“O objetivo da filosofia é edificar um muro no local onde a linguagem, mesmo sem ele, cessa.” Ludwig Wittgenstein [TBT:27] José Maria Arruda de Andrade Doutor pela Faculdade de Direito da USP – Departamento de Direito Econômico e Financeiro; professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Instituição Toledo de Ensino (Bauru) e das Faculdades Integradas Cantareira; membro do Instituto Brasileiro de História do Direito, do Conselho Científico da APET, do IBDT e do IPT/SP; advogado em São Paulo INTERPRETAÇÃO DA NORMA TRIBUTÁRIA 2006 © José Maria Arruda de Andrade, 2006 Revisão Erika Sá Ilustração da capa Catedral de Colônia (Alemanha), à noite Edição Pedro Barros Diretor responsável Marcelo Magalhães Peixoto A567i Andrade, José Maria Arruda de Interpretação da norma tributária / José Maria Arruda de Andrade. - São Paulo : MP Ed., 2006 Inclui bibliografia. ISBN 85-98848-33-6 1. Direito tributário - Interpretação e construção. I. Título. 06-1646. CDU 340.132.6:351.713 Todos os direitos desta edição reservados a MP Editora Av. Paulista, 2202, cj. 51 São Paulo-SP 01310-300 Tel./Fax: (11) 3171 2898 [email protected] www.mpeditora.com.br Sumário agradecimentos 11 PREFÁCIO Eros Roberto Grau 15 Apresentação Prof. Dr. Humberto Ávila 19 Abreviaturas Utilizadas 25 INTRODUÇÃO 27 CAPÍTULO 1. O Desenvolvimento do Tema na Teoria Geral do Direito 33 1.1. As principais correntes do século XIX 35 1.1.1.A Escola da Exegese (L’École de L’Exégèse) 35 1.1.2.A Escola Histórica do Direito 41 1.1.3.A jurisprudência dos conceitos [Begriffsjurisprudenz] ou 46 pandectística [Pandektenwissenschaft] 1.1.4.A Jurisprudência dos Interesses [Interessenjurisprudenz] 52 1.2. Considerações gerais acerca da hermenêutica jurídica tradicional 58 1.2.1.Essencialismo e representacionalismo 58 1.2.2.Características gerais 60 1.2.2.1. Objetivos 60 1.2.2.2. Elementos 61 1.2.2.3. Resultados 76 1.2.2.4. Flexibilizações comuns 77 1.2.2.4.1. Carga subjetiva 79 1.2.2.4.2. Ambigüidades e vaguezas (textura aberta) do texto normativo 81 1.3. Evitando-se uma hermenêutica tradicional 90 1.4. Tensões sobre o formalismo e o positivismo: o lastro metodológico dos séculos XX e XXI 93 1.5. Método jurídico e direito público 98 1.6. A identificação com a teoria da obrigação 103 1.7. O desenvolvimento da teorização sobre a interpretação da norma tributária no Brasil 113 capítulo 2. Subsídios Teóricos para a Análise do Tema 2.1. Pontos de partida metódicos 2.1.1.Crítica ao representacionalismo 2.1.1.1. A evolução da Sprachkritik para a terapia conceitual 2.1.1.2. Crítica da linguagem como representação (jogos de linguagem – Sprachspiele) 2.1.1.3. “Seguir uma regra” na obra de Wittgenstein 2.1.1.4. Sistema referencial [Bezugssystem] 2.1.1.5. O intérprete como sistema autopoiético, e não o direito 2.1.2.Concreção normativa (metódica jurídica estruturante) 2.1.2.1. Texto normativo e o seu produto: a norma 2.1.2.2. Teoria estruturante do direito 2.1.2.3. Elementos da concreção da norma 2.1.2.4.Confusão entre a noção de área da norma, elementos fáticos e “Tatbestand” 2.2. Pós-positivismo, positivismo e a difícil relação entre política e direito (redução política do pensamento jurídico) 2.3. A legalidade tributária 2.4. A questão da segurança jurídica 121 121 122 125 128 134 138 141 149 150 153 154 154 161 168 183 CAPÍTULO 3. Interpretação e Integração da Norma Tributária (Concreção Normativa) 191 3.1. Limites e fluidez da dicotomia 191 3.1.1.A dicotomia e seu uso meramente didático 197 3.1.2.Interpretação e integração e seu enfoque normativo 198 3.1.3.Interpretação e integração e seu enfoque descritivo 199 3.2. Proposta de enfoque (perspectiva decisionista e pragmática) 201 3.3. Integração e o estudo das lacunas 210 3.3.1.Lacunas e espaço ajurídico 219 3.3.2.Enumeração taxativa e exemplificativa 222 3.3.3.Lacunas: defeito técnico-normativo 226 3.4. O Código Tributário Nacional e as regras de interpretação e de integração 228 3.4.1.Interpretação extensiva, integração e concreção