Alencastro106 os nativos brasileiros eram avessos à troca extensiva de escravos e isto foi um fator que explica o reduzido mercado interno de escravos na colônia. Ao contrário do comércio africano que se viabilizou e se intensificou no interior e no litoral justamente pela alta disponibilidade dos peadores na captura e comércio intertribais de homens, mulheres e crianças. Os nativos brasileiros são adquiridos para o trabalho involuntário através das seguintes maneiras: nos resgates (índios de corda), consistente na troca de mercadorias por índios prisioneiros; no cativeiro, no qual os índios são aprisionados na “guerra justa”; nos descimentos, que eram os deslocamentos forçados para as áreas de povoamento estabelecidas pelos portugueses (aldeamentos). Os descimentos propiciavam além da catequização em massa, a proteção das “cidades” contra tribos inimigas e contra fugas dos negros dos engenhos 107 . Gorender acrescenta as expedições de apresamento, das quais as bandeiras são exemplos. Até mesmo existia a escravidão voluntária de índios miseráveis e famintos e outras formas informais como o casamento de índios com escravas, os quais se tornavam também escravos assim como os filhos destes casais108. 102 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. p. 129 - OIT Relatório Global, 2005. p. 61, 62. Segundo dados da OIT hoje há 12,3 milhões de escravos no mundo hoje, estes escravos rendem um total de 32 milhões de dólares anuais, metade dos quais nos países industrializados. 104 - ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. p. 31. 105 - MAESTRE, Mário. A servidão negra. p.34 106 - ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico sul. p. 116, 117. 107 - ibid. p. 119, 180. 108 - GORENDER. Jacob. O escravismo colonial p. 492 – 495. 103 37 Jorge Luis Ribeiro dos Santos A escravidão do índio, ao contrário do negro que sempre foi completa, se deu desde formas completas a incompletas, afirma Gorender109, passando por servilismo, trabalho compulsório temporário e semi-assalariamento. A escravização do índio foi legitimada com as Cartas de Doação das capitanias hereditárias, afirma o autor, mas esta escravização se tornou controversa entre interesses de jesuítas, colonos luso-brasileiros, traficantes negreiros mediados pela volúvel postura da Coroa. Mesmo após a proibição de escravidão dos índios por Pombal (1755 – 1758), formas análogas e mesmo a escravidão propriamente dita continuaram a serem praticadas, mesmo porque estas leis deixavam margens para as formas análogas de escravidão. Vários são os exemplos assinalados por Gorender. No Ceará uma lei determinava a prisão dos índios “vagabundos” e sua remessa aos fazendeiros. Uma lei de 1798 permitiu apenar índios desocupados para obrigá-los a trabalhar nas fazendas do Estado ou de particulares mediante remuneração, mas à sombra da legalidade restabeleceu-se o tráfico de índios escravos. No Maranhão de 1815 índios eram anotados a ferro e vendidos no Pará, aliás o tráfico de índios manter-se-ia na Amazônia por todo o século XIX. No Paraná em fins do século XVIII índios vendiam seus filhos ou os trocavam por produtos dos brancos (açúcar, sal, cachaça, machados), costume aprendido também pelos índios de Minas Gerais. No Rio Grande do Sul os índios eram escravizados nas estâncias dos pecuaristas. No Ceará, a seca de 1846 fez recrudescer a venda de índios. D. João, logo após chegar ao Brasil em 1808 decretou “guerra justa” aos índios botocudos de Minas e Paraná, os quais, conseqüentemente poderiam ser aprisionados e forçados ao “serviço particular”, um eufemismo para a caçada, aprisionamento e escravidão dos índios. Por fim, o autor cita as formas incompletas de escravidão dos “sistemas de administração” ou aldeamentos, onde os índios eram cedidos a particulares para trabalho involuntário rotativo que se lhes revelava servil ou acabavam simplesmente sendo escravizados numa analogia portuguesa às encomiendas espanholas. Já as reduções jesuítas, embora estas fossem bem melhor estruturadas e propiciassem melhores condições de vida aos índios, no entanto não deixaram também de explorarem o trabalho servil dos mesmos, mesmo ali os índios estavam sujeitados ao trabalho escravo sob o comando dos jesuítas110. Sérgio Buarque de Holanda diz que a captura e escravização do indígena, promovidas pelas “grandes entradas e os descimentos tinham aqui objectivo definido: assegurar a mesma espécie de sedentarismo que os barões açucareiros do Norte alcançavam sem precisar mover o pé dos seus engenhos”111 Contudo, não processou-se de forma pacífica o aprisionamento do nativo brasileiro. Ao exemplo dos intermináveis debates sobre escravidão de nativos entre Las Casas e Sepúlveda na Espanha, no Brasil também foram acirradas as divergências sobre a condição de escravização dos indígenas, sua personificação humana, se o nativo tinha ou não alma. Divergências estas que colocaram em ambíguas posições jesuítas e colonos portugueses, com a prevalência da economia sobre a ética jesuítica da época. Como é sabido o indígena só deixou de ser intensamente caçado com a introdução da mão-de-obra africana no Brasil. Jorge Couto afirma que a justificação de escravização de indígenas no Brasil por “guerra justa” deuse quando, em 1555, os Caetés se revoltaram na Capitania do Pernambuco. No ano seguinte acontece o 109 110 - ibib. p. 490. - ibid. p. 498 - 508 38 Jorge Luis Ribeiro dos Santos naufrágio da nau Nossa Senhora da Ajuda. Os náufragos que se salvaram, dentre os quais cléricos e mais de uma centena de pessoas, foram mortos e comidos pelos índios. Este fato ensejou a “justificada” punição dos Caetés apoiada pela Companhia de Jesus. Anos depois Mem de Sá decretava sentença de guerra justa contra os Caetés por estes mesmos crimes reduzindo-os à morte e escravidão. À mortandade dos Caetés somaram-se as epidemias e fome “que levou muitos aborígines, em situação de desespero, a oferecerem-se como escravos” em troca de comida. Estas incursões provocaram os debates morais e jurídicos acerca da escravização dos índios, principalmente entre setores defensores dos colonos em contraposição aos jesuítas. A coroa interveio e em Carta Régia de Março de 1570, D. Sebastião decreta a proibição de escravizar indígenas, salvo em guerra justa decretada pelo soberano ou governador-geral, compra de prisioneiros de grupos hostis e auto-alienação de maiores de 21 anos112. Muito se discutiu sobre a natureza humana dos índios no Brasil colônia. Para os colonos portugueses, assegura Jorge Couto, os índios não possuíam alma principalmente pela prática antropofágica. Mas o papa se pronunciara em maio de 1537 confirmando que os ameríndios eram homens capazes de receberem a fé. Os índios eram considerados “papel branco” prontos para serem gravados a fé católica. Padre Manoel da Nóbrega, afirma Couto, “combateu a tese de que os Ameríndios, por serem descendentes de Cam, deveriam ser perpetuamente escravos de outros povos; declarou a escravatura contra a natureza” e contra um pai vender seu filho ou alguém se escravizar113. A estes debates se seguiram outros, como por exemplo, sobre a posse e propriedade de bens da Companhia para que esta pudesse subsistir, ao fim do qual a Companhia de Jesus “optou por se integrar no sistema produtivo, acentuando bens de raiz ao adquirir mão de obra escrava, sobretudo negra, e produzindo para o mercado” para obter recursos os quais financiariam seus trabalhos missionários114. A longa convivência da Igreja com a escravatura, cuja legitimidade – em certas condições – acabou por ser teorizada pelos seus doutores, a percepção de que a resistência à introdução de escravos negros no Brasil contribuía para intensificar as operações de escravização dos índios, a consciência de que a importação de mão-deobra escrava constituía uma necessidade vital para o funcionamento da economia da colónia e o entendimento de que a sobrevivência das actividades de missionação dependia do recurso do trabalho de cativos, sobretudo de negro, nas suas casas e unidades produtivas, consagrando, por conseguinte, a vitória dos defensores da corrente pragmática face aos puristas da corrente ascética115. 111 - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 132 - COUTO, Jorge. A construção do Brasil. p. 300, 301. 113 - ibid p. 218. 114 - ibid. p. 323,324. 115 - ibid. p. 325 112 39 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Esclarecidas estas questões, conclui Couto, preocupou-se a Companhia de Jesus com as suas ações relativas aos cativos como a catequização, a aculturação, as normas que atenuassem o trato dos senhores com os escravos. Era uma tentativa de eliminar as brutalidades contra estes cometidas e por outro lado tentando convencer os cativos a se conformarem “com a sua vida terrena e incentivando-os a lutar pela conquista da salvação eterna”116. 4.2 - A escravidão do africano A gradativa substituição do braço escravo índio pelo do africano no escravismo colonial deveu-se, segundo Maestre, ao caráter do comércio triangular do tráfico. “Na África, os mercadores trocavam mercadorias européias baratas por cativos negros. Nas Américas, as peças permitiam a obtenção das valiosas mercadorias coloniais. A finalização do ciclo, na Europa, permitia lucros extraordinários aos comerciantes”, neste ciclo todos lucravam não só com produtos da escravidão, mas também com o próprio mercado escravista: comerciantes metropolitanos lucravam, coroas ibéricas arrecadavam fundos, dirigentes coloniais e o clero com os batismos remunerados nas praias africanas, também lucravam117. Ao contrário dos índios americanos os africanos chegaram no Brasil já destribalizados, formavam uma massa heterogênica de distintas etnias e de diferentes culturas e estágios de evolução social, sustenta Gorender. Mas todos tinham em comum a propriedade comum da terra e as diversas formas de trabalho coletivo. E a escravidão, embora recorrente entre tribos e reinos africanos, advinda principalmente das guerras, era do tipo patriarcal e acessória à produção. Os indivíduos capturados eram trocados por panos, ferragens, trigo, armas, munições, sal, cavalos e outras quinquilharias européias. A estes produtos somaram também aqueles produzidos nas Américas como: tabaco, cachaça, açúcar, doces. Tudo isto era feito sob as bênçãos da Igreja que sob o pretexto de extirpar a escravidão indígena incentivou a escravização do negro. A justificativa sobre a qual a Igreja acomodou suas teses de aceitarem a escravidão negra e condenarem a escravidão indígena, principalmente entre os jesuítas, era o salvamento das almas dos negros trazidos para o Brasil, uma vez que os pagãos embrenhados no continente africano estavam condenados ao inferno. O Padre Antônio Vieira, citado por Alencastro, dizia que “se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a Sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre”118. Mesmo em relação aos índios Vieira é ambíguo e por “compromisso político” com os portugueses acaba anuindo à escravização destes, como transcreve Bosi: mas somos nós que, sujeitando-os [referindo-se aos gentios] ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos, também, ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem 116 117 - ibid. p. 325,326. - MAESTRI, Mário. A escravidão negra. p. 35. 40 Jorge Luis Ribeiro dos Santos (...) e nós não só lhes defendemos a liberdade, mas pactuamos com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meios cativos, obrigando-os a servir alternadamente a metade do ano119. Embora, em menor escala, o tráfico de escravos africanos já era praticado na Idade Média pelos árabes através do mediterrâneo120, mais tarde os portugueses monopolizaram o tráfico até inícios do século XVII, a partir de então outras potências colonialistas entram em concorrência no promissor mercado, principalmente a Inglaterra, França, Dinamarca, Holanda e Espanha. No século XVIII a Inglaterra como potência militar e naval, domina o tráfico mundial de escravos. Todavia, o tráfico de escravos foi abolido na Inglaterra em 1807 e em 1833 a coroa britânica aboliu legalmente uso do trabalho escravo. Eric Williams afirma que Quando o tráfico de escravos foi abolido em 1807, o projeto de lei continha uma frase no sentido de que o tráfico era “contrário aos princípios de justiça, humanidade e sã política”. Lorde Hawkesbury objetou: em sua opinião, as palavras “justiça e humanidade” falavam em desabono dos traficantes de escravos. Portanto, propôs uma emenda excluindo aquelas palavras (...). O presidente da Câmara dos Lordes protestou. A emenda tiraria o único fundamento sob o qual as outras potências eram solicitadas a cooperar na abolição121. Resultado: a emenda foi rejeitada e o projeto original aprovado depois do argumento do Conde de Lauderdale o qual objetou que a omissão poderia dar pretexto a que os franceses argumentassem que as colônias inglesas tinham estoques suficientes de escravos o que deslegitimava a proposição dos ingleses. Sendo assim, concluiu Lauderdale, se os ingleses não fizessem sacrifícios como poderiam pedir cooperação das outras potências? 122 Por nenhum esforço de imaginação poderia um humanitarista justificar qualquer proposta destinada a manter ainda mais firmemente as correntes da escravidão dos negros no Brasil e em Cuba. Isso era precisamente o que o livre-câmbio do açúcar significava. Pois após 1807 os plantadores das Índias Ocidentais Britânicas não tiveram mais permissão para o tráfico de escravos, e depois de 1833 para a utilização do trabalho escravo. Se os abolicionistas tivessem recomendado o açúcar oriental, com base no falacioso princípio humanitarista de que era produzido pelo trabalho 118 - ibid. p. 183. - BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. P. 137 120 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. p. 125 – 128. 121 - WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. p. 200. 122 - ibid. p. 200. 119 41 Jorge Luis Ribeiro dos Santos livre, era dever deles, de acordo com seus princípios e sua religião, boicotar o açúcar, produzido por escravos, no Brasil e em Cuba. Por deixarem de fazer isso, não se deve deduzir que eles estivessem errados, mas é inegável que o seu fracasso em adotar tal atitude destrói completamente o discurso humanitarista. Os abolicionistas, depois de 1833, continuaram a opor-se aos plantadores das Índias ocidentais, que agora empregavam mão-de-obra livre. Enquanto, antes de 1833, eles boicotavam o inglês dono de escravos, depois de 1833 esposavam a causa do brasileiro dono de escravos.123 Os abolicionistas ingleses, afirma Williams, boicotavam a produção da mão-de-obra-escrava das Índias Ocidentais Britânicas manchada com o sangue dos negros escravos, porém, a existência do capitalismo britânico dependia da produção escrava como a do algodão, produzido por escravos nos Estados Unidos igualmente ligado à escravidão e manchado do mesmo sangue escravo, mas, para esta contradição tinham uma justificativa: os escravos americanos não são co-súditos da Inglaterra e não havia provas de que a escravidão nos EUA era tão degradante quanto nas Índias. Mas não era só o açúcar produzido por mãos escravas, era o mogno cubano lavrado por escravos e também os móveis brasileiros. A abstinência total da produção escrava inviabilizaria o capitalismo inglês, aliás o açúcar brasileiro, refinado na Inglaterra para ser revendido para outros países, movia o capitalismo inglês124. O tráfico de escravos negros continuou pelo menos por 25 anos após 1833, segundo Williams, para o Brasil e Cuba, mesmo sob a ilegalidade e fiscalização imposta pelos britânicos sobre nações escravagistas. Conforme atesta Joaquim Nabuco, no ano de 1870, um quadro estatístico encomendado pela Câmara dos Deputados constatou existência de cerca de 1,6 milhão de escravos no Brasil, números pouco confiáveis dadas as fraudes na prestação de informação dos senhores com medo de taxação de impostos125, isto dezoito anos antes da abolição. Não só estes dados, mas outros confirmados pelos historiadores atestam a continuidade do tráfico ilegal após a adesão do Brasil ao tratado de proibição do tráfico negreiro imposto pela Inglaterra em 1807. As duas economias do Brasil e Cuba eram dependentes do tráfico e a necessidade de açúcar barato fez desaparecer o horror do humanitarismo britânico pela escravidão - tal qual tivera aversão à escravidão das Índias - diante da escravidão cubana e brasileira, isto porque, como já dito, a Inglaterra importava o açúcar para o refino e não para o consumo. As indústrias inglesas refinavam e vendiam açúcar para o restante da Europa, sem “sujar as mãos” com consumo de produto escravo. Dizia em 1845 o Lorde inglês Thomas Babington Macaulay: “(...) agradecemos a Deus por não sermos como estes pecadores italianos e alemães que não têm escrúpulos em tragar o açúcar produzido por escravos”,. 126 123 - ibid. p. 210. - WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão, p. 212. 125 - NABUCO, Joaquim. A escravidão. p 125. 126 - ibid p. 216. 124 42 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Mas até sua completa extinção o tráfico e a escravidão legal ainda percorria longas décadas no Brasil, pois, como afirmou Ruy Barbosa em palestra proferida quando da campanha presidencial a 20 de março de 1919, no Rio de Janeiro: A escravidão era o alfa ômega da sociedade, que ela nutria, o alicerce, e, justamente, a cumeeira do Estado, que nela incorporara. O escravo, pelo contrário, era, entre os companheiros do homem, o ínfimo dos seres animados. Entre a humanidade e a animalidade, vegetava sem os foros de uma, nem as vantagens da outra, menos bem tratado que as alimárias de estimação, ou as crias de raça.127 Sem alternativa para o trabalho livre, restava ao escravo a fuga para os quilombos. Trabalho e opressão são correlatos do escravismo colonial. Alforriados, os escravos tinham como alternativa a subsistência como posseiros em sítios marginais ou viver como agregado tal como viveu depois da abolição da escravatura128. De qualquer forma, afirma Alfredo Bosi, ser negro livre era sempre sinônimo de dependência. Bosi afirma que a formação econômica social do Brasil colonial se caracterizou pelos interesses do mercado escravagista de açúcar, de ouro e politicamente pelo absolutismo reinol e no mandonismo rural, o que forjou um estilo de vida patriarcal e estamental entre os poderosos e escravistas ou dependente entre os subalternos.129 “Na sociedade escravista não se dá nem pode dar-se ao escravo a alternativa de dirigir-se a si mesmo”, constata Octávio Ianni, pois isto seria negar o fundamento da própria escravidão e daria ao escravo “possibilidades de auto-afirmação, de apreensão de uma consciência social, histórica, que negará o regime”.130 Mas algumas vozes na República iriam impulsionar a abolição legal da escravidão no Brasil. Joaquim Nabuco foi um destes abolicionistas embora, como salienta Manuel Correia Andrade, “no início do século XIX não havia condições objetivas que permitissem a abolição imediata, pois o governo que assim agisse poria em xeque a poderosa classe dos senhores de engenho e não teria condições de se manter no poder”131. Todavia, condições político-econômicas cada vez mais impõem mudanças profundas nos modos de produção da época e O trabalho escravo perde prestígio progressivamente, em conseqüência de inovações tecnológicas, do encarecimento do cativo, da destruição das bases morais do regime, 127 - BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil. p. 43. - BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. p. 24 129 - ibid. p. 25. 130 - IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. p. 142. 131 - NABUCO, Joaquim. A escravidão. Prefácio: Manuel Correia Andrade. 128 43 Jorge Luis Ribeiro dos Santos da própria eficácia do trabalho de grupos europeus que se dedicam à agricultura em geral.132 Na literatura, jovens escritores já fazem poemas e escrevem romances de cunho nitidamente abolicionistas os quais procuravam sensibilizar a sociedade perante as injustiças do cativeiro. Versos de Castro Alves, publicados por volta de 1883, relatam a vida dos negros e seus sofrimentos133. O tráfico de escravos também foi cantado por Castro Alves no épico “Navio Negreiro – tragédia no mar” que narra o transporte dos negros escravos nos porões dos navios dos traficantes de africanos, a obra foi publicado vinte anos após a lei Eusébio de Queirós que proibiu o tráfico negreiro em 1850 e o poema atesta a continuidade do tráfico134, embora esta situação já fosse também alvo das denúncias de Joaquim Nabuco. De cunho denuncista e contestatório Castro Alves questiona a nação, em seus versos finais do “Navio negreiro” ao colocar em claro a ignomínia da escravidão e do desterro. A contradição da nação que outrora lutou pela liberdade e empresta sua bandeira para hastear nos mastros dos comboios negreiros é posta a nu pelo poeta. A pátria que mancha as suas cores para encobrir a escravidão faz de sua bandeira “mortalha” para o povo negro, esta é a apoteose das estrofes de Castro Alves135. Bernardo Guimarães, outro escritor da efervescência abolicionista, escreveu o clássico romance antiescravagista “A escrava Isaura” em 1875. A obra circulava por capítulos diariamente em forma de “folhetim” 132 - IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. p. 158. - CASTRO ALVES. Os Escravos. p. 63. Escreve o poeta: “__ Espécie de cão sem dono / Desprezado na agonia, / Larva da noite sombria, / Mescla de trevas e horror./ É ele o escravo maldito, / O velho desamparado,/ Bem como cedro lascado,/ Bem como o cedro no chão./ Tem por leito de agonias / As lájeas do pavimento. (Antítese) A mãe lamenta a sorte do filho escravo: “Ensina-lhe as dores de um fero trabalho.../Trabalho que pagam por pútrido pão./Depois que os amigos açoite no tronco.../Depois que adormeça co’o sono de um cão. (Mãe do Cativo). 134 - ibid. p. 88. “(...) Era um sonho dantesco... O tombadilho / Que das luzernas avermelha o brilho, / Em sangue a se banhar. / Tinir de ferros... estalar do açoite... / Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dança... / (...) / Quem são estes desgraçados, / Que não encontram em vós, / Mais que o rir calmo da turba / Que excita a fúria algoz? / (...) / São os filhos do deserto / Onde a terra esposa a luz / Onde voa em campo aberto / A tribo de homens nus... / São os guerreiros ousados, / Que com os tigres mosqueados / Combatem na solidão... / Homens simples, fortes, bravos... / Hoje míseros escravos / Sem ar, sem luz, sem razão... / (...) / Hoje o porão negro, fundo, /Infecto, apertado, imundo, / Tendo a peste por jaguar... / E o sono sempre cortado / Pelo arranco de um finado, / E o baque de um corpo ao mar... / Ontem plena liberdade / (...) / Hoje... cum’lo de maldade / Nem livres p’ra... morrer... / Prende-os a mesma corrente / ___ Férrea, lúgubre serpente – / Nas roscas da escravidão. / E assim roubados à morte, / Dança a lúgubre coorte / Ao som do açoite... Irrisão!... / (...) 135 - ibid p.93 “(...) E existe um povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... / E deixa-a transformar-se em festa / Em manto impuro de bacante fria!... / Meu Deus! Meus Deus! Mas que bandeira é esta, / Que impudente na gávea tripudia?!... / Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto / Que o pavilhão se lave no teu pranto... / Auriverde pendão da minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, / Estandarte que a luz do sol encerra, / E as promessas divinas da esperança... / Tu, que a liberdade após a guerra, / Foste hasteado dos heróis na lança, / Antes te houverem roto na batalha, / Que servires a um povo de mortalha!... / Finalidade atroz que mente esmaga! / Extingue nesta hora o brigue imundo / O brilho que Colombo abriu na vaga, / Como um íris no pélago profundo!... / ... Mas é infâmia de mais... da etérea plaga / Levantai-vos heróis do Novo Mundo... / Andrada! Arranca este pendão dos ares! / Colombo! Fecha a porta dos teus mares! (do poema “O navio negreiro”) 133 44 Jorge Luis Ribeiro dos Santos em um jornal da época, cujos leitores, possivelmente, possuíam escravos a seus serviços136. O romance narra a vida da escrava branca Isaura e elucida aspectos da condição dos escravos no Brasil. Trata-se de uma obra de ficção, datada, portanto, nela alguns retratos interessantes da realidade escravista são mostrados nas situações reais experimentadas na sua contemporaneidade137. Joaquim Nabuco, bem mais incisivo e propositivo, militava pela causa dos escravos nos espaços públicos de sua época. Nabuco era talvez uma das vozes mais consistentes a questionar a escravidão nos seus fundamentos ético, econômico e legal, já na segunda metade do século XIX, algumas décadas antes da abolição da escravatura em 1888. Ao direito brasileiro da escravidão Nabuco chama de excepcional e bárbaro. Nele o escravo tem status de coisa e entra no “rol dos bens, e dos bens semoventes”. O escravo perdeu sua dignidade, seus direitos e sua natureza de homem. “A lei não alargou sua capacidade jurídica mais que a do animal. As funestas tradições da antiguidade romana passaram com o fato para nosso direito colonial”, analisa o autor138. Nabuco não poupou nem a igreja ao desnudar para a sociedade escravista de sua época as contradições da escravidão e a hipocrisia eclesiástica em relação ao escravismo. 136 - GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. p. 122. A personagem Álvaro traduz o pensamento abolicionista: “__ A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso, que nos desonra aos olhos do mundo civilizado. (...) uma bárbara e vergonhosa instituição”. 137 - ibid. p.50. Escravas conversam sobre seu Senhor e o destino: “__Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós todo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal apanhar café, e o Piraí do feitor rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro. __ Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor – observou outra escrava - , se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda, desde que amanhece até as nove, dez horas da noite. Quer me parecer que lá ao menos a gente fica a vontade. __ Mais a vontade?!... Que esperança! – exclamou uma terceira. – Antes aqui, mil vezes! Aqui ao menos a gente sempre está livre do maldito feitor. __ Qual, minha gente! – ponderou a velha crioula -, tudo é cativeiro. Quem teve a desgraça de nascer cativo de um mal senhor, dê por aqui, dê por acolá, há de penar sempre. Cativeiro é má sina; não foi Deus que botou no mundo semelhante coisa, não; foi invenção do diabo”. Aqui o feitor é descrito: “O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios. É abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente esquece o juiz, que lavrou a sentença, para revoltar-se contra o algoz, que a executa” (pp. 53-54). O Senhor é dono do corpo e espírito do escravo e dita os limites de sua condição: “__(...) Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais ninguém. És propriedade minha; um vaso que tenho em minhas mãos, e que posso usar dele ou despedaçá-lo a meu sabor. (pp. 68-69). Uma personagem propõe a solução para a libertação de seus escravos: “Como porém Álvaro tinha espírito minimamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo de plena liberdade, organizou para seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida poderiam resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar a título de arrendamento, e eles, sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura subsistência e poderiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do sacrifício que fizera com a sua emancipação” p. 82. 