1 JOSE LUIZ DE ALMEIDA SIMAO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO Trabalho apresentado à Banca Examinadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Orientador: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto SÃO PAULO 2014 2 S588s Simão, José Luiz de Almeida O Supremo Tribunal Federal e a liberdade de expressão. / José Luiz de Almeida Simão. – 2014. 178 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. Orientador: Felipe Chiarello de Souza Pinto Bibliografia: f. 142-147 1. Estado Constitucional 2. Liberdade de expressão I. Título II. Supremo Tribunal Federal - STF CDDir 341.2732 3 JOSE LUIZ DE ALMEIDA SIMAO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO Banca Examinadora: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto (orientador) Profa. Dra. Samantha Ribeiro Meyer-Pflug (examinador externo) Prof. Dr. Daniel Francisco Nagao Meneses (examinador interno) 4 Para Catherine e Laura, por terem-me feito menos egoísta e mostrarem que o amor incondicional não é um conto de fadas... Para Flaviana, por ser melhor do que eu... 5 Agradecimentos Soa como clichê, mas é impossível deixar de agradecer à minha família, minha esposa e minhas duas meninas. A pesquisa acadêmica com o nível de exigência de uma dissertação de mestrado é um trabalho individual que importa na renúncia de valiosas horas de convívio com pessoas próximas e queridas. Espero, em breve, poder compensar cada segundo longe delas. Mais importante, e isso deve ser creditado única e exclusivamente à Flaviana, a paciência que teve comigo e a forma como administrou nossa vida doméstica ao longo de quase dois anos foi determinante para que eu conseguisse concluir o trabalho, especialmente nos momentos de crise que invariavelmente ocorrem no decorrer da pesquisa, atravessando ela, como se não bastasse, todo o processo de gravidez da nossa caçula. Daí a epígrafe. Aos meus pais por terem se esforçado para proporcionar aos filhos educação de qualidade que certamente contribuiu para o resultado deste trabalho e, embora um pouco distantes, nunca esconderam terem confiança em mim. Ao meu orientador Prof. Dr. Felipe Chiarello reservo justas linhas de agradecimento. Além de notável acadêmico e especialista no tema da liberdade de expressão, com histórico de pesquisa no exterior, sempre esteve disposto a dialogar e compreender meus propósitos com esta dissertação e, atento às armadilhas que em alguns momentos havia plantado para mim mesmo, fez imprescindíveis sugestões sobre os rumos a serem dados na pesquisa. Meu honesto obrigado pelo inestimável auxílio. Também agradeço aos integrantes da Banca Examinadora, Profa. Dra. Samantha Ribeiro Meyer-Pflug e Prof. Dr. Daniel Francisco Nagao Meneses, pelas críticas e apontamentos que se mostraram fundamentais para a finalização do trabalho. Por fim, devo fazer menção à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e especialmente à Escola da Defensoria Pública – EDEPE, que custearam parte considerável dos gastos do curso de mestrado. 6 Para aumentar seu saber, escute o que dizem os outros. (Xenofonte, apud Bernardo Carvalho) Mas a disposição de discordar, rejeitar e dissentir [...] é o sangue vital a uma sociedade aberta. Precisamos de pessoas que façam da oposição ao pensamento consagrado uma virtude. Uma democracia do consenso permanente não dura muito como democracia. (Tony Judt) 7 Resumo Trata-se de dissertação que procurou investigar a argumentação utilizada pelo Supremo Tribunal Federal nas decisões envolvendo o princípio fundamental da liberdade de expressão e confrontá-la com o modelo teórico de juiz proposto por Marcelo Neves. Conclui-se que o Supremo Tribunal Federal adota a postura do juiz Hidra, com forte apelo a argumentos principiológicos, sem coerência metodológica e comprometedores da solidez das decisões. A pesquisa seguiu as formas quantitativas e qualitativas e fixou como marco temporal a data do julgamento “caso Ellwanger”, em setembro de 2003, até o limite de 31 de dezembro de 2013. Partiu-se da hipótese de trabalho de que a corte constitucional possui uma jurisprudência vacilante sobre o tema, não empregando argumentos técnicos seguros para conferir a necessária previsibilidade aos pronunciamentos. Para atingir o objetivo proposto foi realizada uma análise das características dos Estados Legislativo e Constitucional, sucedida da apresentação das características dos juízes Hidra, Hércules e Iolau. Em seguida, foram arroladas as razões pelas quais a liberdade de expressão é entendida como direito fundamental, bem como as teorias em voga acerca da restrição do direito em questão. A constatação de que o Supremo Tribunal Federal se assemelha ao juiz Hidra decorreu da análise de três fatores: a teoria prevalecente de restrição ao direito fundamental, a constitucionalidade da restrição do conteúdo da mensagem e a dinâmica da limitação a divulgação de matéria de interesse coletivo. “Palavras-chave”: Estado Constitucional. Liberdade de Expressão. STF. 8 Abstract It dissertation sought to investigate the reasoning used by the Supreme Court in decisions involving the fundamental principle of freedom of expression and to compare it with the theoretical model proposed by Marcelo Neves. We conclude that the Supreme Court takes the position of the judge Hydra with strong appeal to principles arguments without compromising methodological consistency and soundness of decisions. The research followed the quantitative and qualitative forms and timeframe set as the trial date "Ellwanger case", in September 2003, up to the limit of December 31, 2013. Starting point was the hypothesis that the constitutional court has a vacillating jurisprudence on the subject, not using insurance technical arguments to provide the necessary predictability to pronouncements. To achieve the proposed objective analysis of the characteristics of State Legislative and Constitutional, successful presentation of the characteristics of judges Hydra, Hercules and Iolau was performed. Then were enrolled why freedom of expression is understood as a fundamental right, as well as theories in vogue on the restriction of the right in question. The finding that the Supreme Court judge resembles the Hydra was made by analysis of three factors: the prevailing theory of restriction on a fundamental right, the constitutionality of the restriction of message content and dynamics of limiting the disclosure of matters of collective interest. “Keywords”: Constitutional State. Freedom of Speech. STF. 9 Sumário Introdução..................................................................................................................11 1 O atual paradigma de Estado de Direito e o papel dos tribunais na interpretação dos direitos fundamentais.................................................................................................18 1.1 A passagem do Estado de Direito “do império da lei” ao “império da Constituição”.............................................................................................................18 1.2 A proeminência da argumentação como fator de legitimação das decisões judiciais.....................................................................................................................26 2 Análise qualitativa das decisões do Supremo Tribunal Federal: o modelo teórico de juízes de Marcelo Neves.............................................................................................31 3 A liberdade de expressão como direito fundamental................................................51 3.1 As justificativas instrumental e constitutiva da liberdade de expressão................55 3.2 A restrição da liberdade de expressão e pensamento e os direitos da personalidade............................................................................................................67 3.3 Dois modos de encarar o papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: os sistemas americano e europeu....................................................................................79 3.4 O modelo de funcionamento das restrições à liberdade de expressão: a doutrina das restrições prévias e a responsabilidade ex post facto...................................................87 4 O Supremo Tribunal Federal e a argumentação na resolução de conflitos sobre a liberdade de expressão................................................................................................95 4.1 Critérios formais da pesquisa................................................................................98 4.1.1 Os meios processuais de acesso à jurisdição constitucional................................98 4.1.2 As partes nas ações...........................................................................................99 4.1.3 A natureza da tutela jurisdicional pleiteada.....................................................100 4.1.4 Os direitos em conflito com a liberdade de expressão.......................................101 4.1.5 A presença de amicus curiae.............................................................................102 4.2 Critérios materiais da pesquisa...........................................................................104 4.2.1 Teoria da restrição do direito à liberdade de expressão e o método de solução do conflito.....................................................................................................................105 4.2.2 O papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: sistema predominante..........................................................................................................119 10 4.2.3 O modo de funcionamento da restrição à liberdade de expressão.....................126 4.3 O modelo predominante de juiz no Supremo Tribunal Federal...........................135 Conclusão.................................................................................................................139 Referências...............................................................................................................142 ANEXO A.................................................................................................................148 ANEXO B................................................................................................................150 ANEXO C................................................................................................................151 ANEXO D................................................................................................................152 ANEXO E................................................................................................................153 ANEXO F................................................................................................................154 ANEXO G...............................................................................................................155 ANEXO H................................................................................................................161 ANEXO I.................................................................................................................164 ANEXO J.................................................................................................................165 ANEXO K................................................................................................................166 ANEXO L................................................................................................................168 ANEXO M...............................................................................................................171 ANEXO N................................................................................................................172 ANEXO O................................................................................................................173 ANEXO P.................................................................................................................174 ANEXO Q................................................................................................................176 ANEXO R.................................................................................................................177 11 Introdução A promulgação da Constituição Federal em 1988 inaugurou uma fase de amadurecimento institucional no Brasil que perdura há pelo menos vinte e cinco anos, sendo a consolidação da democracia o corolário dessa nova etapa. Fruto do processo de redemocratização que se iniciou nos primeiros anos da década de 1980, a Carta da República foi um importante instrumento de transição de um modelo de Estado violento e autoritário, que vigeu por mais de duas décadas, para um Estado de direito de bases democráticas.1 Fato comum em constituições surgidas após momentos históricos de regimes autoritários, a Constituição Federal apresenta um amplo catálogo de direitos fundamentais de natureza civil, política, social e econômica, institui mecanismo de garantia desses direitos e prevê como direito fundamental o princípio da legalidade, diante do qual somente a lei pode impor deveres aos indivíduos2. Além disso, elege certos grupos como merecedores de especial proteção em razão da situação de vulnerabilidade, como crianças3, idosos4 e indígenas.5 No campo do relacionamento institucional dos poderes constituídos, a Magna Carta recepcionou a teoria da separação de poderes, com menção detalhada das funções de cada Poder da República, conferindo ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de guardião da Constituição Federal, a ser desempenhada no âmbito do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos. 1 BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo. Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 36. 2 Art.5º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” 3 Art. 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” 4 Art. 230. “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.” 5 Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” 12 Pode-se dizer, portanto, que a atual Constituição “foi tecida sob os princípios do devido processo legal, da democracia e dos direitos humanos.”6 É no contexto da positivação dos direitos fundamentais que a liberdade de expressão encontra assento na vigente Carta Política. Há menção direta ou indireta sobre isso no art. 5º, incisos IV (liberdade de pensamento)7, IX (liberdade de expressão propriamente dita)8 e XIV (acesso à informação) 9, e no art. 220 e seu parágrafo 1º (liberdade de informação).10 No planto internacional, importantes cartas de direitos, que têm efeito direto no ordenamento jurídico brasileiro, protegem expressamente o direito à liberdade de expressão, como pode ser visto no Artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 194811, no Artigo 13.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica12, e no art. 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.13 Embora a liberdade de expressão goze de ampla proteção jurídica, frequentemente a prática judiciária fornece exemplos de decisões que embaralham a exata compreensão do conteúdo da liberdade de expressão e que parecem, à primeira vista, 6 VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do Estado de Direito. In: ______; DIMOULIS, Dimitri. Estado de Direito e o desafio do desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 221. 7 “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” 8 “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” 9 “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.” 10 “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Parágrafo 1º: Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.” 11 “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” 12 “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.” 13 “1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas. 13 completamente inadequadas ao modelo constitucional brasileiro, trazendo como consequência risco potencial à democracia. No ano de 2012, uma decisão judicial fez com que a maior emissora de radiodifusão do Brasil cancelasse debate político previamente agendado com os principais candidatos à Prefeitura da Cidade de São Paulo, após um dos postulantes ao cargo obter pronunciamento judicial que autorizava sua presença no evento. O candidato fora preterido pela empresa jornalística por conta de ínfima intenção de voto demonstrada por pesquisas eleitorais. No ano de 2008, a mesma emissora de televisão optou por não realizar debates entre os candidatos, também ao cargo de Prefeito de São Paulo, pelo mesmo motivo, ou seja, em razão de interferência judicial na composição do programa. Estima-se que, ao todo, cerca de 1.488.000,00 (um milhão, quatrocentos e oitenta e oito mil) pessoas deixaram de acompanhar o embate de propostas políticas a poucas semanas do dia das eleições.14 Nessa mesma linha, recentemente, duas decisões judiciais impediram que veículos de comunicação publicassem notícias a respeito das conclusões parciais de investigação em andamento, nas quais se apuravam desvios de conduta dos Presidentes do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco.15 Em situação que demonstra o extremo descompasso entre as leis em vigor no Brasil e a atuação do Poder Judiciário, o diretor financeiro de um popular site de buscas teve uma ordem de prisão emitida contra si, por um juiz do Estado da Paraíba, como resposta do fato de não ter retirado da internet vídeo humorístico, supostamente ofensivo à reputação de um político.16 A intenção de trazer exemplos de decisões judiciais restritivas à liberdade de expressão que, à primeira vista, podem parecer contrárias aos fundamentos político-jurídicos de um país democrático, é demonstrar que o tema é extremamente polêmico e possui manifesto interesse prático. 14 SÃO PAULO. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso Eleitoral n.º 190321. Rel. Clarissa Campos Bernardo. J. 24.09.2012. 15 RECIFE. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Processo nº. 0072593-25.2013.8.17.0001. Decisão liminar. DJEPE 10.09.2013. 16 PARAÍBA. Autos da Representação n. 60-76.2012.6.15.0017. 17ª Zona Eleitoral. Matéria veiculada em SANTOS, Adelson Barbosa dos. Juiz da PB manda PF prender diretor do Google no Brasil. Disponível em: [http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,juiz-da-pb-manda-pf-prender-diretor-do-google-noBrasil,930713,0.htm]. Acesso em: 09 dez. 2013. 14 Quanto a este último ponto, mencione-se o atual debate a respeito do conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade no tocante à legitimidade da autorização prévia para publicação de biografia de personagens de interesse público. O tema aguarda solução final do Supremo Tribunal Federal quanto à interpretação constitucionalmente adequada do artigo 20 e parágrafo único do Código Civil17, no julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4815.18 Os casos citados são extremamente polêmicos, porque falta no texto constitucional explicitação clara dos objetivos a serem buscados com a previsão da proteção à liberdade de expressão, fato que conferiria certeza e segurança jurídica aos cidadãos em geral. Essa é a tarefa precípua do Supremo Tribunal Federal no exercício do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, o que torna necessário o estudo do comportamento da Corte Constitucional frente aos embates que envolvem o direito fundamental de se expressar livremente. A análise das decisões do Supremo Tribunal Federal ganha ainda maior destaque após as modificações legais introduzidas com a edição da Emenda Constitucional nº 45, chamada de Reforma do Judiciário. A intenção era uniformizar a jurisprudência da Suprema Corte, especialmente com a criação dos mecanismos da “súmula vinculante” e da “repercussão geral” dos recursos extraordinários, aumentando consideravelmente a autoridade do Tribunal diante da vinculação necessária dos órgãos do Poder Judiciário e dos demais Poderes da República aos seus pronunciamentos.19 A liberdade de expressão é, ademais, um princípio jurídico com relevante disposição em colidir com outros direitos fundamentais, exigindo do intérprete significativo 17 Art. 20. “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.” Parágrafo único. “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.” 18 Sobre o conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade com a publicação das chamadas “biografias não autorizadas”, ver GARCIA, Rebeca. Biografias não autorizadas: liberdade de expressão e privacidade na história da vida privada. Revista de Direito Privado, a. 13, vol. 52, p. 37-70, out.-dez. 2012. 19 Para uma análise crítica das inúmeras modificações legais e constitucionais que importaram no aumento significativo do poder vinculante das decisões dos Tribunais Superiores (STJ e STF), opinando que isso é reflexo da crise de paradigmas hermenêuticos no Brasil, ver STRECK, Lenio Luiz. A crise paradigmática do direito no contexto da resistência positivista ao (neo)constitucionalismo. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 209-212. 15 esforço argumentativo na resolução de casos que impliquem a prevalência de um direito sobre o outro.20 Apesar de os casos narrados versarem sobre desentendimentos quanto à definição da liberdade de expressão de decisões não emanadas do Supremo Tribunal Federal, não há motivos para concluir, a priori, que a atuação da Corte Constitucional difere substancialmente da verificadas nos órgãos inferiores do Poder Judiciário. Essa hipótese argumentativa resta potencializada ao verificarmos que são relativamente recorrentes críticas sobre a qualidade das decisões do Supremo Tribunal Federal. Virgílio Afonso da Silva, por exemplo, alude ao uso incorreto da regra da proporcionalidade no tocante à terminologia e ao emprego metodológico do conceito21, e Marcelo Neves levanta ressalvas sobre o déficit de fundamentação do Tribunal na solução de controvérsias, envolvendo os direitos fundamentais de forma geral, o que não reduziria o valor surpresa das decisões de futuros casos, aumentando a insegurança jurídica.22 Este trabalho pretende analisar a metodologia da argumentação adotada pelo Supremo Tribunal Federal na resolução de casos que importam na restrição ao direito fundamental da liberdade de expressão, a fim de verificar se há um “modo de decidir”, isto é, um “percurso” seguido pela corte constitucional entre os pontos de partida e de chegada de cada decisão. A pesquisa possui um recorte temporal, pois propõe analisar a postura seguida pela Corte a partir do julgamento do “Caso Ellwanger” (HC 82.424-RS, publicado em 19.03.2004), tido como “histórico” por alguns dos ministros que participaram do julgamento em decorrência da repercussão social, jurídica e acadêmica que o caso alcançou. Com os resultados em mãos, procuraremos confrontar os dados obtidos com o modelo teórico de juiz, elaborado por Marcelo Neves, com vistas a verificar se há, de fato, um perfil típico de atuação do Supremo Tribunal Federal na matéria. A escolha da matriz teórica desenvolvida por Marcelo Neves se justifica em detrimento de outras opções igualmente relevantes, como Ronald Dworkin, François Ost e 20 PRETZEL, Bruna Romano. Argumentação sobre a liberdade de expressão: resultados da análise dos votos do Min. Marco Aurélio. COUTINHO, Diogo R.; VOJVODIC, Adriana M. (Org.). Jurisprudência constitucional: como decide o STF? São Paulo: Malheiros, 2009, p. 55. 