O desejo do psicanalista e a criança Leda Mariza Fischer Bernardino A questão do desejo do psicanalista não é uma questão simples. Desde que Lacan (1960-61) a propôs, como um contraponto ao discutível conceito de contratransferência que prosperou após Freud, vem levantando interrogantes dos mais diversos. A questão do desejo do psicanalista na análise de crianças levanta uma dificuldade adicional: seria legítimo propor esta especificidade? Afinal de contas, entende-se como desejo do psicanalista um dispositivo da transferência, elemento central na direção e no final da análise, no qual não está em jogo a idade do analisante. Entretanto, basta ter uma clínica com crianças para perceber que não discutir este “específico” seria passar ao largo da constatação de que, com a criança analisante, demanda, 57 PSICANALISAR CRIANÇAS transferência, final de análise, implicam as vicissitudes próprias de um sujeito ainda em constituição. Mesmo considerando que o atributo idade não cabe ao inconsciente, ou, como dizia Dolto (1984), que “os desejos não têm a idade da certidão de nascimento”, não há como negar que, em sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem, tal qual Lacan o propõe, a criança está em uma posição de mutação, num tempo que é ainda gerúndio no que se refere a esta estruturação. Nesta aquisição que a linguagem faz dela1, sua posição de responsabilidade em relação ao que diz ou faz enquanto ato ainda é sustentada pelo Outro. Colette Soler (1994) aborda algumas diferenças essenciais que marcam a análise de crianças. Primeiramente, aponta que não se trata de o analisante ser diferente, mas sim o que se tem para analisar, tendo em vista que a relação da criança com o sintoma (em termos freudianos) ou com o real (em termos lacanianos) é diferente. Ela levanta uma questão: “o analista pode enfrentar qualquer relação com o real e, mais precisamente, o desejo do analista pode operar sobre qualquer estado do ser?” (p. 8). Soler vai mais adiante e define um limiar para a psicanálise de crianças: “é necessário uma criança já sujeito” (p. 8). Como o sujeito é resultante de uma construção, que passa primeiramente pela ocupação de um lugar de objeto perante o desejo do Outro, segundo esta autora, “não se pode falar da psicanálise de crianças no sentido próprio sem questionar, para cada criança, o estado de efetuação da estrutura que ela apresenta” (p. 9). Vale ressaltar que esta afirmação apresenta um viés muito interessante para a discussão sobre a decisão da estrutura ainda no tempo da infância. A nuance colocada na efetuação em relação à estrutura que a criança apresenta, abre caminho para a idéia de que haveria um tempo, o da infância, em que as instaurações se fazem, mas precisam ser confirmadas só-depois. Isso implica não somente uma lógica de linguagem, mas necessariamente um desenvolvimento — o qual remete às noções de crescimento e maturação — mesmo que concebido a partir do movimento de desejo do Outro, que o comanda 58 O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA desde fora. Somente neste segundo tempo seria possível considerar a definição de uma estrutura2. Soler chega a afirmar que há “uma posição da criança incompletamente decidida no que diz respeito ao gozo” (p. 11). Ela se aproxima assim de autores mais clássicos, da psiquiatria atravessada pela psicanálise, como Lang (1979) ou Misès (1978), bem como de psicanalistas contemporâneos como Rassial (1997) e Jerusalinsky (1993), que apontam o momento da adolescência — com a possibilidade real e o chamado social de assunção da sexualidade propriamente dita —, como o momento de decisão da estrutura. Em psicanálise, há esta diferença essencial da posição da criança em relação à do adulto. Embora a sexualidade seja organizada através de um “Infantil” ao qual o sujeito se reporta — seja qual for sua idade — quando se trata de seu desejo, seu gozo, suas pulsões parciais, a possibilidade de exercício desta sexualidade muda sua posição. Não há equivalência entre um sujeito em posição de criança, para quem vigora uma promessa de gozo postergada e o enigma do desejo do Outro sustentado pelas