138 - NABUCO, Joaquim. A escravidão. p. 122 45 Jorge Luis Ribeiro dos Santos A religião católica, única capaz por assim dizer do país, transigiu com o fato, e não se perguntou mais no confessionário, se, sendo roubar e matar contra os mandamentos do Sinai, não o seria também ter escravos sob si e nunca se o disse do púlpito. Os conventos foram, com o andar dos tempos, os maiores proprietários de homens e só tinha para suma glória de Deus139. (Grifos originais) E desafiava ainda mais a igreja: “Eis o que se tornou o catolicismo abraçando a escravidão: os mosteiros encheram-se de escravos, não perseguidos, mas comprados; os bens das comunidades religiosas contam-se por cabeças de homens e de gado”140. Para Nabuco a escravidão era um atraso, uma dependência herdada de um nefasto passado, por isso conclamava: “Chegou a nossa independência: afirmar perante o mundo a soberania do povo era negar a escravidão: se o direito à liberdade política vem da natureza, primeiro vem o direito à liberdade pessoal”. Além do mais a escravidão era degradante por que ela tornava uma raça parasitária da outra: “A escravidão degrada a alma do escravo e do senhor” pois torna o senhor dependente dos “vícios”; dependente do mando e dos castigos infligidos, “da organização da promiscuidade” nas senzalas para garantir a reprodução, dos caprichos e da degradação da natureza humana do escravo para satisfazer o senhor. Inquire Nabuco: “O que é mais degradante, o servilismo ou o despotismo, a covardia do medo ou a covardia da força, açoitar ou ser açoitado?” Os escravos se sujeitam aos senhores como os animais se sujeitam ao homem. “Os direitos que estes (escravos) têm naturalmente entraram para o patrimônio do senhor; eliminou-se de tal modo sua personalidade jurídica que a do senhor pode abrangê-la”. Se lhes deixam a família, lembra Nabuco, foi pela mesma razão que permitem o acasalamento das feras, ou seja, para a reprodução.141 Em seus ataques ao Direito Escravocrata Nabuco nega que a escravidão seja uma instituição social, mas um “fato”. Para ele o escravo não é propriedade do senhor, seus argumentos são contundente e deslegitimam a escravidão onde ela era plenamente legal, sua exegese dos direitos naturais do homem é impressionante e altamente revolucionária para a rigidez jurídica e o conservadorismo patriarcal da sociedade da época: A lei de uma raça não tem força contra a outra. Nas sociedades modernas não são mais possíveis essas suposições violentas das raças invasoras às raças conquistadas; não se perpetua mais entre os nascidos do mesmo solo os sinais distintivos que fazem de um o senhor, de outro o escravo. Não. A lei que rege a civilização atual é outra. Os filhos do mesmo solo são cidadãos da mesma pátria, e como cidadãos têm eles direitos imprescritíveis142. 139 - ibid. p 5 - ibid. p. 12 141 - ibid. ps. 05, 17, 18, 19, 34. 142 - Ibid. p. 45. 140 46 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O pensamento de Nabuco se inspira na Declaração dos Direitos da Revolução Francesa. Ele afirma que a lei da escravidão que oprime e confiscou da raça escrava o trabalho e a liberdade é uma lei da raça branca e não da sociedade. E com sua lógica humanista argumenta: “A escravidão, pois, efeito do crime não tem base na justiça, como lei da raça mais forte não tem base na sociedade”, sendo a escravidão fruto de um crime, assim como a pirataria, como o tráfico, ela deve acabar sem que se deva nada aos seus causadores. “A escravidão não é um direito” e “por conseqüência não impõe um dever”. Portanto, o senhor não tem direito sobre os escravos, embora haja previsão legal “a lei não pode é mudar a essência das coisas, é tornar uma espoliação, um roubo, um assassinato em direito”143. A justiça para Nabuco era um atributo do direito e o direito se identifica com a liberdade. E a escravidão Destruindo a liberdade humana, na raça conquistada, ela destrói a noção de Estado, substitui a força à equidade, a tirania ao direito, a opressão ao dever, por isso não dá direito algum do senhor sobre o escravo, nem impõe dever algum ao escravo para com o senhor. Assim a tal propriedade que este invoca sobre aquele não tem razão de ser; é uma propriedade opugnante ao direito de propriedade, o que é uma contradição nos termos. O direito é outro. Acima desse estado anormal plana o princípio da liberdade.144 Os argumentos do jovem jurista Nabuco deslegitimam - mesmo com base na legalidade positivada da época que proibia o tráfico de negros conforme consignado no Tratado de 1826 imposto pela Inglaterra e do qual o Brasil era signatário - a escravidão com um argumento lógico, que nos termos colocados e na lógica argumentativa e factual são irrefutáveis: A lei declarou livres os escravos importados depois de 1830; de 1830-1845 para cima de quinhentos mil africanos penetraram em nosso país para um cativeiro ilegal. Esses quinhentos mil homens procriaram, tiveram suas famílias. Hoje seu sangue anda mesclado ao sangue de nossa escravatura toda; assim pode-se dizer que a escravidão em nosso país em grande parte é contrária à lei, é ilegal.145 Seriam libertados milhares de escravos, argumentava Nabuco, se fosse dada eficácia e cumprimento à de proibição do tráfico vigente. Enfim, conclui Nabuco: 143 - ibid. ps. 47, 55 - ibid p. 47. 145 - ibid. p. 101 144 47 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O que fica patente em tudo isso é que no Brasil ao lado de uma escravidão legal, há uma escravidão ilegal; ao lado dos africanos transportados sob o regime de permissão do tráfico, há africanos introduzidos sob o regime de proibição do tráfico. Esses foram sucessivamente vendidos, doados, passaram em heranças, e por uma prescrição arbitrária entraram no domínio comum da escravidão; mas a estes assiste um direito garantido por lei e estes têm no tratado de 1826 e na lei de 7 de novembro de 1831 sua carta não de alforria, mas de liberdade nativa146. Contudo, eis que, finalmente, o movimento contra o cativeiro triunfou, pois em 1888 é decretada a abolição da escravatura no Brasil. Otávio Ianni afirma que as transformações internas é que “paulatinamente arruínam os vestígios do regime, pois que ele se tornara inadequado, envelhecido e novas formas de produção e existência social se haviam instalado e expandiam-se”147. Parece que os mesmos passos deram-se na abolição da escravidão em outros países como constata Ernest Olbert. Se o movimento contra o cativeiro foi vitorioso, afirma Ernest Olbert em análise da escravidão britânica, isto não se deve aos sentimentos humanitários das classes dirigentes dos ingleses. Esta conclusão pode ser, em termos, aplicável ao caso brasileiro. Só as mudanças econômicas da Inglaterra como a crescente industrialização e o declínio dos “proventos da escravatura, anularam, final e decisivamente, a influência dos amigos do cativeiro”. Outras razões influíram ainda como a independência dos EUA, continua o autor, a independência de outras colônias que agora eram estados autônomos, enfim “Outros negócios mais lucrativos acenavam aos ingleses e por isso a Inglaterra prontificou-se a abolir a escravatura”.148 É a partir de 1869, afirma José Manoel Romero Moreno, que se produzem os passos normativos efetivos, no colonialismo escravocrata espanhol, para a abolição da escravatura, Um elemento que sem dúvida influenciou nele é a consideração da abolição, senão como direito constitucional, mas como um direito subjetivo. Para que isto chegue a se cristalizar de modo operativo será necessária a coincidência deste elementos: uma declaração formal incondicionada; a possibilidade de exercício da ação processual em caso da não aplicação correta do direito; a previsão de requisitos e conseqüências e conseqüências econômicas e sociais que ele pressupõe e o estabelecimento de um regime transitório congruente.149 146 - ibid. p. 103 - IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. p. 204 148 - OLBERT, Ernest. Escravatura, alicerce de um império. p. 40. 149 - MORENO, José Manuel Romero. Derechos fundamentales y abolición de la esclavitud en España. In: Estudios sobre la abolición de la esclavitud. coord. SOLANO, Francisco. CSIC. p. 252. Tradução minha. 147 48 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Enfim, estava legalmente abolida a escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, com apenas dois lacônicos artigos: “Art. 1o - É declarada extinta a escravidão no Brasil” e “Art. 2o – Revogam-se as disposições sem contrário”. Como narra Queiroz,150 Uma explosão de alegria popular ocorreu na capital do império. Repicaram sinos, repartições públicas fecharam-se, a correspondência sobrou nos correios, o comércio suspendeu suas atividades para que milhares de pessoas, portando flores e bandeiras, decorassem as ruas da cidade e com o seu contentamento pela libertação dos escravos. Mas passada a euforia logo se arrefecem as comemorações frente à dura realidade da retirada em massa e na pauperização dos guetos das cidades. Os famintos “libertos” pelas estradas se amontoam. Pois A libertação de negros e mulatos, retiram-lhes, juntamente com a destruição dos fundamentos econômicos e jurídicos da dominação de casta, também a segurança econômica. O escravo ganha a liberdade e perde as garantias de subsistência que o regime lhe dava151. 150 151 - QUEIROZ, Suely R. Reis de. A abolição da escravatura. p. 85. - IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. p. 225 49 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Capítulo II O trabalho compulsório no século XX: “metamorfoses” da escravidão. Otávio Ianni nos remete à compreensão do complexo sistema social de “assimilação” do escravo liberto no novo sistema pós-abolição. O escravo é integrado na categoria social de “negro” e “mulato” para serem mantidas as devidas polarizações em relação à sociedade branca. Os “negros” e “mulatos” são os “outros” que carregam o estigma da escravidão e são propensos aos trabalhos mais duros e indignos152. Para Ianni este metamorfoseamento resulta na discriminação e racismo que segmenta o negro pobre, expropriado e ex-escravo. Apesar da tolerância formal aos recém libertos, estas relações foram a base da estrutura social brasileira, cujas conseqüências, embora hoje mais diluídas, ainda são visíveis nas desigualdades sociais no Brasil. De inspiração em Ianni tomamos aqui a expressão “metamorfose” não só no sentido de destacar a gênese do racismo e discriminação na estrutura social brasileira, mas estendemos o termo para assemelhar as formas atuais de relações involuntárias de trabalho com o trabalho escravo da pré-abolição. O escravo contemporâneo está no rol dos “estigmatizados”, ele é o “outro”, o “estranho” materializado, seja na figura do migrante, do nordestino, do maranhense, ou do simples peão, do “peão do trecho”, do peão “rodado”. Ele é herdeiro do antigo escravo do Brasil pré-republicano. Neste sentido ampliamos o termo para uma “metamorfose” das relações laborais involuntárias legais, ou seja, da escravatura instituída para as ditas relações livres de trabalho contemporâneas, mas que camuflam outras formas involuntárias e degradantes de serviços. Aqui as metamorfoses aludidas abarcam formas camufladas de “contrato” de trabalho travestidas de formalidade ou informalidade, mas que no final regridem às similares formas de “trabalho escravo”, embora a este “outro” escravo dos dias atuais pouco importa a cor da pele, ainda que a maioria dos “trabalhadores escravos” hoje resgatados nas fazendas, por razões da lógica própria da exclusão sócio-racial brasileira, seja de origem negra. A “metamorfose dos escravos” da pós-abolição Foge aos objetivos nossos a análise sociológica da formação da sociedade agrária brasileira, mas já afirmamos que o escravo contemporâneo do sudeste paraense é herdeiro direto ou indireto do escravo prérepublicano, em grande parte como conseqüência das arraigadas formas de dominação da terra por oligarquias e a permanência das arcaicas estruturas sociais de relação e hierarquia que ainda iriam determinar as variadas formas de trabalho indigno e mesmo escravo que persistiriam após a abolição legal da escravidão, 152 - IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo. p. 218-219. 50 Jorge Luis Ribeiro dos Santos notadamente no setor agrário brasileiro. Wassserman e Guazzelli assinalam que com a abolição da escravatura ressurgiram na América Latina variadas formas de trabalho escravo camufladas, é claro, por um intricado sistema de compadrio, peonagem, aliciamento, emigração, todos eles encerrando endividamento e formas précapitalistas de produção. Em relação à força de trabalho, o latifúndio controlava a população interna, menos mediante assalariamento e mais através de mecanismos servis, em que se conjugavam elementos repressivos e paternalistas. Além dos métodos de importação de trabalhadores e manutenção deste latifúndio, as oligarquias exigiam aumento da jornada de trabalho em troca da mesma retribuição de salários, espécie ou abatimento das dívidas para aumentar a renda obtida com o comércio exportador153. Mesmo antes da abolição (e certamente após) algumas formas de parceria e contratos temporários abusivos de trabalhos foram ensaiadas, mas se revelaram em relações servis que prendiam os trabalhadores colonos às terras por conta do endividamento. Foi o que ocorreu com os emigrantes europeus, por exemplo, com suas dívidas contraídas desde sua saída da Europa, afirma Gorender. Esta situação resultava numa “forma disfarçada de escravidão branca” ou numa “escravidão incompleta”154. A abolição não transformou o “escravo em cidadão”, antes, foi um movimento para “transfigurar o trabalho escravo em trabalho livre”155. “A persistência de elementos do sistema cultural elaborado em séculos de regime escravocrata é um fenômeno que penetra a sociedade do século XX, determinando alguns componentes essenciais das condições de vida do negro”156 e também de brancos e caboclos pobres. Exemplo de que a prática camuflada de trabalho escravo persistiu após a abolição e no decorrer do século XX pode ser exemplificada nas palavras de Ruy Barbosa em palestra de campanha presidencial proferida no Rio de Janeiro em 1919. Em sua campanha eleitoral Ruy Barbosa faz uma análise da situação sócio-política do Brasil. É de uma revelação histórica impressionante o diagnóstico das situações de trabalho no campo do Brasil do início do século XX. Na ocasião o autor já reclamava a necessidade de mudança na legislação trabalhista rural no sentido de garantir direitos iguais a trabalhadores da indústria e da terra - o que só veio de fato a ocorrer com a equiparação do trabalhador rural ao urbano com a Constituição Federal de 1988. Ruy Barbosa, profundo conhecedor do Brasil de seu tempo, não cita exemplos de trabalho escravo, dado o contexto e finalidade de seu discurso, senão de maneira generalizada. Não faz alusão aos locais de incidência, mas pode-se aventar que se referia à escravização de trabalhadores rurais nas frentes de expansão agrícola, seja no sudoeste brasileiro, seja no mandonismo patriarcal das oligarquias do interior nordestino, ou à escravização por dívida a que eram submetidos os extratores de borracha e castanha da Amazônia. Dizia ele: 153 - WASSERMAN, Cláudia e GUAZZELLI, César Barcellos. História da América Latina. Do descobrimento a 1900. p. 85. 154 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial ps. 591 e 594 155 - IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. p 205. 156 - ibid. p. 250. 51 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Há uma vastidão imensurável, verdadeiros desertos morais, do todo em todo ínvios, selvas de terror e crueza, quase impenetráveis e, até hoje, absolutamente virgens da luz da civilização. Nos recessos desses sertões, não só nas paragens mais recônditas, mas ainda muito aquém, aí por onde já passam, de longe a longe, rastros de curiosidade, ou abre inesperadas clareiras o acaso de excursões perdidas, o trabalho vive a morrer, muitas vezes num regímen análogo ao do cativeiro. O peão, o vaqueiro, o lenhador, o obreiro agrícola, o colono são, às vezes, instrumentos servis de um patronato cruel e irresponsável. Também entre nós muita coisa existe, por aí além, dessa peonagem mexicana, que celebrou o Iucatã, a terra das agáveas, onde o mecanismo de crédito e débito entre senhores territoriais e servos agrícolas eterniza a escravidão branca, num regímen que aboliu o seu nome, para não ser inquietado na sua perpetuidade. Aqui também as contas dos operários rurais nos armazéns de venda, mantidos nas estâncias e fazendas, espremem os trabalhadores do campo na entrosagem de uma dependência, que, se não é nem o cativeiro, nem a servidão da gleba, tem, pelo menos, dessa e daquele as mais dolorosas características morais, as mais sensíveis derrogações da condição humana157 (cf. original). Há ainda relatos de escravização de indígenas na Amazônia mesmo décadas após a abolição e ainda no decorrer das primeiras décadas do século XX que corroboram com as constatações de Ruy Barbosa. Logo após a abolição era usada a captura e imobilização do índio para a coleta da borracha, assegura Roberto Santos158. Além do índio o caboclo e o nordestino também foram submetidos a condições degradantes de trabalho e “trabalho escravo” por dívida, coerção e impossibilidade de mobilização nos confins das matas na extração de borracha, caucho e coleta de castanha em áreas da Amazônia. São inúmeros os relatos desta realidade, talvez o mais emblemático deles tenha sido o de Euclides da Cunha por ocasião de suas viagens pela Amazônia brasileira, quando observou que o seringueiro, “jungido à gleba” torna-se o “homem que trabalha para escravizar-se”159. Mas sobre a escravidão na Amazônia nos deteremos com maior profundidade em capítulo específico. Porém a escravidão ilegal da pós-abolições não encontra ocorrência somente na história brasileira. No decorrer do século XX tivemos as mais variadas formas de trabalho forçado no mundo ocidental e oriental sob o abrigo de leis e regimes totalitários em mal dissimulada afronta aos Convênios Internacionais de proteção da liberdade humana e dignidade do trabalho. São exemplos deste tipo de trabalho os campos de trabalho forçado na Alemanha de Hitler, na Rússia de Stálin e no Camboja de Pol Pot. Existem ainda 157 158 - BARBOSA, Ruy. A questão social e política no Brasil. p. 43. - SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. p. 63. 52 Jorge Luis Ribeiro dos Santos denúncias de campos de “reeducação” na China comunista. A pena de trabalhos forçados para criminosos também era aplicada em alguns países da América Latina até décadas atrás. Com ou sem continuidade o fenômeno do trabalho escravo contemporâneo não é particularidade dos países pobres ou ditos de povos “pouco civilizados”, pelo contrário, a escravidão está imbricada em complexos esquemas econômicos e moderníssimas formas de racionalização de lucros e exploração predatórios também das modernas economias ocidentais e das atribuladas economias emergentes. Salienta-se que já na década de 30 do século XX a OIT - Organização Internacional do Trabalho - no auge do colonialismo europeu sobre a África, edita sua primeira Convenção sobre “trabalho forçado” com vistas a coibir a prática dos trabalhos forçados em várias nações ocidentais. A colonização, lembra Maurice Lengellé-Tardy, “se converteu num ressurgimento camuflado de escravidão”160. A mesma OIT vai editar novo Convênio tratando novamente do trabalho forçado em 1957, diante das reiteradas denúncias de trabalho forçado como pena em diversos países. Estas Convenções são classificadas como Convenções Fundamentais pela OIT. A Convenção nº. 29, de 1930 que trata sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório dispõe sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas. Algumas exceções são admitidas, tais como o serviço militar, o trabalho penitenciário desde que adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios e terremotos. A Convenção n º 105 que novamente trata da Abolição do trabalho forçado, foi promulgada em 1957. Esta Convenção proíbe o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; como castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas e a mobilização de mão-de-obra como medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves, ou como medida de discriminação. Embora a legislação proibitiva não faltasse a realidade da escravidão, camuflada sob mantos de legalidade, persistia. Tanto é fato que Lengellé-Tardy afirma que a escravidão contemporânea é identificada por novas definições e que “já não procede (em princípio) do abusus, mas do usufructo a distância do homem pelo homem”161. O autor defende a tese de que A escravidão nunca se interrompeu, mas passou de sua forma clássica a outras formas similares no século XXI sem solução de continuidades. Isto é, a escravidão contemporânea existia antes que a antiga desaparecesse. Por esta razão temos recorrido tanto ao flash back para perceber que o passado era já presente e o presente é a continuação do passado... As duas formas de escravidão se imbricam tão perfeitamente que herdeiro da antiga escravidão pode cruzar o escravo moderno sem reconhecê-lo162. 159 - EUCLIDES DA CUNHA. À margem da história. p. 28 - LENGELLÉ-TARDY, Maurice. La esclavitud moderna. p. 22, 23. 161 - ibid. p.09. Tradução minha. 162 - ibid. p. 13. Tradução Minha. 160 53 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Um marco histórico importante no ressurgimento da escravização pós-industrial foi a colonização européia sobre o continente africano no decorrer do século XX. Milton Meltzer registra que em 1884 representantes de vários países interessados na África se reuniram em Berlim para decidir o futuro do continente, sem a presença dos africanos, ressalta o autor. Na conferência ficou decidido que qualquer nação que desejasse reivindicar um território na África deveria realmente ocupar este território. “Foi um tiro de largada” para o retalhe do continente entre diversas nações européias no início do século XX e assim o continente permaneceu sob o jugo, exploração, escravidão e disputa até décadas após a segunda guerra mundial163. Por vezes havia revoltas, então “grandes navios penetravam em seus portos. Vinham cheios de soldados com fuzis, bombas e metralhadoras - e a lição era dada”, afirma Huberman164. O trabalho compulsório nas colônias européias do continente africano se processava de uma forma curiosamente assemelhada às encomiendas espanholas na América. Como ironiza Leo Huberman: Os governos sempre prontos a “proteger as vidas e propriedades” de seus súditos, ajudavam também de outros modos. Assim, por exemplo, para ajudar no custo da administração, da construção de hospitais, escolas, estradas etc., para a colônia, o governo instituía um imposto que os nativos tinham de pagar em dinheiro. Ora, os nativos não tinham dinheiro. Mas havia uma solução – poderiam ganhá-lo trabalhando nas plantações ou minas dos proprietários brancos. É certo que os salários eram miseravelmente baixos (...). Mas o imposto tinha que ser pago – o que significava que tinham que trabalhar.165 Esta era uma tática disfarçada, mas infalível para o trabalho involuntário ou forçado a que eram submetidas os povos locais. Os portugueses, afirma Meltzer, exploraram mão-de-obra escrava nas colônias de Angola e Moçambique desde 1906, assim como os belgas na bacia do Zaire166. Em 1926 a escravidão recrudesce com o governo ditatorial português de Salazar e só faz aumentar, continuando a persistir traços de trabalho forçado mesmo após a morte do ditador em 1971.167 A Inglaterra conviveu, incentivou e acobertou o trabalho escravo nas suas colônias como em Serra Leoa, pelo menos até 1928, na África do Sul, na colônia de “Burma” ao longo da fronteira chinesa e no “Kénia”, na Rodésia, no território de Niassa, na “Zamba”, na Nigéria, na “Tanganica”, no Congo, em alguns estados da Índia, na Oceania que exportava escravos para a Austrália, em Hong Kong, Malásia e Nepal, conforme assegura Olbert. Afirma o autor, em obra publicada no Brasil em 1940: 163 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão, p. 458. Sobre a escravidão na África ver ainda: LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África. Uma história de sua transformação. 164 - HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. p. 264. 165 - ibid. p. 264. 166 - LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África. Uma história de sua transformação. p. 381. 54 Jorge Luis Ribeiro dos Santos A escravidão de outrora transformou-se nos trabalhos forçados e no trabalho contratado de hoje. Os traficantes de escravos favorecidos então pelos príncipes e ministros da primeira era imperialista, transformaram-se em governantes e agentes de trabalho das colónias britânicas hodiernas. Transformaram-se apenas as palavras, os conceitos ficaram os mesmos, e onde ninguém o vê, ainda hoje subsiste a antiga escravidão feudal, se o acaso o facilitar e enquanto os negócios o exigirem168. Os trabalhos variavam desde serviços públicos forçados, construções de ferrovias, plantações, minas, etc, mas sempre com a característica da compulsoriedade. Na África Equatorial Francesa utilizou-se do trabalho forçado de nativos na construção de estradas nos idos de 1929, registra Maurice Lengellé-Tardy169. Documentos administrativos dos governos coloniais citados por Ernest Olbert, atestam o regime de trabalho escravo instituído oficialmente no Quênia de 1919. Um “Native Labour Circular” diz em seu artigo 2o.: “Portanto, as autoridades exercerão toda a influência apropriada e legal, para que os indígenas válidos façam um contrato de trabalho, e é dever das autoridades aconselhá-los e encorajá-los para que procurem serviço nas plantações”. Noutro documento as autoridades eclesiásticas afirmam: “É verdade que sob o ponto de vista ideal todo o trabalho deve ser livre, mas reconheçamos que isso é actualmente impossível e que, portanto, se pode exercer uma certa pressão quando as necessidades do país reclamarem um determinado número de trabalhadores”170. Muitos governos coloniais acobertavam os trabalhos forçados a pretexto do bem público, mas “a praxe colonial mostra que os trabalhos públicos sempre são trabalhos oficiais e que enfim o progresso das culturas particulares também faz parte do interêsse público”, argumenta Olbert. O trabalho forçado continuava a existir por caminhos indiretos à salvaguarda de aparências legais e das Convenções do Trabalho, mas na verdade quase todas as colônias não só utilizavam os trabalhos forçados públicos, mas também nas atividades particulares. Já não se caçavam escravos como antigamente, mas se “contratava” supertributava e confiscavase as terras dos nativos e também sua liberdade: Quando os empresários britânicos na África do Sul iniciaram a exploração dos jazigos de diamantes, a escravatura já estava abolida. Mas êles souberam tirar-se de embaraços. Os caçadores de escravos foram substituídos por agentes propagandistas que procuravam por todos os meios, contratar indígenas nas diversas regiões sulafricanas para os trabalhos nas minas de diamante e ligá-los mediante contratos por longos anos. Os trabalhadores eram alojados em abarracamentos fechados – os chamados compounds – em que vegetam empilhados em condições miseráveis, e onde da Europa só aprendiam os vícios. Êste sistema, afinal de contas, divergia da 167 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 463. - OLBERT, Ernest. Escravidão: alicerce de um império. p. 54. 169 - LENGELLÉ-TARDY, Maurice. La esclavitud moderna. p 23. 170 - ibid. p.64. 168 55 Jorge Luis Ribeiro dos Santos escravatura num ponto capital: decorrido o contrato, os trabalhadores readquiriam a sua liberdade, podendo fazer o que bem entendessem. Como, entretanto, no decorrer dos longos anos de trabalho se tinham alheado da sua pátria, dos seus costumes e da sua vida simples, e, como lhes faltasse de parte dos patrões europeus qualquer assistência espiritual e cultural, formou-se, desta maneira, um proletariado negro que, ou deperecia ou continuava disposto a fechar novos contatos e seguir na escravatura disfarçada, só para ficar suficientemente amparado171. Já nos anos quarenta, Olbert lembrava que a Inglaterra “procura desconhecer os fenômenos parecidos com a escravatura, em todas as partes, em que seus interesses comerciais o recomendam”. As providências humanitárias dos governos ingleses, ironiza Olbert, falharam em todas as partes em que o interêsse britânico se achava em jôgo e onde as classes dominantes talvez tivessem que pagar as custas. Em todo o caso, a humanidade dos Govêrnos Britânicos, seja qual fôr o partido donde venham, sempre ficavam de sobreaviso desde que se tratava de bolsa própria, e os indígenas de todas as colónias inglesas até a época presente podem para isso fornecer a mais inconcussa das provas172 (cf. original). Muitas nações colonialistas européias do século XX deram exemplos de como sustentar a liberdade doméstica com a escravidão do colonizado e os estados totalitários também com a escravização de inimigos políticos internos ou de territórios dominados. O uso do trabalho forçado, eufemismo para a escravidão, “se tornou um elemento orgânico de regimes totalitários no século XX”173. Fatos conhecidos da história como a escravidão na Alemanha nazista, os trabalhos forçados da Rússia kzarista que foram literalmente copiados pelos comunistas do stalinismo; ou mais para no Oriente das prisões políticas da China com o sistema de trabalho compulsório “reeducativo”, os quais ainda persistem nos nossos dias. Há, enfim, denúncias de haitianos escravizados nos canaviais da República Dominicana, como recentemente constatou o repórter João Alexandre Peschanski: No campo, famintos trabalhadores se submetem ao pior - a escravidão – em troca de alguns gramas de alimento. Deslocam-se, conscientemente, para ser explorados nos latifúndios da República Dominicana. É o caso de Aristomon Jules que, em 2004, abandonou sua casa, em Belle Fontaine, região mais seca do Haiti, e foi cortar cana no país vizinho. Não era pago, apanhava e recebia o mínimo de comida para não morrer de fome. Segundo ele, isto era melhor do que a situação em seu país natal. 