21 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, 2002, p. 31-34. 22 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 199-200. 16 Carlo Guarnieri, em decorrência de o modelo de Neves ter-se originado a partir da experiência constitucional brasileira do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, Dworkin concebeu o juiz Hércules tendo como pano de fundo a história jurídica da Suprema Corte Norte-Americana, sendo que Ost e Guarnieri, por sua vez, teorizaram a partir das decisões de tribunais europeus. Considerando que a pesquisa está centrada nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão, a metodologia de Marcelo Neves parece ser a mais adequada aos propósitos do trabalho. Pretende-se, dessa forma, cumprir, ao menos parcialmente, o papel atribuído à doutrina por Virgílio Afonso da Silva de acompanhar criticamente a vida jurisprudencial nacional, rompendo com a tradição jurídica brasileira de desconsiderar a jurisprudência como material de trabalho acadêmico.23 A escolha da liberdade de expressão como assunto de pesquisa sofreu a conjugação simultânea de dois fatores normalmente presentes no momento da escolha do tema de uma dissertação: o interesse prático e o interesse teórico.24 O interesse prático da pesquisa está presente na probabilidade de, uma vez analisar a estrutura da argumentação do Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos envolvendo a definição do conteúdo da liberdade de expressão. E assim, utilizar os resultados da pesquisa para o desenvolvimento de posturas teóricas críticas capazes de influenciar, se o caso, o modelo a ser adotado pela Corte na solução de futuras controvérsias constitucionais, conferindo maior racionalidade ao procedimento de tomada de decisão. O interesse teórico sobressai da proposta formulada inicialmente de confrontar os resultados da pesquisa ao modelo de juiz proposto por Marcelo Neves, verificando se a teoria é adequada aos pressupostos adotados pelo Supremo Tribunal Federal. A obtenção do material de pesquisa seguiu uma metodologia bem definida. O campo temático foi demarcado de maneira bastante ampla, de modo a englobar os direitos garantidos nos incisos IV, IX e XIV do art. 5º, no caput e § 1º do art. 220 da Constituição Federal de 1988. A partir da redação destes artigos e de seus possíveis significados, criou-se a expressão-chave “liberdade de expressão”. 23 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 32-34. 24 ABRAMO, Perseu. Pesquisa em ciências sociais. In: HIRANO, Sedi (Org.). Pesquisa social: projeto e planejamento. São Paulo: T.A Queiroz, 1979, p. 59. 17 A expressão-chave foi decomposta e posteriormente combinada com outros termos relevantes ao presente trabalho, de modo a formarem expressões de pesquisas a serem inseridas no campo “Pesquisa livre”, da página “Pesquisa de Jurisprudência”, no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal.25 Inicialmente a palavra-chave “liberdade de expressão” foi cindida em dois termos autônomos e combinada com os operadores “adj” e “adj2” a fim de obter as palavras aproximadas nas ementas dos julgados. Assim, inseriram-se na página de pesquisa os termos “liberdade adj expressão” e “liberdade adj2 expressão”, combinando, em seguida, isoladamente as palavras “liberdade” e “expressão” com “restrição”, utilizando os operados “adj” e “adj2”. Isto é, foram inseridos no campo de pesquisa os termos “liberdade adj expressão”, “liberdade adj2 expressão”, “liberdade adj restrição”, “liberdade adj2 restrição”, “expressão adj restrição” e, por fim, “expressão adj2 restrição”. Todas as palavras foram utilizadas com o preenchimento simultâneo do campo “Data” da mesma página no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, inserindo como data inicial o julgamento do “caso Ellwanger”, dia 17/09/2003, e como limite ao universo temporal da pesquisa o dia 31/12/2013. Optou-se por excluir da pesquisa as decisões monocráticas em virtude de não refletirem, necessariamente, o posicionamento da Corte. O trabalho está dividido em quatro seções. A primeira destina a analisar as transformações verificadas no modelo político de Estado e sua repercussão para o fenômeno jurídico. Após, será apresentado o modelo tipológico de juiz de Marcelo Neves. Na terceira seção serão arroladas as justificativas para a catalogação da liberdade de expressão como direito fundamental e as principais teorias acerca de sua restrição. Na última parte, haverá o cotejo quantitativo e qualitativo dos conceitos teóricos com o material obtido diretamente da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Na conclusão serão debatidos os resultados obtidos. 25 http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp 18 1 O atual paradigma de Estado de Direito e o papel dos tribunais na interpretação dos direitos fundamentais As abordagens conceituais do Estado de Direito têm como principal pressuposto teórico realçar a conexão entre o modelo atual de Estado com as justificativas utilizadas para incluir a liberdade de expressão como direito fundamental nas constituições dos países democráticos. Tal ênfase não prescinde da análise de temas conexos à proteção da liberdade de expressão, como a estrutura da norma que garante o direito fundamental em questão, os casos em que é possível falar em restrição ao direito fundamental, a função atribuída aos tribunais na solução de casos que envolvem, em última instância, a definição de seu conceito, bem como os argumentos usados na definição da regra jurídica a incidir sobre o caso concreto. 1.1 A passagem do Estado de Direito “do império da Lei” ao “império da Constituição” A experiência histórica do continente europeu forjou dois modelos distintos de Estado de Direito que podem ser reduzidos às formulas esquemáticas do Estado Legislativo de Direito e do Estado Constitucional de Direito.26 O Estado Legislativo de Direito nasce com a formação do Estado Moderno na Europa continental e a afirmação do princípio da legalidade como fonte exclusiva do direito válido. Este novo paradigma político-jurídico institui um sistema unitário de fonte jurídica que procura contrapor-se ao padrão de direito herdado dos tempos medievais (pré- 26 Não se desconhece a existência de outras modalidades de arranjo jurídico-político que tiveram lugar na experiência democrática do Ocidente e foram responsáveis por modelos diversos de Constituição. Dentre elas destaca-se a denominada constituição-garantia, fruto do processo histórico norte-americano, cujas linhas gerais são a crítica da soberania parlamentar e a defesa dos direitos dos colonos, donde resulta o princípio da supremacia da Constituição (fonte do direito) frente às leis ordinárias, aquela protegida pela via judicial, sendo que os poderes constituídos estabilizam-se por meio do mecanismo dos freios e contrapesos. De outra parte sublinhe-se a influente noção de constituição-programa, tributária do processo revolucionário francês, e que se aproxima dos modelos de Estado de Direito expostos neste capítulo, preocupada com a afirmação de direitos e com foco na constituição dos poderes nacionais (soberania nacional), colocando em evidência a tensão entre o poder constituinte e poderes constituídos. Sobre o tema, ver BARBOSA, Samuel. Constituição, democracia e indeterminação social do direito. Novos Estudos, Cebrap. n. 96, jul. 2013, p. 40-41. 19 modernos), moldado na pluralidade de ordenamentos concorrentes (Igreja, príncipes, Comunas, Império etc.), supra-ordenados ou coordenados ao do Estado27, cuja unidade era assegurada pela doutrina e jurisprudência, levando em consideração a tradição e a sabedoria dos “doutores” acumulada ao longo dos séculos.28 O fundamento de validade das normas jurídicas no Estado Legislativo de Direito é aferido com base na autoridade do órgão responsável por sua produção, que detém o monopólio da produção jurídica, e passa a ser vinculante de forma abstrata e geral ao corpo dos cidadãos apenas pelo fato de ter sido elaborada em respeito aos procedimentos anteriormente previstos, deixando de lado qualquer valoração a respeito da justiça intrínseca do ato. 29 O Estado moderno é identificado com três caracteres que marcam decisivamente a fundação de uma nova ordem jurídica: a ascensão da lei como fonte exclusiva do Direito em detrimento de qualquer outra, o monopólio por parte do Estado na produção de normas jurídicas, e a positivação do Direito, isto é, o fenômeno de as normas jurídicas serem instituídas e modificadas por decisão legal.30 Analisando o modelo do Estado Legislativo de Direito sob o prisma jurídico-filosófico, é possível dizer que este possui matriz eminentemente positivista, uma vez que o Direito resulta de um ato de poder competente (Estado nacional), podendo assumir qualquer conteúdo. Ele é, assim, “autorreferente, é procedimental, é de certo modo irracional quanto ao conteúdo, à medida que recusa um paradigma externo que configuraria a possibilidade de uma matéria ética „necessária‟.”31 27 NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina. Direito em Debate, v. 4, n. 5, jan./jun., 1995, p. 7. 28 FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o passado e o futuro. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Orgs.). O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Tradução Carlo Alberto Dastoli, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 419-420. 29 FRANCISCO, José Carlos. (Neo)Constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça pluralista. ______. (Coord.). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 71. 30 Id. Ibid., p. 46-47. 31 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 163. 20 Os poderes públicos, nesse contexto, estavam impedidos de intervir no mercado e nas relações sociais, sendo responsáveis apenas pela manutenção da paz, da segurança e da produção do direito. 32 O Estado Constitucional de Direito, por sua vez, marca uma evolução em relação ao modelo normativo anterior. É tributário das mudanças políticas verificadas na segunda metade do século XX em direção à busca de legitimidade material das leis para a concretização da justiça social. Com efeito, a postura meramente ablativa do Estado Legislativo de Direito, que se satisfazia com a submissão dos indivíduos aos ditames da lei, independentemente do conteúdo normativo e das carências que certos grupos sociais eventualmente apresentassem, impedindo, em última análise, a fruição de oportunidades sociais e acesso a bens públicos por todos, deu causa a uma série de injustiças sociais que acelerou a superveniência do modelo de Estado Constitucional de Direito. Esse novo paradigma se firma com a subordinação dos atos normativos editados pelos Parlamentos a uma lei de natureza superior, a Constituição, a qual, não apenas disciplina o rito de elaboração do texto legal, mas também determina o conteúdo mínimo que deve, ou não, estar presente para conferir validade substancial às prescrições normativas33, prevendo, outrossim, mecanismos procedimentais de mudança de suas próprias disposições, mais exigentes se comparados àqueles necessários para elaboração da legislação ordinária.34 Enquanto o Estado Legislativo pressupunha a supremacia do Poder Legislativo sobre os poderes Executivo e Judiciário (onipotência do legislador), condicionado apenas à forma de produção da norma, o Estado Constitucional de Direito interfere, sobretudo, no conteúdo dos atos normativos por meio da positivação constitucional de princípios e direitos fundamentais que conferem caráter legitimador ao trabalho do Parlamento. Ou seja, no Estado Legislativo o ato autorizativo é válido independentemente de seu conteúdo; no Estado Constitucional, o ato autorizativo é válido se preencher requisitos precisos de conteúdo. Essa substancial diferença de modelos permite afirmar que, em “um caso o direito se limita a atribuir um poder (e, eventualmente, a 32 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. (Interpretação e crítica). 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 14-20. 33 FERRAJOLI, Luigi. O Estado de direito..., cit., p. 425. 34 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 164. 21 descrever procedimentos para o seu exercício); no outro, o direito, além disso, delimita ou circunscreve o poder conferido.”35 A dicotomia entre Estado Legislativo e Estado Constitucional de Direito pode ser analisada, também, com olhar na função do Poder Judiciário no interior de cada forma política. O marco legitimador do Estado Legislativo de Direito é a teoria da divisão de poderes, ao fixar limites claros para atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário, tornando-os independentes entre si. Ao juiz é conferida a limitada tarefa de aplicar a lei dentro dos quadrantes traçados pelo Legislativo, cujo trabalho de produção normativa é visto como dotado de alta racionalidade e apto a conferir completude ao ordenamento jurídico, não havendo espaço, pois, para a interpretação judicial das leis (além das opções postas pelo legislador) e a escusa de decisão, isto é, ao Judiciário não é lícito deixar de decidir.36 Ao magistrado resta a função de “dar um basta ao conflito de interesses e garantir direitos individuais por meio da aplicação de uma norma geral (que o ordenamento sempre fornece ao aplicador) ao caso singular contencioso (sentença).”37 Sobre o papel do Judiciário no Estado Liberal, Adeodato enfatiza que: O direito de algumas sociedades mais complexas, que pode ser dito dogmático, caracteriza-se, como postulados iniciais, por só considerar argumentos alegadamente embasados em um texto de norma preexistente no ordenamento estatal. A interpretação e a aplicação desse direito apresenta-se (sic) como silogística: a norma estatal alegada, em geral expressa pela lei ou pela jurisprudência, representa a premissa maior; o caso concreto, por um processo de subsunção, constitui a premissa menor; e a norma individual aplicada ao caso concreto corresponde à conclusão. Essa forma dogmática de organizar o direito estatal está ainda apoiada sob outros três postulados básicos, dentre vários, quais sejam: a obrigatoriedade de decidir ou proibição do non liquet; a obrigatoriedade de interpretar, fornecendo alcance e sentido concretos às normas gerais; e a necessidade de fundamentação ou legitimação.38 Já o Estado Constitucional de Direito tem como marco legitimador o controle jurisdicional dos demais poderes, com ênfase no controle específico da 35 GUASTINI, Ricardo. Note su stato di diritto, sistema giuridico e sistema politico. In: MONTANARI, Bruno (Org.). Stato di diritto e trasformazione della politica. Torino: Giappichelli, 1992, p. 174, apud CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 44. 36 É o conhecido “princípio da inafastabilidade da jurisdição”, agasalhado pela Constituição Federal de 1988 no art. 5º, XXXV. 37 CAMPILONGO, op. cit., p. 34. 38 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 370-371 (grifos do autor). 22 constitucionalidade das leis, turvando a linha divisória entre jurisdição e legislação que marcou o modelo anterior, e alterando a relação do político com o jurídico, estando o Poder Judiciário autorizado a exercer papéis antes inéditos, como o preenchimento de lacunas legislativas por meio da interpretação das leis e da Constituição, e intervir no domínio econômico a fim de corrigir assimetrias.39 Pode-se dizer que a mudança paradigmática da organização político-jurídica promove uma verdadeira transformação do Estado de Direito, que passa do “império da lei” ao “império da constituição”.40 As mudanças institucionais representaram duas ordens de rupturas que ocorreram de forma sucessiva: em primeiro lugar, a quebra de identidade entre Direito e Moral, uma vez que a fonte legitimadora da lei é a forma legal de sua produção, isenta de valoração subjetiva (Estado Legislativo); em segundo lugar, o rompimento entre a validade e a existência do Direito, já que a própria lei está ancorada em princípios substanciais de justiça tratados, em regra, na Constituição (Estado Constitucional).41 Humberto Ávila42 apresenta quatro fundamentos que entende serem centrais para explicar as características do modelo inaugurado pelo Estado Constitucional: a) normativo, em que haveria no texto constitucional a institucionalização preferencial de princípios em detrimento das regras; b) metodológico, cujo cerne seria não mais o uso do método da subsunção para a interpretação e aplicação das normas, mas a ponderação de princípios; c) axiológico, de prevalência da justiça do caso particular (concreto) à justiça geral, ou seja, a aplicação das normas jurídicas demandaria uma consideração setorial e não abstrata; e d) organizacional, cuja primazia do Poder Judiciário sobre o Legislativo e Executivo seria a consequência da adoção de um modelo constitucional baseado, preferencialmente, em princípios. De outra parte, Josep Aguiló Regla43 também se aventura na tarefa de sintetizar os parâmetros dogmáticos que evidenciam o processo de constitucionalização da 39 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 116. REGLA, Josep Aguiló. Do “Império da Lei” ao “Estado Constitucional.” Dois paradigmas jurídicos em poucas palavras. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro (Org.). Argumentação e Estado constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, p. 102. 41 FERRAJOLI, Luigi. O Estado de direito..., cit., p. 438. 42 ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “ Direito da Ciência”. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo. Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 188, ressalvando o posicionamento contrário do autor quanto à pertinência da adoção desses fundamentos para definir a Constituição Federal de 1988. 43 REGLA, Josep Aguiló. Do “Império da Lei” ao “Estado Constitucional”..., cit., p. 103-104. 40 23 ordem jurídica. Segundo ele, tais fatores são: (i) a existência de uma Constituição rígida que incorpora uma relação de direitos fundamentais, (ii) a supremacia da Constituição sobre a lei ordinária, (iii) reconhecimento da força vinculativa da Constituição aos demais poderes e aos particulares, inclusive com sua aplicação de forma direta, (iv) o fenômeno da “sobreinterpretação”, isto é, das garantias constitucionais é possível extrair grande quantidade de normas, sendo que as leis devem ser interpretadas de acordo com a Constituição, (v) aumento da influência da Constituição no processo e debate políticos, passando os atores sociais a recorrerem às normas constitucionais para dirimir conflitos, estando, como consequência, os juízes aptos a se posicionarem frente às chamadas questões políticas. Para Mariana Pargendler e Bruno Salama três “vetores” são responsáveis pela proeminência do Poder Judiciário na nova estrutura organizacional do Estado contemporâneo.44 O primeiro é o “vetor ideológico”, derivado do triunfo do progressismo, cujo traço marcante é a superveniência do Estado Regulatório, que chama para si a tarefa de ordenar a vida social e estender o fenômeno jurídico para áreas estranhas ao Direito (juridificação). O segundo é o “vetor organizacional”, que alçou o Poder Judiciário ao centro do espectro político (conscientemente ou não) na condição de ente ativo na formulação de políticas públicas, e no Brasil o Supremo Tribunal Federal assumiu a posição de árbitro dos grandes conflitos institucionais e políticos. O “vetor jurídico” é o último aspecto da mudança estrutural e põe em xeque a técnica jurídica tradicional de aplicação do Direito diante do aumento expressivo de normas com caráter de princípios nas Constituições dos países ocidentais em detrimento das regras, abrindo espaço para uma nova maneira de interpretar e aplicar o Direito em benefício, segundo os autores, da racionalidade de outras áreas das ciências sociais, que podem colaborar com o jurista mediante a emissão de juízos probabilísticos ou de causalidade sobre os efeitos das normas no mundo dos fatos.45 Diante desse quadro, a natureza da linguagem, que passa a fazer parte dos textos legais, e notadamente nas constituições, é peculiaridade a ser destacada por conta do impacto direto que exerce no papel da jurisdição. De modo geral, é possível dizer que as 44 PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno Meyerhof. Direito e consequência no Brasil: em busca de um discurso sobre o método. Revista de Direito Administrativo. v. 262, p. 95-144, jan./abr. 2013, p. 110. 45 Id. Ibid., p. 110-119. 24 normas constitucionais apresentam “maior abertura, maior grau de abstração e, consequentemente, menor densidade jurídica."46 Hart afirma que o Direito é dotado, em parte, de normas com “textura aberta”, significando que há “áreas do comportamento nas quais muita coisa deve ser decidida por autoridades administrativas ou judiciais que busquem obter, em função das circunstâncias, um equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia de caso para caso.”47 A indeterminação cognitiva dos preceitos legais ocorre porque, como os princípios albergados pela Constituição possuem forte apelo moral (igualdade, liberdade, dignidade humana, democracia, separação de poderes) e servem de parâmetro de justiça para a produção legislativa e a decisão dos tribunais dentro de um ambiente socialmente complexo, foram recepcionados de forma vaga e imprecisa, deixando aos intérpretes a tarefa de determinar o seu conteúdo e, principalmente, harmonizar a coexistência de normativas muitas vezes contraditórias entre si.48 A disputa em torno do sentido jurídico a ser conferido aos princípios agasalhados implícita ou explicitamente pela Constituição, é transferida do Legislativo para o âmbito de aplicação da Constituição, estando os tribunais envoltos em litígios de natureza política que, em última instância, representam conflitos entre poderes soberanos.49 As consequências sentidas no âmbito jurídico podem ser verificadas na tarefa de interpretação, mais especificamente na busca por legitimidade das leis e decisões judiciais. Adeodato sugere que o Direito atual calcula e controla o grau de vagueza, ambiguidade e porosidade dos textos normativos na direção de maior respaldo social, pois um texto muito impreciso permite maior maleabilidade dos conceitos e confere ao sistema 46 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 107. HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 175. 