normativa 232 3.5. A interpretação literal (ou restritiva) na isenção e na aplicação de penalidades 238 3.6. A concreção normativa das imunidades 249 3.7. Conceitos de direito privado e definição de competência tributária 257 3.8. Consideração econômica 267 3.8.1.Histórico 268 3.8.2. Interpretação econômica, interpretação teleológica e finalidade econômica da norma tributária 273 3.9. A analogia no direito tributário 276 3.9.1.Localização histórica 279 3.9.2.Modelo básico de analogia 280 3.9.3.Analogia em sentido estrito x interpretação extensiva 280 3.9.4.A Analogia na jurisprudência brasileira 281 4. Conclusões 289 Bibliografia 299 À Antonio Carlos de Andrade (in memoriam) Neide Carvalho de Arruda (in memoriam) meus pais, pelo amor e educação. Eugênia Thereza de Andrade, pela ajuda decisiva, na ausência de meus pais, ao meu ingresso na FDUSP e na pós-graduação. Iracema Casemiro Arruda (in memoriam) Yolanda Martins de Arruda Maria Aparecida de Arruda (in memoriam) Judith Arruda (in memoriam) Maria Aurora Arruda Corradini Nelson Corradini (in memoriam) Osvaldo Martins de Arruda (in memoriam) Dilza Delgado de Arruda Sílvio Melcer Dworecki Eunice Arruda Minha avó e meus tios, por me ajudarem em todos os momentos em que precisei, e não foram poucos. A todos, meu eterno amor e gratidão. agradecimentos Além de ser um dos momentos mais importantes da carreira de um pesquisador, o Doutorado gera uma série de dificuldades, até por ser, em geral, o primeiro trabalho de fôlego de um autor. No meu caso, pude contar com uma infinidade de amigos e pessoas queridas, que me auxiliaram e deram suporte durante o prazo para realizar a pesquisa. Em primeiro lugar, gostaria de registrar minha eterna gratidão aos ensinamentos e à orientação do professor Eros Grau. Mais do que um orientador, ele me deu todo o suporte para que eu realizasse meu projeto. Deu-me as broncas nos momentos corretos e soube incentivar-me quando o desânimo se fazia presente. Ao professor Gilberto Bercovici, devo a amizade dos primeiros anos de Arcadas e, depois, todo o apoio, leitura crítica e conselhos que só um grande professor sabe dar. Quero consignar, também, a minha gratidão e o meu amor à minha esposa, Luciana, que conviveu comigo na etapa decisiva de meu Doutorado, dando-me o apoio imprescindível nessa árdua tarefa e tornando-me uma pessoa ainda mais feliz. Importante registrar outros professores que compareceram em minha pesquisa, sugerindo obras e realizando críticas em seminários ou textos, são eles: Friedrich Müller, Antonio Junqueira de Azevedo (a quem devo a indicação da obra de Castanheira Neves e a proposta de discussão da relação entre política e direito), Tercio Sampaio Ferraz Jr., Marcelo Neves, Martônio Barreto Lima, Heleno Tôrres, Paulo Bonavides, Washington Albino Peluso de Souza, Luís Eduardo Schoueri, Hermes Marcelo Huck e Paulo de Barros Carvalho. Gostaria de expressar minha gratidão à professora Anna Maria Martins, grande incentivadora de minha atividade docente. Aqueles que atuaram com ela sabem da satisfação de trabalhar com uma 11 josé maria arruda de andrade pessoa que conjuga liderança com compreensão, capacidade de organização e carisma. Igualmente, meus agradecimentos aos novos colegas do corpo docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Meu reconhecimento também vai aos professores que compuseram a banca de argüição da tese: Humberto B. Ávila, hoje, um dos maiores nomes da disciplina constitucional e tributária; Paula Forgioni, a quem devo vários e preciosos conselhos, sobretudo a preocupação com a segurança jurídica; Eduardo Bittar, por seu turno, sempre foi um pesquisador incansável da filosofia da linguagem, abordando certos aspectos dela comigo já no segundo ano da graduação; por fim, Ricardo Lobo Torres foi uma das minhas principais referências científicas, tendo em vista o grande mestre que é da crítica ao positivismo tributário brasileiro e da teorização da interpretação da norma tributária. Agradeço também aos