171 172 - ibid. p. 60, 61. - ibid. p. 74. 56 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Como ele, centenas de milhares de haitianos atravessam a fronteira – não em busca de esperança, mas para não morrer174. Na Mauritânia, país que teve a escravidão abolida pela última vez em 1980, há relatos de escravidão, assim como também ainda persiste a prática no trabalho rural em áreas agrárias do continente latino americano. Mulheres emigradas do terceiro mundo se prostituem involuntariamente nas cidades dos países ricos da Europa e Oriente e empregados domésticos acabam presos à redes de dívidas nas capitais mais ricas do mundo. Todos formam uma rede complexa de escravidão com a qual o mundo contemporâneo convive. Por fim, há os brasileiros escravizados nos confins das matas amazônicas hoje, cujos patrões cruzam o céu da propriedade em monomotores, efetuam melhoramento genético do seu rebanho bovino, negociam implementos agrícolas pela internet e exportam madeiras, aço, couro e carnes para os países do Norte. Já os trabalhadores são aliciados nos bolsões de pobreza e desemprego das cidades do norte e nordeste brasileiro, são levados para longe dos seus direitos e da sua dignidade. Nos ermos distantes das fazendas são devidamente camufladas em trabalho contratual sua redução degradante e servil de trabalho, longe da visibilidade social e da consciência do patronato. A incômoda senzala contemporânea está embrenhada na mata, é coberta de plástico preto, no melhor dos confortos, e no pior é coberta por palhas de palmeira de babaçu, a água servida é a mesma que o gado usa, o homem é reduzido ao estado degradante onde nenhuma forma de direito o atinge nestes longes da dignidade humana. Senzalas das florestas: o trabalho compulsório da borracha e da castanha. A Amazônia foi e continua sendo vista como um “deserto verde”, um “vazio” ou um “inferno verde” pronto para ser desbravado, conquistado, colonizado, explorado. É terra de potenciais, fetiche exótico do colonialismo interno do sul e do colonialismo global do norte. Embora neste subtítulo nossa preocupação esteja adstrita às condições de trabalho dos coletores de látex e castanha com a análise dos vínculos do sistema de trabalho destas categorias de trabalhadores objetivamos identificar aspectos predominantes de compulsoriedade nestas relações laborais travestidas de contrato livre reafirmando formas de continuidade e/ou similitude desta organização laboral com o contemporâneo trabalho rural compulsório na Amazônia, o qual convencionou-se chamar de “trabalho escravo”. Buscamos alguns relatos de autores contemporâneos do auge da produção gomífera na Amazônia que, seja de forma direta ou indireta, registraram a realidade do trabalho compulsório na exploração da borracha e castanha, dois dos principais produtos responsáveis pelos ciclos econômicos amazônicos do século XX. 173 174 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. p. 466. - PESCHANSKI, João Alexandre. O falso estado haitiano. Revista Caros Amigos, p. 28. 57 Jorge Luis Ribeiro dos Santos É recorrente o viés colonial com que foi vista a Amazônia e em muito ainda continua sendo. A Amazônia na história econômica brasileira figura como pólo passivo e disposto à exploração instrumental da economia, à exploração teórica e científica do centro sul do Brasil ou do norte global. Embora fuja ao nosso objeto a análise e interpretação destes fatores da realidade amazônica bem como suas causas e conseqüências, podemos aventar que o “trabalho escravo” e a conseqüente degradação humana e ambiental crescentes na Amazônia são conseqüências extremas desta forma predatória e equivocada fruto de uma concepção colonial e colonizadora dos empreendimentos públicos ou privados. Na desmemória das incursões dominadoras e exploratórias na história econômica da Amazônia a massa cabocla e índia foi mão de obra nos empreendimentos extrativos. Salienta Guilherme Otávio Velho que no primeiro ciclo de extração da borracha nos fins do século XIV e primeira década do XX, sobre os índios e caboclos se abateu a onda de “valorização da borracha no mercado mundial que os recrutou e avassalou” pois o ciclo econômico da borracha era “um sistema extremamente repressor da força de trabalho”175. Nos fins dos anos 60 outra onda de exploração da terra e dos minérios sobre eles se abateu e se estende até nossos dias criando e recriando novas e velhas formas de avassalamento do caboclo amazônida e de outros pobres vindos de todas as partes do Brasil. Mas a título de registro, antes de adentrarmos na digressão do trabalho compulsório na Amazônia, convém lembrar que este fenômeno não foi só típico do norte brasileiro. No nordeste predominaram formas compulsórias de trabalho nos engenhos até os anos 50 na modalidade da morada, e também na modalidade semi-servil do chamado cambão, já o colonato foi típico nas fazendas cafeeiras do sudeste e sul176 177 , todos estes com nítidas características laborais compulsórias. Um caso ilustrativo desta realidade de trabalho compulsório por dívida ocorreu em São Paulo quando em 1850 o Senador Vergueiro agenciou colonos suíços para trabalharem em suas lavouras de café na Fazenda Ibicaba. O caso teve repercussão mundial porque o trabalhador Thomaz Davatz denunciou e registrou em obra suas experiências e de seus conterrâneos. Afirma Davatz que chegados ao Porto de Santos “os colonos já são, de certo modo, uma propriedade da firma Vergueiro” pois logo que emigram recebem dinheiro adiantado, cujas dívidas só faziam aumentar em virtude do espírito de ganância, para não dizer mais, que anima numerosos senhores de escravos, e também da ausência de direitos que costumam viver êsses 175 - VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. p. 119. - ESTERCI, Neide. A ilusão do trabalho livre. In: Fazendo Antropologia no Brasil. p. 269. 177 - Há registros orais de que prevaleceu no Maranhão até a década de 60 do século XX um sistema servil de trabalho rural nas grandes fazendas, dominadas pela oligarquia semi-feudal, denominado de cambão. A partir da luta contra este sistema efetivou-se a organização do braço da liga camponesas no interior daquele Estado. José de Sousa Martins faz referencia rápida ao sistema in: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. O combate ao Trabalho Forçado no Brasil. Brasília. Maio de 2002. Anais da I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo – 24 a 25 set. 2002. Brasília, OIT, 2003. p 09. 176 58 Jorge Luis Ribeiro dos Santos colonos na Província de São Paulo, só lhes resta conformarem-se com a idéia de que são tratados como simples mercadorias, ou como escravos178. Segundo Davatz os colonos eram lesados não só nos cálculos de sua produção, mas também na cobranças de taxas, comissão, aluguéis abusivos, nos alimentos e equipamentos que eram vendidos a preços abusivos. Os colonos eram presos em galpões vigiados por sentinelas armados, alguns colonos endividados e inadimplentes eram vendidos a outros cafeicultores179. Em conclusão, apelou Davatz às autoridades da época: Julga-se um dever a luta pela abolição da velha escravidão própriamente dita. Pois eu sustento que existe um dever ainda maior, e é o da libertação daqueles que, vergonhosamente ludibriados, foram reduzidos a uma nova escravidão, em vez de verem realizadas as promessas de felicidade com que lhes tinham acenado. E não é também um santo dever, pôr têrmo a tais imposturas e tudo fazer para que não haja novas vítimas?180 (no original). Os escravos da borracha Os historiadores costumam dividir a história econômica da Amazônia em ciclos de produção a partir de 1800. Assim temos o primeiro ciclo que vai de 1800 a 1840 e é chamada a fase de decadência por mostrar um declínio nas atividades econômicas (pesca, cacau, “drogas do sertão”), até então em relativa euforia comercial. De 1850 a 1912 tem marca o “Ciclo da borracha” aonde tal produto chega a representar, no auge da produção, até 30% das exportações do Brasil na época. De 1910 a 1920, é denominado o período de declínio da produção gomífera. O quarto período vai do declínio até 1966, que varia entre uma depressão econômica, com um novo surto nas exportações da borracha nos anos 40, e também uma ascendência na produção da castanha. O último período vai dos anos 60 até hoje e foi marcado pela intervenção governamental na implementação de grandes projetos para a Amazônia (minerais, energéticos, transportes, agropecuários, etc), chamado “Ciclo dos minerais”.181 182 Ferreira de Castro, escritor português que viveu na floresta e romanceou sua epopéia nas selvas da borracha, nos idos de 1914, em obra publicada em 1930 constata a realidade escravocrata nos seringais. O autor dedicou sua obra aos nordestinos seringueiros os quais para ele eram 178 - DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. p. 37 - ibid. pg. 37, 38, 48. 180 - ibid. p. 183. 181 - SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. p.13, 14. 179 59 Jorge Luis Ribeiro dos Santos anônimos desbravadores, (...) gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extração da borracha entregava sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registrar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e justiça. A luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia é uma epopeia de que não ajuíza quem, no resto do mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha – da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável.183 (conforme o original) O endividamento era fator de imobilização e coação ao trabalho involuntário tanto naquela época como ainda hoje. A fictícia personagem de Firmino do romance “A selva” de Ferreira de Castro ilustra o sentimento do seringueiro “cearense” preso nos ermos das matas pelo endividamento: __ (...) Hoje, está a cinco [o preço da borracha] e seu Juca paga a metade. Eu não sei bem; eles, às vezes dizem que ela está a cinco e lá em Manaus está a sete ou a oito. Assim um homem não levanta cangote. Eu tenho estado sempre a dever. Não há maneira de me livrar desta conta.! Quando o Alípio foi ao Ceará buscar pessoal, disse que um homem enriquecia logo que chegava aqui. Eu acreditei naquelas lorotas e, afinal, ainda não paguei as passagens. Eles, assim que nós chegamos já não dizem coisas bonitas. Vendem tudo muito caro, que é para o seringueiro não arranjar saldo e ficar toda a vida nestas brenhas do diabo. Mas eu, logo que pagar a minha conta, vou para o Machado ou para o Jamari. (...) Eu não tenho medo nenhum. Se morrer morri. Se não morrer... o que eu quero é voltar para o Ceará. Sempre que penso na minha terra, sinto uma coisa, aqui, na garganta...184 Se a ficção é reveladora, a vida do seringueiro assistida in locco é ainda mais impactante. José Veríssimo185, em viagem pelo interior do Pará, pelos idos de 1877, ilustra esta realidade. É um olhar preconceituoso, mas que mostra a servidão que acompanha sem subterfúgios a vida do caboclo seringueiro: São todos estes povoados de miseráveis choupanas, onde moram os descendentes, degenerados filhos de Tupã. Nada se pode imaginar de mais triste do que essas 182 - PETIT, Pere. Chão de promessas. Elites Políticas e Transformações Econômicas no Estado do Pará pós-64. p. 50-63 183 - CASTRO, Ferreira de. A Selva. (Pórtico) 184 - CASTRO, Ferreira. A Selva. p. 114. 185 - VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. p. 218. 60 Jorge Luis Ribeiro dos Santos habitações, construídas pela maior parte sôbre giraus, para impedir de serem alagadas nas marés ou nas cheias. A umidade cerca-os por todos os lados com seu cortejo de doenças. E dentro nem uma indústria nem um trabalho, nem um esforço para sair de semelhante condição! São verdadeiros semi-selvagens que, quando o vapor passa, correm todos à margem, as crianças nuas, as mulheres andrajosas, o homens semi-nus. E, talvez, a essa hora esteja no fogo a panela com mingau de pacova, que lhes será o alimento hoje, como já foi ontem e há de ser amanhã! E amanhã essa família toda levanta acampamento, interna-se pela mata e vai tirar seringa, que abunda nestes lugares. Parece-me que a natureza é madrasta para aquêles que só, sem trabalho, querem aproveitar-se dos seus dons. Novamente vale nos reportarmos ao que escreve José Veríssimo186 quatro anos depois de proclamada a abolição legal da escravidão, constatando formas de continuidade do cativeiro escravocrata de nativos na Amazônia: Além do índio brasileiro, semi-selvagem o já meio civilizado (tapuio) e do seu descendente o mameluco, empregavam-se na extração da borracha os índios das regiões estrangeiras limítrofes, bolivianas ou peruanas, dos quais se faziam verdadeiros descimentos quais os das épocas coloniais. Se a escravidão negra quase havia desaparecido da Amazônia na época da emancipação dos escravos, com ela existia concomitantemente a escravidão do índio que, afirmo, continua depois dela a existir (...) Aí o índio e o tapuio (que é o índio já entrado em nossa civilização e completamente afastado da vida selvagem) são ainda e muitíssimas vezes escravos. Como tal surrados, como tal vendidos (menos o instrumento público), como tal doados ou traspassados, sem consulta à sua vontade, de patrão a patrão (...) de 1878 em diante os seringais foram invadidos pelos “retirantes” cearenses, acossados pela seca (...) Hoje são o tapuio e seus descendentes e o cearense que fazem a extração. As atividades de produção da borracha exigem uma grande quantidade de mão-de-obra para suprir a demanda das fábricas da Revolução Industrial. A extração é da forma primitiva e mobiliza cerca de quinhentos mil nordestinos que aliciados ou de forma espontânea foram para as frentes de extração na mata Amazônica. “Ao lado do sofrimento humano e da miséria acarretados por essa exploração, grandes fortunas 186 - VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. p. 178 61 Jorge Luis Ribeiro dos Santos se fizeram e as cidades de Manaus e Belém atravessaram um período de esplendor extraordinário”, informa Guilherme Otávio Velho.187 Euclides da Cunha em viagens pela Amazônia pelos idos de 1905, chefiando a Comissão Brasileira que tratava de limites de fronteira entre Brasil e o Peru, num momento do auge da extração gomífera, narra a vida do seringueiro (trabalhador que extrai o látex da seringa) espoliado que “ao penetrar as portas que levam ao paraízo diabólico dos seringaes abdica as melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio” pois “nas paragens exuberantes (...) o aguarda a mais criminosa organização do trabalho que ainda enjenhou o mais desaçamado egoísmo” (transcrição do original). O seringueiro, afirma Euclides, “realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”. Com a segurança de quem assistiu ao fato que narra Euclides soma as dívidas contraídas pelo seringueiro desde sua partida de seu estado de origem com passagem, hospedaria, alimentação, equipamentos de trabalho, armas e munições. E conclui que na melhor das hipóteses, “ultimada a safra, este tenaz, este stoico, este individuo raro ali, ainda deve”. Soma-se a isto o fato de o seringueiro estar subjugado pelos “Regulamentos” ditados pelo seringalista (patrão, dono do seringal ou do empreendimento extrativo). Neles “vê-se o renacer de um feudalismo acalcanhado e bronco”. O regulamento prevê multas por desperdício e no erro de trabalho, obriga o seringueiro a só comprar mercadorias, por preços aviltantes, no barracão do patrão e “a sua dívida avulta ameaçadoramente” (...). “Queda, então, na mórbida impassibilidade de um fellah desprotegido dobrando toda a cerviz à servidão completa”. O regulamento impede ao freguez ou aviado (seringueiro) retirar-se sem que liquide suas dívidas. Esta situação descrita em muito se assemelha ao trabalho involuntário na Amazônia ainda hoje persistente, notadamente naquelas conseqüências da relação de trabalho predatória narrada. Euclides comprova e registra as condições do trabalho compulsório na Amazônia dos inícios do século XX com a seguinte conclusão: Fugir? Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre os patrões acordo de não aceitarem, uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas, e ainda há pouco tempo houve no Acre numeroza reunião para sistematizar-se essa aliança, creando-se pezadas multas aos patrões recalcitrantes”. (...) Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorozos. Fôra inutil apontal-os. Della resalta impressionadoramente a urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos”188 (conforme original) No instante em que Euclides explora os rincões amazônicos milhares de nordestinos, os quais ele generaliza como sendo “cearenses”, chegam em levas à bordo dos “batelões” nas principais cidades ribeirinhas da Amazônia e logo são despachados para o interior das matas. 187 - VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. p. 118. 62 Jorge Luis Ribeiro dos Santos As lideranças locais, assegura Roberto Santos, “souberam aproveitar a disponibilidade de homens no nordeste e trataram de trazê-los, ainda que para a ilusão e o cativeiro”.189 O cearense, narra Euclides, efetua, à sua custa e de todos em todo desamparado, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor sempre insolvente. A sua atividade, desde o primeiro golpe da machadinha, constringe-se para logo num círculo vicioso inaturável: o debater-se exaustivo para saldar a dívida que se avoluma, ameaçadoramente, acompanhando-lhe os esforços para saldá-la190. É “a prisão celular do homem na amplitude desafogada da terra”, completa. O trabalhador do seringal ergue sua cabana “longe do barracão senhoril, onde o seringueiro [seria apropriado denominá-lo de seringalista] opulento estadeia o parasitismo farto, pressente que nunca mais se livrará da estrada que o enlaça, e que vai pisar durante a vida inteira”, é um círculo vicioso da “faina fatigante e estéril”, afirma Euclides191. Por esta época o sanitarista Osvaldo Cruz e sua equipe também viajaram pela Amazônia com o intuito de pesquisar as condições sanitárias da região. Relata ele em 1909, ao visitar a região seringueira do Rio Madeira, que as somas de créditos e débitos do trabalhador da borracha o colocam em dívida, pois, seus ganhos “são quase todos absorvidos pelos débitos que o trabalhador (freguês) contrai com o patrão, que lhe fornece alimentos, medicamentos e objetos da vida cotidiana por preços que absorvem quase toda a produção do trabalhador”. Osvaldo Cruz se estarrece com as condições sanitárias da população e das doenças dos trabalhadores no seringais diante dos alarmantes obituários motivados por beribéri, malária e outras doenças. Nos seringais da região dos rios Negro, Solimões e Juruá ele constata “a condição mais primitiva de trabalho e a condição mais precária da vida humana”192. Carlos Chagas, participante da expedição e discípulo de Osvaldo Cruz também relata em suas notas a visão daqueles seringueiros impaludados obrigados a um esforço máximo para um mínimo resultado útil, retidos na palhoça dias e dias consecutivos, a tremer de frio, sob altas temperaturas daquele clima tropical ou condenados à inatividade absoluta e definitiva por esses estados mórbidos conseqüentes à malária grave. 193 188 - CUNHA, Euclides da. À margem da história. p.28 a 33. Foi mantida a grafia original da 2a. Edição portuguesa da obra publicada em 1913. 189 - SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. p. 161. 190 - CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido. Ensaios Amazônicos. p. 153. 191 - ibid. p. 154 e 335. 192 - CRUZ, Osvaldo, CHAGAS, Carlos e PEIXOTO, Afrânio. Sobre o Saneamento da Amazônia, p. 23, 107 193 - ibid. 173, 174. 63 Jorge Luis Ribeiro dos Santos No que diz respeito à sua organização, o seringal efetivava um eficiente sistema de recrutamento e compulsão do trabalhador, pois tinha um caráter policialesco de vigilância garantido por capangas armados contando com o apoio da polícia oficial, em alguns casos, para prender o seringueiro em débito que ousasse fugir. Nestes aspectos o seringal não difere muito dos empreendimentos agropecuários nas modernas fazendas amazônicas que utilizam o trabalho escravo contemporâneo. Araújo Lima em obra publicada no início dos anos 30 - período de decadência da produção gomífera e imediatamente anterior ao segundo surto da produção de borracha para a Segunda Guerra - descrevia a vida nos seringais. Percebe-se nas entrelinhas e nas metáforas e eufemismos do autor o quão degradantes eram as relações de trabalho estabelecidas. Há preocupação do autor em não condenar diretamente a figura dos seringalistas proprietários e seu poderio sobre a vida e morte dos coletores, aliás o autor chega a refutar as acusações que Euclides da Cunha fazia abertamente ao sistema de produção da borracha por este ter como base um sistema de trabalho “servil”. Quando o autor identifica alguns “desvios” na exploração do trabalho e nas condições de vida impostas aos coletores da borracha o faz sempre ressaltando, por outro lado, os desvios, roubos e embustes que os coletores aplicavam nos patrões e nas casas aviadoras. Mesmo assim, não raro, aparecem em sua obra descrições de homens isolados no “recesso dos seringais”, homens que “forçosamente havia de ser um solitário” cada vez mais a “escravizar-se às distâncias sempre aumentadas” nas vastidões imperada pelo “fator tirânico em geografia humana” e a “tirania da distância”, a “iniqüidade latifundiária”. A este espaço “está escravizado o homem, na sua função de agente natural ou geográfico”194. Apesar de procurar abrandar a situação de desigualdade e exacerbada exploração nos seringais reconhece o autor que este foi um sistema de trabalho defeituoso e falho, dos alicerces ao vértice, comprometedor da economia, da produção, da grandeza e da liberdade daquela gente valorosa, que, sem recursos nem orientação, empreendeu a tarefa ciclópica de penetrar, desbravar e domar os sertões amazônicos195. Outro estudioso da Amazônia dos inícios do século XX foi o explorador Arthur Cezar Ferreira Reis. Mesmo pautado numa visão colonizadora e preconceituosa em relação à Amazônia, este autor fornece indícios valiosos que reiteradamente confirmam o “trabalho escravo” nas senzalas das matas. O “barracão central equivalia, guardadas as proporções de tempo, local e gênero de vida, à casa-grande do senhor de engenho nordestino”. No “inferno verde”, afirma o autor, o homem cercado de riquezas afunda-se no “pantanal dos vícios e da indignidade, padecendo sofrimentos físicos e morais sem conta”. Não fica claro quem impingia sofrimento, parece que o sofrimento aqui era causa natural, próprio da natureza hostil que cercava os homens: “cometeram-se desatinos, desentenderam-se homens, praticaram-se excessos”. Os preços dos produtos das casas aviadoras eram espantosamente altos, afirma Arthur Cezar, a “especulação não teve limites”, ocorre que a produção do seringueiro não basta para pagar suas compras, seja “porque os preços 194 195 - LIMA, Araújo. Amazônia, a terra e o homem. ps. 125, 126, 141, 165, - ibid. p. 169. 64 Jorge Luis Ribeiro dos Santos foram altos demais e a cotação da borracha desceu, seja porque a escrita foi viciosa (...) há necessidade então de voltar ao centro [interior das matas], para aguardar em nova safra, a possibilidade de um período menos decepcionante”196. Esta situação, continua o autor, suscitou uma literatura que explorou o sistema de endividamento do seringueiro ao aviador (aqui o autor refere–se aos escritos de Euclides da Cunha e outros os quais foram os primeiros a tornarem público o sistema predatório do aviamento). Esta condição de trabalho compulsório e indigno é justificada por Arthur Cezar pela barbaria do meio-natureza e do meio-sociedade em formação. Porque se o aviador e o seringalista exploram o seringueiro, este não se comporta melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe e de acordo com o primarismo de sua inteligência, das coisas e dos homens. Assim é que negocia às escondidas a produção da safra, lesando o seringalista, entrega-se à madraçaria [engodo]197. O pensamento de Arthur Cezar, aqui, denota algumas características dignas de registro. A primeira é exonerar o produtor seringalista da culpa das degradantes e forçadas condições de trabalho ou amenizar esta culpa. A segunda consiste na justificativa da escravidão na floresta tendo por fundamento a barbárie do meio natural e de certa forma o “atraso social” do seringueiro e do meio. Por outro lado o trabalhador seringueiro é visto como ser inferior. Entretanto seu discurso explicita uma forma de resistência do trabalhador, mesmo que por meios de engodos, o fato é que a relação não era inteiramente de passividade do seringueiro diante do seringalista, mas de conflito e resistência. Novamente esta relação nos remete ao paralelo comparativamente próximo do trabalho escravo atual nos latifúndios da Amazônia paraense. Ademais a situação de extrema exploração do seringueiro era conhecida de longas datas até pelas mais altas autoridades da época. O governo da província do Pará editou um livro em 1886, comenta Petit Peri, onde o sistema escravizante dos seringais é relatado da seguinte maneira: (...) o trabalhador é (...) uma espécie de escravizado do dono da fábrica que trabalha (...). Sabemos de verdadeiras caçadas dadas em procura de trabalhadores evadidos. E ai dos que são apanhados! O fabricante de borracha, salvas honrosas exceções, é em geral um senhor por dívida de todos os seus trabalhadores. Seja qual for a safra anual, o trabalhador nunca está quite com o patrão: d’ahi a obrigação de trabalhar em cada anno seguinte para pagar o que ficou a dever em cada anno anterior. Por isto e só por isto, é que o trabalhador dos seringais não é só pobre mas em geral vive miseravelmente pagando-lhe o patrão sempre barato o trabalho e com gêneros enormemente caros198. 196 - REIS, Arthur Cezar Ferreira Reis. O Seringal e o seringueiro. p. 63,82,84,87. - ibid. p. 95. 198 - PETIT, Pere. Chão de Promessas: Elites Políticas e Transformações Econômicas no Estado do Pará pós-64. p. 55. 197 65 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O seringal, afirma Roberto Santos, era um estabelecimento mercantil mas também uma prisão física, custodiada por fiscais armados e resguardada pelas distâncias continentais e ameaças da floresta que barravam a livre movimentação e informação do trabalhador. Nas fontes de recrutamento, a propaganda filtrava as más notícias e suscitava ilusões199. A prisão física consistia e se acentuava na dívida contraída no sistema do aviamento. Este sistema era comum desde os tempos da colônia, segundo afirma Roberto Santos, “o negociante sediado na Capital supria de mantimentos a empresa coletora das “drogas do sertão”, para receber em pagamento, ao final da expedição, o produto físico recolhido”200. Esta é a modalidade de financiamento que predominou na Amazônia e que parece inspirar os modernos “barracões”, “ranchos” e “cantinas” de hoje nas fazendas da região, no que diz respeito à manutenção do trabalhador com alimentos, vestuários, ferramentas e outros materiais fornecidos pelo patrão ou diretamente pelo “gato” que os endivida e os coage os peões ao trabalho. O aviamento tornouse numa forma tradicional e que reproduziu-se pelo costume nas relações trabalhistas na Amazônia, adaptando-se conforme a atividade. Com o transcurso do tempo, o aviamento ultrapassou os limites iniciais. Fortalecido no extrativismo, reforçou-se também na agricultura e estendeu-se à pesca (...). tornou-se como que a forma da economia típica. Engendrou uma moralidade própria, eminentemente característica nos seringais, em que se instituía uma disciplina extrafinanceira com catálogo de punições e a condenação dos “desvios de produção201. Quem financiava o aviamento na ponta da relação era o capital industrial americano e europeu. O “capital industrial internacional comandou o processo de utilização do trabalho compulsório no latifúndio”.202 Advinda a queda da borracha, de 1911 a 1914, a Amazônia cai num período de estagnação econômica. Assiste-se portanto, analisa Otávio Guilherme Velho, “a uma gradativa liberação da força de trabalho”, mas de “uma força de trabalho excedente” pois a plantation continuava, através de suas transformações, a manter relativamente imobilizada, utilizando toda sorte de artifícios (dívidas contraídas nos barracões, 199 - SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). p. 114. - ibid. p. 156. 