48 VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição e os limites da empreitada interpretativa, ou entre Beethoven e Bernstein. In: SILVA, Virgílio Afonso da. (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 226-227. 49 As peculiaridades da linguagem jurídica presentes no ordenamento jurídico dos Estados que adotam a supremacia constitucional como critério de valoração do Direito, provocam imprecisões na comunicação e na exata determinação dos comandos legais. Adeodato aponta três características da linguagem que tornam o trabalho do intérprete extremamente complexo: vagueza, ambiguidade e porosidade. Uma palavra será tanto mais vaga quanto mais objetos, classes ou gênero puderem estar sob sua incidência. Já a ambiguidade traz dúvidas sobre o significado do texto (conotação), pois termos ambíguos se referem a objetos que não têm nada em comum. Por fim, a porosidade de um termo diz com as mudanças de seu significado ao longo do tempo provocadas pelo uso cotidiano, resultando exatamente na vagueza e ambiguidade da expressão. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 226. 47 25 dogmático e à decisão concreta elasticidade, isto é, maiores possibilidades de adequação ao ambiente.50 A abertura semântica das normas constitucionais confere ao juiz possibilidade de múltiplas interpretações constitucionalmente legítimas diante de um caso concreto, isto é, o ordenamento apresenta ao intérprete a faculdade de optar por mais de um caminho na solução da lide sem que a ele seja imputada a pecha de antidemocrático. Assim, “o juiz não apenas declara o direito existente como também cria direito. Declarar o direito e criar direito não são funções contraditórias, mas sim complementares.”51 Por outro lado, a atividade interpretativa vai além do mero pressuposto de aplicação de uma norma para fixar-se como importante mecanismo de atualização e renovação da ordem jurídica e, em particular, da Constituição Federal. Por meio da interpretação, as normas adaptam-se às mudanças sociais e mostram-se, a depender da qualidade do trabalho hermenêutico, coerente com as necessidades reais da sociedade.52 Em tom assertivo, Eros Grau conclui: Em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não, pois, meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [...] ao direito. Nesse sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [...] no mundo do ser [...]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o particular.53 Seguindo caminho semelhante ao de Grau, Lenio Streck54 enfatiza que as mudanças normativas provocadas no Direito a partir do segundo pós-guerra, especialmente o incremento de amplo catálogo de direitos fundamentais individuais e coletivos, que teve o condão de transferir o poder de conformação constitucional do legislador para o judiciário, 50 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 227. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 48-49. 52 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, p. 157. 53 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica..., cit., p. 161. 54 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 59. 51 26 fizeram do Direito instrumento de transformação social, sendo fator decisivo para isso a positivação de princípios nos textos constitucionais. 1.2 A proeminência da argumentação como fator de legitimação das decisões judiciais A argumentação assume papel decisivo de conferir legitimidade à decisão, uma vez que o caráter aberto de muitas normas constitucionais, o espaço de indefinição de conduta deixado pelos princípios (tanto princípios de organização da ordem política quanto de direitos fundamentais) e os conceitos indeterminados, municiam o intérprete de alto poder de subjetividade. Nesse contexto, Manuel Atienza55 aponta alguns fatores que, segundo ele, explicam a centralidade alcançada pela argumentação jurídica na cultura ocidental. O primeiro é de caráter teórico e se relaciona com a concepção do Direito no século XX, mais atento ao problema do controle da atividade interpretativa para preenchimento das lacunas legislativas. O segundo fator é de ordem prática, realçando o parâmetro argumentativo que o Direito assume, principalmente, nos países do common law, que, em certo sentido, tem servido de inspiração para os países do civil law. Em terceiro lugar, a passagem do Estado Legislativo ao Estado Constitucional de Direito importou no controle do conteúdo das leis e incrementou a atividade do magistrado com a obrigação de justificar suas decisões. O quarto fator é de natureza pedagógica e está ligado mais ao ensino jurídico, voltado a análise de casos práticos. Em último lugar, ressalte-se o caráter político do processo de secularização do Estado e consolidação da democracia, que exige a argumentação como critério legitimador da tomada de decisão que vincula a todos.56 A demonstração lógica adequada do raciocínio argumentativo, desenvolvido pelos tribunais, é vital para a legitimidade da decisão proferida, assumindo os tribunais o papel de discutir, publicamente, o alcance dos princípios e direitos que constituem a reserva 55 ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro (Org.). Argumentação e Estado constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, p. 58. 56 Ib. Ibid., p. 58-61. 27 de justiça constitucional.57 “É necessário” – conforme sustenta Tavares – “no Estado Constitucional de Direito, uma elucidação acerca das razões determinantes da escolha do método bem como dos elementos utilizados”, para que o juiz não descambe para escolhas arbitrárias de sentido.58 Diante desse novo quadro de atuação do Poder Judiciário, surge a questão de saber qual das soluções adotadas pode ser considerada constitucionalmente adequada. Ou seja, como construir um discurso capaz de dar conta de tais perplexidades, sem cair em decisionismos e discricionariedades do intérprete? Luís Roberto Barroso oferece três parâmetros de controle da argumentação que entende necessários para alcançar a solução constitucionalmente adequada.59 O primeiro parâmetro estabelece que a argumentação deve ser capaz de apresentar fundamentos normativos que apoiem o trabalho do intérprete, que encontrará os elementos dentro do ordenamento jurídico, de forma implícita ou explícita. Um conflito normativo, logo, deverá ser resolvido em favor da solução que apresente em seu suporte o maior número de normas jurídicas. O segundo método de controle argumentativo se relaciona com a possibilidade de universalização dos critérios adotados pela decisão a fim de que possam ser usados em casos semelhantes no futuro. Pretende-se transformar os critérios em normas gerais com o intuito de projetá-los a um conjunto maior de hipóteses, facilitando a visualização de desvios e inconsistências. O último parâmetro de controle é formado por dois conjuntos de princípios: um de natureza instrumental, formado por princípios específicos de interpretação constitucional 60, e o segundo por princípios propriamente ditos (materiais), que trazem toda a carga axiológica e valorativa própria do texto constitucional. Ambos orientam a atividade do intérprete, sendo que, na hipótese de haver mais de uma solução adequada, é necessário 57 VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição..., cit., p. 252. No mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 367. 58 TAVARES, André Ramos. A teoria da concretização constitucional. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, a. 2, n. 7, jul./set. 2008, p. 27. 59 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 365. 60 Os princípios instrumentais seriam, segundo Barroso, os princípios da supremacia constitucional, presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público, interpretação conforme a constituição, unidade da constituição, razoabilidade e proporcionalidade, e efetividade da constituição. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit. p. 369-374. 28 percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar, na medida do possível, os valores estabelecidos pelos princípios materiais.61 Este incipiente paradigma que redefiniu as atribuições do Estado e do Direito está inserido num quadro maior de modificação cultural da sociedade contemporânea, cujos traços principais, para fins deste trabalho, podem ser reduzidos a duas características expostas por Bauman. Em primeiro lugar, vivencia-se o colapso da crença moderna de que há um fim a ser seguido por todos, uma organização política perfeita a ser em breve alcançada, em que existirá algum tipo de sociedade boa, equilibrada, justa e sem conflitos, cujas necessidades humanas serão plenamente satisfeitas.62 Em segundo lugar, nota-se a desregulamentação e privatização das tarefas e deveres modernizantes, antes jungidos à coletividade com base na ideia de aperfeiçoamento por meio da atividade legislativa, e hoje calcada na autoafirmação individual, refletida no discurso do direito das pessoas e grupos de “permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado”63. Fica evidente que o projeto da modernidade64 dissocia o conteúdo do Direito de uma visão de mundo particular, cujo padrão de conduta possa ser aferido previamente, desconsiderando a presença de modelos concorrentes entre os diversos grupos sociais a respeito da condução da política e do significado das regras jurídicas.65 61 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 365-366. Campilongo afirma que “Além da combinação de referências, a modernidade abandona a forma de perfeição ou natureza essencial e a substitui pela forma da probabilidade, da busca e do contexto social contingente.” Ver CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 154. 63 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 38. 64 Segundo José Asensi Sabater, o “projeto da modernidade” se assentava sob as seguintes premissas: a) afirmação da existência de uma natureza humana universal que pode ser conhecida por meios racionais e que é essencialmente superior e distinta do resto da realidade; b) a ideia de que o indivíduo é essencialmente um ser livre e autônomo, cujo desenvolvimento requer um tipo de sociedade organizada de forma não hierárquica; c) a ideia de que a pessoa possui uma dignidade irredutível que deve ser defendida tanto da própria sociedade quanto do Estado; d) a fé na ciência como instrumento a serviço da libertação do ser humano; e) a secularização das relações políticas e jurídicas no marco do Estado; f) primazia do Estado territorial; g) a missão do Ocidente de universalizar seus valores e expandí-los pelo resto do mundo. SABATER, José Asensi. Enfoques básicos para un constitucionalismo actual. In: SANTOS, Gustavo Ferreira (Coord.). Constituição e constitucionalismo. Curitiba: Juruá, 2010, p. 24. 65 Samuel Barbosa denomina de “indeterminação social do direito” a relação entre a falta de unidade na definição das normas jurídicas por parte dos tribunais, em decorrência da existência de decisões autônomas e conflitantes que prejudicam a previsibilidade jurídica, e a vagueza das disposições legais, capaz de incentivar disputas em torno da definição de seu conteúdo. BARBOSA, Samuel. Constituição, democracia..., cit., p. 36. 62 29 A sociedade contemporânea não está ancorada num padrão moral tradicional de feição hierárquica. Antes, o pluralismo social66 pressupõe uma diversidade incontrolável e contraditória de valores e interesses que torna praticamente inviável a obtenção de consenso em torno de ações e programas, resultando daí a necessidade de reconhecimento das divergências existentes no interior das inúmeras esferas sociais. Esta especificidade do Direito contemporâneo havia sido objeto de análise por teóricos do positivismo, conforme se extrai da seguinte passagem de Kelsen, em que fixa uma distinção entre os padrões morais e jurídicos de comportamento: Quando uma teoria do Direito positivo se propõe a distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para os não confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta, da qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral. [...] A pretensão de distinguir Direito e Moral, Direito e Justiça, sob o pressuposto de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas de Moral, e não a relação entre aquela e “a” Moral. [...] Uma teoria dos valores relativista não significa [...] que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer Justiça. Significa, sim, que não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós constituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos.67 A rigor, o próprio processo de positivação do Direito proporciona as condições para estabelecer maior tolerância quanto aos comportamentos sociais que desviam de uma moral ortodoxa, ou mesmo de uma ideia material de justiça.68 66 Kliever apresenta uma boa definição de pluralismo. Segundo ele, “A dispersão de poder politico e a liberdade de reunião religiosa no interior de sociedades não hierárquicas representam diferenças e desacordos no interior de um compromisso compartilhado com uma nação e com um Deus. O pluralismo, em contraste, não supõe tal unidade ou lealdade dominante. O pluralismo é a existência de múltiplas estruturas de referencia, cada qual com seus próprios critérios de racionalidade. Pluralismo é a coexistência de posições comparáveis e rivais que não se podem conciliar. Pluralismo é o reconhecimento de que diferentes pessoas e diferentes grupos vivem, literalmente, em mundos diferentes.” KLIEVER, Lonnie D. Authority in a pluralist world. In: BERNSTEIN, Richard J. Modernisation, the Humanist Response to its Promisse and Problems. Washington D.C: Paragon House, 1982, p. 81, apud BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pósmodernidade e intelectuais. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 178 (grifos do autor). 67 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 75-76 (grifos do autor). 68 Para uma crítica da tese central do Direito Livre, corrente autointitulada contradogmática, que acusa o direito positivo de ser ilegítimo em razão de manter uma suposta distância da realidade social e pregar, por isso, sua 30 Isso porque o sistema jurídico tem que lidar com o problema das múltiplas possiblidades de ação e escolha de uma sociedade plural, que se mostram, muitas vezes, incompatíveis entre si. A consequência notada é que se exige maior propensão à tolerância em virtude da maleabilidade de perspectivas sociais e da necessidade permanente de o Direito justificar-se perante as expectativas normativas não atendidas.69 superação por um direito “achado nas ruas”, ver BORGES, José Souto Maior. Pro-Dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais. Revista Trimestral de Direito Público, n. 1, 1993, p. 140-143. 69 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 205-207; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico…, cit., p. 21. 31 2 Análise qualitativa das decisões do Supremo Tribunal Federal: o modelo teórico de juízes de Marcelo Neves O objetivo principal, ao propor interpretar as decisões do Supremo Tribunal Federal a partir do modelo de juiz desenvolvido por Marcelo Neves, é analisar a argumentação utilizada pela corte constitucional nos julgamentos de casos conflituosos, envolvendo o direito fundamental à liberdade de expressão. Optou-se pelo marco teórico de Marcelo Neves, tendo em vista a tese ser fruto de estudo crítico da experiência da corte constitucional brasileira, diferenciando-se, nesse particular, de construções alternativas que, embora tenham alcançado grande influência, referem-se a outras realidades jurídicas. Podem-se citar, exemplificativamente, como modelos-tipo alternativos ao de Neves, o juiz Hércules de Dworkin, os juízes Júpiter, Hércules e Hermes de François Ost, e o esquema de Carlo Guarnieri a respeito dos juízes executor, delegado, guardião e político, exposto por Celso Campilongo. Na perspectiva de Dworkin, para os casos que não encontram uma solução por meio do uso das regras (casos difíceis), deve-se lançar mão dos princípios jurídicos, que tiram do juiz qualquer possibilidade discricionária. O magistrado que conseguir identificar os princípios corretos para a melhor solução de um caso difícil é chamado por Dworkin de Hércules, que possui uma capacidade “sobre-humana”.70 Logo, os princípios são hercúleos. A descoberta dos princípios adequados é a tarefa primordial de Hércules por meio da utilização da prova da coerência, em que os princípios advêm da moralidade comunitária. Para Dworkin, Hércules deve construir um “esquema de princípios abstratos e concretos que forneça uma justificação coerente a todos os precedentes do direito costumeiro e, na medida em que estes devem ser justificados por princípios, também um esquema que justifique as disposições constitucionais e legislativas.”71 François Ost elabora tipologia com arrimo na metáfora mitológica dos juízes Júpiter, Hércules e Hermes. Para o autor, Júpiter seria o juiz com formação tradicional que aposta na ideia de unidade e coerência do ordenamento jurídico. Desenvolve a 70 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 165. 71 Id. Ibid. p.182. Para uma crítica ao juiz Hércules de Dworkin, ver NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 55-63. 32 argumentação baseada no processo lógico-formal, reduzindo a aplicação do direito à técnica da subsunção. A concepção de direito subjacente é a do Estado Legislativo de Direito. O juiz Hércules possui uma visão mais próxima da realidade social. Decide casos complexos extraindo suas decisões de normas válidas, não necessariamente presentes em códigos, uma vez que a lei é somente o ponto de partida para a intepretação, que deve ter os olhos voltados para a complexidade social. A concepção de direito subjacente é do Estado Social. Por fim, o juiz Hermes concebe o direito como algo inacabado que adquire sentido com a mediação de conflitos e controle das mudanças sociais. Diagnostica que a sociedade apresenta um alto grau de complexidade com a multiplicidade de atores jurídicos e níveis de poder, que requer a fixação de procedimentos capazes de respeitar a autonomia dos diferentes subsistemas. Aposta na argumentação jurídica, levando em conta que as decisões judiciais serão sempre provisórias, eis que sujeitas aos influxos das variações socioeconômicas. Preocupa-se com as consequências sociais e políticas de seus pronunciamentos. É concepção próxima ao modelo de Estado Constitucional de Direito.72 Carlo Guarnieri apresenta divisão quadripartite de juiz com base na posição assumida pelos tribunais frente à política. São elas: o juiz-executor, o juiz-delegado, o juizguardião e o juiz-político. O primeiro é típico de um ordenamento jurídico composto majoritariamente de regras legais (Estado Liberal), no qual o magistrado não deve fazer política e muito menos contrapor-se às instituições representativas, cabendo ao legislador a prerrogativa de conferir sentido às leis e ao juiz a aplicação mecânica do direito. São características desse juiz baixa autonomia política e baixa criatividade.73 O juiz-delegado parte do pressuposto de que é inevitável a atuação política do magistrado como consequência de o ordenamento jurídico, muitas vezes, não oferecer regras claras e precisas para a solução de casos. Embora ao juiz seja franqueado agir como 72 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa, n. 14, 1993, p. 169-194. Para uma crítica aos modelos de juiz de Ost, ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 381-387. Para um estudo sobre a aplicação do modelo de François Ost às decisões do Supremo Tribunal Federal na estabilização monetária em decorrência das edições dos planos econômicos da década de 1990, ver DURAN, Camila Villard. Direito e moeda: o controle dos planos de estabilização monetária pelo Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2010. 73 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 50-51. 33 legislador, não pode fazer escolhas arbitrárias e sua atuação é balizada pelas normas préexistentes. São características baixa independência e alta criatividade.74 O juiz-guardião é corolário da consolidação de uma Constituição que arrola direitos fundamentais individuais e coletivos e um modelo de controle de constitucionalidade das leis. Deve atuar como guardião da Constituição e das leis ordinárias contra os ataques da maioria parlamentar de ocasião, contrapondo-se, se o caso, à comunidade e aos demais poderes constituídos. Emerge a questão do conflito entre Poder Judiciário e os postulados democráticos. Sua atividade é limitada pelas diretrizes da Constituição, o que lhe tolhe a discricionariedade. São características alta independência e baixa criatividade.75 Em arremate, o juiz-político possui enfoque na identificação do magistrado com um ator político que divide a atribuição de dar sentido à lei com o Legislativo. A imagem do Direito é de uma rede, suficientemente fluido para se adaptar a circunstâncias variadas. Admite que é impossível renunciar à tarefa da interpretação. São características do modelo alta autonomia e alta criatividade.76 A tese desenvolvida por Marcelo Neves tem como pressuposto a existência de uma trivialização e inconsistência no tratamento dos princípios constitucionais por parte do Supremo Tribunal Federal. Os princípios são vistos como remédios para os problemas de inefetividade das normas constitucionais no Brasil e muitas vezes utilizados estrategicamente para satisfazer interesses particularistas, embebidos de uma retórica principiológica.77 Esse principialismo inadequado levado a efeito no Brasil impõe obstáculos à concretização e realização constitucional e impede a reprodução consistente do Direito. Por sua vez, a inconsistência jurídica desemboca na fragilização da dogmática e da teoria do direito (elementos da reflexão jurídica), acarretando o desprezo pelas regras e o abuso excessivo do uso dos princípios os quais, diante da ausência de definitividade em seu comando abstrato, servem a desvios no processo de concretização. Soma-se a esse fator o recurso corriqueiro à “ponderação desmedida”, que traz subjacente, na interpretação de Neves, a ideia de que os princípios são intrinsecamente mais “justos” do que as regras, sendo aceitável o afastamento de uma regra completa em favor 74 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 52. Id. Ibid., p. 54. 