pesquisadores e amigos Edmundo Emerson de Medeiros, Filipe Antonio Marchi Levada, Diego Calandrelli e Enzo Megozzi (pelo suporte e leitura atenta dos originais), Samuel Rodrigues Barbosa, Márcio Soares Grandchamp, Jean Paul da Veiga Filho, Otávio Yazbek, José Augusto Fontoura Costa, Helenilson Cunha Pontes, Eduardo Borges, Décio Porchat, Enéas de Oliveira Matos, Vera Lúcia Viegas, M. Weikath e K. Hansen. Agradeço aos amigos Renato Pereira Brandão (pelo apoio incansável desde a graduação até o momento final da tese), Marcos Roberto Shiratori (amigo sempre presente), Sandrya Rodríguez Valmaña, Lincoln Andrade de Moura, Horacio Souza, Junior Camargo, Márcio Diniz, Paula Kumamoto, Jamil Felix e Cristina Nakayama (pelas aulas de alemão), Júlio Araújo (pela leitura atenta e crítica da tese apresentada), Janaína Ribeiro (pela revisão da jurisprudência citada), Mariene Maeda (pela leitura gramatical da tese, agradeço a paciência e a presteza na tarefa árdua), Dr. Chafi, Marcelo Magalhães Peixoto, Jorge Facure, Marília Mäder, Veridiana Fernandes, Katrin Bönninger Moreira (pela ajuda na versão em alemão do resumo). 12 interpretação da norma tributária Tenho, além disso, uma dívida de gratidão com Alexandra M. H. Matsuo, que, durante todo o período do Doutorado, ajudou-me em minha relação com o meu orientador, na qualidade de assessora dele, e que, como amiga, sempre torceu por mim e me ajudou em várias oportunidades. Meu reconhecimento também vai para aqueles amigos e colegas de atuação profissional que me ajudaram a compreender o direito empresarial tributário em seu aspecto mais vivo e dogmático; sem eles, esse livro não seria o mesmo. A eles, o meu agradecimento: Fernando Antonio Cavanha Gaia, Severino Silva, João Dácio Rolim, Gerson Stocco, Alexandre Tróia, Sérgio Saia e o meu principal interlocutor das mais variadas questões tributárias, com quem muito discuti e aprendi, Enio Zaha. Em nome deles, saúdo toda a equipe da Gaia, Silva, Rolim & Associados. Agradeço, ainda, pela família que tenho, pois, além dos nomes que constam na dedicatória, minha vida não seria a mesma sem meus primos André, Tiago, Luzia, Maíra, Mika, Pedro, Patrícia, além de meus queridos cunhados, Nilton, Ana Paula, Pedro Jesus. Com emoção, agora, vejo a nova geração de nossas famílias, nas figuras de Enzo, Matteo, Natalia e Lucas. Minhas lembranças e saudades para Mirian, sogra que me tratou como um filho durante o período que comigo conviveu. Por fim, quero registrar meu eterno e infinito amor a minha irmã, Paula Arruda, que me ajudou e amparou na ausência de nossos pais; dela, só tive apoio e torcida, sempre. José Maria 13 PREFÁCIO José Maria foi meu aluno no curso de graduação, quando me pediu que o orientasse em uma pesquisa que pretendia desenvolver. As indagações que formulava anunciavam desde então uma inquietude intelectual criativa. Sugeri a ele que estudasse a função dos princípios no direito e a interpretação dos textos normativos. O encontro com Wittgenstein aconteceu quase prematuramente. Mais tarde, cursando disciplinas no curso de pós-graduação, o José Maria foi, por vários semestres, monitor nos meus cursos de direito econômico na velha e sempre nova Academia do Largo de São Francisco. Esse convívio intelectual permitiu-me acompanhar a construção de sua tese desde os primeiros ensaios, alguns deles apresentados em seminários da pós e em encontros de estudos em Tiradentes. Desde cedo percebi que o Zé Maria, como os amigos o chamam, pretendia caminhar pelas trilhas do que se convencionou denominar “nova hermenêutica”, optando por uma teoria da linguagem não-representacionalista, centrada na filosofia de Ludwig Wittgenstein. Incentivei-o a seguir pelas sendas que o encantavam. Ele o faria de qualquer modo, estava decidido a isso. Participei das duas argüições a que foi submetido: uma para qualificação, outra para a defesa de tese. A marca mais característica de seu trabalho encontra-se na fundamentação de suas conclusões na pesquisa de um sistema