201 - ibid. p. 158. 202 - CARDOSO, Fernando H. & MULLER, G. Amazônia: expansão e capitalismo. p. 12. 200 66 Jorge Luis Ribeiro dos Santos doação de pequenos lotes de terra, a simples violência em casos extremos etc.) a mão-de-obra realmente necessária.203 (Grifos no original) Sendo insuficiente a mão-de-obra local para atender a demanda européia e americana por borracha, com a explosão da Segunda Guerra mundial, entram em cena os pobres do nordeste que assolados pela seca e atraídos pelas promessas de riqueza fácil são transladados para as regiões produtoras. No advento da oficialização da extração gomífera com o recrutamento dos chamados “soldados da borracha” para suprir a demanda por borracha reclamada pelas forças aliadas na guerra dos anos 40, de novo, os nordestinos são recrutados voluntária ou involuntariamente como reserva de mão-de-obra disponível para serem confinados nos interiores das matas para suprir de borracha a indústria bélica dos aliados. “Os 24.300 trabalhadores, na maioria nordestinos regrediram à condição de miseráveis coletores, vivendo penosamente em seus tapiris, (cabanas de madeira e folhas de palmeiras) percorrendo em média 30 km por dia para colher na selva o látex avaro”204. Para o pesquisador Marcus Vinicius Neces este número é bem superior. Neces estima em 60 mil o número o número pessoas enviadas para a selva amazônica dos quais quase metade morreu em virtude das péssimas condições de transporte, alimentação, doenças, conflitos e abandono nos seringais. Para o autor a história dos “soldados da borracha” Sem ter sido um episódio propriamente militar, a tentativa de ampliar dramaticamente a produção brasileira de borracha foi um projeto governamental que recebeu apoio técnico e financeiro dos norte-americanos em guerra contra o eixo Roma, Berlim e Tóquio. Os nordestinos recrutados para trabalhar nos seringais foram chamados de "soldados da borracha", mas jamais receberam soldo nem medalhas 205. Quando a segunda Grande Guerra atingiu o Pacífico e o Índico, interrompendo o fornecimento da borracha asiática, informa Neces, os americanos entraram em pânico. A falta da borracha representava a maior ameaça à segurança dos EUA e ao êxito dos aliados. As atenções do governo americano se voltaram então para a Amazônia, grande reservatório natural de borracha, com cerca de 300 milhões de seringueiras prontas para a produção de 800 mil toneladas de borracha anuais, mais que o dobro das necessidades americanas. Entretanto, naquela época, só havia na região cerca de 35 mil seringueiros em atividade com uma produção de 16 mil a 17 mil toneladas na safra de 1940-1941. Seriam necessários, pelo menos, mais 100 mil trabalhadores para 203 - VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. p.119. - CARDOSO, Fernando H. & MULLER, G. Amazônia: expansão e capitalismo. p. 181. 205 - NECES, Marcus Vinicius. A heróica e desprezada batalha da borracha - Rev. História Viva, Nº 8, junho/ 2004. p. 75-80. 204 67 Jorge Luis Ribeiro dos Santos reativar a produção amazônica e elevá-la ao nível de 70 mil toneladas anuais no menor espaço de tempo possível. Para alcançar esse objetivo, iniciaram-se intensas negociações entre as autoridades brasileiras e americanas, que culminaram com a assinatura dos Acordos de Washington. Como resultado, ficou estabelecido que o governo americano passaria a investir maciçamente no financiamento da produção de borracha amazônica. Em contrapartida, caberia ao governo brasileiro o encaminhamento de grandes contingentes de trabalhadores para os seringais - decisão que passou a ser tratada como um heróico esforço de guerra. (...) Somente em Fortaleza, cerca de 30 mil flagelados da seca de 1941-1942 estavam disponíveis para ser enviados imediatamente para os seringais. Mesmo que de forma pouco organizada, o DNI (Departamento Nacional de Imigração) ainda conseguiu enviar quase 15 mil pessoas para a Amazônia, durante o ano de 1942.206 Os aliciadores, afirma o autor, faziam campanhas mobilizadoras e até intimidatórias para convencer o alistamento dos soldados da borracha. O slogan usado nas campanhas para convencer sertanejos do nordeste seco para a Amazônia verde era "Borracha para a Vitória”. Cartazes eram afixados em vias públicas e os “velhos mitos do Eldorado amazônico voltavam a ganhar força no imaginário popular. O paraíso perdido, a terra da fartura e da promissão, onde a floresta era sempre verde e a seca desconhecida”. Contudo quando a propaganda não funcionava era usado o “recrutamento forçado”. As famílias tinham “duas opções: ou seus filhos partiam para os seringais como soldados da borracha ou então deveriam seguir para o front na Europa, para lutar contra os fascistas italianos e nazistas alemães. É fácil entender que muitos daqueles jovens preferiram a Amazônia”. Embrenhados na floresta o ciclo de servidão e escravização se repetia: Os recém-chegados eram tratados como "brabos" - aqueles que ainda não sabiam cortar seringa e cuja produção no primeiro ano era sempre muito pequena. Só a partir do segundo ano de trabalho o seringueiro era considerado "manso". Mesmo assim, desde o momento em que era escolhido e embarcado para o seringal, o brabo já começava a acumular uma dívida com o patrão. O mecanismo de prender o trabalhador por meio de uma dívida interminável foi chamado de "sistema de aviamento". Essa dívida crescia rapidamente, porque tudo que se recebia no seringal era cobrado. Mantimentos, ferramentas, tigelas, roupas, armas, munição, remédios, tudo enfim era anotado na sua conta corrente. Só no fim da safra, a produção de borracha de cada seringueiro era abatida do valor de sua dívida. Mas o valor de sua produção era, quase sempre, inferior à quantia devida ao patrão. E não adiantava argumentar que o 206 - ibid. p. 75. 68 Jorge Luis Ribeiro dos Santos valor cobrado pelas mercadorias no barracão do seringalista era cinco ou mais vezes maior do que aquele praticado nas cidades: os seringueiros eram proibidos de vender ou comprar em qualquer outro lugar. Os soldados da borracha descobriam que, no seringal, a palavra do patrão era lei. Os financiadores americanos insistiam em não repetir os abusos do sistema de aviamento que caracterizara o primeiro ciclo da borracha. Na prática, entretanto, o contrato de trabalho assinado entre seringalista e soldado da borracha quase nunca era respeitado. A não ser para assegurar os direitos dos seringalistas. Como no caso da cláusula que impedia o seringueiro de abandonar o seringal enquanto não saldasse sua dívida com o patrão, o que tornava a maioria dos seringueiros verdadeiros escravos, prisioneiros das "colocações de seringa" (unidades de produção de látex em que estavam instalados). Todas as tentativas de implantação de um novo regime de trabalho, bem como o fornecimento de suprimentos diretamente aos seringueiros, fracassaram diante da pressão e do poderio das "casas aviadoras" (fornecedores de suprimentos) e dos seringalistas que dominavam secularmente o processo da produção da borracha na Amazônia. )207 Terminada a Guerra, conclui Neces, os americanos cancelaram os acordos de produção da borracha e os “soldados da borracha” foram abandonados na condição em que se encontravam, “sequer foram avisados de que a guerra tinha terminado”. Muitos retornaram igual ou em piores condições materiais e de saúde que foram, outros continuaram e continuam a viver na floresta. Com a constituição de 1988 os “soldados da borracha” adquiriram direito a uma pensão do governo por “serviços prestados ao país”, embora de valor “dez vezes menor que a pensão recebida por aqueles que foram lutar na Itália”, conclui.208. Castanheiros e castanhais cativeiros Ao mesmo tempo da decadência da borracha ocorre uma relativa ascensão no comércio da castanha. Nesta modalidade econômica o sistema de “aviamento” como relação de trabalho também prevalece. O ciclo de endividamento recrudesce a compulsão dos trabalhadores, agora com uma rede especializada por “aviadores” treinados nas décadas do auge da borracha. 207 208 - ibid. p. 78-79 - ibid. p. 80. 69 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Marabá, no sudeste do Pará, desponta como o centro de maior implemento na coleta e comércio da 209 castanha na Amazônia paraense. A cidade de Marabá que tinha o maior porto e principal centro comercializador, chega a produzir e exportar 40% da castanha brasileira no início dos anos 70210. A maioria dos coletores de castanha provinham do Maranhão, norte de Goiás e baixo Tocantins. Os castanheiros chegavam à cidade de Marabá, alguns trazidos diretamente pelos contratadores de pessoal, poucas semanas antes do período da safra da castanha, que geralmente se iniciava no mês de janeiro e prolongava até maio, às vezes até junho e julho. O sistema de aviamento, “aperfeiçoado” durante o ciclo da borracha, convertera-se também na base das relações econômicas entre os diversos setores implicados na comercialização da castanha.211 O que os ciclos econômicos da borracha (caucho e castanha no sul e sudeste do Pará) significaram e significam na Amazônia, usando as palavras de Roberto Santos, foi a redundância crescente da injustiça social e um alto custo humano para a grande massa de dominados, grupo este indistintamente formado por imigrantes ou população nativa sob o predomínio de um “regime predatório da força de trabalho212. A força de trabalho “expulsa das plantations”213, ou “expropriadas”214 de suas terras de origem, tornam-se a massa maleável na mão dos intermediários que as contratam sem vínculo empregatício regular, no trabalho por tarefas ou com base no endividamento prévio e quase sempre não conseguem se esquivar do trabalho escravizante. Na Amazônia dos anos 50 os camponeses do Maranhão penetraram no Rio Tocantins e incrementaram o povoamento do sul e sudeste do Pará e a emigração se acentuou com a chegada da estrada Belém Brasília nos fins dos anos 50215. Os conflitos eram intensos entre posseiros, coletores de castanha, índios e “donos” de castanhais. Em 1970 o governo lança os planos de construção da estrada Transamazônica com vistas à integração nacional. O “mundo amazônico principiou a passar pelo (...) último devassamento, impulsionado pela expansão do capitalismo”216. Se a partir dos anos 20 e 30 tem-se início “a invasão das frentes pioneiras agropecuárias e mineral, que penetram através dos desvãos das organizações extrativas de látex e castanha”, agora aparecem ao “lado dos empregados semi-escravizados dessas organizações”, os 209 - ibid. p. 183, 184 - PETIT, Pere. Chão de Promessas: Elites Políticas e Transformações Econômicas no Estado do Pará pós-64. p. 202. 211 - ibid. p. 190. 212 - ibid. p. 307, 306 213 - VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. p.186. 214 - MARTINS, José de Sousa. Expropriação e violência - a questão política no campo, p. 17 215 - VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. p.199, 205 216 - CARDOSO, Fernando H. & MULLER, G. Amazônia: expansão e capitalismo. p.18 210 70 Jorge Luis Ribeiro dos Santos “sitiantes, fazendeiros, novos empregados e garimpeiros”217. À chegada do progresso seguem-se a degradação humana e ambiental218. A vida nas cidades ribeirinhas girava em torno da produção da castanha, antes do impacto da acentuação migratória dos anos 60. “Havia, além dos ‘castanhais do município’- também chamados ‘castanhais livres’ – os ‘castanhais de dono’”219, estes pertencentes aos particulares, geralmente grandes comerciantes e lideranças político-oligárquicos locais adquiridos pela forma de arrendamento dos anos 20 a 50, e aforamento a partir de 1954. Importante frisar este detalhe porque nos “castanhais livres” (públicos) o trabalhador estava também livre da escravização por dívidas no barracão, ele era um coletor autônomo. Parece que esta modalidade de produção livre prevaleceu em poucos municípios do sudeste do Pará, dentre eles Itupiranga e Tucuruí.220 Em Marabá, a maioria dos castanhais já tinham seus donos e a servidão ao “barracão” era antiga. A sina do castanheiro era inerente ao labor servil e guardava as velhas similitudes com a lida do seringueiro e do caucheiro no que diz respeito à sua dependência em relação ao dono do “Barracão”. Paga-se os coletores ou castanheiro em gêneros alimentícios e equipamentos necessários à sobrevivência na mata (armas, munição, facão, roupas, produtos de limpeza, querosene, sal, fósforos, etc), portanto ele já entra na mata devendo aos patrões por que já recebeu sua “mercadoria/dinheiro”221. Quase sempre esta dívida se estendia à safra seguinte. Marília Ferreira Emmi afirma que com o sucesso da castanha no mercado externo e “a queda do preço da borracha, o capital mercantil liberado e tornado ocioso se volta para a castanha, passando a reproduzir na extração desta, essas formas de organização e de exploração da borracha”222. Durante os ciclos de extração da castanha a condição de subjugo aos endividamentos imprime ao castanheiro a marca do círculo servil. São homens que sem a ocupação sazonal da coleta da castanha no verão - que é o período de estiagem que vai geralmente de maio a outubro - aguardam nova safra para cumprirem novamente a servidão perdidos nos ermos das matas virgens povoadas de indígenas, às vezes hostis. Muitos nunca voltaram para seus lares. Conforme sintetiza Marília Ferreira Emmi a vida na região era produto das relações do homem com a natureza e dos homens entre si. Relações quase sempre predatórias com a natureza e exploratórias entre os homens, cuja “exploração não conhecia limites, em que a sede de lucro mercantil reduzia os homens a simples 217 - ibid. p. 118 - BRAZ, Ademir. Rebanho de pedras & Esta Terra. Marabá, p. 80. Na obra o poeta de Marabá expressa a realidade da chegada dos grandes projetos na Amazônia Oriental: “Minha terra tem madeiras / onde cantam motoserras: peões que ali viviam / servem de adubo à terra”. Em outro poema denuncia: “Viajante escutai: / restou-nos talvez algum canto ancestral / uma eterna panela de ferro em tripé / um caroço de ouriço (duro, áspero, sujo, / carregado de frutos leitosos – a imagem mais concreta de nossa alma trucidada) / talvez ainda um paneiro de castanha / pendurado entre peles de obra, chapéus / de palha, arco e flecha, cocares trágicos / fósseis roubados ao dilúvio – / e que hoje, destroçada essência, decoram como escalpo a sala dos / conquistadores / entenda nossa miséria. 219 - HÉBETT, Jean. MAGALHÃES, Sônia Barbosa & MANESCHI, Maria Cristina (orgs.). No mar, nos rios e na fronteira. Faces do campesinato no Pará. p. 258. 220 - ibid. p. 258. 221 - EMMI, Marília Ferreira. A Oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. pg.n 74. 222 - ibid. p. 70 218 71 Jorge Luis Ribeiro dos Santos mercadorias “alugadas” ou “compradas”, colocadas à disposição do patrão”. O poderio dos donos dos castanhais caracterizava-se no domínio do crédito, pressuposto do “aviamento”, no monopólio do transporte, no domínio dos castanhais e sobretudo na relação de dependência dos trabalhadores sob os laços de endividamento e do controle desta força de trabalho pela força de vigilância a cargo dos capangas e pistoleiros223, situação que também guarda muita semelhança com os sistemas de trabalho involuntário verificado hoje na região. No entanto, estas relações não eram pacíficas e geravam resistências dos dominados que poderiam ser desde um simples roubo da castanha até as fugas diante do trabalho servil por dívidas e mesmo chegando aos enfrentamentos com os capangas o que quase sempre resultava em mortes224. Grandes Projetos sobre ombros escravos Os caminhos da ocupação da Amazônia brasileira, a partir de meados dos anos 60, se abriram em várias frentes e desestruturaram as organizações sociais e produtivas já existentes. A região era, em parte, ocupada por famílias de camponeses e indígenas que tiveram suas terras invadidas por tratores e gado. O “progresso” veio com as rodovias e com núcleos urbanos caóticos que se formaram, em um curto espaço de tempo, por uma população composta de lavradores sem terra, posseiros, garimpeiros, madeireiros, pequenos comerciantes, empreiteiros, empresários e pistoleiros. Tudo isto transformou a região em uma área de constantes conflitos - principalmente motivados pela disputa por terra - que vitimaram centenas de pessoas nas últimas décadas225. Dentre as mudanças destaca-se a descoberta de jazidas minerais na Serra dos Carajás, município de Marabá (hoje área pertence ao município de Parauapebas), e da intensa migração, principalmente do nordeste, e apropriação de milhares de hectares de terra por fazendeiros o que faz surgir novos atores sociais (camponeses e fazendeiros) que disputam entre si, e também com as tradicionais famílias oligárquicas (as quais controlavam, entre outras atividades econômicas, a coleta e comercialização da castanha), pelo uso e o controle da terra.226 Os conflitos são desencadeados pela posse da terra que se sobrevaloriza em pouco tempo e desperta “interesses de empresários do centro-sul do Brasil em adquirir terras amazônicas. O sul e sudeste do Pará 223 - EMMI, Marília Ferreira. A Oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. p. 78. -. Ibid. pg. 66 e 75. 225 - GUERRA, Gutemberg A. Diniz. O Posseiro da Fronteira: campesinato e sindicalismo no sudeste paraense. pág. 115 226 - PETIT, Pere. Chão de promessas. p. 26. 224 72 Jorge Luis Ribeiro dos Santos tornam-se então, a partir dos anos 80, o maior cenário de conflitos e assassinatos no campo no Brasil227. E com o ingresso de maior número de empresários agropecuários e mineradores e à especulação das terras juntam-se mais as grilagens e a violência”228. A Amazônia foi objeto de um conjunto de políticas de integração, com instrumentos de grande envergadura para viabilizar a infra-estrutura (rodovias, projetos de colonização oficial, novas fontes energéticas) e com vultosos subsídios para consolidar, de um lado a pecuária intensiva, sob a égide empresarial e, de outro, a expansão da mineração, a instalação de indústrias metalúrgicas, a disseminação de indústrias madeireiras e de outros ramos industriais.229 Nos anos 70 o governo Médici intensifica as ocupações no sudeste do Pará, o que produz efeitos profundos na região. A abertura do ramal que liga Marabá à rodovia Belém-Brasília, a abertura da PA 150, ligando o Sul ao Norte do Estado e a Transamazônica, são condutos por onde chegam pessoas, empresas e transformações rápidas em todos os setores. Com as estradas vêm hidrelétricas, siderurgia, serrarias, garimpos, empreendimentos agropecuários, políticas de incentivos fiscais, numa avalanche de recursos e problemas injetados em duas décadas e meia na região, analisa Gutemberg Guerra em sua obra sobre o campesinato e sindicalismo no sudeste paraense. As grandes propriedades demandavam por força de trabalho no preparo da terra para pastagens. Ao dispor dos fazendeiros e agenciadores estava o enorme contingente de aventureiros, peões e lavradores dispostos a deixar família em busca de um salário ilusório e um trabalho seguro e rentável. O contexto da aventura (...) trata de alguma atividade específica que vai ser tentada, fora do universo camponês, e que implique deslocamento espacial definitivo, ainda que seja um par de companheiros ou parentes que se aventure, seja no garimpo, seja no emprego em uma construtora, numa fazenda, etc” 230 Era nesta “aventura” que o “eldorado” se desnudava e mostrava sua pior face: a escravidão daqueles que quase sempre não tinham consciência de sua condição de escravizado. Muitos trabalhadores eram levados para o interior das fazendas para fazer serviço de derrubada da floresta, abertura de novas fazendas, manutenção de pastos já existentes e construção de cercas. Para fugir dos encargos trabalhistas, os fazendeiros criaram a figura dos “gatos”, ou seja, pessoas que se deslocam para os Estados mais pobres, geralmente do Nordeste brasileiro, para contratar trabalhadores para os serviços de empreitadas nas fazendas. Começa aí o 227 - ibid. p. 26 - CARDOSO, Fernando H. & MULLER, G. Amazônia: expansão e capitalismo. p.72. 229 - HÉBETT, Jean, MAGALHÃES, Sônia Barbosa & MANESCHI, Maria Cristina (orgs.). No mar, nos rios e na fronteira. Faces do campesinato no Pará. p. 30-31. 230 - ibid. p. 267. 228 73 Jorge Luis Ribeiro dos Santos círculo do trabalho escravo. Nas fazendas, geograficamente isoladas, endividados pelas compras na cantina do “gato”, no barracão ou nos mercados da cidade onde é feito o “rancho” (compra mensal de alimentos), sem liberdade para sair, milhares de trabalhadores são obrigados a trabalharem como escravos. Muitos, ao tentar fugir, acabam sendo espancados e outros até mesmo assassinados231. A despeito de tudo, o capital financeiro e industrial avança de maneira agressiva e predatória sobre os recursos naturais e humanos da região. Processa-se em pouco espaço de tempo uma brusca transformação sem precedentes na história geopolítica amazônica. A região amazônica, afirmaram os pesquisadores Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Muller, guarda as características de frente pioneira e incorpora, em sua expansão, as mais variadas formas sociais de produção, que abraçam, num leque, desde formas compulsórias de trabalho até relações puramente assalariadas, uma vez que a expansão capitalista não se efetiva de modo homogênio e retilíneo232. Nos anos 60 a empresa Jari, do mega-empresário americano Daniel Ludwig, possuía um milhão e meio de hectares de terras na Amazônia, terras estas adquiridas e cultivadas sob “generosos” incentivos fiscais e financiadores da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). A empresa possuía, em 1962, cerca de cinco mil empregados e, segundo relatam os sociólogos Cardoso e Miller, utilizou mão-de-obra semi-servil nos seus empreendimentos233. Foi por esta época, afirmam os autores, que trabalhadores do JARI denunciaram a semi-escravidão em que se encontravam ao presidente Médici quando de sua viagem ao JARI, em março de 1973. Outros conglomerados empresariais nacionais, transnacionais e até empresas públicas, também aproveitam a avalanche de recursos públicos injetados. Dentre estas destacamse - pela aquisição de imensos latifúndios agro cultiváveis - as empresas Suiá-Missu, Codeara, Volksvagem, King’s Ranch Geórgia Pacific, Bruynzeel, Robins mac Glolm, Toyomenka. Estas empresas possuíam quantidades de terra entre 100.000 a 678.000 hectares. Outras corporações como a Anderson Calyton, Goodyer, Nestlé, Mitsubishi, Liquifarm, Bordon, Sswifit Armour, Camargo Correa, Bradesco, Mappin e Eletrobrás eram proprietárias de áreas acima de 300.000 hectares. Os autores ainda relatam casos de denúncias que comprovam que a semi-escravidão era anterior à abertura da Transamazônica e persistiu depois de sua abertura, havia falta de registro do contrato do trabalho e impedimento aos trabalhadores para que se deslocarem do local de trabalho além da utilização de mão-deobra indígena a preços vis. “Ainda hoje prevalecem condições de trabalho adversas e, às vezes compulsórias” na região, relataram. Toda esta intrincada relação laboral constitui “a tessitura do dia-a-dia da penetração da Amazônia”, nos seringais, nos garimpos, no desmatamento para abrir fazendas, afirmaram os autores há três décadas atrás. Em Conceição do Araguaia, sul do Pará, Cardoso e Miller colhem depoimentos dos gatos os 231 - BRETON Binka le. Vidas roubadas: a escravidão moderna na Amazônia brasileira. ps. 25-26,133. - CARDOSO, Fernando H. & MULLER, G. Amazônia: expansão e capitalismo. p. 07 233 - ibid. p. 55. 232 74 Jorge Luis Ribeiro dos Santos quais falam da indolência dos peões e da necessidade de ser duro com eles. Conversam com gerentes de fazendas e ouvem relatos da truculência de capatazes, de surras aplicadas em trabalhadores, de dívidas crescentes, de homens trabalhando semi-nus e de assassinatos de trabalhadores234. Para os autores esta forma atípica de compulsoriedade laboral é um estilo de exploração e uma forma de trabalho comum sempre que se trate de uma área com distâncias tão absolutas e dificuldades tão ásperas como a Amazônia e que encontra no lucro ou na propaganda a mola efetiva para seu desbravamento. (...) foi usual na área a prática de deslocar trabalhadores do Piauí, do Maranhão, do norte de Goiás, por caminhões que iam às zonas de emigração recrutar trabalhadores, cujos choferes ou “gatos” eram pagos pelos fazendeiros conforme o número de “cabeça” que traziam”. Os guardas da fronteira cobravam dos gatos um “imposto de capitação”. (...) Uma vez na fazenda (...) os trabalhadores fazem suas casas cobertas com folhas de árvores (tapiris) e têm como único “devaneio” o trabalho com a serra e o machado para a derrubada das árvores. (...) Nos ermos amazônicos, nos grandes latifúndios e empresas (..), a relação do capital com o trabalho desconhece por completo qualquer medida legal, o que leva o trabalhador a ter de submeter-se a condições quase servis de trabalho.235 É nesta realidade de expansão de fronteira que entram em cena novamente os grandes contingentes humanos exploráveis do nordeste brasileiro. O esforço oficial para uma “colonização social” acabou atraindo mão-de-obra excedentária que (...) engrossou o caudal da superexploração do trabalho em benefício da grande empresa. Seja na zona agropecuária do norte de mato Grosso e sul do Pará, seja nos latifúndios dos seringalistas ou serrarias que brotam legal ou ilegalmente um pouco por toda parte, reanimando o extrativismo da madeira, a mãode-obra barata, desprotegida e errante encontra no empresário o complemento necessário para transformar a migração, pela via da exploração, em elemento dinamizador da acumulação. A ideologia integradora e cheia de compaixão pelo nordestino e pela redenção do homem amazonense acabou, como no passado, dinamizando mecanismos que (...) preencheram necessidades de expansão econômica. Estado e grande empresa (...) 234 235 - ibid. p. 180-186. - ibid. p. 186. 75 Jorge Luis Ribeiro dos Santos terminaram por encontrar-se na senda batida da acumulação rápida através da 236 espoliação dos trabalhadores . Os grandes projetos privados e públicos ditaram as dinâmicas transformadoras do cenário amazônico e notadamente na região sudeste do Pará, assentados numa “mentalidade empresarial”, a acumulação privada beneficiada pelos incentivos do Estado e pela exploração de uma mão-de-obra carente de quase todas as condições capazes até de fazer dela algo mais do que o velho e sofrido instrumentum vocalis dos tempos da escravidão237. Todavia, esta situação - resguardadas as diferenças políticas, espaciais e temporais - encontram relações de continuidade passados mais de trinta anos desta constatação de Cardoso e Miller, embora hoje outros elementos de ordem sócio-econômica globais complexificam as relações locais. O sistema de coerção, endividamento e compulsoriedade laboral persistiu e persiste e implicitamente prevalece nos “contratos” uma desigualdade no trabalho que leva ao seu lado mais extremo que é a escravidão. Parece prevalecer, na prática, a acepção de que o pré-requisito para a exploração econômica da agropecuária na estrutura latifundiária amazônica - dada a precariedade de vias de transporte, da dificuldade de acesso, dos obstáculos naturais fluviais e florestais, do isolamento geográfico, da ausência do Estado, da abundância de uma mão-de-obra marginal e flutuante representada nas figuras do “peão do trecho”, do “peão rodado” e do “aventureiro” sempre encontra eco na superexploração e escravização do corpo trabalhador. Esta tem sido a forma preferida e reiterada que viabiliza o lucro fácil aventado pela frieza do capital. Embora constatada em parte a tese de que esta relação encontra traços “naturais” de continuidade “típica” do trabalho sazonal e predatório na história econômica da Amazônia - já dito quando da análise dos ciclos econômicos da borracha, do caucho e da castanha e os sistemas de servidão e endividamento nos “aviamentos” e “barracões” que lhes acompanhavam - não se pode deixar de estabelecer traços contextuais com a realidade da corrosão das relações de trabalho hoje existentes. Neste sentido Boaventura de Sousa Santos afirma que a precarização do trabalho nas sociedades pós-modernas é um dos paradigmas postos diante das agendas de investigação na atualidade. O trabalhador é vítima do processo de exclusão do “pós contratualismo”238. Esta relação pode ser perfeitamente aplicada ao trabalho compulsório no sudeste paraense onde mediante o “confisco da cidadania” os trabalhadores vulnerabilizados pelo desemprego, emigração e expropriação da terra passam de “cidadãos a servos”. Já no “pré-contratualismo” aludido por Santos, por outro lado, há o impedimento do acesso à cidadania, isto significa o retrocesso do ser ao novo “estado natural” traduzido na precariedade da vida, na servidão, na angústia quanto ao acesso e continuidade do 236 - ibid. p. 200 - 202 - ibid. p. 205. 