figuras parentais, e o adulto que se torna — pelo menos potencialmente — capaz do ato sexual, e é chamado a ser responsável por este, bem como encontrar uma forma de lidar com o enigma do Outro sexo. Para Soler (1994), há outra diferença a considerar, entre o lugar ocupado por uma criança já sujeito e o lugar ocupado por uma criança ainda objeto. Em cada um dos casos, o lugar do analista vai ser diferente: seja um lugar vazio de desejo, no primeiro caso; seja um lugar impregnado de desejo, ao estilo do Outro primordial, no caso da criança-objeto, estando então colocado o impasse: “como ele pode operar neste caso para que os efeitos que obtém se mantenham no eixo da ética psicanalítica?” (p. 9). Neste último caso, trata-se da difícil clínica com crianças psicóticas e autistas, que exemplifica, concretamente, o quanto o analista é convocado em seu desejo, mas cuja especificidade não abordaremos neste trabalho3. Enfim, Soler finaliza este artigo que ora mencionamos lembrando que uma análise de criança deve concluir deixando 59 PSICANALISAR CRIANÇAS questões em aberto. Em seus termos, afirma: “deve dar lugar a um certo deixar-fazer, ou, antes, a um deixar se fazer” (p. 11), que tem a ver com este estado de inacabamento estrutural no qual ela situa a criança. Tomemos agora este dado, que é de observação na comunidade analítica: a clínica com crianças provoca nos que se aproximam da psicanálise seja uma grande fascinação, ou então, inversamente, o horror. Sabemos, desde Lacan, que estes efeitos se manifestam a cada vez que há algo de real na experiência. Há uma criança real, que ao mesmo tempo fascina e horroriza. Não se trata das crianças da realidade, que encontramos no dia-a-dia de nosso consultório, mas d’A Criança, presença que remete à origem, para sempre perdida, irresgatável, de todo sujeito. Como diz François Ansermet (1994), “a criança encarna um real que a excede” (p. 16). Assim, aquém da prática clínica, a criança analisante reatualiza a Criança Real, convocando reações, sintomas, atos... que podem variar desde uma clínica que se faz exclusivamente com crianças até a desvalorização, a negação da possibilidade de uma psicanálise de crianças. Citemos ainda Ansermet: “O analista (...) se acha confrontado com (...) a inquietante questão do real carregado pela criança” (p. 17). A história dos psicanalistas de crianças é marcada pela emergência deste real e dos diferentes sintomas daí decorrentes: desde a realização da fantasia de mãe-toda proposta pela clínica de Melanie Klein; passando pela idealização educativa cujo principal porta-voz foi Anna Freud (embora o lugar de enunciação fosse o de seu próprio pai), a reparação da infância perdida nos campos de concentração de Bruno Bettelheim, até a fascinação pela maternidade encarnada por Donald Winnicott. Enfim, para entrar no particular desta clínica, trata-se, para o analista, de ser chamado a responder, a cada dia, a este questionamento interno: por que trabalhar com esta clínica? Em outras palavras, na psicanálise de crianças, a questão do desejo de estar ali, na posição de psicanalista, à escuta de crianças, é uma questão que se recoloca a cada novo analisante que chega, e mesmo 60 O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA a cada próxima sessão de um mesmo analisante. Como bem o assinala J.J. Rassial, em seu artigo no presente volume, a rotina do afazer psicanalítico não escamoteia estas questões, até porque é muito difícil estabelecer-se uma rotina! Nesta clínica tocamos num ponto privilegiado onde a interrogação sobre o desejo é central e sempre atual. Sabe-se que a psicanálise ampliou o conceito de infantil, de tal forma que a posição de criança – entendida na sua acepção como aquela para quem vigora uma sexualidade que gira em torno do Outro todo, da Mãe fálica, numa lógica de não diferença – tornou-se estrutural. Portanto, há em cada sujeito uma criança, núcleo da neurose infantil, matéria-prima da fantasia fundamental, que clama por se manifestar. Se o Infantil é a estrutura, e se a estrutura é o discurso do Outro em mim, infantil e inconsciente se assemelham. Nada mais tentador do