Asociación Interamericana para la Defensa del Ambiente Interamerican Association for Environmental Defense IV. Como o desenvolvimento de uma grande represa pode desconhecer o direito internacional ambiental e os direitos humanos O desenvolvimento inadequado de grandes represas pode resultar na violação do direito internacional ambiental e dos direitos humanos das pessoas e comunidades afetadas. Tais violações são diversas e contemplam desde a destruição de ecossistemas valiosos, como aconteceu no caso da represa Yacyretá1, entre Argentina e Paraguai, até o possível deslocamento forçado de comunidades, bem como ameaças e hostilidades àqueles que defendem suas terras, como por exemplo no caso da represa La Parota 2, no México. Inclusive, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está investigando violações aos direitos humanos dos membros da Comunidade Indígena do Rio Negro, na Guatemala, pela ocorrência de massacres, fatos que estão relacionados com a construção da represa de Chixoy3. Nessa secção, resumiremos algumas das mais importantes violações ao ordenamento internacional provocadas pela construção de grandes represas nas Américas; e, que, desafortunadamente, estão ocorrendo de uma forma repetida e sistemática. Na totalidade dos casos analisados no relatório completo4 e na maioria dos casos que conhecemos, tais violações ameaçam continuar ocorrendo, como por exemplo: a. Danos irreversíveis à comunidades por desrespeito ao direito a um ambiente sadio, pela perda de habitats, saúde humana, formas de vida e fontes de alimentação; b. Deslocamento forçado de comunidades afetadas, sem a possibilidade de participação e sem a formulação dos devidos planos de reassentamento e compensação; c. Ausência de avaliação, integral e prévia ao início das obras, de impactos ambientais e sociais que considere a gravidade dos danos a serem causados e as possíveis ações para evitá-los, incluindo alternativas ao projeto; d. Falta de consulta prévia e participação pública adequada, oportuna e integral às comunidades e a outros atores que forem afetados; e. Violações aos direitos territoriais dos povos indígenas e tribais; f. Falta de acesso à informação e à justiça; 1 Relatório AIDA, Grandes Represas en América, ¿Peor el Remedio que la Enfermedad?, pp. 62-75, Colômbia: Editorial Gente Nueva (2009) [doravante apenas Relatório AIDA] disponível em: http://www.aidaamericas.org/sites/default/files/InformeAIDA_GrandesRepreseas_BajaRes.pdf 2 Ibid., pp. 89-98. 3 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante CIDH), Caso Comunidad de Río Negro del Pueblo Indígena Maya y sus miembros c. Guatemala, Relatório No. 13/08, 5 de março de 2008. 4 Relatório AIDA, supra, nota 1. Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 g. Criminalização dos protestos das comunidades e pessoas afetadas, incluindo pressões que já resultaram em assassinatos, ameaças e hostilizações. Ainda que essas sete situações se repitam frequentemente através do hemisfério nos projetos de grandes represas, é importante destacar que não são consequências necessárias de todos os projetos de infraestrutura ou daqueles em atenção à demanda de energia e água. Os Estados e as entidades podem optar por implementar tais projetos de maneira a respeitar a normatividade internacional que mais adiante será apresentada, evitando assim, consequências negativas. A. Danos irreversíveis à comunidades pelo desrespeito do direito a um ambiente sadio, perda de habitats, saúde humana, formas de vida e fontes de alimentação Os danos ambientais que as grandes represas podem provocar, descritos com maiores detalhes no relatório completo5, mas que podem ser, basicamente, a destruição dos ecossistemas, devastação de populações de peixes, aves e outros animais, e a contaminação de recursos aquíferos, podem alcançar tamanha magnitude que resulte ao total desrespeito ao direito humano a um ambiente sadio. Esse aspecto requer elevada importância pelo direto e essencial vínculo que o ambiente sadio estabelece com outros direitos humanos, como a vida, a saúde e a integridade. O protocolo de São Salvador (art. 11) define o direito a um ambiente sadio como: ―(1) Toda pessoa tem o direito a viver em um meio ambiente sadio e a contar com serviços públicos básicos. (2) Os Estados-partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente‖. Se como resultado da construção de uma grande represa há uma destruição de forma irreversível dos ecossistemas ou são afetados os elementos do ambiente de maneira que o meio não seja sadio para as pessoas que ali vivem, há, portanto, o desrespeito a esse direito. Ademais, a proteção ambiental no direito internacional vai mais além da preservação do ambiente de uma pessoa ou comunidade, pois essas obrigações também estão contidas em instrumentos de direito internacional ambiental para proteger a humanidade. Por exemplo, a Declaração de Estocolmo e a Declaração do Rio contemplam a obrigação dos Estados de assegurar que as atividades em sua jurisdição não prejudiquem o ambiente de outros Estados6. A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), em seus artigos 8 e 10, também consagra a obrigação dos Estadospartes de preservar o meio ambiente. Em particular, a CDB exige, entre outros pontos, que cada Estado ―regulamentará ou administrará os recursos biológicos importantes... 5 Ibid. pp. 15-21. O texto dos Princípios, Princípio 21 da Declaração de Estocolmo e Princípio 2 da Declaração do Rio, U.N. Doc A/CONF.151/26 (Vol. I), 12 de agosto de 1992) [doravante Declaração do Rio], é igual: ―Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e de desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional‖. 