238 - SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o Direito ser emancipatório? Revista Crítica de Crítica de Ciências Sociais, 65/maio 2003 pg. 17-18. 237 76 Jorge Luis Ribeiro dos Santos trabalho, na angústia dos desempregados, dos migrantes e no extremo deste ciclo, poderíamos acrescentar: a escravidão contemporânea. O trabalho perde a referência de “produtor de cidadania” e reduz-se “à dor da existência” e quando existe assume formas degradantes, indignas, superexploratórias e relações escravagistas. Santos identifica uma crise no paradigma do contrato social que é visível nas novas formas a que este tem cambiado. O contrato tornou-se dominantemente em forma privadas de contratualização baseadas num pacto flexibilizante das relações de trabalho e os direitos subordinadas ao mercado. O novo contratualismo ditado pela hierarquia do capital passa cada vez mais ao largo da regulação do estado e acentua a exclusão e a desigualdade, assumindo, segundo teoriza o autor, as formas de pós e pré-contratualimo. No précontratualismo a exclusão impede o acesso à cidadania àqueles indivíduos que nunca tiveram o status de cidadão, já no pós-contratualismo aqueles que eram tidos como cidadãos perdem sua cidadania pela corrosão das condições de vida advindas da precarização ou ausência de trabalho. Esta situação encontra agravantes no mundo do trabalho atual que preconiza a estabilidade do mercado, mas não do trabalho. As expectativas da pessoa são instáveis, o trabalho altamente flexível tem gerado uma “sub-classe de excluídos” e que habitam o “fascismo social”239 240. O lavrador aliciado para as frentes de trabalho no sudeste paraense não está imune a estas conseqüências locais da reconfiguração global do trabalho e numa escala extrema gerada por esta desigualdade acaba sendo escravizado, por conseguinte também ele tem status de “não cidadão” pois foi também “expulso do contrato social”. Se antes este trabalhador fora expropriado da terra, conforme constata José de Souza Martins, agora nos ermos da escravidão contemporânea ele é expropriado do seu corpo, de sua liberdade e de sua dignidade. 239 - SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o Direito ser emancipatório? Revista Crítica de CS – 65 – maio 2003 –Edição: CES / Coimbra, 2003. ps. 53,55. 240 - SANTOS, Boaventura de Sousa e COSTA, Hermes Augusto. Introdução: para ampliar o Cânone do novo internacionalismo operário, in: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.): Trabalhar o Mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Edições Afrontamento. Porto. 2004. pgs 19, 27, 29, 30, 44. 77 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Capítulo III “Trabalho escravo” contemporâneo: o sul e sudeste do Pará A mesorregião do Sudeste do Pará é formada por trinta e oito municípios, com área de quase trezentos mil quilômetros quadrados e população de pouco mais de um milhão de habitantes. A população é composta de alguns grupos indígenas, grupos de famílias tradicionais que habitam a região desde o início do século XX e uma maioria absoluta de migrantes oriundos de diferentes pontos do país, principalmente vindos do nordeste, a partir do início da década de 60. As atividades produtivas predominantes são agricultura, nas pequenas propriedades e pecuária extensiva nas grandes propriedades e latifúndios; mineração, extração de madeira e garimpo. Mesorregião do Sudeste Paraense A partir da década de 70, com o incentivo do governo brasileiro para a ocupação da região amazônica, motivado por questões de segurança nacional, migraram para a região milhares de pessoas vindas, em sua maioria, do nordeste brasileiro. Dois grupos revezaram-se na ocupação do espaço no Sul e Sudeste do Pará: os camponeses pobres em busca de terra e o outro formado por grandes grupos econômicos nacionais e 78 Jorge Luis Ribeiro dos Santos internacionais que se apoderaram de largas extensões de terra para implemento agropecuários com incentivos fiscais e subsídios governamentais241. É grande o registro do número de trabalhadores escravizados em fazendas de grandes corporações empresariais no sul e sudeste do Pará a partir da década de 80. Segundo relatório de denúncias da Comissão Justiça e Paz da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), durante as décadas de 1980 e 1999242 grandes empresas nacionais e multinacionais, proprietárias de extensas áreas de terra no sul e sudeste do Pará aliciaram e escravizaram trabalhadores diretamente ou por intermédios de “gatos”. Dentre estas o relatório da CNBB cita empresas muito conhecidas como Volkswagen, Banco Mercantil, Bradesco, Bamerindus, Sul América / Atlântica Boa Vista, etc. O contexto sócio-econômico. A região do sudeste do Pará foi palco histórico da violência tendo sempre a terra, e o que dela poderse-ia explorar, como cenário das controvérsias e dos interesses antagônicos de grupos distintos. Povoada inicialmente por emigrantes do norte do Estado de Goiás e do Sudoeste do Estado do Maranhão, a região foi cenário de disputas acirradas por terra entre colonos e indígenas, de conflitos no trabalho entre proprietários e 241 -GUERRA, A. D. Gutemberg. O Posseiro da Fronteira: campesinato e sindicalismo no sudeste paraense.p. 115. 242 - CNBB - Trabalho escravo nas fazendas do Pará e Amapá - 1980 – 1998. p. 34 a 102. Algumas fazendas de propriedade de empresas mais conhecidas citadas no relatório: Em 1981, denúncia de trabalho escravo na Fazenda Cristalino de propriedade da Volkswagen, em Santana do Araguaia, Sul do Pará, com relatos de espancamentos, fugas, baleamento de um trabalhador. A fazenda reincide na prática nos anos de 1983 com 600 trabalhadores, em 1984 com 30 trabalhadores, em 86 com trabalhadores e em 87 com 40 trabalhadores; Em 1983 foi a fazenda de propriedade do Banco Mercantil, em Conceição do Araguaia. Houve denúncias de maus tratos, fugas e assassinato do trabalhador Helton Batista Nascimento que tentou fugir; Em 1983, a denunciada foi a fazenda da Supergasbrás em Santana do Araguaia com 100 peões submetidos a trabalho escravo, houve espancamentos e houve três assassinatos. Em 1984 foi constatado trabalho escravo na fazenda do Grupo Bradesco em Paragominas, com denúncia de tortura, espancamento com facão. Trinta trabalhadores foram encontrados em regime de escravidão. Esta fazenda volta a reincidir na prática em 1987, desta vez, no município de Santana do Araguaia; Em 1987 foram descobertos 70 trabalhadores escravizados na fazenda do Grupo Bamerindus, sul do Pará. Eles eram vigiados por pistoleiros e não podiam deixar o trabalho enquanto não saudassem suas dívidas; Em 1987 a fazenda do Grupo Sul América / Atlântica Boa vista em São Félix do Xingu, setenta trabalhadores são mantidos em escravidão. Há relatos de fugas, capturas, espancamentos e morte por doenças; Outra fazenda da empresa situada em Xinguara é denunciada de novo em 1988, onde o trabalhador José Alexandre Silva é torturado; Em 1995 a fazenda da Empresa Bopil e KINg Ranch Ltda, com sede em Curionópolis, mantém 200 trabalhadores em regime de trabalho escravo. A Polícia Federal liberta todos; Em 1995 a fazenda do Grupo Mannah, em Santana do Araguaia escraviza 200 trabalhadores. Outros (Márcia Miranda Soares) grupos econômicos envolvidos com utilização de trabalho escravo em suas propriedades de 1960 a 1990 (Fonte: Martins, 1997, pg. 82), : Bamerindus PA – 1987; Banco de Crédito Nacional (BCN) MT – 1970; Bordon MT –1971; RO – 1986; Bradesco; Brascan PR – 1979; SC – 1979; Café Cacique AC – 1981, Capemi AM – 1980, Coopersucar PA – 1984, Daniel Keith Ludwig PA – 1972, 1976 e 1980; Encol PA – 1984 e 1985; GO, 1986; Eucatex SP – 1986; Liquifarm MT – 1971; Lunardelli PA – 1985; Manah PA – 1991; Marchesi SP – 1987; Matarazzo SP – 1986; Papel Simão RJ – 1983 e 1984; Paranapanema SP – 1993; Shell BA – 1984; Sílvio Santos MT – 1970 e 1981; Supergasbrás PA – 1983; Tanagro RS – 1988 e 1991; Volkswagen PA – 1983 e 1985; e White Martins RJ em 1984. 79 Jorge Luis Ribeiro dos Santos trabalhadores da coleta de caucho (planta que produz látex) e da castanha, de litígios dos proprietários entre si por áreas extrativas, de contendas por terra entre posseiros e fazendeiros, e entre estes todos e povos indígenas, etc, tendo todas a violência e a morte como conseqüência final. Marília F. Emmi243, atesta que no contexto sócio e econômico desta região as relações de dominação e subordinação estão na base destes conflitos e são frutos da monopolização e domínio dos meios de produção. Na economia extrativa da Amazônia o domínio da terra é fundamental para a manutenção do poder dominante o qual se articula com o capital comercial através dos sistemas de “aviamento”, transporte e produção, assegura Emmi. Quando as terras da região do sudeste paraense eram predominantemente devolutas os trabalhadores eram, de certa forma, mais autônomos para coletar e produzir nos chamados “castanhais do povo”. Mas o fluxo do capital comercial rapidamente estendeu-se com a valorização da castanha no mercado internacional e através do domínio político que dominou o controle das concessões públicas o poder de apropriação privada dos castanhais promoveu a subordinação dos trabalhadores aos mecanismos exploratórios dos castanhais na modalidade típica de trabalho baseado nos sistemas de “aviamento”. Estamos a falar de uma época posterior ao surto econômico da borracha, mais especificamente a partir dos anos 20. As terras passaram de um domínio público para um domínio quase que exclusivamente latifundiário dominado por uma elite oligárquica local cada vez mais fortalecida econômica e politicamente. Esta relação vai sofrer grandes alterações a partir da década de 70 com as intervenções do Estado e do grande capital financeiro estatal e privado, os quais abalam as estruturas de monopólio econômico e político das antigas oligarquias. O grupo social que se sustentava no capital mercantil vê-se diante de uma nova realidade, outros componentes aparecem na estrutura social e se impõem com bastante força. Marabá deixa de ser apenas terra dos donos de castanhais, dos coletores de castanha, dos camponeses, dos índios; agora ela é também terra dos bancos, dos pecuaristas, dos grileiros, dos garimpeiros, dos projetos de colonização pública e privada, das companhias de mineração, da gestão militar, das indústrias de ferro-gusa, das áreas de produção de carvão vegetal244. Os mercados se expandem na Amazônia oriental, registra Raymundo Garcia Cota. Agências bancárias são inauguradas nas pequenas e médias cidades para aquecer o mercado financeiro. Órgãos públicos fundiários nacional como INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e estadual ITERPA (Instituto de Terras do Pará) regularizam transferências e comercialização de terras. SENAC (Serviço Nacional do Comércio), SENAI (Serviço Nacional da Indústria), Ministério do Trabalho, Escolas Técnicas e Universidades somam esforços na preparação de mão-de-obra especializada para trabalhar nos grandes projetos agropecuários e minerais, especialmente no Projeto Grande Carajás (PGC) e no rol destas 243 244 - EMMI, Marília Ferreira. A Oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. pg. 4. - ibid. p. 6-7. 80 Jorge Luis Ribeiro dos Santos transformações vêm os migrantes provenientes de todas as partes do Brasil, especialmente do nordeste. Como constata, Raymundo Garcia Cota, a Amazônia já dispõe de bastante mão-de-obra flutuante ou serviço temporário para as safras. Em caso de maiores necessidades, é só lançar mão do exército de reserva nordestino, sempre disponível a ocupar espaços na Amazônia, como fez em outras ocasiões245. Contudo, a relação colonial e predatória na região continua sendo a marca destes investimentos os quais, nas últimas décadas, têm centrado nos empreendimentos predominantemente vindos do centro sul do país e também dos grandes investimentos transnacionais, todos mediados e incentivados pelo governo federal. A partir da década de 60 assiste-se à maior intervenção estatal na região desde o evento da guerra da borracha nos anos 40. Os “novos colonizadores” visavam uma “exploração econômica que lhes permitisse acumular riquezas materiais para desfrutarem de uma vida melhor” em sua terra natal, pois a Amazônia mais uma vez se inseria no contexto nacional como “supridora de matérias-primas extrativas e importadora de produtos manufaturados” 246, como no passado colonial e moderno este é o significado contemporâneo e o papel que a região representa para o que podemos denominar de “bandeirantes do século XX”, isto é, aventureiros modernos, empresários, fazendeiros, madeireiros, pequenos comerciantes e profissionais liberais de outras regiões do país247. Este processo, conclui Fábio Carlos da Silva, só favoreceu a acumulação privada que sangrou e esgotou os recursos públicos, promoveu a especulação e privatização das terras públicas favorecendo a concentração fundiária atraindo grandes fluxos migratórios para as cidades. Estas cidades não tinham o mínimo de infra-estrutura para recebê-los gerando inchaços demográficos e incremento da violência, marginalização e toda sorte de exclusão e desigualdades sociais. Na estratégia governamental de desenvolvimento da Amazônia o capital financeiro e industrial chegou com uma força avassaladora e produziu uma degradação humana e ambiental com uma velocidade jamais vistas e Arrematou terras, expropriou camponeses e seringueiros, desarticulou grupos étnicos, empurrou a todos para centros urbanos, onde contingentes populacionais passaram a construir uma nova e extemporânea marginalidade urbana. A população 245 - COTA, Raymundo Garcia. Carajás: a invasão desarmada. p. 49. - SILVA, Fábio Carlos. Raízes amazônicas, Universidade e desenvolvimento regional. In MELLO, Alex Fiúza (org.) O Futuro da Amazônia: dilemas, oportunidades e desafios no limiar do século XXI, p.59-62. 247 - ibid. p. 60. 246 81 Jorge Luis Ribeiro dos Santos que migrou para a região em busca de terra e oportunidade de trabalho chegou atrasada248. Várias cidades se formaram de pequenas Vilas ou entroncamentos rodoviários. Outras, num curto espaço de tempo, viram sua população triplicar e até quadruplicar. O exemplo mais recente deste processo verifica-se no município de Canaã dos Carajás, região onde a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) implantou recentemente o projeto de extração e escoamento do cobre salobo. A cidade teve sua população quadruplicada em menos de cinco anos (dados do IBGE). Levas de migrantes, vindos principalmente do nordeste brasileiro, desembarcam a cada dia nas rodoviárias e estações. Foi assim com Marabá, Curionópolis, Eldorado dos Carajás, Tucuruí, Parauapebas e outras cidades, desde que se abriram estradas e a Ferrovia Carajás nas últimas três décadas. Logo se seguiu o surto do garimpo do ouro em Serra Pelada, construíram a hidrelétrica de Tucuruí e iniciou-se a extração do minério na Serra de Carajás, em Parauapebas. Implantaramse projetos agropecuários e madeireiros que avançam cada vez mais vorazes pela floresta adentro. Este último surto econômico, agropecuário e madeireiro, nos interessa mais por estar nos limites de nossa problemática. Todos estes fatores encadeados trouxeram e trazem uma leva ininterrupta de migrantes de todas as partes os quais em sua grande maioria não encontram a vida esperada e as perspectivas de trabalho se desvanecem. Essa população vai fincando barracos de madeira pelas bordas marginais das cidades já inchadas e sem estrutura urbana mínima. Vão ocupando lotes vagos ou terrenos baldios e inauguram seguidamente bairros indigentes em poucos meses, muitos marginalizam-se para sobreviverem, vê-se prostituem-se suas filhas, outros são recrutados pelas fileiras dos movimentos de trabalhadores sem terra, e outra parte deles juntam-se à levas de peões aventureiros vindos de fora ou trazidos pelos “gatos” para serem levados para as frentes de expansão madeireira e pecuária, ávidas por mão de obra barata e servil, para serem levados rumo aos confins da escravidão nas florestas longínquas e quase inacessíveis. Este forma o cenário propício para o que Alison Sutton chamou de “grilhões da moderna escravidão” 249. Estes são os contingentes agenciáveis pelos “gatos” que transitam impunes arregimentando, transportando e escravizando homens e mulheres mediante o financiamento de grandes fazendeiros. O fazendeiros financiadores negociam à distância com os gatos para que estes não sejam identificados como prepostos seus. Tudo isto acontece há décadas na região à sombra do poder público local (polícia, judiciário e governos) e só recentemente, mais precisamente a partir de 1995, que o Governo Federal acenou com ações concretas e continuadas para erradicar o “trabalho escravo” no Brasil e no sudeste paraense, região onde sua incidência é a maior do país, segundo dados do Ministério do Trabalho. A principal ação governamental neste sentido foi a criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), instituído em 1995 com a missão de coordenar e implementar ações de repressão ao trabalho forçado. O braço operacional do GERTRAF é o “Grupo Móvel” (GM) composto por Fiscais do Trabalho, agentes da Polícia Federal e Procuradores do Trabalho. O grupo móvel faz incursões “surpresa” nas fazendas denunciadas de prática de 248 249 - ibid. p. 62. - SUTTON, Alison. Trabalho escravo – um elo na cadeia da modernização do Brasil hoje. p. 22. 82 Jorge Luis Ribeiro dos Santos “trabalho escravo” e se constatadas as denúncias, instaura inquéritos, efetua prisões em flagrantes, se for o caso, e assegura de imediato o cumprimento de todos os direitos trabalhistas dos trabalhadores, bem como aplica multas, se pertinente e liberta os trabalhadores. Os dados sobre o número de trabalhadores escravizados e resgatados250 estarrece a todos e na maioria das vezes umas das principais causas deste problema apontadas pela mídia e pelo senso comum é a ausência do Estado para coibir esta situação. Este constatação não pode ser negada, entretanto, deve ser relativizada e vista desde uma análise crítica. É certo que o poder público - Governo, Ministério do Trabalho, Poder Judiciário e polícias – estão distantes do interior da Amazônia como da Terra do Meio, por exemplo, região situada na banda oriental do rio Xingu, no Pará, onde a incidência de desmatamento, “trabalho escravo” e crimes advindos de conflitos de terra tomam proporções cada vez maiores, isto é fato. Contudo, o argumento de que a ausência do Estado como propiciadora destas condições de indignidade de vida e no trabalho deve ser relativizado porque o Estado faz-se presente ou ausente conforme seus interesses políticoeconômicos. Como já constatava Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Muller, ainda no final dos anos 70, também vale para hoje: Resulta paradoxal (e significativo) que numa região onde a presença do Estado é tão forte e a relação entre trabalhador e fazendeiro encontre regras de manutenção quase só ancoradas na força privada, por um lado, e na consciência cristã, trabalhista ou mesmo empresarial, de algumas boas almas atormentadas pelas condições desumanas de vida na selva251. É um paradoxo uma tão marcante presença ao lado de uma quase total ausência. O Estado brasileiro está muito presente na Amazônia principalmente a partir dos anos 60, o fato é que as questões sociais não foram o foco de suas preocupações, a Amazônia continua sendo uma terra de imensos potenciais exploráveis, pouco importando o povo que nela vive, trabalha ou chega em busca de melhores condições de sobrevivência. Raymundo Garcia Cota aduz o argumento de que O fato novo, no caso amazônico, é o Estado intervencionista e autoritário, que caracteriza o período iniciado em 1964. Os novos mandatários vêm dotados de uma parafernália sem precedentes de mecanismos fiscais e monetários, capazes de transformar completamente espaços econômicos e sociais252. 250 - No Brasil foram resgatados, pelo Grupo Móvel de Fiscalização, em 2003 quase 5.000 trabalhadores e em 2004 foram 2.745. Nos últimos 10 anos foram 14.577 trabalhadores libertados, destes, 59% resgatados a partir de 2003, a incidência é de 97% dos casos na agricultura e pecuária. Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. 251 - CARDOSO, Fernando H. & MULLER, G. Amazônia: expansão e capitalismo. p. 182. 252 - COTA, Raymundo Garcia. Carajás: a invasão desarmada. p. 29. 83 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O Estado intervém, mas na medida de seu interesse, que no caso amazônico é predominantemente econômico extrativo. E é neste déficit presencial do Estado, enquando mediador de conflitos e promotor da dignidade humana e ambiental, que os “costumes” arcaicos e quase sempre violentos de resolução de conflitos e de relações de trabalho se manifestam e constroem as condições propícias para que o trabalho compulsório encontre fecundo campo para se reproduzir. O “escravo contemporâneo”: construção conceitual e caracterizações O Artigo IV da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 diz: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico são proibidos em todas as suas formas”. Mas antes da Declaração a primeira definição internacional de escravidão já estava contida no Art. 1.º da Convenção de 1926 da Liga das Nações, na qual a “escravidão é um estado ou condição de uma pessoa sobre a qual se exercem alguns ou todos os poderes referentes ao direito de propriedade”. O mesmo documento proíbe o comércio, captura, aquisição e disposição de pessoas para fins de escravidão253. Segundo as palavras do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa254 escravo é a aquele que está privado da liberdade, está submetido à vontade absoluta do senhor, a quem pertence como propriedade. Este conceito deriva de Aristóteles para o qual o escravo era uma propriedade viva do amo, um instrumento indispensável da vida doméstica. Em Aristóteles o escravo, por instinto natural, pertence a outro por não possuir uma razão plena, é tido como instrumento. A propriedade é um instrumento e o escravo é uma propriedade viva. Os instrumentos podem ser de uso e produção e o escravo serve para facilitar o uso. Sendo o escravo propriedade constitui-se não somente escravo, mas parte de seu amo. Deste modo não se pertence, mas pertence a outro, sem deixar de ser homem. É um homem possuído, é um instrumento de uso, separado do corpo a que pertence255. Já Montesquieu definia a escravidão como sendo “o estabelecimento de um direito que torna um homem de tal forma dependente de um outro, que este se torna senhor absoluto de sua vida e deu seus bens”256. Entretanto, conceituar a escravidão legal, antiga e moderna, não é tão simples quanto parece. Mesmo as definições das maiores autoridades no assunto às vezes não se convergem. Contudo há um certo consenso de que o escravo, seja na antiguidade clássica ou na modernidade, era uma mercadoria, perdia sua personalidade, enfim, tornava-se propriedade do senhor que dominava sua vida e todo o fruto de seu trabalho, embora Claude Meillasoux afirme ser insustentável a tese de que o escravo seja mercadoria, pois um ser humano não pode ser mercadoria, porque só o são os animais e as coisas. Já Eugéne D. Genovese afirma ser 253 - MINISTÉRIO DA JUSTIÇA e Ministério do Trabalho e Emprego. O combate ao Trabalho Forçado no Brasil. Anais da I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo. 254 - HOUAISS, Dicionário Houaiss da língua portuguesa. p. 1210 255 - ARISTÓTELES. A política. ps. 17, 18, 256 - MONTESQUIEU. O Espírito das leis. p. 249. 84 Jorge Luis Ribeiro dos Santos fundamento da escravidão a apropriação de um homem por outro, bem como a apropriação dos frutos de seu trabalho257. Para Moses Finley esta discussão de ser ou não o escravo mercadoria é “irrelevante” e “fútil”, o escravo é uma “propriedade peculiar”, afirma o autor258. Para Milton Meltzer o escravo é aquele que é propriedade do outro homem. Propriedade diz respeito a algo que “alguém tem título legal” onde o “proprietário tem o direito exclusivo de possuir, usufruir e dispor”259. Finley concorda com esta definição e acrescenta que a escravidão surge da necessidade de mobilizar uma força de trabalho para grandes tarefas, esta força de trabalho seria “obtida pela compulsão”, pela força das armas, da lei e do costume. Este “trabalho compulsório pôde assumir variadas formas, tanto no passado como em nossos dias: escravos por dívidas, clientes, peões, hilotas, servos, escravos-mercadoria”. No caso da escravidão, afirma Finley, a “mercadoria é o próprio trabalhador”, isto o faz singular perante as formas de trabalho, embora esteja próxima de formas forçadas e servis de trabalho. O escravo sendo mercadoria, é propriedade, pouco importa que seja humano, que seja uma “propriedade com alma”, e a humanidade dos escravos nunca na história dissuadiu seus senhores do exercício violento do seu dominiun. Os direitos do proprietário eram totais, não apenas sobre o seu trabalho, mas sobre a pessoa e personalidade. São três os componentes da escravidão: o escravo propriedade, o poder total sobre ele e a ausência de parentesco260. Dentre os estudiosos da escravidão legal colonial e republicana brasileira Mário José Maestre Filho afirma que “um indivíduo submetido pela força não é, necessariamente, um escravo (...). Nem mesmo a compra de seres humanos com objetivos econômicos cria, forçosamente, relações escravistas”. Para este autor deve haver três condições necessárias para a existência da escravidão: “O cativo” enquanto “mercadoria, deve estar sujeito à eventualidades aos bens mercantilizáveis – compra, venda, aluguel, etc. A totalidade do produto de seu trabalho deve pertencer ao senhor ”. Em segundo lugar a “remuneração que o cativo recebe sob a forma de alimento, habitação, etc., deve depender (...), da vontade senhorial”. E em terceiro lugar “o status escravo deve ser vitalício e transmissível aos filhos”261. Por sua vez, Jacob Gorender preceitua que “a escravidão é uma categoria social que, por si mesma, não indica um modo de produção” sua característica essencial é sua “condição de propriedade de outro ser humanos”, neste sentido “o escravo é uma coisa, um bem objetivo”, esta é uma visão baseada em Aristóteles262 (grifos no original). Calisto Vendrame, grande estudioso da escravidão no cristianismo, observa que em todos os tempos e lugares “o escravo foi considerado, juridicamente e de fato, uma coisa, uma peça dos bens móveis”, portanto como um “artigo de uso” o escravo era “comprado, vendido, emprestado, trocado, herdado”, era como um animal, sem família ou sobrenome e “No comércio, era contado por cabeça como gado”, era uma mercadoria, um instrumento de trabalho263. 257 - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra. p.39,40. - FINLEY, Moses. Escravidão antiga e ideologia moderna. p. 75. 259 - MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. 17. 260 - FINLEY, Moses. Escravidão antiga e ideologia moderna. p. 75,76,77 261 - MAESTRE FILHO, Mário José. O escravismo antigo. p.3. 262 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial ps. 46 – 49. 263 - VENDRAME, Calisto. A escravidão na Bíblia. p. 143. 