que analisar “a criança-representante do Infantil”, agora em sua acepção significante, objeto imemorial oferecido a um gozo do Outro, “dor e delícia do ser” segundo o compositor, material recalcado sempre pronto a retornar. Por isso, quer se trate da Criança Real, ou da criança recalcada, a aproximação desta clínica deve nos conduzir a uma investigação desta “vocação”, no sentido de poder afastá-la do que poderia ser uma busca sintomática por um encontro finalmente bem sucedido com estas crianças, na qual o paciente não teria outro lugar senão o de objeto. Se, por exemplo, trata-se da escolha salvacionista, no sentido de proteger esta criança de todo trauma, castração, confronto com o Real, estamos diante da obviedade da repetição deste tão sonhado ideal que fica na ante-sala do Édipo: preservar a criança da falta do Outro, ou, pior, propor-lhe um Outro sem falhas, reparador, onipotente. O que não seria nada mais do que uma re-encarnação da Coisa, esta instância tão bem descrita por Freud (1895), como salvação para o desamparo originário. 61 PSICANALISAR CRIANÇAS Exemplos disto são corajosamente fornecidos nas autobiografias tanto de Maud Mannoni (1990) quanto de Françoise Dolto (1989), a partir das reflexões promovidas por suas respectivas análises. Para Mannoni, tratava-se de uma separação, vivida no real, em relação a uma babá portadora de outra língua e de outra cultura, que encarnou seu Outro primordial. Para Dolto, tratavase do luto impossível após a morte de uma filha, por parte de sua mãe, que a tornara refém desta perda. Como indica Manoëlle Descamps (1994), “o trabalho do analista em sua própria análise é identificar as motivações conscientes e sobretudo inconscientes, de sua escolha profissional e dos desejos que o engajam a trabalhar como analista e em particular com crianças” (p. 47). Se, como ocorre nos melhores casos, o caminho pessoal da análise vai apresentando a iniqüidade destas escolhas e derrubando uma a uma suas sustentações narcísicas inconscientes, podemos nos perguntar o que resta desta operação, que resultou em uma vocação, em uma escolha. Situemos agora o desejo do psicanalista, enquanto operador conceitual, para articulá-lo à clínica de crianças. Há uma dificuldade em fazer operar este dispositivo com a criança, na medida em que ela se encontra em um momento ainda tão frágil de sustentação do seu lugar de sujeito, quando ainda é necessária a encarnação por parte de um adulto da função do Outro. Diferente da clínica com o adolescente, por exemplo, na qual o analisante vem pedir a validação de sua posição desejante, vem interrogar sua capacidade de enunciação; na clínica de crianças esta enunciação é ainda sustentada, é dependente de um adulto próximo significativo. Sem este suporte – destes adultos particularmente implicados em sua história – a criança não pode assumir uma enunciação própria. Afinal, o que vem a ser o desejo do psicanalista? Lacan (1967-68) o propõe como um operador clínico que permite instituir, pela própria presença do psicanalista, um lugar para a falta, um lugar vazio onde poderá aparecer o Outro do paciente, tal qual ele comparece na história pessoal dele e tal qual impõe-se – na leitura realizada pelo paciente – o desejo, ao incidir sobre uma posição 62 O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA objetal deste sujeito, que é convocado a se reconhecer objeto nesta fantasia infantil e a conhecer, então, suas determinações. Será que se poderia utilizar este operador na clínica de crianças? Pois, como bem marcou Anna Freud, não há um distanciamento suficiente da criança em relação àqueles que sustentam para ela as funções edípicas (o Outro, para Lacan), de tal forma que ela possa ler quais as suas próprias implicações no desejo destes. Claro está que, entendida desta forma, esta operação seria impossível neste momento em que o sujeito ainda está em estruturação, ou seja, o recalque ainda não cumpriu sua tarefa por excelência, a saber, a de instituir esta divisão subjetiva que permite ao sujeito desconhecer que sua fala, seu desejo, seu objeto, vêm do Outro. Entretanto, o vazio que o analista introduz – com seu silêncio, sua não-demanda, sua espera – vai confrontar a criança com algo inédito. Um adulto que não é imperativo; que mesmo que seja colocado por ela mesma na posição de mestre, não a ocupa; um adulto que não dá orientações, não dá ordens, não ensina, nada pede a não ser que a criança ocupe um lugar ali; produz-se uma reação ao novo, uma inquietação: “o que quer ele, então, de mim?”, pergunta-se a criança. Este novo abre a possibilidade, para a criança, de localizar seu desejo como podendo ser diferente do que interpretou como desejo do Outro, destacado deste. François Koehler (1994) se refere a este movimento nestes termos: “A criança, na transferência, tendo que lidar com um Outro que nada quer dela, fica aliviada do peso do gozo do Outro e pode largar seu sintoma e construir sua fantasia. Um espaço se abre para a criança, a partir do qual ela pode se ver confrontada com a castração” (p. 36). Evidentemente, podemos destacar desta citação especificidades da posição da criança em relação ao Outro: ela não se defende do fato de que o Outro queira algo dela, pelo contrário, ela está atenta ao desejo deste Outro; ela não construiu 63 PSICANALISAR CRIANÇAS ainda sua fantasia para destacar-se deste Outro, está paralisada nesta construção às custas do sintoma; a castração vai depender ainda da posição daquele que encarna para ela esta função. Percebese, nesta retomada, uma presença: a do Outro representado pelas figuras parentais da realidade. Pode-se então afirmar que a operação “desejo do analista”, no campo da análise de crianças, provoca o efeito inverso. Para o adulto, deparar-se com o vazio do desejo do analista — que cai enquanto representante da pura falta — dá lugar ao seu Outro; ele passa então a perceber as determinações causadas pelo desejo deste Outro no seu desejo próprio, ou seja, identifica no seu desejo os traços, as marcas gravadas pelo desejo do Outro; pode assim ter acesso a alguma possibilidade de liberdade em relação a eles. Na criança, o desejo do analista enquanto apresentação da falta de desejo em relação a ela vai confrontá-la com esta possibilidade de um não desejo da parte do Outro, manifestado por uma não demanda, ou seja: um Outro não imperativo, um Outro que suporta faltar. Ao poder, então, situar o desejo do Outro em relação ao não desejo sustentado pelo analista, é possível localizar a função “desejo” e desdobrá-la, tendo nesta trajetória um parceiro: o analista que a acompanha. Francisco, 9 anos, vem à primeira sessão e diz: “meu problema é a hiperatividade”. Começa a contar tudo que a hiperatividade o faz fazer, sofrer, as desventuras pelas quais tem que passar. Repete, quase textualmente, tudo o que a mãe dissera na entrevista anterior, à qual comparecera ainda sem trazer o filho. Na sua primeira sessão, por sua vez, Francisco comparece enquanto assujeitado ao saber materno, que nele situou este quadro clínico da moda e cujos sintomas ele descreve mecânica e detalhadamente, para demonstrar o que o acomete, desde fora. Na sessão seguinte, faz um desenho de uma cabeça que ocupa toda a folha: é um menino. Ele o descreve assim: olhos assustados, nariz franzido, orelhas fechadas, boca raivosa, dentes assustados, sobrancelhas bravas, cabeça grande. Sobre a cabeça grande, esclarece: “é minha mãe que diz que a minha cabeça é assim”. 64 O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA Observa-se neste curto fragmento o grande impasse desta clínica: estão presentes, na análise, o desejo da criança e o desejo do Outro, recalcados. Não se trata, em primeira instância, de dar lugar aos significantes que remetem a um Outro pré-histórico há muito perdido, concretamente, mas cuja existência imaginária e simbólica vai se fazer presente – via transferência e presença do analista – em termos de atos e palavras que se passam entre analista e analisante. No caso da análise de crianças, trata-se também deste Outro que se inscreveu e fez marcas, mas as encarnações desta função ainda se fazem presentes. O desejo dos pais a respeito deste filho que trazem à análise – desejo que eles próprios desconhecem – é um fator a considerar na