filosófico. Essa decisão foi por ele tomada ainda que isso necessariamente acarretasse, mais adiante, a adoção apenas parcial das teorias jurídicas em que buscou apoiar-se – como a teoria estruturante de Friedrich Müller e a minha própria – e mesmo a afirmação de certos resultados que não agradariam os dogmáticos do direito tributário brasileiro. Esses dois pontos são extremamente significativos. O recurso à metódica jurídica de Müller, por exemplo, foi assumidamente 15 josé maria arruda de andrade limitado. Zé Maria não se comprometeu com a totalidade das conclusões desse meu bom amigo, seja porque elas refletem a experiência alemã – e não existe o direito, existem os direitos –, seja porque pretendeu, antes, fincar os fundamentos de uma teoria de interpretação jurídica não-representacionalista, projeto não considerado pelo jurista alemão. Isso fica muito claro na análise da construção da norma-decisão [Entscheidungsnorm], onde a referibilidade semântica estabelecida entre a norma-decisão e o programa da norma [Normprogramm] é tomada em termos relativos (p. 159-61). Em um tempo no qual os mais jovens buscam em pensadores estrangeiros um modelo para ser aplicado no Brasil, muitas vezes sem a menor preocupação com a nossa realidade cultural, tempo em que alguns autores buscam afirmar-se como verdadeiros intérpretes autênticos de juristas estrangeiros, de si mesmos nada tendo a declarar, vi com alegria que José Maria é independente em relação aos juristas nos quais se nutriu, seja o Müller, sejam outros que ele utilizou com abundância em sua tese, o Lobo Torres, o Ávila e eu mesmo. Outro ponto que chamou minha atenção diz com o fato de o autor ter enfrentado os postulados nucleares do direito tributário brasileiro, fazendo boa crítica de alguns deles e, sobretudo, da idéia de uma legalidade centrada – não só filosófica, mas também ideo logicamente – na tipicidade fechada, absoluta. Essa crítica, endereçada à hipertrofia da defesa liberal da propriedade, apartada dos objetivos da República Federativa do Brasil veiculados pelos arts. 3º e 170 da Constituição, me satisfaz, até porque tenho me empenhado em negar a concepção do Estado como algo separado da sociedade. O individualismo possessivo que toma conta de nós – disse-o em outra oportunidade – permite visualizarmos exclusivamente o que . Ver meu: O Estado, a liberdade e o direito administrativo. Revista da Faculdade de Direito, v. 97, São Paulo, Serviço Técnico de Imprensa da Faculdade de Direito da USP. Também meu: O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. São Paulo: Malheiros: 2005. p. 256 e ss. 16 interpretação da norma tributária pertence a cada um, e os bens que são ditos públicos assim são chamados porque arrebatados pelo Estado, este inimigo de cada um, concebido como instituição rigorosamente separada da sociedade. Enfim, o trabalho do José Maria é ousado, mas de uma ousadia sadia, serena, mercê de uma maturidade intelectual conquistada, com afinco, em detida reflexão – de maneira contraditória, apenas os intelectualmente inquietos realizam o equilíbrio da sabedoria. Alertei-o, no curso de sua pesquisa, para os perigos da arrogância intelectual, observando que sábio é quem, conservando a independência, colhe em outros autores inspiração para dizer o que tem a dizer, sem se bastar em repetir o que esses autores já disseram. Brasília, dezembro de 2005 Eros Roberto Grau 17 Apresentação Lembro-me como se fosse hoje da defesa de tese do doutorando José Maria Arruda, que mais tarde viria se tornar meu amigo, atendendo pelo nome amistoso de Zé Maria: apertados nas velhas cadeiras da tradicional Sala da Congregação da prestigiada Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, os membros da banca como que se aproveitavam da dificuldade do tema (nada mais, nada menos do que o velho e sempre difícil tema da interpretação no direito, em especial no direito tributário) e da complexidade do caminho escolhido para investigá-lo (nada mais, nada menos do que