258 85 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Desde remotos tempos, bem antes dos escritos filosóficos gregos, no entanto, a aceitação ética da escravidão nunca foi uma unanimidade. Para Vendrame o conceito de escravo na Bíblia é expresso “pelos profetas quando tomam posição frente às situações desumanas que levam à escravidão. Para eles o escravo é um homem como todos os outros, vítima da ganância e do egoísmo de seus semelhantes”, a escravidão é considerada “algo de absurdo que deverá desaparecer na restauração messiânica, quando o homem será reintegrado na sua justiça”. O escravo no sentido bíblico “só pode ser entendido à luz do conceito amplo do HOMEM” (destaque no original), que praticamente o esvazia de seu sentido aviltante”264. A “coisificação” do homem com a “escravatura, faz com que nada mais tenha sentido no mundo”265. Aristóteles também vai encontrar os opositores à sua tese de escravidão natural, assim como os modernos escravocratas se defrontarão com as idéias abolicionistas do humanismo, embora estas são questões para além dos limites aqui delineados. Contudo, se a definição daquela escravidão instituída até finais do século XIX já apresenta dissensos, o termo “escravidão contemporânea”, por sua vez - termo cujo conceito por si só é controverso e sem definição jurídica consensual e sobre o qual vai se construindo um conceito por ser um fenômeno que só recentemente vem ganhando repercussão no Brasil e no mundo - está propenso a gerar ainda maiores e mais variadas interpretações e conceituações. Portanto, considerando que a escravidão enquanto instituição já não existe, uma vez que hoje está abolida em todas as nações do mundo e, a rigor, o capitalismo destituiu de vez o trabalho involuntário e assalariou a mão de obra, tornando o homem livre para vender sua força de trabalho, seria legítimo então o uso literal do termo para definir uma situação contemporânea “análoga” àquela abolida? E a despeito do uso do termo “escravidão contemporânea” e o seu correlato “trabalho escravo”, isto não diluiria o sentido e a realidade secular atroz da escravidão antiga? Por último, considerando estas ponderações, como conceituar então as relações de trabalho involuntário, degradante ou forçado, hoje de fato existentes na realidade laboral do sudeste paraense, útil para a investigação teórica e para a efetivação dos direitos humanos? Para tentarmos responder a estas indagações consideremos inicialmente alguns fatos relevantes sobre as primeiras manifestações e registros do chamado “trabalho escravo” no Brasil e sudeste do Pará, dadas as novas e antigas formas de manifestação do trabalho involuntário, amplamente denunciadas, as quais deram ensejo a que um grupo de ativistas de direitos humanos cunhassem o termo “trabalho escravo” e insistissem nas denúncias até que se lhes dessem visibilidade. O termo “trabalho escravo”, hoje usado para descrever situações de trabalho involuntário e degradante não era, até bem pouco tempo, uma categoria utilizada e aceita para designar a situação de trabalho forçado ou compulsório no Brasil. Mas, algumas variantes sinônimas apareceram em relatos históricos desde o final do século XIX e princípios do século XX para definir o trabalho involuntário. Euclides da Cunha e Ruy Barbosa usaram termos como “trabalho servil” e “escravidão branca” quando constataram estas situações no Brasil dos inícios do século XX. Com intenção metafórica o deputado gaúcho 264 265 - ibid. p. 225. - ibid. p.225 86 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Fernando Ferrari ao descrever a vida camponesa no Brasil no início dos anos 60 escreveu: “vivem na Zona rural dois terços dos brasileiros, dos quais mais da metade, como servos e escravos”266. Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Muller ao se depararem com peões submetidos a trabalho involuntário no sudeste do Pará no final dos anos 70 usaram termos como “semi-servidão” e “coerção privada sobre a mão-de-obra”267. Otavio Guilherme Velho chamou a esta mesma situação de “força de trabalho reprimida”, trabalho “quase servil” e “formas compulsórias de trabalho”268 e Neide Esterce definiu como “repressão da mão-de-obra” e mesmo “trabalho escravo”269. Porém, a expressão “trabalho escravo” só passa a ser integrada ao vocabulário dos agentes sociais da região do sudeste do Pará no final da década de 60 para definir a situação de trabalhadores submetidos à condições degradantes de trabalho forçado nas frentes de expansão da pecuária nesta região, pela primeira vez denunciadas pelo Bispo Dom Pedro Casaldáliga na Amazônia Oriental. As primeiras denúncias registradas pela CPT - Comissão Pastoral da Terra - de Conceição do Araguaia e Rio Maria, no sul do Pará, sobre a prática de “trabalho escravo” datam de 1969, segundo afirma Ricardo Rezende Figueira270. A partir de então, o uso do termo para designar tal situação de trabalho indigno se estendeu ao vocabulário da imprensa, entre setores do governo e no próprio judiciário brasileiro com cada vez maior freqüência. Tal denominação, apesar de imprópria para muitos, num primeiro instante serviu para dar visibilidade ao problema, suscitar providência do poder público e traduzia a indignação dos agentes de pastorais católicas e ativistas de direitos humanos diante dos relatos ouvidos e das condições físicas e morais das vítimas submetidas às situações degradantes de trabalho forçado nas fazendas da região. A CPT iniciou em 1997 a Campanha Contra o Trabalho Escravo, articulando ações das equipes e parceiros para localizar pontos de aliciamento, locais de exploração, orientação, campanhas, denúncias e resgate das vítimas de trabalho escravo. A Campanha Contra o Trabalho Escravo instituída pela CPT uniformizou um conceito explicativo de Trabalho Escravo visando instrumentalizar seus agentes com uma definição o mais uniforme, abrangente e rigorosa possível, de maneira simples e pragmática para efetivar uma classificação criteriosa das denúncias e evitar equívocos, tanto nos relatórios quanto no encaminhamento de denúncias apuradas em suas sub-sedes. Para a CPT “Trabalho Escravo é a redução de um ou vários trabalhadores à condição igual a de escravo, consistindo na privação da liberdade destes de sair de um lugar para outro, através da alegação de uma dívida crescente e permanente e, com efeito, há retenção de salários e/ou de documentos pessoais. Pode ainda se caracterizar pelas promessas enganosas de “gatos” e/ou empreiteiros, ou de patrões. Em casos extremos, há utilização de violência física ou psicológica contra o trabalhador para obrigá-lo a 266 - FERNANDO, Ferrari. Escravos da terra. p. 18. - CARDOSO, Fernando H., MULLER, Geraldo. Amazônia: expansão do capitalismo. 268 - VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. 269 - ESTERCI, Neide. Escravos da desigualdade. 267 87 Jorge Luis Ribeiro dos Santos permanecer no local de trabalho, através de “seguranças”, “capangas”, “fiscais”, e outros que portam armas de fogo ou têm fácil acesso a elas.271 Vários autores se debruçaram na análise e conceituação do fenômeno. Vejamos as definições e caracterizações de recentes pesquisas sobre o fenômeno a que denomina-se “trabalho escravo”. Ricardo Rezende Figueira em trabalhos sobre a “escravidão contemporânea” na fronteira amazônica sintetiza as controvérsias sobre a utilização da categoria “trabalho escravo” bem como os conceitos de historiadores, sociólogos e antropólogos. Seus estudos investigam o discurso dos proprietários das fazendas acusados de usarem “trabalho escravo” e o papel dos diversos atores na cadeia da escravidão. Figueira assim caracteriza o sujeito da escravidão, o ser humano escravizado: O último, o escravo contemporâneo, é aliciado longe do local onde trabalhará, é transportado e vendido. Perde o direito de ir e vir e o direito à própria vontade. Possui juridicamente os direitos à liberdade, à posse e à propriedade. Contudo, no período em que está submetido ao trabalho, na prática, esses direitos são suspensos. Em algumas situações sofre constrangimentos físicos – passa fome, é amarrado, espancado, submetido à violência sexual, é assassinado. Não há no município onde trabalha, parentes ou amigos que lhe ampare. Falta a solidariedade e a simpatia da sociedade – que desconhece os fatos e considera que aquele que tem dívidas deve ser obrigado a pagá-la. O senhor poderá morar distante (...) e não manter relação direta com o trabalhador (...). A relação normalmente é intermediada pelo gato e pelos seus retagatos272. Já em outra obra, fruto de sua tese de doutorado, o autor analisa o fenômeno localizando dois lugares distintos da origem dos trabalhadores escravizados, duas regiões de aliciamento: Barras no Estado do Piauí e Vila Rica e região no Estado de Mato Grosso273. Novamente o autor exemplifica o “trabalho escravo”: Essa modalidade de trabalho em geral se manifesta quando as fazendas estão derrubando as árvores para plantar capim e erguendo, recuperando ou protegendo cercas e pastos ou executando diversas atividades simultaneamente. Para realizar o trabalho o fazendeiro em geral alicia diretamente ou através de terceiros, pessoas de outros municípios ou mesmo de fora do estado. Uma vez 270 - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Quão Penosa é a Vidal dos Senhores: discurso dos proprietários sobre o trabalho escravo. pág. 05 271 - MINISTÉRIO DA JUSTIÇA e Ministério do Trabalho e Emprego. O combate ao Trabalho Forçado no Brasil. Anais da I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo – 24 a 25 set. 2002. p. 26. 272 - ibid. p. 23. 273 - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da Própria sombra: a escravidão por dívida: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. p. 34 e 35. 88 Jorge Luis Ribeiro dos Santos transportados até os imóveis, os recrutados são informados de que só poderão sair após pagarem o “abono” recebido no transcurso da viagem. A dívida aumenta, pois eles devem adquirir a alimentação e os instrumentos de trabalho de uma cantina da própria fazenda, onde os preços são incompatíveis com a remuneração prevista. A eficiência do sistema de coerção depende de diversos fatores, tais como a responsabilidade moral sentida pelos trabalhadores frente à dívida e a presença de homens armados. A vulnerabilidade das pessoas aumenta pela distância entre a fazenda e o local do recrutamento, pois não apenas estão longe de suas cidades, mas de uma rede de solidariedade que poderia ser acionada, composta por seus parentes, amigos e conhecidos. O sociólogo José de Souza Martins também descreveu as relações de escravidão na história da sociedade brasileira. Para o sociólogo o “trabalho escravo” moderno ainda é um termo em construção conceitual. O autor pondera parâmetros de definição da questão contrapondo o “trabalho escravo” contemporâneo à escravidão legal anterior a 1888 delimitando a diferença entre superexploração e “trabalho escravo”, o que não raro, é confundido por agentes sociais e o próprio governo. Diz o autor que o “trabalho escravo” é uma forma extralegal de cativeiro e vem acompanhado de violências físicas contra o trabalhador, de coerção física e moral que cerceia a livre opção do trabalhador. Para prender o trabalhador ao trabalho criam-se mecanismos de endividamento artificial. É temporário e circunstancial e está “ligado ao modo de desenvolvimento capitalista, decorrendo na maioria dos casos da escassez de mão-de-obra”274 em um contexto que propicia a violação do “trabalho livre”. Segundo ele: Um conceito de escravidão depende de uma teoria das relações sociais das sociedades em que a escravidão é praticada, relações que não são nem podem ser as mesmas em diferentes circunstâncias e situações. No caso brasileiro atual, a escravidão, que é escravidão temporária e circunstancial, ainda que persistente, está diretamente ligada ao modo como se dá entre nós o desenvolvimento capitalista. Na maioria dos casos, mas não necessariamente em todos, decorre da escassez de mão-de-obra em algumas regiões do país, pelos salários que os empresários estão dispostos a pagar e para o trabalho que necessitam executar. Ressalta ainda o autor que “a escravidão não se manifesta direta e principalmente em más condições de vida ou em salários baixos ou insuficientes” mas que o “núcleo da relação escravista está na violência em que se baseia” e na “coerção física e às vezes também nos mecanismos de coerção moral utilizados por fazendeiros e capatazes para subjugar o trabalhador”. 274 - MARTINS, José de Sousa. A escravidão nos dias de hoje e as ciladas da interpretação, in: “Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo”, Org. VV.AA. p. 157. 89 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Não é difícil, portanto, inferir que o fenômeno se configura num crime, no entanto, a impunidade daqueles que incidem no crime ainda é um fator preocupante e os juristas pouco têm produzido acerca do tema, considerando a gravidade que representa a escravidão humana atual, pois como afirma o juiz trabalhista Jorge Vieira da Vara do Trabalho de Marabá, o “escravo moderno” é menos que o boi (que é cuidado, vacinado e bem alimentado), que a terra (que é protegida e bem vigiada) e que a propriedade (sempre defendida com firmeza). Dessarte, o trabalhador escravizado, por não integrar o patrimônio do ‘escravagista moderno’, este não se preocupa com sua saúde, segurança e higidez física ou mental, sendo totalmente DESCARTÁVEL, utilizado apenas como meio de produção e não ligado ao proprietário por qualquer liame, legal ou social, na visão daqueles que se utilizam da prática ou que pretendem legalizá-la275. Completa o magistrado dizendo que “Há uma rede criminosa composta por vários agentes, cada um com finalidade própria, criada para exploração de seres humanos como fonte de riquezas, sem nenhuma responsabilidade, em benefício de organização produtiva que viceja”276. A jurista Ela Wiecko Castilho, de sua parte, uma das poucas criminalistas brasileiras a pesquisar o assunto, analisa o “trabalho escravo” contemporâneo e algumas implicações jurídico-penais do fenômeno. Para a autora trabalho forçado ou compulsório, ou também obrigatório, é todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual não se ofereceu espontaneamente. Diz a autora: A conduta de escravizar não se limita à violação da liberdade física e pode existir mesmo havendo liberdade de locomoção. A vítima é livre do ponto de vista físico para deixar o trabalho, mas não o deixa porque se sente escravo. A escravidão se estabelece de forma sutil e complexa com participação de vários agentes e até com o consentimento da vítima. Ficam próximos, às vezes se sobrepõem, os conceitos de trabalho escravo, de trabalho degradante e trabalho em condições indignas e subumanas, pois estado de escravo implica negar a dignidade humana (status dignitatis). Contudo quando se fala em trabalho escravo pressupõe-se uma relação entre as partes: a que presta o trabalho e aquela que é beneficiada. Já o trabalho degradante pode se dar independentemente de uma relação empregatícia. Por fim, a superexploração do trabalho é um conceito cuja elaboração se faz numa perspectiva econômica e sociológica277. 275 - VIEIRA, Jorge. XVIII Congresso Brasileiro de Magistrados, Salvador, 23/10/2003. - VIEIRA, Jorge. Sentença em Ação Civil Pública. ACP. 8ª. Vara do Trabalho de Parauapebas, 2003. 277 - CASTILHO, Ela Wiecko. Considerações sobre a interpretação jurídico-penal em matéria de escravidão. p. 57. 276 90 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Castilho conclui que “as formas contemporâneas de escravidão nas relações de trabalho são, antes de mais nada, atentatórias à dignidade humana” e a “superexploração do trabalho humano ou a condição degradante a que uma pessoa é exposta são indícios veementes de escravidão”, pois em tais situações a pessoa fica “totalmente submetido a outrem, torna-se objeto”, contudo, esclarece a autora, na raiz das divergências de conceituação estão concepções ideológicas, além de enfoques sociológicos e filosóficas que se atribui ao trabalho. Mas, acrescenta a autora: A idéia de dignidade da pessoa individual implica necessariamente o princípio da liberdade individual. Mas a escravidão, antes de ser um crime contra a liberdade individual, é um crime contra a dignidade humana. Esse enfoque é mais abrangente porque inclui as outras liberdades e direitos do homem. Dignidade abrange tudo, a escravidão tira tudo278. Sobre o argumento de que a denominação de “trabalho escravo” diluiria, em certa medida, toda uma luta histórica abolicionista antiga para a superação e supressão da escravidão se justaposta à chamada “escravidão contemporânea” poder-se-ia contra-argumentar que a aplicação do termo para relações de “trabalho escravo” na atualidade, denotam a negação da dignidade e cerceamento de liberdade. E ainda aduzse que mesmo se reportadas às qualidades do escravismo do passado, a denominação quer significar a negação de algo eticamente condenado por tornar inumano o ser submetido ao trabalho indigno e involuntário. Ademais, como afirma Ricardo Rezende Figueira, no instante em que os trabalhadores perdem de fato, mesmo que temporariamente, “o direito de dispor sobre si mesmo e sobre o direito de vender sua força de trabalho” e quando os “trabalhos realizados sob qualquer tipo de coação sem que fosse provocada por uma sentença judicial, serviço militar” ou calamidade pública, e ainda nos casos específicos onde sempre “houve uma ‘dívida’” e, portanto, a “pessoa se tornou sujeita a outra, como sua propriedade”, tal situação legitima o uso do termo. O diferencial da escravidão contemporânea em relação à antiga, completa o autor, é sua “temporalidade e ilegalidade”279. O autor americano Kevin Bales, uma autoridade mundial no assunto, é peremptório: “A escravatura na sua forma real, não metafórica, está a crescer e evoluir”. Para o autor parte do problema em designar a escravatura é que “escravatura é uma palavra muito forte”, mas que as organizações de defesa dos direitos humanos devem mesmo usar uma linguagem forte, pois algumas organizações como a ONU são muito tímidas no trato da questão, assim como alguns governos os quais tentam defini-la numa linguagem burocrática e que só faz ocultá-la, portanto, responde o autor, “não podemos simplesmente permitir que a palavra escravidão seja tão atenuada no seu significado que não tenha o poder para identificar e condenar a escravatura real”. O autor caracteriza a nova escravidão como uma escravidão “sem rosto, temporária, 278 - ibid. p. 61. - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Quão penosa é a vida dos senhores: discurso dos proprietários sobre o trabalho escravo. p. 8. 279 91 Jorge Luis Ribeiro dos Santos altamente lucrativa, legalmente dissimulada e inteiramente cruel” 280, na qual o ser humano é usado e depois descartado. Bales traça um paralelo entre a antiga e a nova escravidão: naquela a posse legal é firmada, o preço de custo é elevado, os lucros baixos, há escassez de escravos potenciais, as relações são de longo prazo, os escravos são mantidos e as diferenças étnicas são relevantes. Na escravidão contemporânea a posse legal é evitada, o custo é baixo, os lucros altos, há abundância de escravos potenciais, e a relação é de curto prazo pois os escravos são descartáveis, e por fim a diferença étnica não tem a menor importância281: Mesmo assumindo os riscos de uma comparação da escravidão clássica ou moderna com a “escravidão contemporânea”, o que certamente poderia resultar numa declaração apressada de inadequação peremptória do termo por razões formais, históricas e mesmo técnicas - uma vez que a escravidão já não existe como modo de produção - uma contraposição da antiga com a contemporânea escravidão só seria útil para compreensão do fenômeno “trabalho escravo” de hoje tendo claro as estabelecidas diferenças e aproximações, dados os contextos temporais e sociais totalmente diversos. Mas isto não torna a denominação de “trabalho escravo contemporâneo”, expressão híbrida da herança escravista antiga cuja denominação se inspira na antiga escravidão, sem validade. Embora até mesmo o argumento do “escravo propriedade” antigo não poderia ser de todo afastado, pois, hoje encontra similaritude no trabalho escravo contemporâneo, como cita Alessandra Gomes Mendes, nos casos de relatos no Pará e Mato Grosso em que “os ‘gatos’ venderam ‘lotes de trabalhadores’ a outros empreiteiros”282. Sobretudo, é preciso atentar para o fato de que as evasivas e postulação por outros adjetivos, mesmo que com rigorosas intenções científicas, pode suscitar mecanismos de escamoteamento do problema do “trabalho escravo” real, dada a dimensão social que o termo hoje alcança por conta de sua dimensão de ocorrência. Pode ainda resultar em riscos de uma minimização da gravidade da situação de “trabalho escravo” materializado nas inúmeras constatações por órgãos oficiais. E pior, eufemismos para uma prática inaceitável que indigna qualquer cidadão minimamente ético por ter por base este tipo de exploração laboral a indignidade supressora da liberdade do corpo e, de certa forma, do espírito do trabalhador. Pois, como reafirma Kevin Bales, Os escravocratas, a gente de negócios e até governos escondem a escravatura atrás de cortinas de fumo de palavras e definições. Nós temos de penetrar nesse fumo e conhecer a escravatura naquilo que ela é, reconhecendo que ela não é uma coisa do “terceiro mundo”, mas uma realidade global – uma realidade em que já estamos envolvidos e implicados283. Há sem dúvida, uma luta por significação. A antropóloga Neide Esterci afirma que o “termo escravidão tem o poder de denunciar a violência, a privação de liberdade, o desrespeito à igualdade e à 280 - BALES, Kevin. Gente descartável: a nova escravatura na economia global. p.175, 310, 311. - ibid. p. 26, 148 282 - MENDES, Alessandra Gomes. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: interpretando estratégias de dominação e de resistência. p. 98. 283 - BALES, Kevin. Gente descartável: a nova escravatura na economia global. p. 311, 312. 281 92 Jorge Luis Ribeiro dos Santos dignidade” e é “neste sentido uma categoria política, faz parte do campo das lutas que se travam na sociedade”. Aduz a autora, citando a jurista Ela Wiecko Castilho, que essa luta por significação e visibilidade “tem logrado por em questão” novas definições legais úteis para ampliar práticas criminais definidas como escravidão284. Tem razão Esterci, pois os ativistas de direitos humanos e representantes de trabalhadores rurais que lidam há décadas com o problema cunharam o termo “trabalho escravo” com toda a força e impacto que puderam com claros objetivos de dar visibilidade à situação, dar voz e eco aos gritos silenciados (e às vezes mortos) nas distâncias, até então, inacessíveis à liberdade e ao direito e, por força de mobilizações, denúncias e clamor público, impor mudanças significativas na legislação penal e administrativa brasileira. Estas conquistas não são gratuitas, mas frutos de embates constantes e enfrentamentos antagônicos acirrados. É preciso não esquecer ainda que o próprio ato de denúncia foi uma árdua e dolorosa luta histórica por efetivação de direitos humanos nos ermos dos latifúndios escravagistas onde enfrentou-se e enfrenta-se uma dura e violenta repressão de pessoas e grupos identificadas como responsáveis por tal situação de “trabalho escravo”. Ameaças, mortes e difamações públicas são comuns no caminho dos ativistas defensores dos trabalhadores submetidos à escravidão hoje no Brasil. Uma das principais antagonistas deste embate com os ativistas que combatem o “trabalho escravo” é a classe dos ruralistas, cuja representação no Congresso Nacional, a Bancada Ruralista, é uma das maiores e mais poderosa285. Uma de suas organizações classista é a UDR – União Democrática Ruralista, a outra, uma das mais poderosas no Brasil hoje é a CNA – Confederação Nacional da Agricultura. A organização TFP – Tradição Família e Propriedade, também tem se manifestado na defesa dos grandes proprietários de terra. Segundo dados da CNA a entidade hoje conta com um milhão e duzentos mil produtores rurais os quais são responsáveis pelos sucessivos recordes da produção agropecuária e pelos superavits da exportação brasileira ancorada no agronegócio. A bancada ruralista tem sido veemente na defesa, no Congresso Nacional, de fazendeiros acusados de prática de trabalho escravo e segundo revelam alguns ativistas têm lutado para impedir a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC)286 que prevê expropriação de terras onde for 284 - ESTERCI, Neide. A ilusão do trabalho livre. In ESTERCI, Neide FRY, Peter e GOLDENGER, Mirian: Fazendo Antropologia no Brasil. p. 265,266. 285 - VIGNA, Edécio. Bancada ruralista: um grupo de interesse. p. 05 286 - Muitas leis têm sido criados e/ou alterados diante da exigências normativas impostas pelo fenômeno do trabalho escravo no Brasil, notadamente de 2003 em diante, destacam-se: Lei 9.777/98, que altera os artigos 132, 203 e 207 do Código Penal Brasileiro; Lei 10.803/2003 que altera o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, ampliando designando as situações de configuração de situação “análoga a de escravo; Decreto Federal 1.538 que cria o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), com a finalidade de coordenar e implementar as providências necessárias à repressão ao trabalho forçado; Decreto Federal 1.538, Lei n. 10.608 – de 20 de dezembro de 2002 Altera a Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, para assegurar o pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado da condição análoga à de escravo; Decreto de 31 de julho de 2003 a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE; Lei nº 10.706, de 30 de julho de 2003, que autoriza a união a conceder indenização a José Pereira Ferreira, submetido a trabalho escravo e tentativa de assassinado, cujo crime prescreveu por inércia do judiciário brasileiro. A indenização foi por determinação de sanção pela OEA ao Estado brasileiro; Resolução Nº 5, de 28 de Janeiro de 2002 que constituiu a Comissão Especial para conhecer e acompanhar denúncias de violência no campo, exploração do trabalho forçado e escravo, exploração do trabalho infantil, e propor mecanismos que proporcionem maior eficácia à prevenção e repressão a essas práticas; PEC (Projeto de Emenda Constitucional) de expropriação de terras onde for constatado trabalho escravo, este em tramitação há 93 Jorge Luis Ribeiro dos Santos constatado trabalho escravo, em tramitação há mais de dez anos, bem como a inclusão de sanções administrativas a empresas ou particulares flagrados usando “força de trabalho escrava”. Os embates políticos dos dois lados - latifundiários e ativistas – no que diz respeito ao “trabalho escravo” são marcadamente ideologizados o que foge ao percurso desta análise, contudo, quase sempre temos como referência fática uma grande propriedade como palco de manifestação do fenômeno do trabalho escravo cujo proprietário ruralista recorre à sua associação classista e aos porta-vozes políticos de seus interesses na sua defesa pública. Os principais argumentos defensivos usados por estes referem-se a supostos excessos e abuso de autoridade dos órgãos e agentes do governo nas fiscalizações e aplicações de sanções, bem como o desestímulo do produtor diante das constantes ameaças criminalizadoras e fiscalização agressiva e servil ao denuncismo de segmentos de esquerda e de ONGs estrangeiras, segundo denunciam os produtores. Tudo isto, afirmam, pode ser prejudicial ao agronegócio e resultar em perdas à economia do país. Nelson Ramos Barreto287, jornalista e defensor ferrenho dos ruralistas afirma que as ONGs ideologicamente atrasadas, financiadas por recursos dos países ricos, insistem em afirmar que o trabalho escravo é a principal forma de emprego na agricultura brasileira. Essas acusações se intensificam justamente num momento em que o Brasil, impulsionado pelo agronegócio, aumenta sua participação no comércio mundial. É preciso que se dê um basta às denúncias equivocadas de trabalho escravo no campo288. O autor reafirma uma negação veemente ao “trabalho escravo” e dirige seus ataques ao governo brasileiro quando este admite a prática de trabalho escravo no Brasil: O Brasil, através de seu embaixador Tadeu Valadares, foi o primeiro e único país a reconhecer, em reunião oficial da ONU, a existência de “formas contemporâneas de escravidão”. Uma vergonha anunciada e proclamada no fórum internacional. Espanto dez anos, dentre outras iniciativas normativas e PL 487/03 e 108/05 (Projeto de Lei), projetos que proíbem concessão de créditos ou financiamentos a empregadores que integram o cadastro do Ministério como empregadores escravocratas, os quais também são proibidos de participar em licitações, pregões públicos e outros; o PL que torna crime hediondo a submissão de trabalhadores à escravidão e, portanto, inafiançável e sujeito a penas mais duras, o PL que dá força de lei ao cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condição análoga à de escravo (PL 25/05), pois o cadastro do Ministério do Trabalho foi criado por portaria sem força de lei. 287 - BARRETTO, Nelson Ramos. 