6 2 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 para garantir sua conservação e utilização sustentável‖ e que, ademais, ―promoverá a proteção de ecossistemas e habitats naturais‖7. Igualmente, é necessário destacar que a destruição de ecossistemas e a contaminação ambiental compromete o gozo de outros direitos humanos como a vida, a saúde e alimentação, entre outros. Isso se dá pelo vínculo direto e essencial que o direito a um ambiente sadio estabelece com tais referidos direitos; sendo assim, o desfrute (ou não) do direito a um ambiente sadio, afeta o gozo daqueles outros direitos. A respeito da transversalidade do direito a um ambiente sadio, a Comissão Interamericana tem destacado: “O respeito à dignidade inerente à pessoa é o princípio em que se baseiam as proteções fundamentais do direito à vida e à preservação do bem-estar físico. As condições de grave contaminação ambiental, que podem causar sérias enfermidades físicas, incapacidades e sofrimentos à população local, são incompatíveis com o direito a ser respeitado como ser humano.”8 Particularmente, impactos ao ambiente provocados pela construção inadequada de grandes represas podem prejudicar a saúde, as formas de vida e as fontes de alimentação das comunidades. Em primeiro lugar, e com respeito ao direito à saúde, o acúmulo de sedimentos tóxicos, incluindo metais pesados, e a propagação de enfermidades e insetos nas águas estancadas do reservatório, podem impactar negativamente a saúde e vida dos habitantes. Esses tipos de impactos ameaçam ocorrer no Projeto Baba, no Equador 9, nas represas do Rio Madeira, no Brasil10; apesar disso, ainda não há avaliação nem medidas para evitá-los. Quando esses contaminantes ou enfermidades começarem a afetar negativamente a saúde das pessoas, estarão sendo desrespeitados os direitos à saúde11, à vida12 e à integridade física13. Dessa forma, as grandes represas podem impactar negativamente as formas de vida e as fontes de alimentação, tanto das pessoas que vivem nas zonas inundadas como daquelas que vivem águas acima e abaixo dos projetos. Essas populações dependem, tipicamente, da bacia hidrográfica para suas atividades de subsistência, econômicas e 7 Convenção da Biodiversidade,1760 U.N.T.S. 79, 31 I.L.M. 818, arts. 8(c), (d), (k) e (l), de 5 de junho de 1992. 8 CIDH, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Equador, OEA/Ser.L/V/II.96, Doc, 10, rev.1, Abril, 1997. 9 Relatório AIDA, supra, nota 1, PP. 37-49. 10 Estudo de caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (traduzido para o português - documento anexo); ver também: Relatório AIDA, supra, nota 1, pp. 50-61 (versão em espanhol). 11 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 12, 6 I.L.M. 360, 19 de dezembro de 1966 [doravante PIDESC]; Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 10, 28 I.L.M. 156, 17 de novembro de 1988 [doravante Protocolo de São Salvador]. 12 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. 6, 6 I.L.M. 368, 19 de dezembro de 1966 [doravante PIDCP]; ver também: Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 4, 9 I.L.M. 673, 22 de junho de 1969 [doravante Convenção Americana]. 13 Convenção Americana, supra, nota 12, art. 5. 3 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 culturais; incluindo os trabalhadores campesinos, pescadores, criadores de gado e os que dependem de trabalhos artesanais. Os reservatórios, muitas vezes, provocam a destruição permanente de terras cultiváveis de alta riqueza, além de exigir o reassentamento de pessoas, deixando populações que anteriormente dependiam dessas zonas, sem uma alternativa adequada para sua alimentação e continuação de sua qualidade de vida. Ademais, e como já mencionado (cap. II)14, as represas podem afetar as populações de peixes e outros animais, prejudicando negativamente as pessoas que dependem desses animais para seu sustento econômico. Entre os direitos que podem ser violados com a perda de formas de vida e de alimentação se incluem os direitos à alimentação, à subsistência15 e ao trabalho16. Especificamente sobre o direito a uma alimentação adequada, o Comitê de Direitos Humanos da ONU já considerou que este direito impõe as obrigações de respeitar, proteger e realizar: “A obrigação de respeitar o acesso existente a uma alimentação adequada requer que os Estados não adotem medidas de nenhum tipo que tenham por resultado impedir esse acesso. A obrigação de proteger requer que o Estado-parte adote medidas para velar, para que as empresas ou os particulares não privem as pessoas do acesso a uma alimentação adequada.”17 B. Deslocamento forçado de comunidades afetadas, sem participação pública, planos de reassentamento e adequada compensação Algumas das violações mais graves aos direitos humanos provocadas por projetos de grandes represas são o deslocamento e evicção forçados de pessoas, famílias e comunidades devido às inundações necessárias a esses projetos e à falta de implementação das medidas previstas pelo direito internacional. Tais deslocamentos 14 Relatório AIDA, supra, nota 1, cap. II. PIDESC, supra, nota 11, art. 11.1 (―Os Estados-partes, no presente Pacto, reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida‖). 16 Ibid., art. 6.1 ―Os Estados-partes, no presente Pacto, reconhecem o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito‖; Protocolo de São Salvador, supra, nota 11, art. 6. 17 Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (CDESC), Observação Geral N° 12 O Direito a uma Alimentação Adequada (art. 11), par. 15, Resolução No. E/C.12/1999/5 (1999), reproduzido em Recopilação das Observações Gerais e Recomendações Gerais adotadas por órgãos criados em virtude de tratados de direitos humanos, p. 70, U.N. Doc HRI/GEN/1/Rev.7 (2004) [doravante Recopilação ONU]; No mesmo documento, o Comitê de Direitos Humanos estabeleceu que o conteúdo mínimo de direito a uma alimentação adequada compreende ―... a disponibilidade de alimentos em quantidade e qualidade suficientes para satisfazer as necessidades alimentares dos indivíduos, sem substâncias nocivas, e aceitáveis para uma determinada cultura; ... a acessibilidade desses alimentos em formas que sejam sustentáveis e que não dificultem o gozo de outros direitos humanos‖; ibid. par. 8. 