por meio da reconstrução dos critérios de interpretação com base na filosofia da linguagem, notadamente como examinada por Wittgenstein) para lançar sérias críticas ao trabalho, algumas das quais, quando feitas, pareciam impossíveis de serem rebatidas; o então doutorando, porém e apesar de tudo, foi respondendo, uma a uma, todas as objeções que lhe eram apresentadas com tal calma, tal inteligência e tal habilidade intersubjetiva que o presidente da banca, ao final e em nome da banca, só pôde mesmo lamentar o novo método de avaliação da Faculdade, que se limita a aprovar ou reprovar o candidato, simplesmente porque aquele trabalho não poderia ser apenas aprovado, deveria, isto sim, ser homenageado, tal era a qualidade do seu conteúdo e a excelência da sua defesa. De fato, este trabalho, que o leitor tem em mãos, não é um trabalho normal, em vários aspectos. Em primeiro lugar, o trabalho é invulgar porque enfrenta talvez o tema mais complexo do direito, que é o da interpretação. A complexidade do tema decorre da sua vinculação com temas fundamentais da teoria do direito, 19 josé maria arruda de andrade da filosofia do direito e, até mesmo, da filosofia em geral. Não por acaso, é um tema desaconselhável para ser tratado em monografias de final de curso ou mesmo em dissertações de mestrado, tais as dificuldades que apresenta. Em segundo lugar, a tese é extraordinária porque enfrenta o tema de forma corajosa, tomando partido nas discussões que enfrenta e analisando autores incomuns aos operadores do direito, que se limitam, em grande parte, a compilar autores nacionais e estrangeiros, valendo-se da sua autoridade, mas, não, da autoridade dos seus argumentos, aliás, nem sempre existente. Em terceiro lugar, a obra é diferente porque analisa um tema propício às mais elevadas abstrações, fazendo-o, porém, com os pés cravados no chão: o estudo que faz da filosofia da linguagem não tem finalidade em si, mas é instrumento cuidadosamente estudado pelo autor para a análise fundamentada do direito positivo brasileiro e para a crítica certeira das decisões dos Tribunais Superiores no Brasil. Quem pensa, porém, que uma tese dessa envergadura, baseada na filosofia da linguagem, não se reveste nem de atualidade, nem de interesse prático, está redondamente enganado. Embora isso não seja compreendido pela maioria dos operadores do direito, o debate que hoje se trava nos Tribunais Superiores é marcado pela tentativa de responder, entre outras, a uma pergunta especial: as normas jurídicas, notadamente as regras de competência para instituição de tributos, quando utilizam determinadas expressões, põem ou pressupõem conceitos que vinculam o legislador infraconstitucional ou, em vez disso, deixam aberta a possibilidade de ele livremente escolher, dentre os supostos vários significados que ela admite, aquele que melhor lhe aprouver? O recente precedente firmado pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários nºs 346.084/PR, 357.950/RS, 358.273/RS e 390.840/MG é prova disso. É que o precedente firmado no caso da base de cálculo das contribuições sociais sobre o faturamento, afora a discussão es20 interpretação da norma tributária pecífica sobre existência ou não de convalidação ou recepção da norma legal pela norma posta por emenda constitucional, colocou o Tribunal, na sua nova composição e numa discussão que envolvia argumentos de forte apelo retórico, como aqueles relacionados à promoção da solidariedade social, frente a duas questões fundamentais para a compreensão do sistema constitucional tributário brasileiro: as expressões utilizadas pelas regras de competência põem ou pressupõem conceitos que vinculam o legislador ou ele está livre para dinamicamente conceituá-las? Mesmo que as regras de competência remetam o intérprete a determinados conceitos, os princípios constitucionais podem justificar o seu afastamento ou a sua ampliação? Essas questões foram respondidas, tendo ficado nítidas quais eram as posições existentes e qual delas