76 Id. Ibid., p. 57. 77 NEVES, Marcelo. Abuso de princípios no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: [http://www.conjur.com.br/2012-out-27/observatorio-constitucional-abuso-principios-supremo-tribunal]. Acesso em: 31 mar. 2014. 75 34 da aplicação de princípio(s) ao sabor do intérprete, implicando na negação da própria consistência das decisões.78 A ponderação casuística não apresenta perspectiva de longo prazo e fica dependente da constelação concreta de interesses envolvidos em cada caso, servindo menos como uma técnica excepcional de redução do valor-surpresa dos julgamentos futuros, e mais como meio de acomodação de interesses que circulam ao largo do Estado de Direito e da democracia.79 Ademais, a elevação de um princípio constitucional ao patamar de “bem maior” e de elemento unificador do ordenamento jurídico, pode levar a um moralismo incompatível com o funcionamento da sociedade complexa hodierna, que convive com diferentes pontos de vista a respeito do significado de um determinado princípio. Isso ocorre, na visão de Neves, com a absolutização da dignidade da pessoa humana, que parece assumir forma de superprincípio imune a qualquer tipo de restrição, mesmo às constitucionalmente legítimas, por vezes veiculadas por outros princípios constitucionais, ou até por regras extraídas da Constituição. Tendo em vista essas considerações críticas de Marcelo Neves, o modelo adequado de juiz por ele proposto deve ser capaz de resolver com sucesso uma relação que enxerga como paradoxal no Direito contemporâneo: a relação complexa entre regras e princípios jurídico-constitucionais. Essa relação paradoxal é nota característica do Estado de Direito e do sistema jurídico da moderna sociedade plural e diferenciada, marcada pela crescente politização de temas relevantes para o convívio social que impede, diante da existência de diversas racionalidades parciais conflitantes80, a aceitação geral das decisões políticas. Assim, somente é possível falar em valores morais socialmente compartilhados, com o reconhecimento do dissenso generalizado em torno de expectativas e interesses, como inexorável na sociedade moderna.81 O pluralismo social significa que todos os valores podem apresentar-se igual e livremente no âmbito dos procedimentos políticos e jurídicos estabelecidos na Constituição Federal. 78 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: regras e princípios constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, p. 190-192. 79 Id. Ibid., p. 196. 80 Id. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 23-24. 81 Id. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 127-129. 35 Sendo a sociedade moderna marcada pela complexidade82 e por relações impessoais, torna-se relevante averiguar o papel a ser desempenhado pelo Direito na função de ordenador de expectativas futuras. Nesse contexto é que se pode falar do conceito de “universalismo-procedimental”, entendido como uma ferramenta a ser utilizada pelo Estado Democrático de Direito na tarefa de fomentar e absorver as contrárias tendências presentes na vida societária. Isto significa que Direito e sociedade estão imbrincados no nível procedimental, isto é, as diversas visões de mundo são passíveis de prevalecer eventualmente nos procedimentos democráticos, atuando os sistemas politico e jurídico como mecanismos de seleção de expectativas. Os procedimentos democráticos, por sua vez, não se legitimam apenas porque viabilizam a luta pelo poder, mas fundamentalmente enquanto permanecem constantemente abertos para a pluralidade social.83 À Constituição compete criar procedimentos viabilizadores da absorção do dissenso e possibilitar a legitimação das expectativas através da imputação de significado político e jurídico cogente a que todos devem respeitar. Logo, a legitimação do Estado Democrático de Direito e, em particular, das normas jurídicas, ocorre “na medida em que não se privilegia ou exclui a inserção de valores e interesses de determinados grupos, indivíduos ou organizações nos procedimentos constitucionais.”84 Nesses termos, o Estado de Direito estaria fundado na “moral do dissenso”, pressupondo o consenso a respeito dos procedimentos constitucionais, desde que estejam acessíveis a potenciais influências no futuro, mesmo àqueles que, num determinado momento, foram derrotados nos termos procedimentais.85 82 Complexidade social deve ser entendida como o processo de secularização que resultou na separação do Direito de outras esferas sociais, tais como religião, moral, política, economia, etiqueta. Nesse sentido, ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 155. 83 Segundo Campilongo, a principal tarefa da política numa sociedade complexa é manter o contínuo incremento das possibilidades de escolha e a contínua disponibilidade do trato da contingência. Ou seja, a cada decisão tomada em respeito aos procedimentos legais e que se tornam vinculantes para a comunidade, correspondem novas alternativas e demandas por outras decisões, possibilitando a reversibilidade das decisões e a abertura para novos temas. A função da politica é justamente manter esse processo de valorização da complexidade, sendo a democracia o pressuposto para sua manutenção. “Em última análise, governabilidade democrática importa em capacidade de tomada de decisões coletivamente vinculantes, num contexto de múltiplas alternativas.” CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 71-73. 84 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã..., cit., p. 133. 85 Id. Ibid., p. 148. 36 Partindo-se de que a moral aponta para o reconhecimento do outro, um espaço de moralidade no mundo da vida só pode ser concebido exatamente como âmbito de viabilização do dissenso em torno de valores e interesses. Além do mais, com o aumento da complexidade e da crescente diferenciação funcional da sociedade, o respeito à autonomia das diversas esferas de comunicação transforma-se cada vez mais em uma exigência moral. [...] O consenso moral que se impõe diz respeito aos padrões de expectativas (princípios) que tornam possível e promovem a interação dissensual. Estes não visam à busca de um resultado racionalmente consensual ou a afastar o risco do dissenso. Destinam-se precisamente a promover o dissenso provável e a tornar provável o dissenso improvável nas relações interpessoais. Nas condições presentes da sociedade mundial, só os princípios de uma moral do dissenso podem ter o caráter universalista e includente no sentido do acesso de toda e qualquer pessoa, independentemente de seus interesses, expectativas e valores, a procedimentos discursivamente abertos.86 A função atribuída à Constituição de absorção do dissenso pressupõe conceituá-la como resultado da diferenciação funcional entre Direito e política como subsistemas sociais.87 A Constituição é modernamente definida como “acoplamento estrutural” entre Direito e política, possibilitando a diferenciação e a interpenetração entre os dois sistemas originariamente autônomos, que funcionam (reproduzem-se) segundo regras internas próprias. A Constituição como acoplamento estrutural autoriza a interferência da política sobre o Direito somente na forma mediatizada pelo código “lícito/ilícito”, aumentando a possibilidade de aprendizado aos sistemas participantes.88 A Constituição não isola o Direito dos outros sistemas sociais, mas define que os critérios para admissão das influências dos demais subsistemas, e em particular do político, são fixados pelo próprio direito positivo (filtragem) mediante seus procedimentos de modificação e adaptação (legislação e jurisdição constitucional, por exemplo). 86 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã..., cit., p. 129-130. Na terminologia da teoria dos sistemas, os subsistemas sociais, na medida em que se tornaram reciprocamente autônomos com a superação da sociedade pré-moderna, passaram a se autodeterminarem por meio do controle dos códigos-diferença específicos que permitem a reprodução de cada um deles. Assim, o Direito trabalha exclusivamente com o código diferença “lícito/ilícito” – que ocorre com a positivação – e a política com o código-diferença “poder/não-poder”. Os códigos sociais possuem duas funções principais: de um lado, permitem a comunicação do sistema com seu ambiente, tornando possível a abertura cognitiva, e de outro são uma condição para o fechamento operacional do sistema. Isso significa que o sistema jurídico pode assimilar, de acordo com seus próprios critérios, fatores do ambiente, não sendo diretamente influenciados por eles. A vigência normativa não é, em regra, determinada por interesses econômicos, religiosos, morais, pois depende de processos seletivos de filtragem conceitual do interior do Direito, realizado através do código-diferença. A capacidade de aprendizagem (abertura cognitiva) do sistema jurídico positivado possibilita que ele se altere para adaptar-se às rápidas mudanças do ambiente. O fechamento operacional (normativo) impede a confusão entre sistema jurídico e seu ambiente, exige a digitalização interna de informações provenientes do ambiente. A diferenciação do Direito na sociedade não é outra coisa senão o resultado da mediação dessas duas orientações. Sobre o assunto, NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 127-140; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 65-71. 88 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 66. 87 37 O acoplamento estrutural realiza-se mediante os procedimentos constitucionalmente instituídos (os judiciais, os administrativos, os legislativo-parlamentares, os eleitorais e os democráticos diretos), conferindo legitimidade política ao Direito e legitimidade jurídica à política, e, ao final, excluindo qualquer forma de subordinação estrutural de um sistema sobre o outro.89 Ou seja, o acoplamento estrutural viabiliza o aprendizado do sistema jurídico (abertura cognitiva), mantendo-o permeável ao influxo de novos valores e, também, influenciando, em direção contrária, a política.90 Mediante o acoplamento estrutural, a estrutura do Direito passa a ser relevante e, num certo sentido, imprescindível à reprodução da política.91 A Constituição, por um lado, torna o código-diferença “lícito/ilícito” relevante para o sistema político; isso implica que as exigências do Estado de direito e dos direitos fundamentais passam a constituir contornos estruturais da reprodução dos processos políticos de busca pelo poder e de tomada de decisões coletivamente vinculantes, inclusive na medida em que decisões majoritárias democraticamente deliberadas podem ser declaradas inconstitucionais. Por outro lado, torna o código-diferença “poder/não poder” [...] relevante para o sistema jurídico. Isso significa que o processo democrático de tomada de decisão política, no sentido de formação da maioria, passa a constituir variável estrutural da reprodução dos procedimentos jurídicos de solução e absorção de conflitos, inclusive na medida em que a produção de normas jurídicas legislativas fica dependente das decisões políticas deliberadas democraticamente e tomadas majoritariamente. 92 A Constituição pode ser compreendida sob outro enfoque, como um instituto do sistema jurídico. A análise está centrada no funcionamento interno do Direito, com relação à adequabilidade da produção de seus elementos. Como o Direito e os demais subsistemas sociais são reciprocamente autônomos, o sistema jurídico precisa de critérios internos para a aplicação jurídica concreta e para a produção de normas legais. A Constituição funciona como a instância reflexiva mais abrangente do Direito, permeando-lhe todos os âmbitos de validade, o material, o temporal, o pessoal e o 89 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 57-58. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241-242. Entendendo o acoplamento estrutural da Constituição como causa da inevitável “politização da magistratura”, ver CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 60-61. Marcelo Neves afirma que sem a existência desses vínculos estruturais entre sistemas que possibilita a comunicação recíproca, haveria a tendência a autodestruição da sociedade. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 34-35. 91 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., cit., p. 35. “O que é predefinido politicamente é compreensível juridicamente mediante a Constituição.” (Id. Ibid., p. 62). 92 Id. Ibid., p. 57. 90 38 territorial (transversalidade do sistema). Nesse sentido específico, a Constituição estipula os procedimentos básicos mediante os quais se pode ingressar no sistema jurídico, conferindo consistência ao sistema jurídico e determinando que a constitucionalidade sobrepõe-se à legalidade.93 Essa reflexividade imposta pela Constituição ao próprio sistema jurídico implica a superação dos fundamentos externos ao Direito (jusnaturalistas) e resulta na autofundamentação constitucional do Direito através do seu “fechamento” para outros sistemas, já que passa a ser determinado por seus próprios elementos.94 Por outro lado, a Constituição admite o reingresso da política no Direito mediante os procedimentos constitucionais, especialmente o legislativo, porém delimitando, com a previsão dos mecanismos da reforma constitucional e das cláusulas pétreas, até que ponto o sistema jurídico pode reciclar-se sem perder sua autonomia operacional.95 A definição da Constituição como acoplamento estrutural e como instituto do sistema jurídico torna relevante a discussão sobre a consistência interna (autorreferência) e adequabilidade externa (heterorreferência) do Direito. Como já sublinhado, os sistemas sociais operam com base em seus códigos próprios que lhes conferem unidade e fechamento operacional. O fechamento é condição para abertura dos sistemas para as referências externas (ambiente) e, no caso do sistema jurídico, somente é possível absorver as referências externas na medida em que estas se adaptam ao código “lícito/ilícito”, do contrário, são irrelevantes para o Direito. Embora o sistema jurídico possua requisitos exclusivos de autorreprodução com base em operações internas, é certo que seus programas (textos e precedentes, leis e contratos, regulamentos e práxis jurisprudenciais) podem ser alterados pela variação dos elementos externos ao Direito, desde que, insista-se, possam ser mediatizados pelo código “licito/ilícito”. 93 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., cit., p. 59. Usando a linguagem da teoria dos sistemas, há uma reflexividade ao código “lícito/ilícito” no interior do sistema por meio do código “constitucional/inconstitucional”. 94 Embora inexista vinculação da Constituição com nenhuma ordem moral hierarquicamente superior, é certo que ela não resta bloqueada pelas diversas e incompatíveis expectativas de comportamentos sociais. De fato, a não-identificação da Constituição com concepções abrangentes de caráter religioso, moral, filosófico, ideológico etc., permite a ela promover a complexidade interna do sistema jurídico de forma adequada a seu ambiente hipercomplexo. Ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 72-73. 95 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., cit., p. 56-62; NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 69-74. 39 Assim, a reprodução interna do sistema jurídico opera-se pela combinação das referências interna e externa, e cabe ao Direito distinguir entre os interesses protegidos e repelidos pelo sistema. Nesse contexto, a “Justiça [...] não seria a pura correspondência entre a decisão e os interesses externos, mas sim a consistência das operações internas que reconhecem e qualificam os interesses como protegidos ou repelidos pelo direito.”96 Diante dessa definição, a tarefa do sistema jurídico passa a ser a de oferecer respostas, claras e justificadas, no caso de conflito (autorreferência consistente) e de garantir e manter expectativas quanto aos interesses tutelados pelo Direito (heterorreferência adequada ao ambiente). Em outras palavras, o sistema jurídico se vê envolto no dilema de equacionar as variáveis da consistência jurídica de suas decisões e da adequação social do Direito.97 No âmbito da aplicação normativa da Constituição, o tratamento adequado da questão está relacionado à relação entre princípios e regras constitucionais. Na concepção de Marcelo Neves, a distinção entre os dois elementos somente é inteligível tendo em vista a noção sistêmica da observação de primeira e de segunda ordem. A observação de primeira ordem está relacionada aos usos e práticas cotidianas de cumprimento/descumprimento do Direito por parte dos agentes sociais e da burocracia estatal (celebração de casamento, compra de um imóvel, pagamento de vencimentos de servidores públicos etc.), sem que os sujeitos questionem a validade das normas a serem seguidas. Já a observação de segunda ordem implica em um estágio posterior, de desacordo a respeito da aplicação da norma a uma situação conflituosa. Aqui, instaura-se a controvérsia argumentativa em torno do sentido, validade e condições de aplicação das 96 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 78. Para Marcelo Neves, a autorreferência consistente do sistema jurídico decompõe-se em três elementos: a autorreferência de base ou elementar, a reflexividade e a reflexão. A primeira significa a capacidade do sistema de manter coerência interna entre seus elementos constituintes; por reflexividade deve-se entender que processos referem-se a processos com base no mesmo código sistêmico de preferência; e reflexão significa que o sistema reflete sobre sua própria identidade. Esses momentos podem ser relacionados à legalidade (autorreferência), constitucionalidade (reflexividade) e dogmática jurídica (reflexão). A heterorreferência, por sua vez, está relacionada aos elementos da função e prestação do sistema. A função diz respeito à relação do subsistema com a sociedade como um todo, e no caso específico do sistema jurídico, realiza-se por meio da orientação congruente de expectativas normativas futuras. Já a prestação é a relação do sistema com outros sistemas sociais, e no caso do Direito, está estampada na tarefa de solução de conflitos que não podem mais ser resolvidos por outros sistemas. No plano constitucional, a função do sistema jurídico de generalização congruente de expectativas é possibilitada pela institucionalização dos direitos fundamentais e do Estado de bem-estar social. A prestação é assegurada com o estabelecimento dos procedimentos constitucionais de resolução de conflitos. Sobre o assunto, ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 153-160. 97 40 normas, tornando relevante a diferença entre regras e princípios constitucionais (no caso de desacordo quanto à aplicação da Constituição) para o desenvolvimento do sistema jurídico.98 A partir do momento em que a base de sustentação do poder não está mais associada a um padrão moral geral destacável das relações sociais, e isso é corolário da positivação do Direito, os princípios metajurídicos deixam de atuar, na prática, como critério de orientação normativa. A solução para a questão se dá com a construção da noção de princípios constitucionais, cuja função principal está na tarefa de filtrar as expectativas normativas existentes no ambiente do sistema social com pretensão de se tornarem vinculantes.99 As regras, com a ambição de atuar de forma definitiva na solução de controvérsias, mostram-se insuficientes na missão de selecionar essas expectativas, posto serem subcomplexas para oferecer critérios seletivos perante uma pluralidade desordenada de valores nas esferas sociais. Princípios e regras cumprem funções diferentes e complementares no processo argumentativo. Os princípios constitucionais, por apresentarem certa distância do caso a decidir e uma relação mais flexível entre o antecedente (hipótese normativa do fato) e o consequente (hipótese normativa do efeito jurídico), são mais adequados a enfrentar a diversidade de expectativas normativas que circulam na sociedade, sendo que, exatamente por essa característica de generalidade, são subcomplexos perante o caso a decidir. As regras, por sua vez, mostram-se mais adequadas para oferecer fundamento imediato à decisão particular.100 Portanto, no âmbito do Estado Democrático de Direito a complexidade desestruturada do ambiente, que implica uma pluralidade de expectativas normativas contraditórias, “passaria por um crivo seletivo dos princípios, tornando-se complexidade estruturável. Porém, só com a determinação da regra a aplicar ao caso a complexidade passa a ser estruturada, tornando-se possível a subsunção mediante uma norma de decisão.”101 A relação entre regras e princípios não se esgota sob o parâmetro da complementaridade entre eles, mas vai além e apresenta uma relação de circularidade no 98 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 99-100. Nesse sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição..., cit., p. 254. 100 NEVES, op. cit., p. 118. 101 Id. Ibid., p. 119. Essa capacidade dos princípios constitucionais de apresentarem maior mobilidade na seleção normativa das expectativas que circulam no ambiente social reforça seu caráter heterorreferente na argumentação jurídica na medida em que apontam para algo já existente fora do sistema jurídico (p. 127). 99 41 plano da concretização, marcada por um modelo de articulação entre princípios e regras constitucionais. Na medida em que os princípios e as regras isoladamente considerados se mostram incapazes de conferir unidade e coerência às decisões judiciais, em virtude de os primeiros desprezarem a consistência jurídica e as segundas a adequação social do Direito, conclui-se que existe uma implicação recíproca entre as categorias normativas. Nesse sentido: Os princípios constitucionais servem ao balizamento, construção, desenvolvimento, enfraquecimento, fortalecimento de regras, assim como, eventualmente, para restrição e ampliação de seu conteúdo. Em suma, pode-se dizer, com o devido cuidado, que eles atuam como razão ou fundamento de regras, inclusive de regras constitucionais, nas controvérsias jurídicas complexas. Mas as regras são condições de aplicação dos princípios na solução de casos constitucionais. [...] Ou seja, caso não haja uma regra diretamente atribuída a texto constitucional ou legal nem seja construída judicialmente uma regra à qual o caso possa ser subsumido mediante uma norma de decisão, os princípios perdem o seu significado prático ou servem apenas à manipulação retórica para afastar a aplicação de regras completas, encobrindo a inconsistência do sistema jurídico. [...] A relação reflexiva circular entre princípios e regras implica uma fortificação recíproca das respectivas estruturas (normas) e processos (argumentos).102 De outro lado, a mera invocação de princípios e regras extraídas da Constituição para a solução de um caso é insuscetível de fornecer critérios para a decisão final. Surge, ao longo do processo concretizador, uma etapa de seleção de quais princípios e regras devem ser aplicados, sendo que os princípios indiretamente extraídos do texto constitucional somente são aplicados através de regras completas que ofereçam critérios definitivos para a solução do caso.103 Uma vez determinada a regra geral aplicada para o deslinde da controvérsia por meio da etapa concretizadora, há redução do “valor-surpresa” da decisão de futuros casos que contenham os mesmos suportes fáticos e normativos do(s) anterior(es). Entretanto, nada impede que outras demandas, com os mesmos elementos fáticos e normativos, sejam decididas de maneira diversa porque litígios cujos cernes argumentativos sejam constituídos por princípios colidentes, expõem “uma racionalidade que é fortemente marcada pela 102 103 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 134-135. Id. Ibid., p. 138. 