15 4 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 podem implicar em prejuízos consideráveis para os afetados, como já mencionado pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre vivenda adequada: ―Em consequência dos desalojamentos forçados, frequentemente as pessoas ficam sem lar e na miséria, sem meios de ganhar a vida e, na prática, sem um real acesso aos recursos jurídicos ou de outro tipo. Os desalojamentos forçados, com frequência estão relacionados com danos físicos e psicológicos às pessoas afetadas, e têm repercussões especiais para as mulheres e pessoas que vivem em extrema pobreza, as crianças, os povos indígenas, as minorias e outros grupos vulneráveis18”. O tamanho do impacto das grandes represas, em termos de desassentamento, é notável. A Comissão Mundial de Represas (CMR)19 estimou que até o ano 2000, as grandes represas haviam deslocado entre 40 e 80 milhões de pessoas a nível mundial 20. Na América Latina esse tipo de impacto é igualmente considerável, pois até o ano 2000, aproximadamente 580.000 pessoas haviam sido deslocadas por causa de 62 grandes represas21. Somente os cinco casos de projetos apresentados no relatório completo22, causarão, se todos forem terminados, o deslocamento de entre 91.000 a 170.000 pessoas; a maioria deles são famílias e pessoas que já foram afetadas pelo projeto hidrelétrico Yacyretá, entre a Argentina e Paraguai23. É importante ressaltar que o reassentamento de pessoas, ainda que necessário na construção da maioria das grandes represas, não pode suportar deslocamento forçado e a violação dos direitos humanos. Esse problema, como muitos outros que destacamos no presente relatório, pode ser evitado com a tomada de medidas apropriadas, principalmente garantindo a participação pública dos afetados e elaborando previamente estudos e planos sobre as necessidades de reassentamento e readaptação. Com respeito à participação pública, essa é uma obrigação aplicável para qualquer projeto desse tipo e requerida por diversos instrumentos internacionais, particularmente, quando se prevê deslocamento ou desocupação24. Além de respeitar os direitos das pessoas interessadas, a participação pública contribui na coleta e verificação de informação sobre as pessoas a serem deslocadas e a classe de indenização ou arrecadação necessária. 18 Relatório do Relator Especial sobre moradia adequada, como parte do direito a um nível de vida adequado, Sr. Miloon Kothari, párr. 21, U.N. Doc A/HRC/4/18, 5 de fevereiro de 2007. 19 Comissão Mundial de Represas, DAMS AND DEVELOPMENT: A NEW FRAMEWORK FOR DECISIONMAKING, p. XXXIII, Reino Unido: Earthscan Publications (2000) [doravante Relatório CMR], disponível em: http://www.unep.org/dams/WCD/report.asp. 20 Ibid, pp.16-17. 21 McCULLY, Patrick, Ríos Silenciados, Anexo, Proteger Ediciones: Santa Fe, Argentina (2004). 22 Relatório AIDA, supra, nota 1, pp. 36-98. 23 Relatório AIDA, supra, nota 1. 24 Ver discussão infra, "Falta de consulta prévia e participação pública, adequada, oportuna e integral, às comunidades e outros atores afetados‖. 5 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 Por outro lado, os estudos prévios e os planos de reassentamento e readaptação são imprescindíveis para garantir o direito contra o deslocamento forçado, além de serem requisitos de vários instrumentos internacionais25. Do contrário, é impossível prever os impactos integrais dos projetos e os recursos necessários para assegurar que as pessoas implicadas sejam compensadas por suas perdas, conservem o acesso às fontes de alimentação ou trabalho, mantenham suas formas de vida e evitem maiores prejuízos. Na maioria dos casos, por exemplo em todos os casos estudados no relatório completo26, são subestimados o número de pessoas a serem deslocadas pelo projeto, comprometendo a possibilidade das pessoas excluídas de serem consideradas nos planos de reassentamento e indenização. Com mecanismos que garantam a realização de estudos sérios e a participação efetiva dos afetados, essas situações poderiam ser evitadas. Se essas medidas não são tomadas, a transferência das pessoas pode, facilmente, se tornar uma situação de deslocamento forçado – algo proibido por vários instrumentos de direitos humanos internacionais27. Os órgãos das Nações Unidas já se pronunciaram contra os deslocamentos e evicções forçados, abordando que ―despejos forçados são prima facie incompatíveis com os requisitos do [PIDCP] e só poderiam ser justificados nas circunstâncias mais excepcionais e em conformidade com os princípios pertinentes ao direito internacional”28. Tais proibições se estendem à ações de terceiras pessoas no território do Estado29, e incluem obrigações de manter os princípios de necessidade e proporcionalidade para os casos em que se aplique30. Ademais, a perda de uma moradia e 25 Ver discussão infra, ―Ausência de avaliação prévia e integral de impactos ambientais e sociais‖. Relatório AIDA, supra, nota 22. 27 Convenção Americana, supra, nota 12, art. 22. (―Direito de Circulação e de Residência 1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais); PIDCP, supra, nota 12, art. 12.1. (“Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado, terá o direito de nele livremente circular e escolher sua residência); ver também, Corte IDH, Caso da Comunidade Moiwana c. Suriname, Sentença de mérito, 15 de junho de 2005, Serie C No 124, par. 109-122; Corte IDH, Caso dos Masacres de Ituango c. Colombia, Sentença de mérito, 1 de julho de 2006, Serie C No 148, par. 204-235. 28 CDESC, supra, nota 17, Observação Geral No 4, O direito a uma moradia adequada(par. 1 do art. 11 do Pacto), par. 18, Resolução No. E/1992/23 (1991) reproduzido em: U.N. Doc HRI/GEN/1/Rev.7, p. 21; ver também, Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas (doravante CDH), Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção às Minorias, Diretrizes completas para os direitos humanos em relação aos deslocamentos baseados no desenvolvimento, Comitê de Direitos Humanos, U.N. Doc. E/CN.4/Sub.2/1997/7 Anexo, 2 de julho de 1997 [doravante Diretrizes para o deslocamento], par. 4; CDH, Resolução 1993/77, 67ª reunião, 10 de março de 1993, Observação geral Nº 27. A Liberdade de Circulação (art. 12), par. 7, reproduzido em: Recopilação ONU, supra, nota 17, p. 202 (“…o direito de residir no lugar escolhido dentro do território inclui a proteção contra toda forma de deslocamento interno forçado.”); CDH, Princípios Reitores dos deslocamentos internos, princípio 6(2), U.N. Doc E/CN.4/1998/53/Add.2 Anexo, 11 de fevereiro de 1998 (―2. A proibição dos deslocamentos arbitrários inclui os deslocamentos:… c) em casos de projetos de desenvolvimento em grande escala, que não estão justificados por um interesse público superior ou primordial.