'Trabalho escravo': nova arma contra a propriedade privada. Apresentação 94 Jorge Luis Ribeiro dos Santos geral. Nem os países africanos que ainda têm a escravidão legalizada fazem dela tal alarde. Muito menos a China e os países comunistas, que mantêm os "trabalhadores do povo" em regime forçado, reconhecem-no como escravidão. Somente o governo brasileiro se encarrega de fazer mais essa propaganda negativa. Por quê? Numa carta ao Ministério do Trabalho, cita a pesquisadora Alessandra Gomes Mendes, um produtor rural mineiro, acusado de escravizar trabalhadores em sua propriedade, assim se expressou: Os responsáveis pelos Órgãos Públicos deveriam nos agradecer por estarmos empregando nem que seja por um tempo curto esses operários que vivem correndo de propriedade em propriedade fazendo pequenos bicos, evitando desta maneira o Êxodo Rural, o que obriga estes empregados a irem para as cidades e viverem em estado bem mais degradantes do que nas propriedades rurais289. Como demonstra o fazendeiro, na sua concepção ele faz um bem para o trabalhador e o trabalho rural é menos degradante do que na cidade. Outro argumento comum é que eles (proprietários) foram os “desbravadores”, os “pioneiros”, a classe produtora, são eles que geram emprego e renda, evitam problemas sociais com o êxodo rural e protegem o trabalhador. Muitos se sentem benfeitores dos trabalhadores apesar de serem muitas vezes ludibriados por eles, que não pagam dívidas, não realizam as tarefas conforme contratado. Ricardo Rezende Figueira conclui: “Alguns consideram legítimos os tipos de controle e coerção exercidos contra as pessoas e acham a legislação trabalhista e penal divorciada da realidade rural” e sentem-se prejudicados pelas fiscalizações290. Os argumentos do fazendeiro brasileiros são em muito parecidos ao que declarou, em entrevista a Kevin Bales em 2001, um senhorio indiano que mantém servos em sua terra na aldeia de Bandi, sul da Índia: (...) Mantenho a eles [servos] e suas famílias. (...) De qualquer modo eles estão bem (...) eu sou como um pai para esses trabalhadores. É uma relação pai-filho: eu protejo-os e guio-os. Por vezes tenho também de discipliná-los, tal como um pai faria. (...) Vocês sabem que eles não seriam capazes de cuidar de si próprios291. O proprietário empregador não admite, finge desconhecer, descaracteriza, dissimula ou faz apelos aos costumes e práticas locais de coação para justificar o “trabalho escravo”, no final parece ser o trabalhador 288 - MENDES, Alessandra Gomes. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: interpretando estratégias de dominação e de resistência. p. 95 290 - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra – a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. p. 394. 291 - BALES, Kevin. Gente descartável: a nova escravatura na economia global. p.264, 265. 95 Jorge Luis Ribeiro dos Santos por seus hábitos perdulários e desonestos e as leis impossíveis de serem cumpridas - sob pena de inviabilizar a iniciativa do empreendimento agrícola – de serem os culpados por esta situação. Eles se eximem e o outro lado ataca com a denúncia. Para os proprietários a “escravidão” é exagero denuncista que só alardeia inverdades e afasta investidores no setor agropecuário e prejudica a produção e geração de emprego. Há divergentes opiniões e definições, conforme a concepção sócio-política de quem conceitua. A classe dos latifundiários e pecuaristas até admite que em determinadas situações pode haver desrespeito às leis trabalhistas, mas trabalho escravo não existe, “isto não passa de campanha inventada para prejudicar o setor rural”292. Alessandra Gomes Mendes em sua pesquisa denominada “Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: interpretando estratégias de dominação e de resistência”293, afirma que por ser o trabalho escravo contemporâneo um “fenômeno social, constitui uma categoria política de luta de interesses e de conflito de visões de mundo entre diferentes segmentos e atores sociais” e disto derivam as “classificações ambíguas” de trabalho escravo e as denominações “polissêmicas”, variando “de acordo com os contextos políticos e sociais em que são produzidas”. ao projetar-se como evidência no cenário social contemporâneo, a escravização provoca estranheza, a indignação moral, a repulsa na sociedade, marcando novos sentidos de interpretação, no contexto de uma ordem que afirma, ao menos teoricamente, os direitos de cidadania294. Em meio aos embates está o judiciário. Os litígios criminais, trabalhistas ou cíveis, advindos da prática do trabalho escravo, têm suscitado fecundas discussões também no meio jurídico local, os quais, não raro, chegam às mesas de audiências judiciais e são, na maioria das vezes, interpretadas de forma descaracterizada e equivocada. A maioria dos julgados não considera as práticas degradantes do trabalho rural como formas de trabalho escravo. Este tem sido um fator de preocupação por ser diretamente apontado como uma das principais causas da impunidade quando a lei não atinge os criminosos por uma tipificação inadequada e às vezes insuficiente. O tema tem gerado equívocos que submetem a todos, advogados, juízes, promotores, defensores dos direitos humanos e sociedade em geral, a uma revisão e aprofundamento constante de conceitos e, nas palavras de Maurice Lengellé-Tardy, encontrar novas definições para a escravidão contemporânea, “que já não procede (em principio) do abusus, mas do usufruto à distância do homem pelo homem”295. O autor acima referido defende que a escravidão tem sido inerente ao progresso humano e aparece em cada setor da economia, cada etapa de liberalização do trabalho leva, paradoxalmente, à gênese de uma 292 - Deputado Federal pelo Pará, Asdrúbal Bentes Jornal Opinião 28/06/03 - pág. 03 - MENDES, Alessandra Gomes. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: interpretando estratégias de dominação e de resistência. p. 1, 13. 294 - ibid. p.1 295 - - LENGELLÉ-TARDY, Maurice. La esclavitud moderna. p. 9 - Tradução minha. 293 96 Jorge Luis Ribeiro dos Santos nova forma de servidão, há novas formas de ação melhor adaptadas às formas ocultas e movediças da escravidão contemporânea296. A própria OIT – Organização Internacional do Trabalho - reconhece problemas nas legislações nacionais sobre a normatização do fenômeno. Segundo a OIT não há uma definição detalhada de trabalho forçado297 o que dificulta a tarefa dos agentes encarregados do cumprimento da lei. Em conseqüência desta indefinição, sustenta o relatório, no mundo tem-se poucas condenações por delitos de trabalho forçado e isto tem gerado um círculo vicioso, iniciado pela ausência de uma legislacão clara298. Para a OIT, tal qual expresso no seu último relatório global de 2005299, o “trabalho forçado” está presente nas variadas formas em todo o mundo e em todo tipo de economia e não precisa estar necessariamente ligado a uma atividade econômica. A coação para prática da mendicância é exemplo de trabalho forçado, por exemplo e não está afeto a atividade econômica. Além das tradicionais formas de trabalho forçado as modalidades mais “antigas estão se revestindo de novas aparências”. As principias características do trabalho forçado moderno, segundo o documento são: - uma maior frequência no setor privado do que no Estado, - o endividamento induzido, reforçado com ameaças de represálias e outros castigos, - a precariedade da situação jurídica de migrantes, e - o vazio legislativo que obstaculiza a luta contra as coações. A OIT revela que as diferentes acepções do termo muitas vezes vinha associada principalmente com as práticas de trabalho forçado dos regimes totalitários como do nazismo na Alemanha hitlerista e o stalinismo na Rússia. Por outro lado, as expressões como “escravidão moderna”, “práticas análogas de escravidão”, às vezes, são empregadas sem rigor para referir-se a trabalho precário, insalubre ou indigno, ou ainda a pagamento de baixos salários. A Convenção número 29, da OIT, promulgada em 1930 define trabalho forçado em seu artigo 2 como todo trabalho exigido de um indivíduo sob ameaça de uma pena qualquer para o qual a pessoa não se ofereceu voluntariamente e a Convenção 105 de 1957, proíbe o trabalho forçado para fins econômicos, como meio de educação política ou como medida discriminatória, como disciplina ou castigo qualquer. Trabalho forçado, explica o documento, não é trabalho sob condições precárias nem se iguala à necessidade econômica a qual “prende” o trabalhador no trabalho por falta de outra alternativa, o trabalho forçado “constitui uma grave violacão dos direitos humanos e uma restrição da liberdade pessoal”. Ele se configura na presença de dois elementos básicos: “por um lado, o trabalho ou serviço que se exige sob a ameaça de uma pena; por outro, este se leva a cabo de forma involuntária”300. Numa visão global o trabalho forçado é agrupado em três modalidades: o trabalho forçado imposto pelo estado, consistindo em serviço 296 - ibid. p. 11,12. - A OIT utiliza a terminologia “trabalho forçado” conforme sua Convenção Número 29 de 1930, porém, a Declaração da Ligas das Nações de 1926 utiliza o termo “escravidão”. Para a OIT a escravidão é uma das formas de manifestação de trabalho forçado. 298 - Una alianza global contra el trabajo forzoso – Ginebra 2005. pg. 1 a 11. 299 - ibid. 1 a 11. 300 - ibid. p. 5, 6. As exceções são: serviço militar obrigatório, obrigações cívicas, trabalho em virtude de uma pena judicial, serviço em caso de força maior e pequenos trabalhos comunais. p. 5, 6. 297 97 Jorge Luis Ribeiro dos Santos militar, obrigação de participar em obras públicas e em regime penitenciário; trabalho forçado imposto por agentes privados com fins de exploração sexual, onde trata-se da prostituição involuntária; o trabalho forçado imposto por agentes privados com fins de exploração econômica, onde se inclui a servidão, o trabalho doméstico forçado e o trabalho forçado na agricultura301. É importante nos atentarmos para o conceito da OIT, pois, sendo o Brasil signatário das Convenções sobre trabalho forçado, como a Convenção 29 e 105, tais institutos se inserem no ordenamento jurídico brasileiro com força de norma constitucional. Daí a preferência de alguns teóricos escolherem por tradição usarem o termo de “trabalho forçado”, tal como definido pela OIT, quando querem se referir à trabalho compulsório no Brasil, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro só fazia referência ao tipo aberto “reduzir alguém à condição análoga a de escravo” no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, pelo menos até 11 de dezembro de 2003, e não especificava no que consistia a “condição análoga a de escravo”. Esta definição só veio a se efetivar com o advento da Lei 10.803, que reformou o artigo 149 onde a nova redação especifica as condições em que se dá a redução de alguém à condição análoga à de escravo, quais sejam: “submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exautiva”, “sujeitando-o a condições degradantes de trabalho” e “restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Mas, retomando nossa digressão, trabalho forçado não é necessariamente o mesmo que escravidão, pois esta é uma forma de manifestação daquele, ou seja, o “trabalho escravo” é espécie do gênero “trabalho forçado” para a OIT. A escravidão contemporânea, segundo o Relatório da Oficina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pode ser determinada conforme o grau em que se exerce os atributos de direito de propriedade sobre uma pessoa ou alguns dos atributos deste direito. Neste sentido torna-se fundamental estabelecer: o grau de restrição da liberdade de circulação da pessoa; o grau de controle da pessoa sobre seus pertences e a existência de consentimento com conhecimento de causa e plena compreenssão da naturaza da relação entre as partes. A estes elementos acompanha a ameaça de violência. 302 A escravidão, segundo o conceito da Convenção sobre Escravidão da Sociedade das Nações de 1926, Implica o controle absoluto de uma pessoa por outra, ou em ocasiões, de um coletivo social por outro. A escravidão está definida no primeiro instrumento internacional sobre a matéria (datado de 1926) como o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exerce os atributos de direitos de propriedade ou alguns deles (artigo 1,1). Uma pessoa que se encontra em escravidão, se verá forçada a trabalhar, mas esta não é a única característica definidora da relação. A condição de escravo não tem uma duração determinada, pois é permanente e baseia-se na ascendência303. 301 - ibid. p. 7 e 11. - WEISSBRODT, David e Liga contra Esclavitud. La Abolición de la Esclavitud y sus Formas Contemporâneas. p. 7. 303 - ibid. p. 8,9. Tradução minha. 302 98 Jorge Luis Ribeiro dos Santos As práticas análogas da escravidão incluem a situação em que um indivíduo ou um grupo é forçado ao trabalho. Isto torna comum algumas características das duas categorias, “A servidão por dívidas ou “escravidão por dívidas” é uma característica particularmente proeminente das situacões contemporâneas de trabalho forçado”304. Já no contexto do “trabalho escravo” rural no Brasil, por exemplo, esta forma assume características típicas que não necessariamente as mesmas preconizadas acima, aqui a “escravidão” se efetiva por dívidas, é contratual, sazonal e não se baseia na filiação. Contudo, a Organização Internacional do Trabalho reconhece que os países empregam distintas terminologias para definir trabalho forçado, como é o caso brasileiro. Sendo assim, não há excludência nas conceituações, a OIT respeita as definições locais por conta das especificidades e não impõe uma nomenclatura únicas. Exemplifica a OIT: No Brasil, a expressão usual para referir-se ao aliciamento e a práticas de trabalho coercitivo em zonas remotas é “trabalho escravo”; todas as situações abarcadas por esta expressão estariam, em princípio, dentro do âmbito de aplicação dos convênios da OIT sobre o trabalho forçadoel Brasil305. Por este motivo é que muitos juristas preferem o termo “trabalho forçado” por esta expressão estar normatizada nos Convênios Internacionais da OIT, os quais se inserem no nosso ordenamento jurídico, ao passo que os ativistas optam pela expressão “trabalho escravo”, embora este termo não conste ispsis litteris do ordenamento jurídico pátrio ou internacional. Os ativistas, refrise-se, usam-no por entenderme que o vocábulo “trabalho forçado” pode, numa realidade de embate semântico, denotar uma “atenuante” para o problema real da “escravidão” como se ela fosse uma infração trabalhista e não um crime contra a dignidade e liberdade do trabalhador, embora não seja esta a intenção normativa da OIT. Entretanto, reconhecendo a legitimidade das diferentes denominações nacionais a OIT reafirma a adequação de denominaçao de “trabalho escravo” convencionada no Brasil e traça uma orientação no sentido de uma conceituação universal básica para o “trabalho escravo”. É imprescindível que esta prática seja tipificada como um delito grave e é necessário um conceito universal no qual se reconheçam os princípios fundamentais da liberdade do trabalho e se proporcionem salvaguardas contra a coação. Novos escravos e velha escravidão entre o moderno e o arcaico. Há um sentimento de desprezo pela dignidade do peão, este escravo em potencial, uma negação de suas estratégias de reconhecimento o que acaba por revelar que para o patrão ele é mesmo afeito à servidão. 304 305 - ibid. p. 08. Tradução minha. - ibid. p. 09. Tradução minha. 99 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Para o patrão e para o “gato” o trabalho degradante ainda é melhor do que as condições em que o encontrou o peão. O gato tira-o do contato com o álcool, das farras e brigas, do entreguismo de suas economias e salários para as casas de prostíbulos. Enfim, Aristóteles estava certo nesta perspectiva sutil e implícita do empregador, a “natureza” do peão é mesmo o ermo duro das matas, o labor o amansa, ou pelo menos lhe dá uma chance. O peão está “rodado”, literalmente, fragilizado e vulnerável, só ou em grupos, sujo e sem condições para voltar para casa, dormindo em postos de combustível, vagando por entroncamentos ou bares das periferias. O “gato” os alicia nestas condições. O aliciador estabelece uma cordialidade inicial rodeada de uma certa autoridade, mas também com um tom patriarcal, protetor. É ele quem vai alimentar, pagar quarto do hotel barato e transportar o peão até os ermos das matas, aí já distante a cordialidade se esvai. Embora, ela possa se restabelecer ou se tornar mútua. Fato que se verifica quando trabalhadores resgatados reincidem em trabalhos escravizantes e indignos e são novamente resgatados e outros que se negam a depor contra o gato por causa da consciência de uma dívida moral para com o gato ou o patrão que o serviu na hora em que ele, o peão, estava perdido, “rodado”. Esta cordialidade de contato nos lembra Sérgio Buarque de Holanda, quando afirma: Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo facto de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intacta sua sensibilidade e suas emoções306. Como assinala Ricardo Rezende Figueira - pesquisador que talvez como nenhum outro se aproximou da “alma” do peão pela sua condição de padre de uma paróquia da região sul do Pará, cuja incidência de trabalho escravo e conflitos de terra é notória - o peão se iguala aos “forasteiros outsiders” de Elias e Scotson, é “sempre estrangeiro307”, um segregado, suspeito, não tem vínculo de parentesco com os moradores da região, é desqualificado com termos pejorativos de pinguços (beberrões), valentes (brigões), sujos, preguiçosos e desonestos. “ ‘Os peões do trecho’ ”, afirma o autor fazendo referência a Esterci e Martins, “sofriam um processo de desqualificação social de tal natureza (...), que carregavam a mesma sina de 306 - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p 150. - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra - , – a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo p. 111. O autor afirma que no período de 1997 e 2002, foi constatado que 91% dos trabalhadores escravizados no Estado do Pará eram migrantes, os outros 8,1% eram paraenses, citando pesquisa realizada pela OIT, Ana Souza Pinto e Maria Antonieta Vieira. 307 100 Jorge Luis Ribeiro dos Santos segregação e desprestígio que as prostitutas, eram considerados uma ameaça para as famílias308. Porque ele é um aventureiro, diferente do trabalhador fixado, e, como frisa Sérgio Buarque de Holanda, Existe uma ética do trabalho assim como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, ter por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa de mundo, característica desse tipo309. A prática escravocrata nestas circunstâncias se revela, mas nunca é admitida, sempre dissimulada, às vezes pelo próprio silêncio do peão por vergonha, ou receio. O peão, por conta desta tensa relação segregadora, nas ocasiões em que poderia contar com a solidariedade do meio não a tem pois é visto com reservas e desconfiança pelos moradores e trabalhadores fixos. “O sentimento de que é justa e legítima a coerção”, conclui Ricardo Rezende Figueira, “pode ser compartilhado por parte da sociedade envolvente e mesmo por autoridades”310 quando a realidade do trabalho escravo só se revela na instrumentalização do trabalhador lá na mata, longe do direito e da dignidade do trabalho. Salienta Alessandra Gomes Mendes que A escravização representa o isolamento, o não pertencimento do escravo a quaisquer laços primordiais, cívicos ou sagrados anteriores, resultante de uma transmigração, de um alheamento de sua rede original de relações, resumindo-se seu presente vivido às suas relações pessoais e não mediadas com senhor. O ponto central é o fato de que todas as formas de escravização implicam necessariamente, em uma profunda negação da dignidade humana do escravo. o escravizado assume, durante a interação social, uma face de ‘morte social’311. Por isso a dissimulação é regra, necessária e vital para a viabilização da exploração. O patrão hoje, diferentemente do senhor escravista antigo ou clássico não estabelece vínculo proximal com o “escravo”. Aliás, ele abomina a presença dos trabalhadores. Mesmo naquelas fazendas que às vezes é domicílio temporário do patrão, este não permite que os peões rondem ou ergam barracos de lona ou palha de palmeiras nos arredores da sede da fazenda. Há que haver uma segura distância entre a “senzala moderna” feita de palha de babaçu no meio da mata e a “casa-grande” que pode ser num apartamento luxuoso numa capital qualquer 308 - ibid. p.142,145. - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 28, 29 310 - FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra – a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. p. 394. 309 101 Jorge Luis Ribeiro dos Santos ou uma mansão da cidade. Se por um lado a invisibilidade do indigno posta pelo distanciamento se poderia explicar como uma proteção do patrão e de seus familiares contra a “contaminação” da presença repugnante do peão (geralmente sujo, barbado, mal-encarado, não confiável, brigão, perigoso, gente do trecho, rodado e beberrão) uma vez que a intermediação no trabalho é feita pelo gerente, capataz ou fiscal da fazenda diretamente com o “gato” e deste com o peões, ela revela também o próprio distanciamento da relação jurídico-trabalhista, de vínculo laboral, do qual o empregador quer se eximir, ou manter na clandestinidade, funciona ainda como um recurso de acobertar, talvez, o próprio peso da consciência moral e social que a visibilidade das condições que o trabalho degradante e escravo lhe impingiria. Darcy Ribeiro em suas reflexões sobre a formação social do Brasil conclui que a influência da escravidão sobre a sociedade brasileira deixou marcas indeléveis sobre todo um sistema de relações tipicamente autoritário do brasileiro. Aplicada à realidade amazônica e ressalvados os riscos de se cair na mera estigmatização, este aspecto da gênese sócio-econômica do Brasil é emblemática: Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria312. O Brasil padece, dentre outras, desta triste ambigüidade, é moderno em suas grandes metrópoles e grandes feitos tecnológicos e científicos e arcaico em suas desigualdades de formação e estruturação social. Como afirma José de Sousa Martins Os arcaísmos recrudescem porque são estruturais e permanentes, constitutivos do nosso modo de vida. A civilização e o moderno são apenas delgada película de civilidade recobrindo endêmicas formas de nosso atraso. O atraso cumpre poderosas funções políticas e econômicas no Brasil. Estou me referindo aos arcaísmos como agentes ativos da nossa precária modernidade. Não são resíduos do passado e sim ingredientes do presente313. 311 - MENDES, Alessandra Gomes. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: interpretando estratégias de dominação e de resistência. p. 43. 312 - RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. p.120. 313 - MARTINS, José de Sousa. A vitalidade do Brasil arcaico – Jornal O Estado de São Paulo - 20/02/2005. 102 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Jessé de Souza, complexifica esta questão e aponta para um aspecto da modernidade seletiva. Para o autor o “Brasil não é um país moderno e ocidental no sentido comparativo de influência material e desenvolvimento das instituições democráticas. Mas, é um país moderno no sentido ocidental do termo, se levarmos em conta que os valores modernos ocidentais são os únicos aceitos como legítimos. Esses são os nossos valores dominantes e é isso que explica o fascínio do tema da modernização entre nós. Para a imensa maioria da legião de párias urbanos e rurais, sem lugar no novo sistema, produto de séculos de abandono, a desigualdade aparece como um resultado natural, muitas vezes percebido com fracasso próprio. Essa atitude parece-me típica da forma do tratamento respeitoso que a imensa maioria das pessoas do povo dedica aos seus compatriotas da classe média314. E a neo-escravidão é o mais repugnante exemplo deste arcaísmo seletivo presente na sociedade brasileira, arcaísmo sob o qual a escravidão se ancora tão tenazmente. Numa visão macro-econômica a escravidão contemporânea se reproduz e permanece e contraditoriamente está mais presente nos aspectos modernizadores e comportamentais da atualidade em nossas vidas do que pensamos, como constata Bales: Os escravos no Paquistão podem ter fabricado os sapatos que nós calçamos e o tapete que pisamos. Os escravos das Caraíbas podem ter posto o açúcar na nossa cozinha e os brinquedos nas mãos dos nossos filhos. Na Índia, eles podem ter cosido a camisa que vestimos polido o anel do nosso dedo. E não lhe pagam nada. Os escravos também tocam também indiretamente as nossas vidas. Eles fizeram os tijolos para a fábrica que produziu a o aparelho de TV que vemos. No Brasil, os escravos produziram o carvão que temperou o aço que fez as molas do nosso carro e lâmina do cortador da relva. (…). A sua carteira de investimentos e o seu fundo mútuo de pensões possuem títulos de empresas que utilizam trabalho escravo no mundo em vias de desenvolvimento. 315 Os escravos mantêm baixos os seus custos e altos os lucros dos seus investidores. Destarte, o "trabalho escravo" na realidade contemporânea da região Sul e Sudeste do Pará constata as novas acomodações do trabalho nas sociedades capitalistas modernas, que vez mais se precariza e portanto não é um mero produto do passado mas está inserido na ordem capitalista global onde maximiza-se lucros e minimiza-se custos de produção. 314 315 - SOUZA, Jessé de. A modernização seletiva. Uma interpretação do dilema brasileiro. p. 267. - BALES, Kevin. Gente Descartável. A nova escravatura na economia global. p. 12. 103 Jorge Luis Ribeiro dos Santos O futuro da Amazônia no limiar do século XXI passa por estes dilemas e desafios a serem superados em plena ascensão do capitalismo globalizado. Enquanto não se pensar formas contra-hegemônicas e includentes de produção de trabalho e reestruturadoras da cidadania e da dignidade o movimento da força de trabalho na região irá sempre esbarrar no circuito insidioso do “trabalho escravo”. Como já ressaltado não se pode perder de vista uma visão amplificada do problema, pois, a escravidão atual é também sinal da precarização do trabalho gestado no remodelamento das relações de produção ditadas pelo novo liberalismo que mundializa eficazmente a produção, remessas monetárias, comércios, lucros, mas não globaliza direitos. Porém, como bem recomenda o Relatório 2005 da OIT “não se pode lograr uma mundialização justa e trabalho decente para todos se antes não se erradica o trabalho forçado”316 (tradução minha). E no contexto da Amazônia sudeste paraense estas considerações são fundamentais. Como firmou Alex de Mello Fiúza317 as soluções terão de repousar em formas inovadoras e inéditas de articulação das capacidades humana, cada vez mais sinérgicas, cooperativas, translocais. Grandes e urgentes questões, como a ecologia, a fome e a exclusão social, passam a exigir não apenas um patamar também global de ação, mas igualmente, um novo modelo de internacionalismo (ou trans-nacionalismo), indutor de uma ordem mundial mais justa e democrática. E tudo isso emoldura o que hoje pode ser concebido como a “nova questão amazônica”. Os sujeitos submetidos ao novo “trabalho escravo” É ambígua a relação senhor-escravo na antiga cultura escravocrata brasileira e, portanto, não menos contraditórios os elementos que esta herança irá impingir na formação da sociedade brasileira moderna. Jessé de Souza, estribado nas conclusões que faz Ricardo Benzequem de Araújo sobre a influência maometana na escravidão brasileira em Gilberto Freire, analisa a proximidade do escravo brasileiro contraposto ao escravo máquina norte-americano. A escravidão brasileira, concordam os autores, é violenta como qualquer outra escravidão, mas, ao contrário da escravidão americana, por exemplo, ela admite proximidade e influência recíproca entre culturas dominante e dominada. Esta é a tese de Gilberto Freire em sua Casa Grande e Senzala. Assim teríamos, paralelamente à imensa violência e perversão inerente a toda sociedade escravocrata um componente de “proximidade” explicando o caráter sincrético de nossa cultura em oposição à “pureza” da cultura grega antiga, que pouco foi tocada pelas culturas dominadas. O componente de “proximidade” entre 316 - OIT, Una alianza global contra el trabajo forzoso. Genebra, 2005. p 3 - MELLO, Alex Fiúza. O futuro da Amazônia no Limiar do Século XXI. In O Futuro da Amazônia: dilemas, oportunidades e desafios no limiar do século XXI. MELLO, Alex Fiúza (org.). p. 26. 