42 falibilidade, sendo superável pela introdução de novos argumentos principialistas: Hidra gera novas cabeças.”104 É nesse contexto que se torna essencial a atividade argumentativo-decisória do magistrado de fundamentar e justificar as razões que o levaram a tomar uma decisão. É este imperativo que faz do procedimento argumentativo-decisório judicial um instrumento mais propício para se decidir sobre questões de princípios.105 A disputa concorrente entre esferas sociais autônomas a respeito da atribuição de sentido ao texto constitucional acarreta a existência de diferentes leituras e modelos argumentativos a respeito da concretização de um mesmo princípio constitucional, o que envolve a questão da colisão intraprincípios. É relativamente comum que, numa contenda judicial em que se discute a correta aplicação das normas constitucionais, as partes envolvidas invoquem o mesmo princípio como razão de decidir em sentidos diametralmente opostos,106 denotando que “os princípios variam conforme a esfera de comunicação em que se aplicam.”107 Como no caso da colisão intraprincípios não há choque entre dois princípios antagônicos, mas sim expectativas normativas de diferentes esferas sociais a respeito da aplicação de um mesmo princípio, torna-se relevante analisar o método a ser adotado para a solução da controvérsia jurídica. Nesse passo, cabem algumas considerações sobre importantes teorias em voga, que procuram distinguir as regras dos princípios e os modos de aplicação de cada um deles. 104 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 140. Segundo o autor, a possibilidade de modificação da regra geral para solução do caso formulada por um Tribunal Constitucional relaciona-se com o problema da incomensurabilidade da argumentação jurídica. De fato, a sociedade atual, marcada pela nota da hipercomplexidade, apresenta visões múltiplas e antagônicas acerca da definição da própria Constituição, e por extensão dos princípios constitucionais. Assim, não havendo uma ordem supraordenada a qual é possível apelar no julgamento dos “casos difíceis”, o remédio seria criar caminhos para a preservação do dissenso estrutural e a heterogeneidade social (dupla contingência). Em suma, essa perspectiva aponta para o fato de que sempre haverá a possibilidade do surgimento de novas visões a respeito dos conflitos normativos que demandarão nova busca por solução jurídica, com potencial, a depender do ponto de vista adotado, de alterar o julgado paradigma. A argumentação jurídica, nesse particular, somente poderia evitar uma sobreposição de um sistema sobre o outro, impedindo que se incidisse no perigo da desdiferenciação funcional, fenômeno típico de organizações sociais pré-modernas (Id. Ibid., p. 141-160). 105 VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição..., cit., p. 252. 106 A título exemplificativo, o princípio da dignidade da pessoa humana é usado em perspectivas diversas para defender a legalidade ou ilegalidade da prática do aborto. E isso se repete com os outros princípios constitucionais, na medida em que o principio da igualdade, da livre concorrência, da liberdade religiosa, da educação, enfim, são tratados diversamente num litigio constitucional a depender da esfera de comunicação analisada, na família, na religião, na economia etc. 107 NEVES, op. cit., p. 162. 43 Dworkin estabelece, de modo geral, três espécies normativas: as regras, os princípios e as políticas. Regras seriam normas a serem aplicadas na solução de um litígio na maneira tudo-ou-nada, isto é, diante dos fatos a serem subsumidos, ou a regra é válida, e será aplicada no caso concreto, ou não é válida e será tida por descartável para o caso, podendo-se incluir uma exceção para contornar a falta de aplicação.108 Assim, na relação de conflito entre regras, apenas uma prevalecerá como válida, aplicando-se critérios internos previstos no ordenamento jurídico.109 Os princípios, por sua vez, são logicamente diferentes das regras em decorrência da natureza das ordens que veiculam.110 Eles possuem uma dimensão de peso ou importância, ausente nas regras, que determina, diante de uma relação conflituosa, ser obrigatório levar em conta a força relativa de cada um111, não sendo possível definir qual será aplicado preferencialmente em uma situação concreta. Ademais, o princípio não estabelece “condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção”112, mas não necessita de uma decisão particular. O princípio, para Dworkin, seria um padrão que deve ser observado, não porque vá promover um melhoramento social, econômico ou politico, mas sim “porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.”113 Já “políticas” seria aquele padrão normativo que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, politico ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Os princípios jurídicos na visão de Dworkin apoiam-se na moralidade de uma determinada comunidade politica e surgem no decorrer do processo histórico, sendo aplicados somente após passarem no teste da coerência, cujo trabalho de descoberta a respeito de qual princípio é coerente deve ser promovido pelo juiz Hércules.114 A concepção principiológica de Dworkin é passível de restrições, ao menos nos moldes como proposto por Marcelo Neves. O apelo a uma ordem moral superior 108 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos..., cit., p. 39. Id. Ibid., p. 41. 110 Id. Ibid., p. 39. 111 Id. Ibid., p. 42. 112 Id. Ibid., p. 41. 113 Id. Ibid., p. 36. 114 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 54-55. 109 44 compartilhada por todos os membros de uma certa comunidade ignora a característica principal da atual sociedade complexa, marcada fundamentalmente pelo dissenso estrutural, ou seja, por diferentes e antagônicas expectativas normativas em torno do sentido do texto constitucional. Dworkin despreza a relação de complementaridade entre os princípios e as regras. Os princípios possuem a função de, conforme referido acima, selecionar as inúmeras tendências do ambiente acerca de quais direitos e deveres constitucionais devem prevalecer, sendo capazes de estruturar a complexidade desestruturada do ambiente do sistema jurídico, enriquecendo, por outro lado, os potenciais da cadeia argumentativa dos intérpretes da Constituição. As regras, por sua vez, têm a tarefa de reduzir a complexidade dos princípios, contribuindo para a passagem de um estado inicial de incerteza para a solução final do caso.115 Robert Alexy propõe um modelo de análise da distinção entre princípios e regras de forma diversa da adotada por Dworkin. Para Alexy as regras não são aplicadas na maneira do “tudo-ou-nada”, são normas que serão sempre satisfeitas ou não satisfeitas, sendo que no conflito entre regras uma deve ser declarada inválida.116 Os princípios, para Alexy, são mandamentos de otimização que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, podendo ser satisfeitos em graus variados a depender dos princípios e regras colidentes num determinado caso concreto.117 A colisão entre princípios não acarreta a invalidade de um deles, mas determina que um terá precedência em face do outro sob determinadas condições. O conflito entre regras ocorre na dimensão da validade, enquanto a colisão entre princípios se dá na dimensão do peso. A verificação do princípio topicamente prevalecente se dá com o sopesamento dos interesses conflitantes a fim de estabelecer qual dos interesses têm maior peso no caso concreto (mandamentos de otimização).118 Para Alexy, portanto, “princípios são 115 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 57-58. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 92. 117 Id. Ibid., p. 90. 118 Id. Ibid., p. 94-95. 116 45 sempre razões prima facie e regras são, se não houver o estabelecimento de alguma exceção, razões definitivas.”119 À teoria de Alexy podem ser apontadas objeções, em parte semelhantes, às de Dworkin. Em primeiro lugar porque não está atenta à complexidade social, especialmente à dupla contingência, em que visões concorrentes sobre direitos oferecem perspectivas opostas a respeito de um mesmo princípio constitucional, o que afastaria as ideias de sopesamento e otimização em busca de uma solução adequada.120 Em segundo lugar, existem situações nas quais, ao longo do processo de concretização constitucional, regras antagônicas atribuídas à Constituição devem ser sopesadas para, no final do processo interpretativo, chegar à regra aplicável. As regras não teriam, assim, em certos casos, o caráter de razão definitiva, como quer Alexy, permitindolhes a aplicação da técnica da ponderação. É oportuno mencionar, nesse ponto, que as teorias de Dworkin e Alexy, embora tenham encontrado ampla ressonância na doutrina brasileira, com juristas de escol adotando, em maior ou menor grau, aspectos consideráveis de ambas, receberam críticas especialmente a respeito da distinção entre princípios e regras e ao modo de aplicação de cada um deles. Dentre os doutrinadores entusiastas, Luís Roberto Barroso faz uma mixagem aleatória entre as teorias de Dworkin e Alexy ao prescrever três critérios distintivos entre as categorias das regras e dos princípios: conteúdo, estrutura e aplicação.121 No plano do conteúdo, as regras são entendidas como normas que se limitam a traçar uma conduta enquanto os princípios identificam valores a serem preservados ou fins a serem atingidos (políticas); trazem, ademais, um relato de corte axiológico, de índole moral, ou seja, veiculam valores. Quanto à estrutura normativa, as regras especificam os atos a serem adotados pelo intérprete para sua correta aplicação, devendo este “dar o toque de humanidade que liga o texto à vida real”. Já os princípios indicam estados ideais a serem alcançados e que dependem, em certos casos, da concepção ideológica ou filosófica do intérprete para a efetiva concretização do núcleo essencial que todo principio possui. 119 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais..., cit., p. 106 (grifos do autor). NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 83-88 e 169. 121 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 350. 120 46 Por fim, no âmbito da aplicação, regras e princípios distinguem-se na medida em que as primeiras são aplicadas na maneira tudo-ou-nada, incidindo ao caso concreto de forma automática por meio da subsunção; os princípios contêm um caráter ético e valorativo e, diante da abrangência de temas que normatiza, podem se contrapor a outros princípios de idêntica estatura jurídica, devendo reconhecer, nessas hipóteses, a dimensão de peso de cada princípio conflitante. A solução do caso difícil se dará por meio da ponderação de valores, bens, interesses e normas.122 Eros Grau, depois de enxergar na Constituição Federal princípios explícitos, implícitos e princípios gerais de direito, os quais podem ser perfeitamente enquadrados nas classificações de Dworkin (princípios e diretrizes), de Canotilho (princípios jurídicos fundamentais, princípios políticos constitucionalmente conformadores, princípios constitucionais impositivos e princípios-garantia), e de José Afonso da Silva (normas constitucionais de princípio, normas-princípio ou normas fundamentais, normas constitucionais de princípios gerais e princípios político-constitucionais), entende que a aplicação/concretização desses “valores” ocorre por meio da ponderação dos princípios explícitos e implícitos da ordem constitucional.123 Virgílio Afonso da Silva adota integralmente a metodologia de Alexy sobre a diferença entre regras e princípios, sendo as primeiras normas instituidoras de direitos ou deveres definitivos e os segundos direitos ou deveres prima facie.124 Na vertente dos juristas críticos aos modelos de Dworkin e Alexy, podem ser citados Lenio Streck e Humberto Ávila. Streck atribui aos princípios a função normativa de impedir a discricionariedade ampla do intérprete (“fechamento interpretativo”) através do recurso ao apelo a valores intersubjetivos partilhados pela comunidade, opinando que os princípios estão positivados na Constituição porque refletem esses valores comuns. Os princípios, ademais, conferem ao juiz a obrigação de decidir de forma correta em respeito aos valores comunitários, concluindo que a obtenção da resposta correta é um direito fundamental.125 122 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 350-362. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição..., cit., p. 154-164. 124 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 44, com a ressalva de que admite a hipótese de colisão entre uma regra e um princípio (Id. Ibid., p.51). 125 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso..., cit., p. 57. 123 47 Ávila, de outro lado, sustenta que a distinção entre regras e princípios com base no “modo final de aplicação” não se sustenta, eis que há situações em que as regras passam por um processo de ponderação para sua aplicação, caso as circunstâncias concretas indiquem a impossibilidade da aplicação na forma do tudo-ou-nada. Existem conflitos entre regras e princípios, ou mesmo entre duas regras, sem que resulte, no último caso, na eliminação de uma delas do ordenamento jurídico ou na inclusão de uma cláusula de exceção. Para Ávila as regras também têm uma dimensão de peso em certas situações que exigem do aplicador um trabalho ponderativo para atribuição das razões justificadoras da regra. Dessa forma, princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. Já as regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.126 A colisão intraprincípio, tal como realçada por Marcelo Neves, impede a conceituação dos princípios como mandamentos de otimização que veiculam direitos ou deveres prima facie aplicados por meio da técnica da ponderação, posto que, nesse caso, inexiste colisão entre princípios antagônicos. A maximização também estaria em xeque porque importa na prevalência de uma determinada interpretação de um princípio em detrimento de outras interpretações concorrentes, medida incabível no seio de uma sociedade complexa como a atual.127 A forma de solucionar essa questão, para evitar o perigo da hipertrofia de uma orientação normativa em desfavor de outra e de reorientar as expectativas normativas dos envolvidos na controvérsia, é adotar uma “ponderação comparativa” entre as várias perspectivas concorrentes dos princípios, fundamental para a adequação social do Direito, já 126 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 40-64 e p. 78-79. Para uma crítica da posição de Ávila, ver SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 56-64. 127 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 165. 48 que não despreza o fato de que haverá uma absorção seletiva e excludente em face do dissenso estrutural.128 Nessas circunstâncias, a decisão tanto mais se justifica quanto maior for sua capacidade de impedir a hipertrofia de uma esfera social (economia, política, midiática, científica, religiosa etc.), assim como de uma perspectiva de grupo, organização, pessoa ou ordem jurídica na compreensão do respectivo princípio, sem reprimir o dissenso estrutural, mas antes possibilitando-lhe e, inclusive, estimulando-lhe a emergência em futuros casos. Em síntese, dentro de seus limites, os juízes e tribunais constitucionais (em sentido amplo) também têm o papel de reagir aos perigos da desdiferenciação (politização, economicismo, fundamentalismo religioso, cientificismo, corporativismo, moralismo, domínio da mídia etc.) e da negação da dupla contingência (a eliminação de alter por ego e vice-versa) no processo de concretização constitucional. Para isso, têm que enfrentar permanentemente o paradoxo da relação entre consistência jurídica, associada primariamente à argumentação formal com base em regras, e adequação social do direito, vinculada primariamente à argumentação substantiva com base em princípios.129 Nesse passo, é de se ter que os princípios e as regras relacionam-se de forma conflituosa. Se de um lado, a tendência a superestimar os princípios pode acarretar alto grau de incerteza apta a abalar os quadrantes da segurança jurídica e solapar a consistência do ordenamento, de outro, a profusão de regras tem como corolário o engessamento do sistema normativo e o torna funcionalmente incapaz de lidar com os inúmeros problemas sociais, incompatibilizando-o com a adequação social do Direito. O tratamento adequado do relacionamento entre regras e princípios requer a superação no plano argumentativo, em cada caso concreto, do paradoxo entre a consistência jurídica (regras) e a adequação social (princípios). A relação conflituosa entre regras e princípios se estende à própria Justiça. Esta apresenta duas perspectivas: uma interna, relativa à tomada de decisão juridicamente consistente; e outra externa, referente à tomada de decisão adequadamente complexa à sociedade atual.130 Sem que se possa contar com uma solução juridicamente consistente, o Direito perde sua racionalidade, posto que, do contrário, os julgamentos serão orientados por fins particularistas sem significado jurídico-constitucional, incapazes de orientar condutas. 128 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 169. Id. Ibid., p. 170 (grifos do autor). 130 Id. Ibid., p. 223-224. 129 49 De outro lado, a Justiça importa na adequação social do Direito, entendida, na ótica de uma sociedade multifacetada, na capacidade de possibilitar a convivência não destrutiva de diversos projetos e perspectivas sociais, levando à legitimação dos procedimentos constitucionalmente estabelecidos, “na medida em que estes servem para reorientar as expectativas em face do direito, sobretudo daqueles que eventualmente tenham suas pretensões rejeitadas por decisões jurídicas.”131 Levando em consideração o exposto, Marcelo Neves apela à figura da mitologia para desenvolver o modelo de juiz Iolau, adequado para lidar com o paradoxo entre regras e princípios. Diferentemente do juiz Hidra, o juiz Iolau não se subordina ao poder dos princípios de se regenerar infinitamente em cada caso concreto. Não modifica sua posição a cada invocação de princípios, deixando-se impressionar pela retórica principiológica. Também, o juiz Iolau não regenera, ele mesmo e a cada caso novo, um princípio para encobrir a sua atuação em favor de interesses particulares, vinculados ao poder, à amizade etc. Isto é, não utiliza da retórica principiológica para impressionar as partes de um processo judicial e dissimular sua prática juridicamente inconsistente.132 Por outro lado, o juiz Iolau não pode ser confundido com o juiz Hércules. Iolau não se deixa levar por argumentos que insistem na simplificação do ordenamento jurídico mediante o uso desenfreado das regras em nome de uma pretensa segurança jurídica, impedindo o direito de oferecer respostas adequadas às complexidades sociais. Iolau não se prende a argumentos lógico-formais, invocando uma posição de superioridade intelectual para adotar regras criadas por ele mesmo para solucionar intrincadas controvérsias jurídicas. O juiz Iolau não é adepto do uso da técnica da ponderação a cada caso que se apresenta, posto que tal prática não auxilia na redução do “efeito surpresa” na resolução de idênticas questões no futuro. Não ignora a utilidade da ponderação, no entanto, procura usá-la com parcimônia, preferindo a modalidade da “ponderação comparativa”, em busca do modelo de sopesamento definitório que servirá para evitar novo recomeço a cada caso a ser julgado.133 131 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 225. Id. Ibid., p. 222. 133 Id. Ibid. 132 50 Essa postura do juiz Iolau não tem a pretensão de eliminar o paradoxo permanente da Justiça na busca por consistência e adequação. Antes, Iolau atua no sentido de buscar topicamente um equilíbrio entre os princípios (argumentação substantiva) e as regras constitucionais (argumentação formalista), pois tem a consciência de que numa sociedade complexa essa questão nunca será superada plenamente devido a seu caráter contingente, implicando na contínua abertura para outras possibilidades.134 De outro lado, o juiz Iolau é avesso à absolutização das regras e dos princípios constitucionais com o intuito de oferecer soluções que contribuam para impedir a expansão e o imperialismo de uma certa racionalidade em detrimento das outras. Com o propósito de esclarecer se modelo de juiz Iolau teria correspondência com a realidade, Marcelo Neves assevera, em tom conclusivo, que: É possível que se suponha ser o juiz Iolau mais um ideal regulativo. Parece-me que não. Se pensarmos nos limites paradoxais da justiça como fórmula de contingência (ou de transcendência), poder-se-ia afirmar, com Derrida, que o juiz Iolau confrontase com “uma experiência do impossível.” E caberia concluir: na busca de equilíbrio entre regras e princípios constitucionais, o juiz Iolau é, ele próprio, uma experiência com o impossível. Para enfatizar a contingência, é mais plausível, porém, a seguinte conclusão: o juiz Iolau é a experiência com o impossível.135 Desse modo, é de se supor que o modelo oferecido por Marcelo Neves não pode ser perfeitamente encontrado na prática constitucional. Deve ser compreendido como uma teoria hermenêutica que busca conferir racionalidade e previsibilidade (e, portanto, controle social) aos julgamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal, evitando decisionismos e arbitrariedades como consequência do uso indiscriminado e inflacionário dos princípios constitucionais. O título da obra em que Marcelo Neves apresenta o modelo de juiz Iolau é bastante sugestivo a respeito do lugar que este deve ocupar para realizar com êxito a difícil tarefa de desparadoxizar a própria Justiça: ele deve estar situado entre Hidra e Hércules. 