‖). A respeito das comunidades e populações minoritárias e rurais, que mais comumente se vêem afetadas por grandes represas, a Corte Interamericana tem notado que: ―Os Estados têm a obrigação específica de tomar medidas de proteção contra deslocamentos de povos indígenas, minorias, campesinos, pastores e outros grupos que tenham uma dependência especial de sua terra ou um apego particular à mesma”, Corte IDH Caso da Comunidade Moiwana, supra, nota 27, par. 111. 29 CDESC, Observação Geral Nº 7, supra, nota 17, par. 8 30 CDH, Observação Geral Nº 27, supra, nota, 28, par. 14-16. 26 6 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 a falta de uma indenização justa são também violações dos direitos humanos31, mesmo ainda em casos em que a pessoa afetada não detenha o título formal de propriedade ou perca oportunidades de trabalho32. C. Ausência de avaliação prévia e integral de impactos ambientais e sociais Outra das falências significativas dos projetos de grandes represas que são implementados de uma maneira irresponsável é a falta de estudos de impacto ambiental e social (EIA e EIS), requeridos de acordo com múltiplos padrões internacionais, que serão descritos a seguir. Tais estudos são essenciais para identificar, avaliar e, posteriormente, reduzir ou eliminar os possíveis danos ambientais e sociais de um projeto; por exemplo, àqueles vinculados com a qualidade das águas abaixo das represas, os possíveis efeitos negativos da mudança climática e as comunidades que vivem nas zonas afetadas. Adicionalmente, os EIAs são essenciais para concluir acerca da conveniência do projeto e incluir a análise de alternativas de produção energética que poderiam ser menos nocivas para o ambiente e para as pessoas que vivem na zona de impacto. Especificamente com relação às grandes represas, a CMR recomenda a ―avaliação exaustiva das opiniões‖ e alternativas incluindo a avaliação dos aspectos ambientais e sociais33. Ademais, o artigo 14 da Convenção sobre a Diversidade Biológica obriga os Estados-partes deste tratado a estabelecer ―procedimentos adequados que exijam a avaliação de impacto ambiental de seus projetos propostos que possam ter sensíveis efeitos negativos na diversidade biológica‖. O princípio 17 da Declaração do Rio também estabelece a idoneidade desses estudos34. Por último, o princípio da Precaução do direito internacional ambiental aplica-se às situações em que o EIA não possa determinar com certeza os impactos, nem desenvolver formas de prevenção ou mitigação adequadas. Como mencionamos anteriormente, este princípio limita as ações para quando existam graves e irreversíveis riscos ambientais, na medida em que há falta de certeza científica 31 Convenção Americana, supra, nota 12, art. 21. O direito à indenização justa pela perda da propriedade por razões de utilidade pública é um princípio geral do direito internacional, ver Corte IDH, Caso Salvador Chiriboga c. Equador, Sentença de mérito, 6 de maio de 2008, Serie C Nº 179, pars. 96-98, e fontes citadas adentro. 32 Escritório do Alto Comissário para os Direitos Humanos (EACDH), Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção às Minorias, Resolução 1997/6 Desalojamentos forçados, U.N. Doc E/CN.4/SUB.2/RES/1996/6, 22 de agosto de 1997 (acolhendo as diretrizes completas para os direitos humanos em relação com os deslocamentos baseados no desenvolvimento). Estes princípios têm sido atualizados pelo Relator Especial sobre moradia Adequada, como parte do direito a um nível de vida adequado, Miloon Kothari, Princípios básicos e diretrizes sobre os despejos e o deslocamento gerados pelo desenvolvimento, U.N. Doc A/HRC/4/18 Anexo I, 5 de fevereiro de 2007 [doravante Princípios básicos do Relator Especial], par.60-61. 33 Relatório CMR, supra, nota 19, p. XXXVII. 34 Declaração do Rio, supra, nota 6, Principio 17: ―avaliação do impacto ambiental, como instrumento nacional, será efetuada para as atividades planejadas que possam vir a ter um impacto adverso significativo sobre o meio ambiente e estejam sujeitas à decisão de uma autoridade nacional competente”. 7 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 sobre as consequências em concreto35. Por conseguinte, e dado que a construção das grandes represas sempre implica na possibilidade de graves impactos ao ambiente, os Estados não devem adiantar a implementação das mesmas sem os estudos e planos de mitigação integrais e adequados. Instituições internacionais também obrigam a realização de estudos; por exemplo, o Banco Mundial, através de sua Diretriz Operacional 4.0, exige aos projetos que financia, que contenham estudos que contemplem ―o ambiente natural (ar, água, e terra); a saúde e a segurança humana; e os aspectos sociais‖36. Esses estudos também são necessários para a proteção eficaz dos direitos humanos das pessoas e comunidades afetadas pelas grandes represas. A realização de adequados estudos de impacto é uma forma efetiva de conhecimento das consequências e riscos associados com as represas, necessária para prever e mitigar tais impactos. Dessa maneira, a realização do EIA e EIS representa um recurso necessário para o amparo e garantia de outros direitos37. Apesar de serem requeridos por vários padrões internacionais e além da sua importância para os direitos humanos, foi constatado nos cinco casos de estudo38 que a elaboração dos EIAs e EISs não foi realizada de maneira adequada. Muitas vezes as autoridades aprovam os estudos sem que estes contenham as análises requeridas por suas próprias leis; como o caso da represa Baba, no Equador, onde o governo segue avançando o projeto apesar de que a Corte Constitucional daquele país considerou o estudo inadequado39. Outras graves violações das normas dos EIAs são encontradas no caso do Rio Madeira40, onde as autoridades não exigiram a realização de um novo EIA mesmo depois de ter sido mudado em, aproximadamente, 9 km o local da represa Jirau, desconsiderando que tal mudança, obviamente, implicaria em novos e diferentes impactos ao entorno do local. A implementação de projetos sem adequados EIAs faz com que, como no caso de La Parota41, no México, haja a possibilidade de construção de represas que representem altos riscos, inclusive sísmicos, cujos efeitos, ao serem desconsiderados, não há como se prevenir ou mitigar. D. Falta de consulta prévia e participação pública, adequada, oportuna e integral 35 Ibid., Princípio 15. Banco Mundial, Diretriz Operacional 4.01 – Avaliação ambiental, http://go.worldbank.org/K7F3DCUDD0. 