rede de significantes que ali se tece. Vai estar em jogo lidar com a presença destes pais que, mesmo não entrando fisicamente na sessão do filho – o que depende das contingências de cada análise – continuam se manifestando: seja nos atrasos para trazer o filho à sessão, ou mesmo nas faltas que o fazem ter, seja nos diversos trâmites que impõem ao pagamento, e até na interrupção abrupta do tratamento do filho. Assim, no desejo de analisar crianças situa-se ainda uma questão que envolve os pais. É um desejo que aponta não só para repetir a experiência do inconsciente no tempo mesmo da infância – o que poderia se dar no sentido (ou seria melhor dizer no sem sentido?) de uma “prevenção” do próprio sofrimento do analista! Há também uma relação com um Outro encarnado na função “pais” – que pode pôr em ato um desejo de enfim consertar os pais... do próprio analista, com as conseqüências desastrosas que podem advir de uma pedagogização da análise. Enfim, esta pequena liberdade em relação ao Outro que é o horizonte de toda análise, pode ser posta em ato precipitadamente pelo analista de crianças: ao não ouvir os pais suficientemente; ao fechar rápido demais o acesso às sessões do filho para eles; ou, ao contrário, ao deixá-los entrar por tempo demasiado; ao se acomodar e não fazer contato com eles; ao tentar funcionar como terceiro na base do forçamento e fazer corte real antes de a separação poder se 65 PSICANALISAR CRIANÇAS estabelecer para eles. Tudo isto vai implicar o desejo do analista e o modo como aí situa os “Pais”. Não há como negar que a interrogação central de todo pequeno sujeito — condição inclusive para que possa ser designado como tal — que se aventura pelas vias do desejo, é a seguinte: “Pode o Outro passar sem mim?”. Questão que não evidencia uma simples preocupação benevolente pelo Outro, mas que implica a criança em seu âmago, pois hipostasia sua subjetividade no Outro. Apenas quando aqueles que encarnam para a criança esta função respondem afirmativamente a esta pergunta, indicando, com palavras ou atos, que podem perdê-la enquanto objeto, é que ela poderá ir adiante. Senão, estará impossibilitada de prosseguir – com ou sem análise, ela não pode suportar a falta no Outro antes que este sinalize que falta há e ele pode suportá-la. O que falha é justamente esta relação simbolizada com a falta — a função do Nome-do-Pai — quando a criança tem necessidade do sintoma clínico e não consegue encontrar uma saída edípica. O desejo do analista enquanto operador vai dar uma notícia para a criança sobre esta possibilidade de o Outro faltar. É a partir desta operação que a criança vai se voltar para seu Outro e interrogá-lo sobre este delicado ponto. Às vezes com a simples recusa de ir à sessão de análise, mesmo que a estivesse aguardando ansiosamente: está alusivamente indicando que quer saber se está autorizada a ir adiante neste percurso. O pai ou a mãe em questão vão ser chamados — quer o sejam efetivamente ou não— a participar da análise do filho. Estes podem dar seu aval ao sustentar a transferência com o analista e a freqüência do filho às sessões, sem para isso terem que comparecer com sua presença física. Caso contrário, eles podem fazer resistência e é o momento de chamá-los a participar realmente, pois não estão podendo ouvir a questão da criança, que se apresenta desviada. É o momento em que o desejo do analista pode ser operador também com os pais — instaurando nestas conversas um vazio que permita aos pais em questão se posicionarem quanto à falta e à sustentação do desejo do filho. 