134 135 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 226. Id. Ibid., p. 227-228 (grifos do autor). 51 3 A liberdade de expressão como direito fundamental A extensão do direito à liberdade de expressão deve ser interpretada, tendose em vista a concepção contemporânea do Estado Democrático de Direito. É somente a partir daí que cabem questionamentos a respeito das razões da fundamentalidade do direito de livremente expressar-se. Colocando a questão em forma de pergunta, deve-se responder por que a liberdade de expressão merece positivação constitucional sob o rótulo de direito fundamental? A importância da liberdade de expressão levou todas as constituições editadas no Brasil a preverem proteção a esse direito fundamental136, variando a amplitude da garantia de acordo com o modelo político vigente em cada momento histórico.137 Os artigos da atual Constituição Federal que regulam o direito à liberdade de expressão, a exemplo dos dispositivos que tratam dos direitos fundamentais de forma geral, possuem redação por demais genérica, o que dificulta a determinação de seu exato significado. Não é possível determinar de antemão se o direito à livre expressão protege, por exemplo, alguém que escreve e publica livro com ideias antissemitas, se beneficia um grupo de pessoas que se reúne em local público para defender a legalização das drogas, ou se pode ser invocada em prol do direito de um veículo de imprensa publicar notícias sobre investigação criminal contra filho de ex-presidente da República. A liberdade de expressão é uma das dimensões do direito geral à liberdade e pode ser conceituada como o poder conferido aos cidadãos para externar opiniões, ideias, convicções, juízos de valor, bem como sensações e sentimentos, garantindo-se, também, os 136 Os dispositivos das constituições que vigoraram no Brasil antes da atual que fizeram referência ao direito à liberdade de expressão e pensamento são os seguintes: Carta Imperial de 25 de março de 1824, art. 179, IV; Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de Fevereiro de 1891, art. 72, §12. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, art. 113, inciso 9. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, art. 122, inciso 15; Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, art.141,§ 5º, e art. 173. Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, art. 150,§ 8º. 137 PINTO, Felipe Chiarello de Souza. Os símbolos nacionais e a liberdade de expressão. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 85-86. 52 suportes por meio dos quais a expressão é manifestada, tais como a atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.138 Protegido pela disposição constitucional da liberdade de expressão, com status de cláusula pétrea139, ao indivíduo é conferida a prerrogativa de pensar e acolher as ideias que pareçam corretas, sem sofrer interferência do Poder Público ou da sociedade.140 A liberdade de expressão compreende o “direito de comunicar-se, ou de participar de relações comunicativas, quer como portador de mensagens (orador, escritor, expositor), quer como destinatário (ouvinte, leitor, espectador)”141, abrangendo a comunicação em torno de informações, opiniões, sentimentos, propostas, por meio do uso da linguagem, gestos, imagens ou mesmo o silêncio, e sob os mais variados temas (religião, moral, política, ciência, história etc). Owen Fiss estende o conceito de discurso protegido pela cláusula da liberdade de expressão para incluir os discursos incitadores do ódio, a pornografia e o gasto privado de dinheiro em campanhas eleitorais, assim como o ato de escrever livros e os recursos e instituições destinados a sua distribuição ao público.142 O regime jurídico da liberdade de expressão admite uma dualidade quanto a seu conteúdo. Nele está incluída a liberdade de expressão propriamente dita, ou em sentido estrito, e a liberdade de informação, sendo esta uma espécie da primeira e englobada por aquela. Enquanto a liberdade de expressão propriamente dita consiste no direito de participar de relações comunicativas exprimindo suas convicções, a liberdade de informação assegura ao indivíduo o direito de ser informado e de ter acesso a dados e notícias sem sofrer 138 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 34-35. 139 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...] IX - É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”; “Art. 60 [...]§4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais.” 140 Segundo Kelsen, na medida em que uma conduta não é proibida pelo direito, isto é, inexiste previsão de sanção para o ato, o indivíduo é juridicamente livre para realizar a ação. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 46. 141 MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade de expressão. Florianópolis: Insular, 2008, p. 27. 142 FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e Prefácio Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 44-45, com a ressalva de que o autor entende legítima a regulação do discurso do ódio, da pornografia e do financiamento de campanhas a fim de preservar a própria liberdade de expressão (p. 46). 53 ameaças ou impedimentos, totais ou parciais, por parte do Estado ou da sociedade.143 Assim também aos meios de comunicação é assegurado o direito de produzir notícias (conteúdo) e adotar a linha editorial que entender pertinente para a emissão da opinião.144 É fácil de ver que a liberdade de expressão do pensamento, portanto, completa-se no direito à informação, livre e plural, que constitui um valor indissociável da ideia de democracia. É um direito tão caro à cidadania que somente é viável sua suspensão, no Brasil, na vigência do estado de sítio, decretado nas hipóteses previstas na Constituição Federal.145 A cisão entre liberdade de expressão e de informação tem um importante efeito prático relacionado aos requisitos necessários para a proteção e limitação de cada direito. A garantia da liberdade de expressão não está condicionada à prova da veracidade da opinião veiculada, exigência feita apenas para a liberdade de informação. Como a liberdade de informação se refere a fatos, a divulgação destes deve vir precedida de um trabalho de apuração sobre sua veracidade146, mesmo superficial e condicionado pelas circunstâncias objetivas do caso. A liberdade de expressão em sentido estrito, por se referir a ideias e opiniões, não está atrelada à verdade, ao passo que a liberdade de informação, ao contrário, possui a verdade como limite (interno ou externo), uma vez que se destina a dar ciência da realidade ao público.147 Nesse ponto é importante esclarecer que, ao se falar na verdade como limite à liberdade de expressão, não se faz referência a um conceito absoluto de verdade, impossível de ser alcançado. Como a definição de verdade varia historicamente, a época atual possui uma visão particular do que pode ser considerado verdadeiro. Entendido menos como um padrão objetivo de comportamento superiormente válido, fora do qual tudo deve ser reprimido, e 143 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 42. SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão e pluralismo: perspectivas de regulação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 205. 145 “Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. [...] Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: [...] III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;” 146 CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 12. 147 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de Direito Administrativo, n. 235, jan./mar. 2004, p. 19 e 23. 144 54 mais como um juízo relativo à questão da dupla contingência, que valoriza a plausibilidade e o ponto de observação de outros participantes, torna-se pois, o conhecimento, produto da interpretação e da intersubjetividade.148 Nesse contexto, Habermas enfatiza que Visto que todos os discursos reais, que se desenrolam no tempo, são provincianos, não podemos saber se os enunciados que hoje, mesmo em condições aproximadamente ideais, são racionalmente aceitáveis se afirmarão também no futuro contra tentativas de refutação.149 É por isso que a publicação de uma matéria jornalística, posteriormente tida como falsa, não conduzirá inexoravelmente a uma condenação do veículo de comunicação. Caso os profissionais tenham sido razoavelmente diligentes antes da publicação da notícia, lançando mão de averiguações a respeito da origem do fato que chega a seu conhecimento, estarão isentos de responsabilidade, desde que a matéria não seja uma invenção ou um rumor.150 Independentemente da diferenciação que se faz entre a liberdade de expressão em sentido estrito e a liberdade de informação, é certo que ambas são espécies do gênero direito à liberdade de expressão, consagrado na Constituição Federal de 1988. 148 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 14. ed. São Paulo: Ática, 2012, p. 130; BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 176-202; BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 25; SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão..., cit., p. 29. 149 HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução Milton Camargo Mota, São Paulo: Loyola, 2004, p. 255, apud NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 205, nota de rodapé 90. 150 ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Acerca de la doctrina del tribunal constitucional em materia de libertad de expresion. Revista de estudios políticos (Nueva Epoca). n. 77, jul./sep. 1992, p. 245. O Superior Tribunal de Justiça parece ter adotado esse posicionamento no julgamento de recente caso envolvendo os limites da liberdade de informação jornalística. Um juiz de direito pediu a condenação de veículo de comunicação a pagar compensação por danos morais por ofensa à honra objetiva, por conta da publicação de notícia sobre a existência de investigação criminal que procurava reunir provas sobre a prática de fatos criminosos. Por unanimidade, o Tribunal reverteu condenação de segunda instância sob o argumento de que a entidade responsável por prestar serviços de comunicação não tem o dever de indenizar pessoa física em razão da publicação de matéria de interesse público em jornal de grande circulação a qual tenha apontado a existência de investigações pendentes sobre ilícito supostamente cometido pela referida pessoa, ainda que posteriormente tenha ocorrido absolvição quanto às acusações, na hipótese em que a entidade busque fontes fidedignas, ouça as diversas partes interessadas e afaste quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulga. A Corte aduziu ainda que, no tocante à veracidade do que noticiado pela imprensa, a diligência que se deve exigir na verificação da informação antes de divulgá-la não pode chegar ao ponto de as notícias não poderem ser veiculadas até se ter certeza plena e absoluta de sua veracidade. O processo de divulgação de informações satisfaz o verdadeiro interesse público, devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um procedimento judicial, no qual deve haver cognição plena e exauriente dos fatos analisados (Resp. 1.297.567-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi). 55 3.1 As justificativas instrumental e constitutiva da liberdade de expressão Os termos abstratos com que vazada a liberdade de expressão, na atual Constituição exige que se questione sobre os objetivos para a proteção desse direito, questão de considerável importância para a interpretação e aplicação das suas disposições ao caso concreto, especialmente nos casos controversos. Nesse ponto, é possível arrolar duas justificativas gerais para a catalogação da liberdade de expressão como direito fundamental: uma de natureza instrumental e outra constitutiva (moral). O objetivo instrumental para proteção da liberdade de expressão faz alusão aos benefícios de que goza a sociedade com a permissão que as pessoas têm de poder falar o que bem entenderem. Essa explicação para a liberdade de expressão “se baseia na adoção de uma estratégia especial [...], uma espécie de aposta coletiva na idéia de que, a longo prazo, a liberdade de expressão nos fará mais bem do que mal.”151 A justificativa constitutiva, por sua vez, agrega um valor intrínseco à liberdade de expressão. Ela é importante não apenas por causa das consequências que provoca, mas fundamentalmente porque obriga o Estado e grupos privados a tratar os cidadãos adultos e capazes como agentes morais responsáveis, sendo esse um traço essencial de uma sociedade política justa. As duas justificativas gerais sobre a fundamentalidade da liberdade de expressão, porém, não respondem de forma adequada à pergunta sobre os motivos que levam a considerá-la um direito fundamental. É preciso desdobrar cada um dos objetivos gerais em outros mais específicos. Desse modo, o fundamento instrumental subdivide-se em três: (i) contribui para o avanço do conhecimento e obtenção da verdade, (ii) representa uma forma de garantir a democracia e (iii) mantém em equilíbrio os pratos da balança entre a estabilidade e a mudança da sociedade. Por sua vez, o fundamento constitutivo promove a autossatisfação individual. A defesa da liberdade de expressão como instrumento para o avanço do conhecimento e descoberta da verdade está ancorada na ideia de que num contexto de debate livre entre pontos de vista divergentes, os melhores argumentos prevalecerão por sua 151 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 319. 56 qualidade intrínseca, gerando um clima de busca da verdade, de críticas ao governo, e que resulta no incremento da participação política dos cidadãos.152 A melhor prova da verdade de uma ideia é ela ser aceita após exposta ao debate público, no que se convencionou chamar de “teoria do livre mercado de ideias”.153 A teoria do livre mercado de ideias propugna a busca da verdade do conteúdo de uma afirmação por meio da competição entre dois ou mais pontos de vista, que muitas vezes carregam ideias diametralmente opostas uns aos outros, dentro de um ambiente plural e livre de interferências e constrangimentos.154 Exige-se que a maior quantidade possível de informação tenha sido disponibilizada ao público ao menos uma vez. Essa postura limita consideravelmente o poder estatal, aceitando-se o “risco inerente à expressão e respeito pela autonomia individual.”155 A ideia subjacente é a de que não há assunto cuja discussão deva ser interditada. Segundo Ingo Sarlet e Carlos Molinaro: Sabemos que muitas questões submetidas ao debate público podem constituir-se em perigosas ou mesmo perversas armadilhas para a vida sociopolítica, mas ainda assim não podem ou devem ser evitadas, ou, o que é pior, invisibilizadas. Com efeito, há palavras que, a despeito dos significados que carregam, devem poder ser pronunciadas, seja para o bem, seja para o mal, sem que aqui se esteja a incentivar um maniqueísmo irracional e destrutivo. Aliás, importa frisar que o eventual benefício ou prejuízo advindo de determinada manifestação revela-se, em geral, apenas mediante diferenças de grau do sentido que lhes dá o intérprete. Além disso, não se negligenciam os limites que dizem com a responsabilização dos que utilizam a liberdade de expressão como instrumento de incitação ao ódio, para o ultraje à honra, ou mesmo para insultar os sentimentos e as crenças de uma dada 152 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 234. 153 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 132. Essa função instrumental da liberdade de expressão teve origem a partir do voto dissidente proferido pelo juiz Holmes da Suprema Corte dos Estados Unidos em Abrahms vs. United States, em 1919. Segue trecho do voto de Holmes: “Quando os homens perceberam que o tempo mudou muitas das concepções pelas quais eles lutaram, eles passaram a acreditar que o verdadeiro bem é melhor alcançado pela livre troca de idéias – que o melhor teste para a verdade é o poder de uma tese ser aceita na dura competição do mercado e que a verdade é o único fundamento sobre o qual seus desejos podem ser realizados. Essa é sobre qualquer medida a teoria da nossa Constituição. É um experimento, como toda a vida é um experimento. Enquanto esse experimento for parte do nosso sistema eu creio que devemos ser eternamente vigilantes para impedir tentativas de acabar com opiniões que odiemos, ao menos que elas representem uma ameaça imediata ao direito e aos objetivos mais urgentes da lei, requeridos para salvar o país.” 250 U.S. 616 (1919), apud SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão..., cit., p. 27, nota de rodapé 41. 154 Entendendo que a teoria do livre mercado de ideias é apanágio da visão neoliberal marcada pela tendência a integração economia e política, ver MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 250. 155 TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade de expressão. Tradução Frederico Bonaldo, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 27. 57 coletividade, pois, se assim não fosse, estar-se-ia admitindo a própria afronta aos princípios fundamentais e democráticos do Estado Democrático, justamente os princípios que asseguram e legitimam o caráter fundamental da liberdade de expressão. [...] O mais importante aí é a garantia de liberdade para a produção do debate, bem como a afirmação da atribuição de responsabilidade aos atores sociais envolvidos.156 A teoria foi posteriormente confirmada pela Suprema Corte em diversos julgados157 e especialmente utilizada no famoso e polêmico caso “Documentos do Pentágono” (New York Times vs. United States), tido como “um dos maiores conflitos sobre a liberdade de imprensa” da história americana158. Nesse julgado, o presidente americano em exercício, Richard Nixon, afirmou que a conduta do jornal New York Times, de publicar documentos secretos pertencentes ao governo sobre a realidade da Guerra do Vietnã, ameaçava a segurança nacional. Por maioria de seis votos a três, a Suprema Corte decidiu que era lícito ao veículo publicar os documentos, já que o órgão de imprensa tem o direito de colocar em circulação informações ao menos uma vez. A teoria do livre mercado de ideias, por outro lado, proíbe que a autoridade pública intervenha para impedir previamente a difusão da informação, mesmo que a publicação possa representar dano a direito fundamental de um indivíduo, sob o risco da institucionalização do mecanismo da censura prévia.159 A repressão à liberdade de expressão é um castigo que atinge a sociedade como um todo, penalizando aqueles que apostam no progresso geral da humanidade. Na esteira da lição de Stuart Mill: Fosse a opinião apenas um objeto pessoal, sem nenhum valor exceto para o seu proprietário, e se o impedimento do usufruto dela fosse apenas um dano privado, 156 SARLET, Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto. Liberdade de expressão! [Superando os limites do “politicamente incorreto”]. Revista da Ajuris, a. XXXIX, n. 126, v. 39, jun. 2012, p. 42-43. 157 Segundo Anthony Lewis, o posicionamento da Suprema Corte em favor da liberdade de expressão começou a mudar no ano de 1931 com a apreciação do caso Stromberg vs. Califórnia, em que uma lei do Estado da Califórnia que proibia a exibição de uma bandeira vermelha como sinal de oposição ao governo estabelecido foi declarada inconstitucional, sob a influência dos votos dissidentes dos juízes Holmes e Brandeis em Abrahms vs United States, Whitney vs. Califórnia e United States vs. Schwimmer (LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias que odiamos: uma biografia da primeira emenda à constituição americana. Tradução Rosana Nucci. São Paulo: Aracati, 2011, p. 52-57. 158 LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias..., cit., p. 65. 159 A Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente a censura prévia nos seguintes termos: “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. [...] § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” 58 então poderia fazer alguma diferença se esse dano atingisse apenas algumas pessoas ou muitas. Mas o prejuízo característico de silenciar uma opinião reside no fato de que isto é roubar a raça humana, tanto a posteridade quanto a geração atual, tanto aqueles que discordam da opinião quanto aqueles que a sustentam, e esses ainda mais que os primeiros. Pois, se a opinião está certa, eles são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade e, se ela está errada, eles perdem a percepção mais clara e vívida da verdade, produzida pela colisão desta com o erro, um benefício tão grande quanto o primeiro.160 O fundamento da busca da verdade não protege apenas as expressões carregadas de componente político. Servem para uma variedade imensa de temas (história, cinema, esportes, artes, música, ciência, religião, ensino etc.) e para valorações puramente morais. Isso porque, sendo correta a afirmação de Larry Alexander de que a justificação da importância da liberdade de expressão com base unicamente na ideia de busca da verdade é perigosa em decorrência da inexistência, em termos filosóficos, de uma verdade acima das demais161, é certo, por outro lado, que adotar esse posicionamento como argumento para admitir a supressão da circulação da informação conferiria um expressivo poder às autoridades estatais de determinar o conteúdo das mensagens que podem ou não fazer parte da esfera pública, acarretando o empobrecimento da qualidade do debate público e, em última instância, da própria democracia. Acrescentando ao conceito de verdade exposto na seção anterior, Jónatas Machado enfatiza que: A interpretação da liberdade de expressão com base na procura da verdade deve ser valorada de uma forma que dê conta das suas debilidades epistemológicas e das suas virtualidades cognitivas e comunicativas. Por um lado, preclude-se a sua funcionalização relativamente a um qualquer dever moral de procurar a verdade última das coisas, heteronomamente imposto. Num Estado Constitucional, desvinculado de quaisquer metanarrativas oficiais, a existência e o sentido da verdade são em si mesmos objecto de discussão, o mesmo sucedendo com qualquer hipotético dever moral de procura da mesma. [...] Numa sociedade aberta, a discussão deve reservar-se para as diferentes visões compreensivas do mundo que se digladiam entre si. Ora, mesmo que se ponha em causa a competência racional e moral-prática dos indivíduos, sempre se há-de concordar que é mais desejável um sistema em que todos possam dar o seu contributo, do que um outro em que o governo ou qualquer outra entidade tenha o poder de decidir o que as pessoas podem dizer, mostrar, ouvir e ver.162 160 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução Ari R. Tank Brito. São Paulo: Hedras. 