37 Convenção Americana, supra, nota 12, art. 1.1 (―Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita a sua jurisdição…”); PIDCP, supra, nota 12, art. 2.1; ver também, Corte IDH, Caso do Povo Saramaka c. Suriname, Sentença de mérito, 28 de novembro de 2007, Série C No. 172, par. 129 (ordenando ao Estado de Suriname que realizem estudos de impactos sociais e ambientais por ―entidades independentes e tecnicamente capazes, sob a supervisão do Estado”, quanto a obrigação de respeitar e garantir o direito do povo Saramaka aos recursos naturais em seu território tradicional.). 38 Relatório AIDA, supra, nota 22. 39 Ibid, supra, nota 9. 40 Ibid, supra, nota 10. 41 Ibid, supra, nota 2. 36 8 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 Apesar dos efeitos consideráveis trazidos pela construção de grandes represas, poucas vezes são realizados processos de consulta com as comunidades e populações afetadas; nem tão pouco, lhes é permitida uma participação pública real e efetiva. Essa carência contradiz diversas normas do direito internacional. Ademais, a participação pública, em muitos casos, pode facilitar o planejamento e as possibilidades de mitigação dos projetos, pois permite às pessoas e comunidades afetadas compartilhar informações e critérios sobre possíveis impactos e a maneira de solucioná-los. Em numerosos casos, as comunidades locais não têm acesso a processos que possam garantir uma participação pública efetiva; ou ainda, tais mecanismos nem existem. Quando a legislação prevê algum tipo de processo, muitas vezes, o tempo para se apresentar observações é muito curto; as notificações, frequentemente, não são publicadas em meios de comunicação acessíveis às pessoas afetadas; as audiências ou reuniões são fechadas ao público em geral; os processos são meramente informativos, não incorporam as recomendações ou preocupações da população, e se realizam em etapas muito avançadas do projeto, quando carecem de eficácia; e a informação necessária, na maioria das vezes, não está disponível, é incompleta, ou carrega uma linguagem muito técnica. Os Relatores das Nações Unidas, por exemplo, identificaram ―inconsistências‖ no processo de consultas do projeto de La Parota, no México, incluindo o fato de que o EIA do projeto e o programa de reassentamento foram aprovados sem o prévio consentimento das populações afetadas42. Em certos casos, as audiências, muitas vezes, são celebradas para cumprir as formalidades das leis domésticas de consulta, que pelas quais, são apresentadas meras informações dos detalhes técnicos do projeto, sem nem sequer, proporcionar aos cidadãos, tempo adequado para expressarem suas opiniões, como ocorreu nos casos da Chan 7543 e Rio Madeira44. A proteção dos direitos das comunidades e pessoas afetadas à participação em assuntos públicos, consagrado no artigo 25 do PIDCP 45 e no artigo 26 da Convenção Americana46, exige processos adequados que garantam consulta e participação pública efetivas. Esse direito não se limita à garantia de sufrágio, mas também, incorpora um sentido mais amplo de participação. Como considerou o Comitê de Direitos Humanos da ONU, a participação pública também incorpora o participar ―na direção dos assuntos públicos exercendo influência mediante o debate e o dialogo públicos com seus 42 Ibid. Ibid, supra, nota 1, pp. 76-88. 44 Ibid, supra, nota 10. 45 PIDCP, supra, nota 11, art. 25 ―Todos os cidadãos gozarão, sem qualquer das distinções mencionadas no artigo 2.º, e sem restrições indevidas, dos seguintes direitos e oportunidades:a) Participar na direção dos assuntos públicos, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente eleitos; 46 Convenção Americana, supra, nota 12, art. 23 (―Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos”); Ver também, Carta Democrática Interamericana, art. 6, vigésimo oitavo período extraordinário de sessões, 11 de setembro de 2001 (―A participação dos cidadãos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento é um direito e uma responsabilidade. É também uma condição necessária para o pleno e efetivo exercício da democracia.‖). 43 9 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 representantes e graças a sua capacidade de organização. Esta participação se respalda garantindo a liberdade de expressão, reunião e associação”47. Especificamente com relação a projetos de desenvolvimento, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, reconheceu: ―A participação pública na tomada de decisões permite, a quem tem em jogo seus interesses, expressar sua opinião nos processos que os afetam. A participação do público está vinculada ao artigo 23 da Convenção Americana, onde estabelece que todos os cidadãos devem gozar do direito de „participar na direção dos assuntos públicos, diretamente por meio de representantes livremente elegidos‟, assim como o direito de receber e difundir informação. ... apesar de que a ação ecológica requer a participação de todos os setores sociais, alguns, como as mulheres, os jovens, as minorias e os indígenas, não têm participado diretamente em tais processos por diversas razões históricas. Seria mister informar aos indivíduos afetados e ouvir sua opinião a respeito das decisões que os afetam48. O direito internacional ambiental também enfatiza os fundamentos da participação pública; por exemplo, o Princípio 10 da Declaração do Rio, dispõe: “O melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em nível que corresponda. No plano nacional, toda pessoa deverá ter... a oportunidade de participar nos processos de adoção de decisões. Os Estados deverão facilitar e fomentar a sensibilização e a participação da população colocando a informação à disposição de todos”. Dessas interpretações, se pode deduzir que uma participação pública efetiva deve incluir, no mínimo, a garantia das pessoas interessadas, incluindo as mulheres e crianças. Assim, se espera que os interessados possam: (1) receber e difundir informação previamente à tomada de decisões, e que a informação se apresente de uma forma adequada e clara; (2) ter suficiente tempo para revisar e apresentar comentários, e (3) ter acesso à informação e justificação motivadas da decisão da autoridade a respeito do assunto tratado. Ademais, se as comunidades afetadas são povos indígenas ou tribais, outras obrigações são requeridas a respeito da consulta e do consentimento prévio, livre e informado (ver Infra ―Direitos dos povos indígenas e tribais‖). 