foi a vitoriosa. No tocante à questão de se saber se as expressões utilizadas pelas regras de competência põem ou pressupõem conceitos que vinculam o legislador, o Tribunal Pleno entendeu que o dispositivo legal, ao ampliar o conceito de receita bruta para toda e qualquer receita, violou a noção de faturamento – na expressão utilizada pelo próprio acórdão – “pressuposta” no art. 195, I, b, da CF, na sua redação original, que equivaleria ao de receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza. Ao fazê-lo, o Tribunal afastou o entendimento, defendido inicialmente pelo Ministro Gilmar Mendes, de que as regras de competência, mormente aquelas que atribuem poder à União Federal para instituir contribuições sociais, são normas abertas que atribuem ao legislador o poder para dinamicamente escolher um dos seus múltiplos sentidos. Em vez disso, o Tribunal firmou o entendimento de que a Constituição pressupõe conceitos que não podem ser desprezados pelo legislador ordinário. No que se refere à indagação de saber se os princípios constitucionais podem justificar o afastamento ou a ampliação dos conceitos postos ou pressupostos pela Constituição de 1988, o Tribunal 21 josé maria arruda de andrade Pleno entendeu que o conceito de faturamento como a receita bruta proveniente da venda de mercadorias e da prestação de serviços não poderia ser afastado pelos princípios da universalidade e da eqüidade do financiamento da seguridade social. Ao fazê-lo, o Tribunal afastou o entendimento, também defendido pelo Ministro Gilmar Mendes, de que as regras de competência poderiam ter seus conceitos alargados pelo influxo de uma compreensão institucional da Seguridade Social. No lugar disso, o Tribunal firmou o entendimento de que, se houver um conflito entre o conteúdo da regra e o de um princípio, deve ser dada primazia à regra. Isso significa que os princípios constitucionais, quer os específicos, constantes do capítulo referente à solidariedade social ou ao sistema tributário, quer os gerais, relativos aos princípios fundamentais e garantias individuais, não podem justificar a ampliação da regra de competência. Se o conceito constitucional pressuposto de faturamento é o de receita bruta proveniente da venda de mercadorias e da prestação de serviços, não se pode ampliá-lo, por exemplo, com base no princípio da universalidade do financiamento da seguridade social ou no princípio da igualdade. Esse debate, recentemente discutido no Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, é um dos objetos centrais deste trabalho. Com base na leitura dos clássicos da filosofia da linguagem, o agora Doutor, José Maria Arruda, jovem professor de direito tributário e já reconhecido advogado em São Paulo, não fica na superfície do problema, indo a fundo para demonstrar que o uso que fazemos da linguagem, seja ela técnica ou ordinária, consolida conteúdos normativos que o legislador não mais pode desprezar. Este trabalho, portanto, não trata apenas da linguagem ou mesmo da interpretação das normas tributárias; ele reconstrói limites à própria atividade estatal no campo da tributação. Numa época em que afloram trabalhos cômodos de hermenêutica constitucional ou de metodologia jurídica sustentando que é o próprio intérprete que constrói totalmente os significados das normas jurídicas em razão da realidade 22 interpretação da norma tributária em que vai atuar, como se antes da sua atividade nenhum conteúdo normativo existisse que pudesse estabelecer limites à atividade estatal, é uma grande alegria poder contar com trabalhos como este, que levam a sério a Constituição, a sua linguagem e as suas normas. O Brasil agradece. O inteligente leitor verá. Cambridge, 11 de fevereiro de 2006. Prof. Dr. Humberto Ávila Professor de direito tributário, Financeiro e Econômico dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRS; Doutor em direito pela Universidade de Munique, Alemanha; pós-doutorando em direito constitucional pela Harvard Law School, EUA 23