2010, p. 60. ALEXANDER, Larry. Is there a right of freedom of expression? New York: Cambridge University Press, 2005, p. 128-129. 162 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 244-245. 161 59 Sustenta-se, ademais, que a liberdade de expressão é um direito fundamental por representar uma forma valiosa de garantir o funcionamento da democracia e educar para a tolerância. A democracia repousa sob os fundamentos da soberania popular e da proteção dos direitos fundamentais, estes garantidos em documento constitucional contra modificação patrocinada pela maioria de ocasião. Isso significa que as decisões políticas vinculantes da comunidade são tomadas pelos cidadãos, diretamente ou por meio de representantes. No entanto, essas escolhas possuem legitimidade, embora tomadas pela maioria da população, somente se mantiverem hígidos certos direitos considerados necessários para o convívio social. Robert Dahl sustenta que o regime democrático está presente com a realização concomitante de cinco elementos: participação efetiva dos membros da sociedade nas decisões políticas, igualdade de voto, aquisição de entendimento esclarecido sobre os assuntos públicos, exercício do controle definitivo do planejamento das políticas públicas adotadas pela comunidade, e inclusão de todos os adultos nos direitos previstos nas leis fundamentais.163 Para Dahl esses critérios são fundamentais porque tratam todos os cidadãos como politicamente iguais e abrem a possibilidade para os menos afeitos às questões públicas obterem conhecimento específico que os habilitem a participar efetivamente do controle dos atos do governo.164 Faz parte da lógica do sistema democrático a existência de um ambiente público robusto e dinâmico, em que os temas de interesse geral possam ser debatidos com ampla liberdade, e que seja franqueado aos cidadãos o acesso a toda espécie de opinião sobre as mais variadas questões, permitindo-lhes formar seu convencimento e, consequentemente, participar ativamente da condução da coisa pública e exercitar o autogoverno.165 A democracia confere aos cidadãos garantias de que a mentira e o engodo na política poderão ser descobertos mais facilmente e os eleitores estarão capacitados para tomar as melhores decisões públicas quando as discussões políticas forem travadas num ambiente livre de impedimentos à expressão, propiciando o estímulo ao autogoverno do povo e o controle sobre os atos dos governantes. 163 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Unb, 2009, p. 49-50. Id. Ibid., p. 52. 165 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 237. 164 60 O argumento da promoção da democracia assegura que a dissidência política deve ser respeitada, mesmo a mais isolada, pois “se toda a humanidade, exceto uma pessoa, tivesse uma opinião, e essa pessoa tivesse uma opinião contrária, a humanidade não teria mais justificativas para silenciá-la do que ela para silenciar a humanidade.”166 É fácil de concluir que existe uma íntima ligação entre a liberdade de expressão, a democracia e o ideal republicano da participação cívica na vida pública, este entendido atualmente não apenas como um direito dos cidadãos, mas um “dever dos indivíduos de falar livremente sobre os assuntos de interesse comunitário, acentuando-se a responsabilidade especial de vigilância permanente que anda associada ao auto-governo.”167 A positivação do direito fundamental à liberdade de expressão, seja em textos constitucionais escritos, seja por meio de reiteradas decisões judiciais, tem um importante aspecto contramajoritário de proteção das minorias (raciais, étnicas, sexuais, nacionais). Com efeito, tomando-se como natural a tendência da maioria de utilizar atos formais ou informais de repressão para sufocar as vozes dissidentes a fim de que não propaguem juízos contrários aos costumes, tradições, instituições ou convenções vigentes, encontramos no direito à liberdade de expressão um obstáculo à pretensão de hegemonia, incutindo nas pessoas a consciência da necessidade de ser tolerante. “Se os direitos de expressão das minorias e dos dissidentes são assegurados, a mensagem endereçada é a de que o respeito à diversidade de pensamento é uma virtude que as pessoas devem praticar.”168 Ingo Sarlet e Carlos Molinaro mencionam interessante passagem que retrata claramente a enorme força dos atos informais de repressão à livre expressão.169 Os autores fazem alusão a um episódio protagonizado pelo escritor e romancista Günter Grass, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1999. Em abril de 2012, Grass publicou artigo em um jornal alemão em que fazia críticas à questão Israel-Irã e às potências ocidentais, em especial à própria Alemanha, fornecedora de material bélico para Israel. Segundo ele, o Ocidente seria conivente com a política militar imposta por Israel contra o Irã, responsável por milhares de mortes no país persa e cuja justificativa é a intenção deste país em produzir uma bomba atômica. Grass acentua as exigências feitas por 166 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade..., cit., p. 59-60. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 260. 168 MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 67. 169 SALERT, Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto. Liberdade de expressão!..., cit., p. 39. 167 61 organismos internacionais em face de Teerã para enriquecimento de urânio sem que o mesmo seja feito com Israel, detentor de arsenal atômico. Por fim, Grass questiona se não seria Israel o grande vilão da paz mundial. O posicionamento de Grass poderia ser contabilizado como mais uma crítica à intrincada guerra não declarada existente entre Israel e Irã, não fosse seu passado de colaboração com o regime de Hiltler. Com efeito, noticiam Sarlet e Molinaro que Grass publicou em 2006 um livro de memórias em que confessou ter, aos dezessete anos de idade, servido a Waffen-SS, composição militar responsável por muito dos crimes contra a humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. As palavras de Grass provocaram intensa celeuma em âmbito internacional, com acusações de veículos de comunicação de que o escritor alemão estaria a fabricar os fatos, a ponto de o Primeiro-Ministro israelense Benjamin Netanyahu afirmar que as declarações de Grass são ignorantes e vergonhosas e o Ministro do Interior Eli Yishai ter colocado o romancista na lista dos indesejáveis de Israel. Sarlet e Molinaro concluem que as reações da mídia internacional e dos políticos de acusar Grass de antissemitismo fazem parte de uma campanha de desmoralização do escritor e refletem a tensão existente entre “liberdade de expressão” e “correção política”, que tem o potencial de subtrair da discussão pública opiniões por mais importantes que sejam, notadamente nos casos em que a intenção não é disseminar o ódio, mas apenas criticar Estados e Governos.170 Com a mudança dos enfoques teórico e pragmático da teoria democrática em favor do conceito deliberativo, vê-se que a justificação da liberdade de expressão como mola propulsora da democracia é a mais importante das razões de sua fundamentalidade. De fato, a democracia, como visualizada nos dias atuais, pressupõe a existência de uma sociedade descentralizada, a qual constitui uma arena pública altamente diversificada, preparada para a percepção, a identificação e o tratamento dos problemas de toda a sociedade.171 A concepção deliberativa da democracia considera a participação dos cidadãos nas deliberações e nas tomadas de decisão o elemento central da compreensão do processo democrático. E isso envolve não apenas a institucionalização de procedimentos para 170 SALERT, Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto. Liberdade de expressão!..., cit., p. 39-62. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 24. 171 62 a formação da vontade, mas também a existência de uma rede informal de comunicação (esfera pública informal) imune a regulações prévias de conteúdo em que, a rigor, qualquer assunto ou questão problematizável pode ser tematizado publicamente, passando por um processo de depuração ao longo da cadeia de filtragem até obter aprovação institucional.172 Do exposto se conclui que, entre os modelos de Estado de direito apresentados no primeiro capítulo, o direito fundamental à liberdade de expressão somente pode ser compreendido no âmbito do Estado Constitucional de Direito. Com efeito, a liberdade reconhecida de livremente expressar opiniões deve ser tida como um direito contramajoritário, uma vez que cada cidadão, individualmente considerado, possui a prerrogativa de opor-se à maioria de ocasião e utilizar argumentos que contrariem todos os demais, ao mesmo tempo em que as minorias têm o direito de externar sua discordância sobre determinada política pública e demonstrar a eventual superioridade de seu programa político.173 Por outro lado, uma ordem jurídica calcada nas premissas do Estado Legislativo de Direito, cuja legitimidade advém do mero respeito ao procedimento de elaboração legislativa, mostra-se evidentemente incompatível com as dimensões da liberdade de expressão, posto que a maioria pode impor à minoria pensamentos e condutas dominantes mediante a promulgação de atos normativos que apenas seguiram o rito processual. No que toca à obrigação da tolerância social com os diferentes tipos discursivos, importante questão se relaciona com o potencial agressivo dos conteúdos expressivos especialmente aqueles direcionados em desfavor de grupos sociais alvos de discriminações, os denominados discursos do ódio. Nesses casos têm-se um interessante dilema envolvendo a acomodação do princípio da igual dignidade e liberdade de todos com a necessidade de assegurar a integridade de uma esfera de discurso público aberta e pluralista. Duas frentes teóricas ganham destaque nessa questão: uma de corte liberal propugna ser importante a manutenção de uma estrutura comunicativa livre de intervenção estatal em que as diversas perspectivas estabeleçam uma relação de confrontação pública entre si à margem de qualquer órgão de censura politicamente correto dotado de competência para discernir as boas das más ideias. De outro lado, o caráter irracional e coercitivo que o 172 173 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia..., cit., p. 40-41. MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 52. 63 discurso pode assumir é realçado por outros, pois a presença sistemática de preconceito atenta contra a razão de ser do ambiente plural, além de bloquear o atendimento da experiência real dos grupos minoritários. Sobre o tema, Machado assim se pronuncia: A valoração e proscrição de qualquer das opiniões em confronto implicaria a existência de um sistema de censura, o qual teria naturalmente uma tendência expansiva, razão pela qual uma doutrina de restrição do discurso a partir do ódio [...] em nome de uma moralmente correcta política do amor tem que ser objecto da maior precaução, sob pena de a “nova liberdade de expressão” acabar por se confundir com a “velha censura”. Recorde-se que uma das funções da liberdade de expressão consiste em proporcionar uma alternativa à violência física na libertação de sentimentos e tensões acumuladas, incluindo o ódio, ou especialmente o ódio. Quando muito, o referido equilíbrio poderá passar pela limitação de formas extremas de discurso ostensivamente produzido, na sua forma e no seu conteúdo, tendo em vista estigmatizar, insultar e humilhar um determinado grupo, seja ele minoritário ou maioritário, para além de qualquer objectivo sério de confronto de factos, ideias e opiniões. [...] No entanto, ele [o princípio da igual consideração e respeito] não pode ser utilizado para subtrair à discussão temas tão importantes como a identidade dos grupos sociais e as suas relações com os indivíduos, nem sempre isentas de coerção e discriminação.174 Outro argumento normalmente levantado para justificar as funções da liberdade de expressão diz com a capacidade desta de manter em equilíbrio os pratos da balança entre a estabilidade e a mudança da sociedade. Nesse aspecto, a liberdade de expressão agiria como condição essencial para garantir a estabilidade governamental, uma vez que um Estado garantidor da livre expressão é forte e se defronta com poucas convulsões sociais, ao passo que um Estado autoritário estabelece seu poder na arbitrariedade e no medo, estando sujeito a contestações por parte da população.175 As pessoas têm razões para aderir aos ideais de um ordenamento jurídico que respeita o direito fundamental da liberdade de expressão porque sabem que podem ser beneficiadas com a transformação de seus pontos de vista em normas legais, desde que exista uma esfera pública plural que possibilite o alcance das opiniões ao maior número de indivíduos, bem como os procedimentos constitucionais estejam estruturalmente abertos à inserção de seus valores e interesses. Cláudio Chequer entende que: 174 175 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 847-848 (grifos do autor). CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 32-33. 64 A teoria da liberdade de expressão envolve [...] mais que uma simples técnica para alcançar o melhor julgamento social; ela compreende uma visão de sociedade, uma crença e um completo meio de vida. Ela é revigorada por uma ideia de uma nova sociedade, na qual mentes humanas são livres e seu destino determinado pelo seu próprio poder e razão. A liberdade de expressão é prescrita para alcançar uma criação progressiva e excitante e uma comunidade intelectualmente robusta, contemplando um meio de vida que encoraja a tolerância, o ceticismo, as reações e iniciativas. Deseja que o homem realize suas potencialidades em plenitude, rejeitando, por outro lado, a alternativa de uma sociedade tirânica, conformista, irracional e estagnada.176 Consoante acentuado por Machado, a liberdade de expressão como garantia da estabilidade governativa permite às pessoas tornarem conhecidos os seus desejos de mudanças ou correção política, aumentando a probabilidade de tomada de decisões apropriadas, bem como ensina a todos a respeitar a tolerância das diferenças, contribuindo decisivamente para a estabilidade social. Isso porque, rejeitar o poder da discussão significa aceitar o poder da força física.177 A justificativa constitutiva da liberdade de expressão (como realização pessoal) apela para o caráter não consequencialista na proteção do direito. Com efeito, segundo essa justificativa, a garantia constitucional da liberdade de expressão é um imperativo da condição humana, isto é, funda-se na premissa de que a finalidade do ser humano é a realização de suas características e potencialidades, incluindo a possibilidade do exercício das faculdades racionais em sua plenitude, sendo condição da nossa própria humanidade.178 Se o que diferencia o homem das demais criaturas vivas é a capacidade de discernimento e de desenvolver processos de comunicação por meio da linguagem, atos e gestos, isso significa que a ele deve ser conferida a prerrogativa de pensar e concluir por si próprio, ou seja, ter assegurado o direito à autonomia de consciência. Por direito à autonomia de consciência entende-se um âmbito de deliberação intelectual sob o domínio exclusivo do indivíduo composto por convicções, crenças, opiniões, sentimentos, preferências que, embora possam parecer despropositadas para alguns, ou 176 CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 34. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 284. 178 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 242. 177 65 mesmo para a maioria, estão incólumes à intervenção externa por representarem as mais puras vocações humanas.179 É certo, no entanto, que em termos jurídicos a proteção tão somente das crenças individuais é insuficiente, já que pensar e concluir em silêncio, sem a possibilidade de exteriorizar as convicções, importa na consideração implícita de que o pensamento é ilegítimo e, a rigor, não merece proteção caso venha a ser divulgado. Para que o direito à livre consciência tenha repercussão social, é imperioso o reconhecimento legal da dupla face do direito: em primeiro lugar, o indivíduo é digno, tanto de possuir pensamento próprio, quanto de apropriar-se deles, resultando daí que se trata de um direito não suscetível à expropriação ou confisco, ou seja, ninguém pode determinar a uma pessoa o que pensar, sentir ou gostar. Em segundo lugar, ainda como corolário da condição humana, o indivíduo detém a faculdade de expressar-se no âmbito comunicativo, em especial, de comunicar aos outros o teor de seus pensamentos, sentimentos e crenças.180 É nesse contexto que a autonomia da consciência mantém íntima ligação com o direito fundamental à liberdade de expressão181, reconhecendo-se que a liberdade de consciência não é só um direito do homem ao pensamento próprio, mas também ao processo de pensamento, isto é, a realização plena requer uma comunicação livre, vale dizer, liberdade de expressão.182 Essa teoria estima a liberdade de expressão como um fim intrínseco, um bem independente, um fim em si mesmo. Conforme assinala Dworkin, [...] as pessoas moralmente responsáveis fazem questão de tomar suas próprias decisões acerca do que é bom ou mal na vida e na política e do que é verdadeiro ou falso na justiça ou na fé. O Estado ofende seus cidadãos e nega a responsabilidade moral deles quando decreta que eles não têm qualidade moral suficiente para ouvir opiniões que possam persuadi-los de convicções perigosas ou desagradáveis. Só conservamos nossa dignidade individual quando insistimos em que ninguém – nem o governante nem a maioria dos cidadãos – tem o direito de nos impedir de ouvir uma opinião por medo de que não estejamos aptos a ouvi-la e ponderá-la. Para muita gente, a responsabilidade moral tem um outro aspecto, um aspecto mais ativo: seria a responsabilidade não só de constituir convicções próprias, mas também de expressá-las para os outros, sendo essa expressão movida pelo respeito para com as 179 MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 59. MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 61. 181 ZISMAN, Célia Rosenthal. A liberdade de expressão na constituição federal e suas limitações: os limites dos limites. São Paulo: Livraria Paulista, 2003, p. 29-30. 182 MARTINS NETO, op. cit., p. 63. 180 66 outras pessoas e pelo desejo ardente de que a verdade seja conhecida, a justiça seja feita e o bem triunfe.183 A exposição dos fundamentos da liberdade de expressão é relevante na medida em que define os atos comunicativos que merecem proteção constitucional. Na realidade, como este direito fundamental protege a expressão propriamente dita, comunicações desprovidas de caráter expressivo não gozam de amparo constitucional, e podem ser reprimidas legislativamente por não se beneficiarem de qualquer dos fundamentos da liberdade de expressão, ou seja, não promovem a satisfação do indivíduo, não possibilitam o avanço do conhecimento e da verdade, não se relacionam com a promoção da democracia e não são aptas a ensejar mudança social.184 As teorias constitutiva e instrumental não conferem a mesma força protetiva à liberdade de expressão, podendo ser escalonadas em grau de importância. Para Dworkin, a justificativa instrumental é mais frágil e mais limitada do que a constitutiva. Frágil porque a razão instrumental se apoia em teses que, em última análise, acabam por minar a própria liberdade de expressão. E é mais limitada, ao contrário da faceta constitutiva, porque pugna pela proteção apenas dos discursos com propósitos políticos.185 Tomando como correta a gradação feita por Dworkin, não seria lícito, então, invocar o princípio da liberdade de expressão em favor da ciência, da literatura, da independência acadêmica, das artes, ou das decisões pessoais tomadas por cada cidadão quanto ao rumo a ser dado em suas vidas.186 A liberdade de expressão, portanto, teria uma única finalidade: proteger as modalidades de expressão com conteúdo claramente político. E, mesmo aqueles que defendem sua extensão para as artes ou a ciência, insistem na tese de que o discurso deve derivar dessa função principal.187 183 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 320. MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 47. 185 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 321. 186 Por conta da necessidade de proteger os discursos além do aspecto meramente político, Dworkin entende que manifestações extremamente polêmicas como o discurso do ódio devem ser permitidas. DWORKIN, op. cit., p. 325-327. Em sentido contrário, defendendo que é errôneo admitir uma interpretação tão extensiva ao princípio da liberdade de expressão, ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Acerca de la doctrina..., cit., p. 246-248. 187 DWORKIN, op. cit., p. 322. 184 67 O perigo de traçar essa linha fronteiriça, entre o que é atingido e não atingido pela amplitude da liberdade de expressão, está em admitir a interferência estatal no conteúdo da expressão propagada. Quando se disse que o ato comunicativo atende ao predicado da liberdade de expressão no momento em que realiza uma das suas justificativas, foi para asseverar que o valor expressivo é ideologicamente neutro, isto é, independente do tema do discurso.188 É exatamente esse o cerne da finalidade constitutiva da liberdade de expressão: as pessoas querem viver numa sociedade que incentiva a responsabilidade moral individual, e que censura qualquer intervenção no conteúdo da manifestação do pensamento.189 3.2 A restrição da liberdade de expressão e pensamento e os direitos da personalidade As razões arroladas acerca da fundamentalidade do direito à liberdade de expressão não conduzem, no entanto, à conclusão sobre a inadmissibilidade da restrição ao direito à liberdade de expressão e pensamento. O estudo do conteúdo e alcance dos direitos fundamentais é aferível com a inclusão de cláusulas de restrição que auxiliam na clarificação dos exatos limites a que estão sujeitos, definindo melhor o núcleo essencial de cada direito fundamental, aí incluída a liberdade de expressão. A relevância prática na análise dos direitos fundamentais está precisamente no estudo de suas restrições, não sendo exagerado dizer que estudar os direitos fundamentais é estudar suas limitações.190 O tema da limitação dos direitos fundamentais faz parte, pois, de sua dogmática.191 O conceito de restrição de um direito fundamental pressupõe a existência de dois elementos: o direito e a restrição.192 188 MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 75. DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 327. 