47 CDH, supra, nota 28, Observação Geral No. 25: artigo 25 ( A participação nos assuntos públicos e o direito de voto) par. 8, 57° período de sessões, 12 de julho de 1996, reproduzido em: Recopilação ONU, supra, nota 17, p. 194. Em sua observação geral No. 25, o Comitê também reconheceu que o direito de participar na direção dos assuntos públicos do artigo 25 (a) é ―um conceito amplo que se refere ao exercício do poder político. Inclui o exercício dos poderes legislativo, executivo e administrativo. Abarca todos os aspectos da administração pública e a formulação e aplicação de políticas internacionais, nacionais, regionais e locais”; Ibid, par. 5. 48 CIDH, Informe sobre a situação dos direitos humanos no Equador 1997, supra, nota 8, cap. VIII. 10 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 Quando a construção da represa implica em deslocamento de pessoas, a consulta e a participação pública dessas pessoas é imprescindível. O Comitê de Direitos Humanos considera que ―entre as garantias processuais que deveriam ser aplicadas no contexto dos desalojamentos forçados figuram... uma autêntica oportunidade de consultar as pessoas afetadas‖49. Ademais, distintos documentos das Nações Unidas que contêm princípios reitores sobre o deslocamento, estabeleceram que ―todas as pessoas afetadas, entre elas as mulheres, as crianças e os povos indígenas, devem ter direito a conhecer todas as informações pertinentes, a participar plenamente e ser consultadas durante todo o processo, assim como, propor qualquer alternativa‖50. Por último, o Relator Especial sobre o Direito à Moradia Adequada, Miloon Kothari, elaborou diretrizes sobre esses requisitos, em casos de pessoas desalojadas por projetos de desenvolvimento (ver quadro de texto, logo a seguir). Essas diretrizes devem ser incorporadas em qualquer processo de participação pública e consulta, com o fim de garantir os requisitos mínimos dos direitos humanos. Finalmente, é importante ressaltar que a consulta às pessoas e comunidades afetadas por represas é um requisito essencial dentro das recomendações da Comissão Mundial de Represas51, e também, está incluído nas políticas do banco mundial52 e do Banco Interamericano de desenvolvimento53. É evidente, que quando se vá implementar esse tipo de projeto e se tenha como conseqüência o deslocamento ou afetação de pessoas, uma adequada participação e consulta são requisitos essenciais. 49 CDESC, Observação Geral No. 7, supra, nota 17. Diretrizes para os Deslocamentos, supra, nota 28, art. 16; Ver também, CDH, Princípios Reitores dos Deslocamentos Internos, supra, nota, 28, princípio 7.3: “Se o deslocamento se produz em situações distintas dos estados de exceção devido a conflitos armados e catástrofes, as garantias seguintes são respeitadas: ... b) serão adotadas medidas adequadas para facilitar aos futuros deslocados, informação completa sobre as razões e procedimentos do seu deslocamento e, e em seu caso, sobre a indenização e o reassentamento; c) será recolhido o consentimento livre e informado dos futuros deslocados; d) as autoridades competentes tratarão da intervenção das pessoas afetadas, em particular as mulheres, no planejamento e gestão do seu reassentamento...” 51 A primeira Prioridade Estratégica da Comissão Mundial de Represas é ―obter a aceitação pública”, e fazer com que “[O]s processos e mecanismos de tomada de decisões utilizados devem facilitar a participação e informação de todos os grupos [afetados], e resultar na aceitação demonstrável das principais decisões‖, Relatório CMR, supra, nota 19, p. 215. 52 Banco Mundial, Diretriz Operacional 4.12 – Reassentamento forçado, http://go.worldbank.org/96LQB2JT50 (―Pessoas deslocadas devem ser consultadas de modo significativo e ter oportunidades a participar no planejamento e implementação dos programas de reassentamento.‖) (tradução não oficial). 53 BID, Strategy for Promoting Citizen Participation in Bank Activities, 14 de maio de 2004; BID, Environmental Safeguards and Compliance Policy, pp. 5-6, 19 de janeiro de 2006. 50 11 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 Precisamente, para evitar ingerências arbitrárias nos direitos humanos das pessoas afetadas por projetos que impliquem em desalojamentos forçados, o Relator Kothari, concluiu que na decisão dessas obras ―deveriam participar todos os que possam se ver afetados e incluir os seguintes elementos‖54: a. Um aviso apropriado a todas as pessoas que possam se ver afetadas pelo desalojamento e que haja audiências públicas sobre os planos e alternativas propostos. b. A difusão eficaz e adiantada, pelas autoridades, da informação correspondente; em particular, os registros da terra e os amplos planos de reassentamento propostos, com as medidas dirigidas, especialmente, para proteger os grupos vulneráveis. c. Um prazo razoável para o exame público, a formulação de comentários e/ou objeções sobre o plano proposto. d. Oportunidades e medidas para facilitar a prestação de assessoramento jurídico, técnico e de outro tipo às pessoas afetadas em seus direitos. e. Celebração de audiências públicas que dêem a oportunidade às pessoas afetadas e a seus defensores de impugnar a decisão de desalojamento e/ou apresentar propostas alternativas e formular suas exigências e prioridades de desenvolvimento. E. Violações aos direitos territoriais dos povos indígenas e tribais As comunidades e povos indígenas e tribais, pela relação cultural particular que gozam com seus territórios tradicionais, são sujeitos de certos direitos coletivos reconhecidos tanto na Convenção 169 da OIT, como na Convenção Americana e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Esses direitos, que frequentemente são abalados na construção de represas, demandam a obrigação de consultar previamente os povos indígenas, cujos recursos naturais serão afetados por projetos ou planos dos Estados e, inclusive, de obter o seu consentimento livre e informado. Ademais, estão incluídas proteções e medidas especiais para os direitos culturais dos povos indígenas, como por exemplo alguns lugares sagrados que podem ser inundados pelos reservatórios55. No entanto, como se sucede com outras comunidades, os Estados do hemisfério, na grande maioria dos casos, não consultam nem buscam o consentimento dos povos indígenas e tribais quando planejam e implementam projetos de grandes represas. 