316 104 Jorge Luis Ribeiro dos Santos senhor e escravo é visto como influência cristã, o qual se contraporia polarmente ao elemento “despótico oriental” herdado dos mouros, como dois aspectos da “bicontinentalidade” portuguesa318. Este “sadomasoquismo social” que imbrica distância e proximidade em Gilberto Freire é resultado do sadismo “do conquistador sobre o conquistado, de senhor sobre o escravo” e está ligado à “circunstância econômica de nossa formação patriarcal”. Mas ligado ao sadismo de senhor está o masoquismo do escravo, salienta Freire. Para além da vida privada e doméstica este sadomasoquismo, através de nossa formação, atinge campos amplos como o social e político visto que “a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado no sadismo e do mando, disfarçado em “princípio de Autoridade” ou “defesa da Ordem””319. O diagnóstico de Freire é acertado - a despeito de suas criticadas conclusões de benefícios do “equilíbrio” destas circunstâncias para formação cultural do brasileiro - se aplicado à escravidão atual, mas com a ressalva de que na escravidão atual não há e nem pode haver proximidade entre senhor e escravo, por razões já levantadas. Porém, “se as condições socioeconômicas específicas ajudam a compreender o caráter despótico e segregador do patriarcalismo, o que dizer do elemento de “proximidade” em se tratando da sociedade escravista brasileira antiga? Indaga Jessé de Souza, ao que o próprio responde: Em parte, o próprio conceito de sadomasoquismo implica “proximidade” e alguma forma de “intimidade”. Intimidade de corpo e distância do espírito, sem dúvida, mas de qualquer modo ‘proximidade”. E efetivamente grande parte da relação entre senhores brancos e escravos negros, como vimos anteriormente, se realizava sob essa forma de contato “íntimo”. No entanto, Freire refere-se, simultaneamente, a uma proximidade “confraternizadora” entre portadores de culturas dominante e dominada320. Esta proximidade era contraditória num “misto de proximidade e distância”. Uma “proximidade física e sexual dos escravos (...) e distância psíquica e emocional, na medida em que o não-reconhecimento da humanidade dos subordinados era uma contrapartida necessária para a própria manutenção da relação de dominação do escravismo”321. Ao passo que hoje, no “trabalho escravo” contemporâneo só prevalece a distância mais distante possível para a total invisibilidade da humanidade do trabalhador para viabilizar a isenção e irresponsabilização social, penal e trabalhista do “senhor” que torna-se um ente impessoal e abstraído e apartado da relação deixada sob a responsabilidade da rede de prepostos que passa pelo gerente, pelo empreiteiro, pelo subempreiteiro e pelo gato. Dito isto e diante das razões precedentes, é possível aplicar-se um conceito de “trabalho escravo” à realidade de trabalho involuntário nas condições fartamente descritas, ou seja, designá-lo como “trabalho escravo”? Em ressonância ao que afirma José de Souza Martins, sim. No Brasil, assegura Martins, tivemos 318 - SOUZA, Jessé de. Modernização Seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. p. 221, 223. - FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. P. 50, 51. 320 - SOUZA, Jessé. Modernização Seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. p. 231. 321 - ibid. p. 255, 256. 319 105 Jorge Luis Ribeiro dos Santos vários tipos de escravidão, desde a escravidão negra do século XIX, até “servidões subjetivas” que duram até hoje como a peonagem, a escravidão por dívida. “Na verdade nós temos uma dívida não paga (...) que é a herança da estrutura escravista da sociedade brasileira que persiste” e é justamente esta mentalidade que explica a “mentalidade dos envolvidos nesse processo”322 de escravidão no Brasil, hoje. Sérgio Buarque de Holanda quando escreveu “As raízes do Brasil” talvez não estivesse em mente necessariamente o trabalho escravo contemporâneo, mas sim as raízes das desigualdades do Brasil e a escravidão, pode-se afirmar, é o extremo a que chegamos (ou extremo que acompanha nossa história) desta desigualdade. Uma característica apontada por Holanda, é a constância da escravidão se manifestar na grande agricultura - embora já não se restrinja a ela. Constata o autor que “a grande lavoura, conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdulária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamente, ela seria irrealizável” 323. De fato, aplicada à realidade da expansão da fronteira amazônica, a mão de obra escrava foi fator preponderante para a reprodução agropastoril capitalista na região. A Escravização “temporária por dívidas” imobilizou cerca de 400 mil trabalhadores na expansão agropecuária na Amazônia, principalmente “trabalhadores aliciados” no nordeste “por meio de dívidas manipuladas e irreais” os quais eram “submetidos a formas degradantes de trabalho, violência física e coação moral” o que causou a “impressão de que a expansão econômica da fronteira fazia de todos cúmplices e beneficiários do trabalho servil em face de um Estado indiferente e até mesmo conivente.”324 Portanto, tendo-se em vista a persecução, ainda subsistiria alguma inadequação terminológica em denominar estes trabalhadores de “escravos”? Para Gorender O empregador contemporâneo não compra o operário, mas contrata com ele o fornecimento de sua força de trabalho por determinado tempo. A existência do servo é simultaneamente pressuposto e decorrência da propriedade dominial. Já o escravista só terá o escravo se o adquirir e para tanto deve realizar um investimento, um adiantamento de recursos. Esta inversão prévia – a inversão inicial de aquisição do escravo – constitui categoria econômica absolutamente específica do escravismo325. Gorender faz aqui uma distinção econômica para delimitar as diferenças básicas entre servidão, escravismo e trabalho livre. No escravismo clássico, em sua referência, o produtor faz um investimento prévio, ou seja, adquire, compra o escravo, isto especifica o modo de produção escravista. Claro que não faz parte da análise de Gorender as formas de trabalho compulsório atuais, mas esta aproximação será feita por José de Souza Martins. Martins explicita uma face econômica reveladora na compreensão do “trabalho 322 - MARTINS, José de Souza, in: Anais da I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo. p 77. - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 34. 324 - Anais da I Jornada Contra o Trabalho Escravo. p. 09 325 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. p. 165. 323 106 Jorge Luis Ribeiro dos Santos escravo” contemporâneo, cujo desdobramento conceitual legitima ainda mais o modelo explicativo deste na contemporaneidade. O “trabalho escravo” atual se utiliza de modos pré-capitalistas sem deixar de ser uma escravidão dentro do modo capitalista de produção. A escravidão atual encontra sua base de explicação no “cenário econômico-social da sociedade brasileira”. Para o autor existe uma base econômica que justifica a escravidão na teoria da composição orgânica do capital. A composição orgânica do capital resulta das proporções de capital constante, isto é, máquinas, matérias-primas, e matérias auxiliares cujo valor não se altera no processo de produção (...) e de capital variável que é o valor da força de trabalho (...). Quanto mais alta a proporção de capital constante em relação à capital variável na composição orgânica do capital total, maior o desenvolvimento capitalista da produção, mais moderno e mais eficaz e maior capacidade de o empreendimento reter os ganhos adicionais do processo produtivo. (...) Quanto maior a participação do valor da força de trabalho na composição orgânica do capital total, mais baixa será a composição orgânica e menor o desenvolvimento capitalista que nela se expressa, isto quer dizer, uma empresa que gasta 80% do capital com salário é uma empresa de baixíssima composição orgânica de capital”.326 É inteiramente moderna e empresarial esta forma produtiva que usa mão-de-obra escrava e que usa uma “lógica estritamente capitalista” mediante a redução dos custos de produção baixados quase a zero pelo uso da mão de obra escrava. Por conta disso, paradoxalmente, de “maneira estritamente não capitalista” ao usar uma “lógica atrasada” de produção de lucro, desumana, predatória, servil, que é aquela efetuada por meio da escravidão. O “trabalho escravo” permitiu a a expansão econômica na região Amazônica” por quase quarenta anos. “O trabalho escravo permitiu que capitais com baixa composição orgânica funcionassem como capitais de alta composição orgânica e tivessem um lucro de capitais de alta composição orgânica. Isto só foi possível pela “supressão do salário” que produziu o “trabalho puro”, trabalho este “desprovido de humanidade, que é a humanidade do trabalhador”327, isto é, produziu o escravo. E esta situação se materializa de forma contundente conforme relato resgatado por Binka le Breton, em obra documental que perfaz a cadeia da escravidão nas fazendas do Sul e Sudeste do Pará: Eliseu disse que tinha 23 anos, mas parecia mais jovem. 326 327 - MARTINS, José de Sousa. Anais da I Jornada Contra o Trabalho Escravo. p. 81, 82, 83. - ibid. p. 84. 107 Jorge Luis Ribeiro dos Santos ‘Foi em 98’, começou. ‘Ouvi dizer que estavam procurando gente para trabalhar no Pará, e decidi ir. O pagamento era bom, seis reais por dia, e ainda davam um abono. Pagaram a passagem de ônibus, mas eu não sabia que teria que devolver para eles depois. Tomamos um ônibus para Redenção e lá eles nos amontoaram num caminhão de gado. Tinha muito peão na fazenda; uns 120, era o que diziam. Quarenta eram de Guaraí. Trinta e seis no meu time e nos colocaram para bater pasto. A gente morava em barracas de plástico e, no começo era divertido. Só depois foi que a gente ouviu que eles não iriam deixar a gente ir embora até terminar o trabalho. Antes, eles tinham combinado que a gente poderia ir para casa no natal, mas aí o gato mudou de idéia. Tinha três fiscais: Zé Maria, Índio e Antônio Luis. Andavam armados. Eles diziam para a gente se calar e fazer o serviço ou a gente ia se arrepender. A gente pensava que era só conversa, mas um dia a gente viu que não era. Dois dos caras tentaram fugir, mas foram pegos e meteram um revólver na boca de um deles. Foi aí que a gente começou a ficar com medo de verdade. A gente tinha que comprar tudo na cantina, comida, ferramentas e outras coisas, e eles cobravam o dobro do preço normal. Depois de dois meses, já estava começando a me perguntar se jamais iria conseguir pagar minha dívida, quando, de repente, os Federais chegaram. Foi como se fosse um milagre’.328 Como se depreende do relato acima o aliciamento e a “imobilização por dívida adquirida”, também chamado “debt bondage ou debt peonage”, denominação proposta por Tom Brass, caracterizam a escravidão contemporânea a qual se configura “como uma típica relação de poder, marcada pela assimetria e pela arbitrariedade dos patrões”, uma “forma de dominação pessoal compondo situações de interação social”, é o que afirma Alessandra Gomes Mendes em tese sobre o tema. Para a autora o trabalho escravo apresenta “uma combinação complexa” de “formas e situações” de aliciamento, dívida, promessa, fraude e costume, com base numa “das mais extremas formas de dominação, aproximando-se dos limites do total isolamento e vulnerabilidade”.329 No entanto, o que diferencia o trabalho livre da escravidão é que nesta o trabalhador é mercadoria e não o seu trabalho ou força de trabalho como é no trabalho livre. Este é para Finley o distintivo que identifica o trabalhador compulsório do trabalhador livre. E é esta definição, a rigor que afastaria o empréstimo do termo “trabalho escravo” para identificar atípicas relações laborais compulsórias na atualidade, denominação da qual retraem alguns historiadores, antropólogos e sociólogos, mais normativistas, diante desta incômoda categoria recém-criada de “trabalho escravo” largamente utilizada, principalmente, por ativistas sociais, apesar de ser vista com certa relutância semântica pelo positivismo jurídico e pela retórica científica. Todavia, o próprio fato de não se ter um construto teórico que contradiga o uso do termo “trabalho escravo”, ou que 328 - BRETON, Binka le. Vidas roubadas: a escravidão moderna na Amazônia brasileira. p. 108, 109. 108 Jorge Luis Ribeiro dos Santos afirme sua inadequação (sociológica, científica, terminológica) podem atestar uma suposta e silenciosa inexistência. Ou até mesmo a impossibilidade de assim ser denominada a relação de “trabalho escravo”, uma vez que é a escravidão uma instituição fora da realidade histórica contemporânea e uma categoria histórica definidora de uma situação extinta. 329 - MENDES, Alessandra Gomes. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: interpretando estratégias de dominação e de resistência. p. IX (resumo), 14, 16. 109 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Conclusão Antes das considerações finais desta investigação pode-se afirmar que as pesquisas em relação ao problema são ainda incipientes, portanto, quaisquer conclusões são ainda provisórias e refletem aspectos de constantes construtos que ainda suscitam o fenômeno. Por conseguinte, ponderadas as limitações do trabalho e a parcialidade destas conclusões, inicialmente, conclui-se, que o fenômeno do "trabalho escravo" contemporâneo, na realidade da fronteira agropecuária do Sul e Sudeste do Pará, atesta a constatação da crescente precarização do trabalho nas sociedades modernas, portanto não é um fenômeno do passado, mas produto da sociedade atual e está perfeitamente inserido na ordem capitalista global. Neste sentido configura-se numa forma extrema e atípica precarização laboral assim como o extremo a que ousou a maximização de lucros e minimização de custos no processo produtivo. No aspecto produtivo ele é preconizado pela monocultura e se insere na reestruturação e desenvolvimento do capitalismo na Amazônia como produto direto ou indireto de políticas públicas implementadas ao longo dos últimos trinta anos com vistas a “inserir” a Amazônia, considerada como “espaço vazio” e lugar do atraso, na “modernidade”. Com base nestas premissas a exploração humana ganhou caminho fácil para tomar forma de superexploração até chegar ao limite da escravidão humana e a degradação indiscriminada e desenfreada dos recursos naturais. É segundo esta lógica que a globalização tem significativas influências no fenômeno - não só no contexto estudado na pesquisa como também na escravidão no mundo globalizado – como fator intensificador e reativador de formas de trabalho compulsórias “teoricamente” extintas. Os produtos da escravidão como o couro, a carne, o leite e seus derivados, a madeira, o carvão, etc., são de índole agro-exportadora, daí afirmarse que a economia escravista da Amazônia está inserida na moderna economia global. Embora não fosse este o intuito central da pesquisa pode-se elencar algumas causas, além das desigualdades econômicas, para o “reaparecimento” deste retrocesso histórico da escravidão - embora este aspecto também extrapole os limites desta pesquisa - tais como: a impunidade, o desconhecimento de direitos, o analfabetismo, a escassez de mãode-obra, a distância dos centros urbanos e a ausência do Estado. O que gera, dentre outras conseqüências, o empobrecimento, o abandono de culturas, a degradação humana e ecológica. Contudo, o “trabalho escravo” é uma faceta metamorfoseada da escravidão clássica e moderna que sempre encontrou caminho de continuidade nos sistemas de exploração humana em diferentes contextos históricos e geográficos, a despeito do direito e das liberdades laborais inscritos nas constituições da grande maioria dos países do mundo e também no direito internacional. Em resposta aos objetivos propostos, buscou-se no processo de desenvolvimento da pesquisa a construção de um conceito de “trabalho escravo”, concomitantemente à persecução da afirmação de sua adequação designativa das relações laborais indignas e coercitivas verificadas no contexto do sul e sudeste 110 Jorge Luis Ribeiro dos Santos paraense a partir de uma ampla investigação bibliográfica que se pretendeu interdisciplinar no intuito de abranger o complexo fenômeno do “trabalho escravo” contemporâneo. Na primeira parte da pesquisa reportou-se às prerrogativas da gênese do escravismo antigo a qual permitiu a análise do problema do ponto de vista histórico, econômico, político e filosófico enquanto fator preponderante para a formação das sociedades antigas e modernas ocidentais. É difícil imaginar a Grécia, Roma e a Europa feudal sem a mão-de-obra escrava e servil respectivamente para produzir os bens necessários à sobrevivência e acúmulo econômico dos outros estratos sociais de cada sociedade em cada época. A escravidão era uma instituição tão hegemonicamente “natural”, comum, aceita e consensual que chegou marcadamente entranhada na alma do homem moderno que não é difícil imaginar sua continuidade durante o surgimento e consolidação do capitalismo moderno que teoricamente tornou o homem livre para dispor de sua força de trabalho. Talvez daí derive a conclusão de que o escravismo não se interrompeu com o nascimento da nova categoria de assalariados, nem com a abolição legal do cativeiro escravista. Mas vestiu-se de novas e adaptadas roupagens contratuais (formais ou informais) por que não pôde se livrar de uma concepção de gênese autoritária e desigualizante que concebe algumas categorias de seres humanos como inferiorizados, por isso exploráveis. Ela continuou sendo o extremo da desigualdade humana, porém, agora muito mais econômica do que racial, diversa do que era o trabalho escravo de outrora. Esta é uma assertiva firmada quando objetivou-se tecer o histórico do trabalho subordinado compulsório situando o trabalho escravo contemporâneo como resquício ainda persistente. Ou seja, o estatuto de igualdade não prevaleceu nas décadas que sucederam a abolição da escravatura e homens e mulheres, na prática, continuaram sendo tratados como coisas, como propriedades, mesmo que antijurídicas, mas propriedades, ainda que de “uso” e “usufruto” temporário. O regresso da investigação às formas históricas e justificações filosóficas de subjugo humano ao trabalho compulsório, as quais ancoram-se em Aristóteles, buscou explicitar os fundamentos éticos que justificavam o trabalho subordinado compulsório em outras épocas e explicam a existência do trabalho escravo hoje no Brasil. A persecução de elucidar estas características firma ao final que o “trabalho escravo” atual deve ser tributado à herança desigualizante presente em todas as épocas e contra as quais encontramos (felizmente) vozes que se opõem, sejam nos discursos anti-escravistas dos adversário de Aristóteles, seja nos sermões e nas teses dos jesuítas e dominicanos contra escravidão de índios, seja nos humanitaristas modernos e contemporâneos. Aqui verificamos que em todas as épocas houve embates teóricos e éticos sobre a escravidão. Em alguns momentos prevaleceu a ética humanitária da igualdade natural e liberdade natural do ser humano, como nos mostra a contenda entre Las Casas e Sepúlveda em Valladolid em 1550, por ocasião da escravização dos indígenas nas Américas, pelo menos teoricamente. Porém, imperativos comerciais e econômicos prevaleceram a despeito de prerrogativas legais normatizadas que nasceram inspiradas nas idéias libertárias de Las Casas e Francisco de Vitória. No entanto, os humanistas nunca deram trégua aos escravistas na exposição do extremo contraditório desumanizante que constitui a escravidão. E aqui já se pode apontar para o terceiro e último objetivo perquirido que foi identificar e analisar os argumentos que negam a existência de escravidão nas relações trabalhistas existentes nas fazendas da região 111 Jorge Luis Ribeiro dos Santos sudeste do Pará, bem como a possível inadequação da terminologia “trabalho escravo” no sentido de evidenciar, como ficou constatado no último capítulo, a negação tácita ou não, do “trabalho escravo”. Hoje já não se defende a escravidão, ninguém em sua lucidez defenderia tal relação de trabalho ou emprego. Porém, muitos tentam silenciá-la ou negar sua existência, baseados em pura abstração normativa ou desvirtuamento da realidade o que elucidaremos pormenorizadamente ao longo desta conclusão por estar a parte final deste objetivo ligado ao problema central e objeto geral desta pesquisa. Portanto, entende-se que, seguindo a investigação conceitual aqui proposta e com base teórica nos vários estudos antecedentes extraídos dos elementos presentes nas relações de “trabalho escravo” que minimamente procurou-se expor, firmou-se a tese de que a denominação de “trabalho escravo” não comporta inadequação científica quando quer significar a relação laboral indigna e degradante e na qual o indivíduo perde a liberdade sobre seu corpo e sobre seu trabalho por motivos de dívida, coerção física ou moral. É, portanto, uma categoria aceitável própria para designar este estado de trabalho sem relutância teórica. Entretanto, conceituar um objeto não é tarefa simples e nem tão útil assim, posto que uma conceituação tende a fechar em si seu próprio limite e do objeto em questão. Talvez poderia ser mais apropriado falar-se em funções destas conceituações, como proferiu Ela Wiecko Castilho330, ao destacar três fatores distintos nas conceituações de trabalho escravo. Primeiro: o aspecto político do conceito, o qual denota o discurso da denúncia com força de convencimento social e eficácia política, impactante e indignador. Neste sentido trabalho escravo é aquele que causa indignação, mutila a dignidade e cidadania, prende o trabalhador nos ermos das florestas, impede-o de livremente dispor de sua força de trabalho. Neste sentido “trabalho escravo” seria uma metáfora para o inaceitável, como define Neide Esterci. O segundo aspecto que tenderia a um conceito com valor instrumental jurídico onde os direitos humanos, a dignidade humana, o status libertatis, e mais que este, o status dignitatis do ser humano, seriam as premissas maiores violadas nos estados de degradância no trabalho, nos crimes contra a organização do trabalho amplamente tipificadas e previstas, seja no CPB (Código Penal Brasileiro), na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), na Constituição da República ou nos Convênios e Pactos Internacionais dos quais o Brasil é signatário. E por fim, o aspecto acadêmico ou científico do fenômeno, que parece abranger os dois primeiros. Isto por resgatar aspectos para além daqueles normatizados e conceituar o fenômeno a partir de vários núcleos interdisciplinarizados, tais como: a ausência de liberdade, o direito de dispor de si mesmo, a ampliação da situação de coisificação da pessoa dificilmente atingida pela lei positiva, a instrumentalização da pessoa, a ética do trabalho e o trabalho da ética, o trabalho digno em contraposição ao trabalho digno, o ultraje à condição humana, a analogia da neo-escravidão com a escravidão antiga. Além de abranger elementos como a estrutura social hodierna do trabalho que facilita relações escravizantes, a desonra, o rebaixamento humano, a sub-cidadania e sub-humanidade nas franjas da globalização. Enfim, uma categoria com existência para além da lei que seja útil na interpretação e aplicação da norma penalizante sobre as infrações das regras do trabalho 330 - CASTILHO, Ela Wiecko. Palestra proferida no Seminário Internacional sobre Trabalho Escravo. Rio de Janeiro – UFRJ – 07 a 10 de novembro/2005. 112 Jorge Luis Ribeiro dos Santos e a repulsa ética deste estado de relação causa. Este parece ser um conceito que expõe implicitamente uma metodologia de enfrentamento por elucidar a necessidade de re-humanizar o trabalho humano. Postos os alicerces nesta visão, o “trabalho escravo” rural contemporâneo, circunscrito na limitação geográfica da mesorregião do sudeste paraense, tem suas semelhanças e especificidades dentro da complexa rede de manifestação da escravidão contemporânea. Em outros termos, manifesta-se com uma faceta metamorfoseada da escravidão clássica e moderna que sempre encontrou caminho de continuidade nos sistemas de exploração humana em diferentes contextos históricos e geográficos, a despeito do direito e das liberdades hoje em vigor no mundo. Não se restringe o fenômeno a trabalho degradante, em trabalho precário, ou tampouco a trabalho hipo-remunerado. Contudo, pode apresentar estas características e outras especificidades além destas. Mas os núcleos móveis do trabalho escravo contemporâneo rural que se manifestam na região são: o cerceamento da liberdade de deixar o local de trabalho em conseqüência de alguns fatores como a dívida adquirida no decurso do trabalho e até antes mesmo dele, o isolamento geográfico dos locais de trabalho e a vigilância armada ou de qualquer outra forma intimidatória sobre os trabalhadores, as quais de uma forma ou outra coagem o trabalhador a permanecer involuntariamente no serviço e podem se manifestar conjunta ou isoladamente na efetivação e materialização do fenômeno. Assim como, dependente ou independentemente se manifestam também nos estados de degradância humana a que são submetidos estes trabalhadores, condições estas reveladas nas insalubres situações de habitação, higiene, alimentação, falta de proteção para trabalho e jornadas exaustivas e sobre-humanas. A partir desta definição firma-se a convicção de que não só é legítima expressão trabalho escravo - e seus correlatos como “escravidão contemporânea”, “nova escravatura” ou “neo-escravidão” - como também é uma expressão adequada para definir e designar as situações enquadradas no trabalho escravo, como já fartamente explicitadas. Portanto, firma-se como um termo adequado para conceituar tais relações. Por outro lado não se tem conhecimento de algum construto teórico-científico que negue esta constatação, ao passo que cada vez é maior o número de pesquisadores que reafirmam a expressão trabalho escravo sem nenhum “pudor científico” ou restrição ao uso da expressão. Enfim, é trabalho escravo mesmo, agora sem aspas. Por conseguinte, considera-se que a presente pesquisa poderá apontar a compreensão de que a neoescravidão, sem banalizar as atrocidades e peculiaridades da escravidão antiga, tece com esta profundas relações hereditárias que ainda devem tomar corpo nas consciências sociais para ser definitivamente extirpada. E o conceito aqui trabalhado tem tão somente a pretensão de ser um contributo apto para explicitar e compreender um fenômeno que tem implicações filosóficas, éticas, sociais, econômicas e jurídicas. Neste sentido, é posto à utilização em investigações do problema em seus diversos campos de manifestação, seja social, filosófico, jurídico, antropológico, etc., pois, como afirmou José de Souza Martins, uma das coisas básicas ao se tratar do assunto do trabalho escravo é “ter uma consciência teórica”, pois, mais do que ter consciência moral sobre o problema, a teoria é fundamental331. 331 - MARTINS, José de Souza. O combate ao Trabalho Forçado no Brasil. Anais da I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo – 24 a 25 set. 2002. Brasília, OIT, 2003. p. 72. 113 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Contudo, algumas considerações se fazem pertinentes e que talvez apontem para as limitações da presente pesquisa: Primeira: faz-se necessário o questionamento mais aprofundado sobre a concepção ética do trabalho conseqüente dos modelos de desenvolvimento propostos para a Amazônia. A segunda é complemento da primeira lacuna, o que apontaria para o “surgimento” do trabalho escravo como conseqüência de políticas públicas implementadas na região nas últimas décadas. E por último, um resíduo inquietante quanto à questão conceitual: se definida a relação como trabalho escravo, seria conseqüente deduzir que os sujeitos desta situação sejam classificados como “escravos”, porém, ninguém quer esta identidade, ela rebaixa, avilta, e certamente envergonha por conta de sua carga própria de indignidade. O cuidado aqui está em, na melhor das intenções, o pesquisador atentar contra a própria dignidade daquele a quem quer defender. E por fim, o sujeito submetido à escravidão é vítima, mas também protagonista, não pode ser vitimizado. O protagonismo dele existe e pode ser investigado na sua fala, na sua experiência, no seu silêncio, na sua resistência. Esta talvez seja a principal questão aberta: como os sujeitos destas relações de trabalho escravo vêm a si mesmos nelas e as representam? 114 Jorge Luis Ribeiro dos Santos Referencial bibliográfico ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul.. São Paulo, Companhia da Letras, 2002 AÑOVEROS, Jesus María García. El pensamento y los argumentos sobre la esclavitud en el siglo XVI y su aplicación a los indios americanos y a los negros africanos. Madrid, Corpus Hispanorum de Pace, CSIC, 2000. ARISTÓTELES. Política. São Paulo, Martin Claret, 2004. ARISTÓTELES. A Política. São Paulo, Martin Fontes, 2002. 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