66 O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA Pode acontecer de não ser possível a esta mãe ou a este pai abdicarem da criança e isto culminará na interrupção da análise. É então o analista que “perde” a criança e resta-lhe esta aposta: que desta aceitação da perda que teve, fique para a criança o registro desta experiência de que um adulto, representante do Outro, possa ser diferente de sua mãe ou de seu pai, e possa passar sem ela. A grande armadilha, armada nestas situações, é ética: quando o analista se confronta com a questão do bem da criança, porque evidentemente sofremos quando antevemos a impossibilidade de prosseguimento de um advir subjetivo. Bernard Nominé (1994) faz uma observação muito acurada a este respeito: “O importante é que haja analista, isto é, um parceiro que não quer o bem do sujeito, mas se conforma com a lógica da experiência que pretende que se passe de um objeto a outro” (p. 80). Haveria uma ética própria à psicanálise de crianças? Se, conforme afirma o colega Ricardo Goldenberg no presente volume, não há por que haver uma ética própria da psicanálise, cabendo a cada analista assumir a ética de um estilo, ou mesmo o estilo de uma ética, não caberia esta questão. Entretanto, os desafios para sustentar a ética do desejo, da subjetividade, da palavra e do ato que fundam o sujeito humano são especialmente grandes quando se trata do campo social e suas expectativas em relação à criança. Como já apontamos em outro volume desta coleção4, segundo o discurso social vigente, cabe à criança de hoje ser feliz e elas nos são trazidas para que as auxiliemos a alcançar este gozo almejado. Dizer não a esta demanda e mesmo assim sustentar um lugar de suposto saber que desperte transferências por parte daqueles que se ocupam de crianças e podem encaminhá-las para análise, requer um exercício diário de confrontação com o impossível. Gostaria de terminar trazendo as palavras de Patrick De Neuter (1992), ao debater justamente a questão da ética: “A psicanálise não promete a felicidade, ela sustenta que a vida não pode ser vivida senão ao preço do risco de seu desejo, ao preço de separações que engendram às vezes sofrimentos, mas que são, contudo, necessárias e inevitáveis”. 67 PSICANALISAR CRIANÇAS Atualmente, em relação a esta ilusão de infância idealizada – infância que aliás se reduz cada vez mais ao ideário dos adultos, numa realidade que vem pouco a pouco eliminando o próprio conceito de infância – os analistas parecem ser um dos poucos grupos que reconhecem a necessidade da dor de existir da criança e sua relação com o desejo, com a subjetividade. Por isso, cabe a nós apresentarmo-nos e acusar recebimento, cada vez que este desejo é interrogado, respondendo “sim” à habitual pergunta: “Você trabalha com crianças?”. Notas 68 1 Como disse recentemente, brincando com os teóricos da “aquisição da linguagem”, a colega Ângela Vorcaro, em sua conferência na Associação Psicanalítica de Curitiba, “Neurose infantil e neurose da criança, criança-sintoma e sintoma da criança”, em 27/11/2003. 2 Discuti este tema na tese de doutorado. Ver BERNARDINO, Leda M.F. O diagnóstico e o tratamento das psicoses nãodecididas: um estudo psicanalítico. Tese. Doutorado. Instituto de Psicologia da USP, 2000, p. 203. 3 Remeto o leitor a um artigo no qual trabalhei especificamente este tema: BERNARDINO, Leda M.F. A clínica das psicoses na infância: impasses e invenções. Estilos da clínica nº 11 – dossiê: A escola atravessada pela psicanálise. São Paulo, Instituto de Psicologia/ Universidade de São Paulo, 2º semestre de 2001. 4 Trata-se do editorial do volume 9 desta Coleção Psicanálise da Criança, que tive também a oportunidade de organizar: BERNARDINO, L.M. Neurose infantil versus neurose da criança: as aventuras e desventuras na busca da subjetividade. Salvador–BA: Ágalma, 1997. O DESEJO DO PSICANALISTA E A CRIANÇA Referências bibliográficas ANSERMET, François. L’enfant comme réel. In: L’enfant et le désir de l’analyste. Toulouse: Presses Universitaires de Mirail, 1994. DESCAMPS, Manoëlle. Ethique et psychanalyse avec l’enfant. In: Le Bulletin Freudien nº 34: Enfance. Bruxelas: Association Freudienne de Belgique, março de 2000. DE NEUTER, Patrick. L’éthique de la psychanalyse, thèses, questions et hypothèses. In: Esquisses psychanalytiques. Paris: LRFP, 1992. DOLTO, Françoise. Une éthique de la relation analytique. In: L’éthique de la psychanalyse et la question du coût freudien. Paris: Evel, 1984. Autoportrait d’une psychanalyste. Paris: Seuil, 1989. FREUD, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição Standard das Obras completas de Sigmund Freud, vol. I. 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