54 Princípios básicos do Relator Especial, supra, nota 32, par. 37. Ver por exemplo, Convenção No 169 da Organização Internacional d Trabalho sobre povos indígenas e tribais em países independentes, arts. 5(a) y 13(1), 28 I.L.M. 1382, 27 de julho de 1989 [doravante Convenção 169]. 55 12 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 Frequentemente, à comunidades inteiras, são negados adequados processos de consulta, como por exemplo o povo indígena Ngöbe, no caso Chan 7556 e com duas comunidades afro-equatorianas, no caso da represa Baba, no Equador57. Apesar dos prováveis impactos transfronteiriços do projeto brasileiro do Rio Madeira, no território boliviano, e ainda, habitado por povos indígenas, as autoridades brasileiras não efetuaram consultas adequadas com os cidadãos bolivianos e as suas comunidades indígenas58. Finalmente, há casos como o reassentamento de grupos indígenas Guaranies Mbya, pelo projeto de Yacyretá — realizado sem a consulta nem consentimento prévio dos interessados — que reconhecidamente, pelo BID e pelo Banco Mundial, tiveram seus direitos violados59. O direito à consulta e ao consentimento livre e informado, se aplica a todos os povos indígenas que se auto edificam como indígenas e tribais60, e protege a totalidade de seu território tradicional — o espaço ―que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra maneira‖61. Quando um projeto de desenvolvimento contempla o aproveitamento dos recursos naturais que se encontram em território tradicional dos povos; por exemplo os recursos hídricos, o Estado está obrigado a primeiro realizar um processo de consulta prévia. O artigo 6.2 da Convenção 169 da OIT, requer que o processo se complete ―de boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com a finalidade de chegar a um acordo ou lograr o consentimento acerca das medidas propostas‖. No Caso do Povo Saramaka vs. Suriname, a Corte Interamericana estabeleceu que a Convenção Americana requer dentro do processo de consulta que: As consultas devem ser realizadas de boa-fé, através de procedimentos culturalmente adequados, e devem ter como fim, chegar a um acordo; Deve haver a consulta com os povos interessados em conformidade com suas próprias tradições, nas primeiras etapas do plano de desenvolvimento, ou de inversão e, não unicamente, quando surja necessidade de se obter a aprovação da comunidade; O Estado deve assegurar-se que os membros do povo tenham conhecimento dos possíveis riscos, incluindo os riscos ambientais e de insalubridade, a fim de que aceitem o plano de desenvolvimento ou inversão proposto com conhecimento e de forma voluntária. A consulta deveria ter em conta os métodos tradicionais do povo Saramaka para a tomada das decisões62. 56 Relatório AIDA, supra, nota 1, pp. 76-88. Ibid, supra, nota 9. 58 Ibid, supra, nota 10. 59 Ibid, supra, nota 1. 60 Para a definição de povo indígena ou tribal, ver supra, nota 55, art.1. É importante notar que de acordo com o segundo inciso do art. 1o. , “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção”. 61 Ver Ibid, art. 13.2. 62 Corte IDH, Caso do Povo Saramaka, supra, nota 37, par. 133. 57 13 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 Ademais, existem pelo menos duas circunstâncias específicas, pelas quais os Estados devem conseguir o consentimento prévio, livre e informado dos povos interessados antes de começar a construção ou planejamento de uma grande represa. A primeira é quando o projeto implica em deslocamento do povo, por exemplo no caso do reservatório que requer a transferência de uma comunidade indígena ou tribal. De acordo com a Convenção 169 da OIT, o traslado unicamente pode se realizar em situações excepcionais, quando se considere necessário e com o consentimento do povo, ―dado livremente e com pleno conhecimento de causa‖63. A Corte Interamericana também já reconheceu que o consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas e tribais é necessário quando um projeto de desenvolvimento ―pode... ter um impacto profundo nos direitos de propriedade dos membros do povo [interessado] em grande parte de seu território‖64. Tal seria o caso de uma grande represa que destrói ou altera gravemente ecossistemas importantes no território de um povo. Finalmente, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, também indica que o consentimento é necessário com qualquer projeto de desenvolvimento no território dos povos afetados65. F. Falta de acesso à informação e à justiça O acesso livre à informação pública é fundamental para garantir a participação das pessoas afetadas em processos de planejamento e aprovação de represas, pois sem a informação adequada, é impossível propor comentários, alternativas e ações para mitigar, ou realizar um controle sobre o projeto. O direito à informação inclui contar com procedimentos efetivos e abertos para alcançar informações sobre licenças e concessões, estudos já realizados ou razões pelas quais não se tenham realizado, e qualquer outro tipo de informação relevante ao projeto. Em todos os casos, tanto no relatório completo66 como em todos os demais que conhecemos, esta classe de informações não estão disponíveis às pessoas e comunidades interessadas, impedindo-os assim, de conhecer os riscos ou consequências associados com a represa. Por exemplo, quando o governo brasileiro contratou um hidrólogo para realizar novos estudos de sedimentação para o projeto do Rio Madeira, a informação desses 63 Convenção 169, supra, nota 55, art. 16.2. Corte IDH, Caso do Povo Saramaka, supra, nota 37, par. 137. 65 Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas, G.A. Res. 61/295, U.N. Doc A/RES/61/295, 10 de dezembro de 2007, [doravante Declaração dos Povos Indígenas], art. 32(2) (―Os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo”.) 66 Relatório AIDA, supra, nota 1. 64 14 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 estudos foi negada à sociedade civil durante grande parte do processo67. Em outros casos, mesmo que as autoridades proporcionem informação sobre o projeto, a fazem de maneira muito pouco transparente e sem suficiente tempo para análise, como se vê nas reuniões de consulta do caso de Baba, no Equador68. Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos entende que: ―Para alcançar uma proteção eficaz contra as condições ecológicas que constituem uma ameaça para a saúde humana, é imperativo que a população tenha acesso à informação, participe nos processos pertinentes à tomada de decisões e conte com recursos judiciais‖69. Ademais, o acesso à informação é um direito humano autônomo. A Corte Interamericana se pronunciou a esse respeito em várias ocasiões, indicando que tal direito é amparado pelo artigo 13 da Convenção Americana70, e, que além disso, permite que as pessoas ―exerçam o controle democrático das gestões estatais, de forma tal que possam questionar, indagar e considerar se está havendo um cumprimento adequado das funções públicas‖71. Por último, na totalidade dos casos que conhecemos, temos encontrado uma enorme carência de acesso à justiça. Esse direito compreende não somente a possibilidade de acessar os tribunais de um país, mas sim, de também, contar com recursos idôneos e efetivos para exigir e tutelar os direitos; sejam esses judiciais, administrativos ou de outra índole72. A garantia a um recurso efetivo para a proteção dos direitos é também um direito humano73 e demanda a obrigação de que esse também seja efetivo; ou seja, ―capaz de produzir o resultado para o qual foi concebido‖74. Nesse sentido, se não existem mecanismos ou se esses mecanismos não são efetivos para garantir o acesso à informação, aos estudos prévios de impactos ambientais e sociais, e aos processos de participação pública, também existe uma violação ao direito à justiça e ao acesso dos recursos efetivos. 67 Relatório AIDA, supra, nota 10. Relatório AIDA, supra, nota 9. 69 CIDH, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Equador (1997), supra, nota ,cap. III. Conclusões. Ademais, o acesso à informação forma parte dos princípios do direito internacional ambiental. Ver Declaração do Rio, supra, nota , Princípio 10. 70 Ver por exemplo, Corte IDH, Opinião Consultiva OC-5/85, ― La Colegiación Obligatoria de Periodistas‖, solicitada pelo Governo da Costa Rica, 13 de novembro de 1985; Caso Herrera Ulloa c. Costa Rica, sentença de mérito, 2 de julho de 2004, par. 108 (indicando que o artigo 13 inclui ―o direito e a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda índole”.) 71 Corte IDH, Caso Claude Reyes y otros c. Chile, Sentença de mérito, 19 de setembro de 2006, Serie C No 151, par. 86. 72 Ver por exemplo, Corte IDH, Caso Comunidad Indígena Yakye Axa c. Paraguay, Sentença de mérito, 17 de junho de 2005, Série C. No 125,, párr. 62; ver também Declaração do Rio, supra, nota 6, Princípio 10. 73 Ver Convenção Americana, supra, nota 12, arts. 8 e 25; PIDCP, supra, nota 12, art. 2.3. 74 Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez vs Honduras, Sentença de mérito, 29 de julho de 1988, Série C No. 4, par. 66. 68 15 Informe Grandes Represas na América, Pior o Remédio que a Doença?, AIDA, 2009 G. Criminalização do protesto das comunidades e pessoas afetadas, ameaças e hostilização Como conseqüência das situações de violações de direitos humanos, em particular a falta de participação pública e o acesso a recursos de proteção efetivos, muitas comunidades não têm outra opção salvo a de recorrer ao protesto social para reclamar a respeito de seus direitos. Em alguns dos casos de estudos, a resposta por parte dos Estados a essas manifestações tem sido a criminalização da resposta social e hostilização aos que pretendem fazer valer os seus direitos. A criminalização dos protestos pode ser manifestada com reações violentas ou através do uso desproporcional da força pública por parte do Estado para controlar as manifestações massivas. Alternativamente, também pode haver hostilização, ameaças, início de processos judiciais infundados ou ataques contra os defensores que assumam a proteção do meio ambiente ou dos direitos das pessoas afetadas. Essa violência, se vê claramente no caso de La Parota, onde o conflito entre as comunidades, que estavam contra e a favor da represa, resultou em três assassinatos, graves feridos, encarceramento e enfrentamento com a polícia durante as audiências e assembléias acerca do projeto75 . Inclusive, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está investigando as violações aos direitos humanos dos membros da Comunidade Indígena de Río Negro, na Guatemala, pela ocorrência de massacres, fatos que estavam relacionados com a construção da represa de Chixoy76. Esses exemplos se ajustam a um padrão maior de ataques contra defensores ambientais em casos de grandes projetos de desenvolvimento que têm implicações regionais e que já foram reconhecidos por organismos e instrumentos do direito internacional77. A repressão desproporcionada e os ataques aos defensores ambientais e aos direitos humanos, são violações ao direito à vida (Convenção Americana, art. 4; PIDCP art. 6), à integridade pessoal (Convenção Americana, art. 5; PIDCP, art. 7), ao direito de reunião (Convenção Americana, art. 15; PIDCP, art. 21), à livre associação (Convenção Americana, art. 16; PIDCP, art. 22), à liberdade de expressão (Convenção Americana, art. 13; PIDCP, art. 19) à proteção jurídica e ao devido processo legal (Convenção Americana, arts. 8 e 25; PIDCP, arts. 9 e 14). 75 Relatório AIDA, supra, nota 1, pp. 76-88. CIDH, Comunidad de Río Negro del Pueblo Indígena Maya y sus miembros c. Guatemala, Relatório No. 13/08, 5 de Março de 2008. 77 Ver por exemplo, CIDH, Relatório sobre a situação dos defensores dos direitos humanos nas Américas, OEA/Ser.L/V/II.124 Doc. 5 rev. 1 (7 de março de 2006); Corte IDH, Caso Kawas Fernández c. Honduras, Sentença de mérito , 3 de abril de 2009, Série C No. 196; Declaração sobre o direito e o dever dos indivíduos, dos grupos e instituições, de promover e proteger os direitos humanos y as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos, U.N. Doc. A/RES/53/144, 8 de março de 1999; CDH, Relatório apresentado pela Representante Especial do Secretário Geral sobre defensores de direitos humanos, Sra. Hina Jilani, Relatório Anual 2002, U.N. Doc. E/CN.4/2002/106. par. 51; e Relatório Anual 2004, par. 30, U.N. Doc. E/CN.4/2004/94. 76 16