190 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 395. 191 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33. 192 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 277. 189 68 Nessa perspectiva, é possível entrever duas categorias distintas. Em primeiro lugar, o direito em si antes da restrição, na sua modalidade absoluta. Em segundo lugar, o que restou do direito após sofrer o processo de restrição, ou seja, o direito restringido.193 De modo geral, a dicotomia entre o direito e a restrição é a característica principal da denominada teoria externa dos direitos fundamentais. Segundo ela, as restrições, quaisquer que sejam suas naturezas, não têm influência no conteúdo do direito, podendo apenas, no caso concreto, restringir seu exercício.194 A teoria externa sustenta a tese de que, embora nos ordenamentos jurídicos os direitos apareçam de forma restringida, eles são concebíveis sem restrições e a exigência de efetuar a limitação a um direito se dá nas hipóteses, externas a ele, nas quais é preciso conciliar os direitos de diversos indivíduos ou direitos individuais e interesses coletivos. A adoção da teoria externa pressupõe filiação à tese de que os direitos fundamentais (a liberdade de expressão incluída) possuem um amplo suporte fático de proteção, ou seja, “toda ação, estado ou posição jurídica que tenha alguma característica que, isoladamente considerada, faça parte do „âmbito temático‟ de um determinado direito fundamental deve ser considerada como abrangida por seu âmbito de proteção”, sem que se indague a respeito de outras variáveis, consideradas em momento posterior no processo de ponderação. Assim, da pergunta sobre o que seria protegido pelo direito à liberdade de expressão e pensamento, conclui-se que a resposta é propositalmente ampla, ao afirmar que toda e qualquer manifestação, independentemente do conteúdo, forma, veículo, local, dia e horário recebe, a priori, o beneplácito constitucional.195 Partindo de pressuposto diametralmente oposto, a teoria interna dos direitos fundamentais não admite a contraposição em categorias autônomas entre o direito e a restrição, mas sim a ideia de um direito com determinado conteúdo. 193 MENDES, op. cit., p. 40. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrição e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 138. 195 Id. Ibid., p. 109. 194 69 Para a teoria interna, a definição dos limites de um direito é algo interno a ele, por isso o nome da teoria. Assim, existe somente um objeto de consideração: o direito com seus limites imanentes, não havendo que se falar em restrição.196 Segundo Virgílio Afonso da Silva, o processo de fixação dos limites não é definido nem influenciado por aspectos externos, sobretudo não por colisões com outros direitos. Em termos de estrutura normativa, os direitos definidos a partir do enfoque da teoria interna têm sempre a estrutura de regras, não admitindo, assim, o uso da técnica do sopesamento.197 A postura da teoria interna de rejeitar a necessidade de restrições aos direitos fundamentais acarreta a utilização de dois artifícios argumentativos principais: os limites imanentes dos direitos fundamentais e a concepção institucional dos direitos fundamentais. Na perspectiva dos limites imanentes dos direitos fundamentais, propugnase que os direitos fundamentais não são absolutos, pois têm seus limites definidos, implícita ou explicitamente, pela própria Constituição. O recurso à ideia de “limites” está justificado na medida em que não se fala em restrições aos direitos ou colisões entre eles, mas apenas em limites que estão previamente presentes na Constituição. A diferença entre os limites imanentes (teoria interna) e as restrições a direitos fundamentais decorrentes de colisões (teoria externa) é facilmente traduzível pelo binômio declarar/constituir. Enquanto no âmbito da teoria externa as restrições a direitos advindas das colisões entre posições jurídicas constituem novos conteúdos aos direitos, no caso da teoria interna a interpretação constitucional apenas declara conteúdos previamente existentes. A concepção institucional dos direitos fundamentais, tal como exposta por Virgílio Afonso da Silva a partir das lições de Peter Häberle, tem como ponto de partida a rejeição da noção corrente de que a liberdade é mera esfera de autonomia individual a ser protegida contra a atividade estatal.198 Para Häberle a ideia de direitos fundamentais deve ser considerada como uma ideia-diretriz, isto é, que está enraizada na comunidade e desenvolve sua realidade social ao mesmo tempo em que a define. A instituição da noção de direitos fundamentais no seio 196 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais..., cit., p. 397. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 129. 198 Id. Ibid., p. 134. 197 70 social não é obra exclusiva da Constituição e de seu complexo normativo, mas sim da atividade do legislador e de todos os titulares dos direitos fundamentais, tal como um processo contínuo que recebe a colaboração constante dos titulares dos direitos fundamentais e do legislador. A liberdade é entendida como algo criada e desenvolvida no âmbito e a partir do Direito, regulada e delimitada pelo Direito, não havendo que se falar, a exemplo das teorias contratualistas, de liberdade natural ou pré-jurídica. A atividade legislativa ordinária não é uma atividade restritiva da liberdade porque a liberdade não é preexistente que possa ser restringida pelo legislador, mas ao contrário, é criada por ele.199 A teoria interna adota, ao contrário da teoria externa, o modelo de suporte fático restrito, excluindo, de antemão, condutas e posições jurídicas do âmbito de proteção dos direitos fundamentais que poderiam, ao menos em tese, estarem neles incluídas.200 O grande problema desta corrente teórica, salientado por Ingo Sarlet, reside na obscuridade que ronda a definição do que é protegido e do que não é protegido pela norma de direito fundamental. Como não há critérios claros para excluir certas condutas do âmbito de proteção de determinado direito, o ônus argumentativo para o intérprete resta seriamente enfraquecido, aumentando o risco de restrições arbitrárias da liberdade e sentenças baseadas em decisionismos.201 O tema da restrição à liberdade de expressão e pensamento necessariamente aproxima esse direito fundamental dos denominados direitos da personalidade. Com efeito, a forma extremamente vaga com que a Constituição Federal previu a liberdade de expressão e pensamento dificulta a delimitação precisa de seu contorno conceitual, propiciando uma permanente tensão com outros direitos fundamentais, especialmente os direitos da personalidade202, ainda mais se levarmos em consideração a ressalva da parte final do art. 220, parágrafo 1º da Constituição Federal.203 Os direitos da personalidade são aqueles “direitos que constituem o mínimo necessário e imprescindível ao conteúdo da personalidade, sendo próprios da pessoa em si, 199 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 136-137. Id. Ibid., p. 80. 201 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais..., cit., p. 398; SILVA, op. cit., p. 180-181. 202 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 02; DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 342. 203 “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.” 200 71 como ente humano, existentes desde o seu nascimento”, cujo objeto é formado pelos modos de ser físicos ou morais do indivíduo.204 A doutrina costuma classificar os direitos da personalidade em dois grandes grupos: os direitos à integridade física e os direitos à integridade moral. No primeiro grupo está o direito à vida, o direito ao próprio corpo e ao cadáver. No segundo encontramos o direito à honra, o direito à liberdade, o direito ao recato, o direito à imagem, o direito ao nome e o direito moral do autor.205 Luís Roberto Barroso assinala que os direitos da personalidade possuem duas características fundamentais que os tornam merecedores de especial proteção: além de serem direitos atribuídos a todos os seres humanos em geral e positivados constitucionalmente206, são oponíveis tanto contra o Estado quanto contra a coletividade. Outrossim, sua violação produz um prejuízo que muitas vezes escapa da esfera econômica ou patrimonial, requerendo outras modalidades de tutela, como o direito de resposta, a divulgação de desmentidos e/ou indenização de natureza moral.207 Os direitos da personalidade que mais de perto interessam ao tema da liberdade de expressão, diante do alto índice de confronto verificado na prática judiciária, são os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria imagem. A honra, como atributo da personalidade de status constitucional, qualificase como direito inerente à dignidade da pessoa humana, cuja proteção independe de consideração a respeito da raça, sexo, religião ou cor, bem como reclama proteção tanto no aspecto objetivo, referente a reputação desfrutada pela pessoa no ambiente social em que vive (consideração dos outros pela dignidade do indivíduo), quanto no aspecto subjetivo, sendo a estimação da pessoa sobre a sua dignidade moral (dignidade da pessoa refletida no sentimento próprio).208 204 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 106-107. 205 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: ______. Temas de Direito Civil. Cap. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 35. 206 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” 207 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 12. 208 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos..., cit., p. 109. 72 É assente que a honra encontra limite na circunstância de o fato imputado a determinada pessoa ser verdadeiro (exceptio veritatis), caso em que não seria possível opor a honra pessoal à verdade, com exceção, no Brasil, de algumas hipóteses nos crime de calúnia e difamação e, em regra, vedado no crime de injúria. Barroso aponta três fatores que, de modo geral, admitem a divulgação de notícias veiculadoras da prática de crime e/ou da existência de investigação criminal sem que se possa invocar a proteção à honra para proibir sua divulgação ou requerer reparação pecuniária. São eles: a circunstância de os fatos criminosos serem verdadeiros e a informação a respeito deles ter sido obtida licitamente, o fato de os atos criminosos repercutirem sobre terceiros e a coletividade, e a existência de interesse público específico na prevenção geral, própria do Direito Penal, de desestímulo aos potenciais infratores.209 A intimidade e a vida privada decorrem do reconhecimento da existência de espaços na vida das pessoas que devem ser preservados da curiosidade alheia por envolverem o modo de ser de cada um, as suas particularidades. Apesar de a intimidade e a vida privada representarem esferas distintas, estão inseridas no amplo conceito de direito de privacidade. 210 A intimidade é um âmbito mais exclusivo da privacidade se comparada à vida privada. Relaciona-se aos seguintes aspectos: confidenciais, informes de ordem pessoal, lembranças de família, sepultura, vida amorosa ou conjugal, saúde física e mental, afeições, entretenimento, costumes domésticos e atividades negociais reservados pela pessoa para si e para seus familiares ou pequeno círculo de amizade.211 Os fatos da vida privada de uma pessoa seriam aqueles atinentes ao mundo dos negócios ou das próprias relações pessoais entre os cidadãos que apenas a estes dizem respeito, não se justificando o interesse do público no conhecimento dos mesmos.212 O grau de exposição pública de uma pessoa em razão de seu cargo ou atividade é elemento decisivo na definição dos limites à proteção da intimidade. A privacidade de indivíduos de vida pública se sujeita a parâmetros menos estreitos de tutela do que as pessoas de vida estritamente privada, decorrência natural do interesse público na transparência de determinadas condutas. 209 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 15-16. Id. Ibid., p. 13. 211 FARIAS, op. cit., p. 115. 212 Id. Ibid., p. 118. 210 73 O direito à imagem protege a representação física do corpo humano ou de qualquer de suas partes, ou ainda os traços característicos da pessoa pelos quais ela possa ser reconhecida. Duas limitações são impostas ao direito em questão. A primeira é relativa a possibilidade de a própria pessoa autorizar a captação ou exposição de sua imagem, e a segunda advém da notoriedade angariada pelo titular, afastando, a priori, a alegação de ofensa ao direito fundamental.213 A necessidade de se restringir, em determinado caso concreto, o direito à liberdade de expressão e pensamento em favor da incolumidade dos direitos da personalidade reclama, basicamente, dois tipos de solução. É possível apelar para a figura dos limites imanentes ou para a concepção institucional dos direitos fundamentais, nos moldes propalados pela teoria interna, e optar por excluir do suporte fático da liberdade de expressão certas condutas, atos ou posições jurídicas que abstratamente estariam nela incluídas, justificando tal recurso argumentativo-decisório na proteção conferida pela Constituição aos direitos da personalidade. Outra postura, no entanto, pode ser adotada frente ao embate e acolher a tese da amplitude do suporte fático do direito fundamental e incluir todas as condutas, atos e posições jurídicas no âmbito de proteção da liberdade de expressão. Isso pressupõe que o choque entre direitos fundamentais é inevitável e, sendo certo que no Estado Constitucional inexiste hierarquia prévia de direitos fundamentais, a realização de um princípio pode ser restringida por princípios colidentes. As duas modalidades apresentadas expõe a distinção entre o direito definitivo (restringido) e o direito prima facie, distinção essa propugnada pela teoria externa. Ao reconhecimento de terem os direitos fundamentais a mesma natureza jurídica dos princípios, que reclamam realização na maior medida possível, observadas certas condições do caso concreto, acarretando na frequente colisão entre dois ou mais direitos, temse que não é possível argumentar no sentido da absolutização de direitos fundamentais, isto é supor a existência de hierarquia entre direitos fundamentais. Embora intuitivamente a ausência de hierarquia entre direitos fundamentais possa parecer uma afirmação óbvia, verifica-se que no âmbito doutrinário há certa objeção à tese, mesmo em relação àqueles doutrinadores que, num primeiro momento, parecem concordar com este posicionamento. 213 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 17. 74 Sob essa ótica, soa como inapropriada a posição de Edilsom Farias a respeito do princípio da dignidade da pessoa humana. Se, por um lado, o autor é explícito ao afirmar que a dignidade humana não é um princípio absoluto e, por isso, deve se submeter ao sopesamento podendo, em certos casos, não prevalecer frente à necessidade de realizar outros direitos fundamentais214, mais adiante assevera, aparentemente de forma contraditória, que a dignidade confere unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, assumindo os demais direitos a posição de meros densificadores e concretizadores do princípio fundamental da pessoa humana215, dando a entender que a dignidade seria um metaprincípio colocado acima de todos os demais sem o qual esses não teriam razão de ser. Raciocínio semelhante parece desenvolver Gustavo Tepedino para quem o texto constitucional considera a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercido a sua titularidade, “mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade.”216 Aduz que a dignidade da pessoa humana, colocada como fundamento da República, assegura uma “verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.”217 Fernando Toller afirma de início, em interessante estratégia argumentativa, que não existe hierarquia entre direitos fundamentais mas sim entre os bens jurídicos protegidos por cada direito fundamental. Isso porque alguns valores garantidos por direitos constitucionais teriam preferência em certos casos específicos, tais como os imprescindíveis a dignidade humana (vida, integridade física e moral, intimidade etc.), se comparados com outros desprovidos dessa imprescindibilidade como, por exemplo, os direitos do autor.218 Sustenta, contudo, que não basta para a solução de um caso concreto em que se evidencia a efetiva colisão de direitos fundamentais contraditórios a mera prevalência do bem jurídico superior. Segundo ele, a saída seria conferir, prima facie, certa presunção a favor do direito fundamental que tutela o bem tido como prevalente, acautelando o juiz a respeito da 214 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos..., cit., p. 52. Id. Ibid., p. 54. 216 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade..., cit., p. 47. 217 Id. Ibid., p. 48 (grifos do autor). 218 TOLLER, Fernando M. Jeraquía de derechos, jerarquía de bienes y posición de la vida en el elenco de los derechos humanos. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 506. 215 75 amplitude das diferentes lesões a que estão submetidos os bens jurídicos a reclamarem diferentes espécies de tutela jurisdicional, especialmente de índole cautelar.219 Luís Roberto Barroso, ao defender, de início, a tese da inexistência de hierarquia entre direitos fundamentais em decorrência do princípio da unidade da Constituição220, acaba por aceitar, em seguida, que a liberdade de expressão e de imprensa gozam de uma posição preferencial no sistema constitucional por servirem de fundamento para o exercício de outras liberdades.221 Por fim, José Souto Maior Borges é enfático ao afirmar que a Constituição Federal faz uma explícita valoração de princípios ao colocar os direitos arrolados nos arts. 1º a 5º como transcendentes em relação aos demais, destacando-se os princípios da igualdade e da legalidade, vetores que condicionam a interpretação e aplicação dos demais.222 Ainda quanto ao tema da restrição dos direitos fundamentais, a doutrina costuma mencionar a existência de um “sistema de reserva legal” no rol de direitos do artigo 5º da Constituição Federal diante do fato de que diversos incisos fazem referência à lei infraconstitucional, tais como “nas hipóteses previstas em lei”, “a lei estabelecerá”, “regulada pela lei”, dentre outras. Assim, seria possível classificar as restrições a direitos fundamentais com base na divisão trinaria da reserva legal simples, reserva legal qualificada e sem expressa previsão legal.223 Na reserva legal simples a Constituição autoriza a intervenção do legislador no âmbito dos direitos fundamentais, exigindo-se apenas que eventual restrição seja prevista em lei.224 Na reserva legal qualificada a Constituição, além de autorizar a edição de lei, estabelece condições especiais, fins a serem perseguidos ou meios a serem utilizados para legitimar a tarefa legislativa.225 Por fim, no caso dos direitos sem reserva legal, a Constituição não prevê a possibilidade de interferência legislativa em seu âmbito.226 219 Id. Ibid., p. 509. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 05. 221 Id. Ibid., p. 20. 222 BORGES, José Souto Maior. Pró-Dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais. Revista Trimestral de Direito Público, n.1, p. 140-146, 1993. 223 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 47. 224 Exemplos de direitos submetidos a reserva legal simples são os dos incisos VI, VII e XV do art. 5º. 225 Exemplos de direitos submetidos a reserva legal qualificada são os dos incisos XII e XIII do art. 5º. 226 Pode ser citado como exemplo de direito não submetido a reserva legal o inciso IX do art. 5º. 220 76 Sobre a importância de se estabelecer um sistema de reserva legal para os direitos fundamentais, assim se manifesta Gilmar Mendes: Sem dúvida, o estabelecimento de reservas legais impede a multiplicação de conflitos entre direitos individuais diversos. Não se deve olvidar, no entanto, que a técnica que exige expressa autorização constitucional para intervenção legislativa no âmbito de proteção dos direitos individuais traduz, também, uma preocupação de segurança jurídica, que impede o estabelecimento de restrições arbitrárias ou aleatórias.227 A ideia da existência de um sistema de reserva legal para os direitos fundamentais no Brasil é alvo de críticas por parte de Virgílio Afonso da Silva. Segundo ele, esse modelo é importado a partir de realidades constitucionais distintas da verificada aqui, como ocorre na Alemanha e Portugal. Isso porque a Constituição brasileira não contém dispositivo, a semelhança dos dois países citados, dirigido ao legislador no sentido de que somente quando a Carta Magna autorizar é possível restringir ou regular direito fundamental.228 Esse fator seria decisivo para tornar completamente inaplicável ao Direito Constitucional brasileiro o sistema de reserva legal de restrição a direito fundamental. Ademais, duas consequências indesejáveis teriam que ser aceitas caso a reserva legal seja uma realidade por aqui: em primeiro lugar, haveria uma difícil determinação do alcance da discricionariedade do legislador na conformação do direito fundamental sujeito a algum tipo de reserva. Em segundo lugar, haveria a total impossibilidade de restrição a direito fundamental quando garantidos por dispositivos não submetidos a nenhuma reserva, isto é, teria que se comungar com a tese da existência de direitos absolutos, insuscetíveis a limitações.229 O sistema da reserva legal pressupõe que a limitação a direito fundamental ocorre por meio de regras, normalmente lei infraconstitucional. Contudo, restrições a direitos fundamentais podem ser baseadas, também, em princípios. Seguindo esse raciocínio, a limitação imposta por regras implica em que o legislador, no momento da edição da lei, realizou um juízo prévio de sopesamento entre dois 227 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 46. SILVA, Virgílio Afonso da. Os direitos fundamentais e a lei: a Constituição brasileira tem um sistema de reserva legal? In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 610. 229 Id. Ibid., p. 613-614. 228 77 ou mais princípios abstratamente colidentes, tendo optado por uma solução (a lei) a qual, segundo sua visão, prestigiou o princípio mais relevante no caso. Já com relação às restrições baseadas em princípios, não há regra legal disciplinadora de determinada matéria, isto é, o legislador ainda não procedeu à ponderação entre princípios. Nessas hipóteses, é o juiz o encarregado de decidir, diante de um caso posto sob sua apreciação, qual princípio prevalecerá, implicando em restrição calcada em outro direito fundamental procedida por decisão judicial.230 Do exposto é possível concluir que as restrições a princípios constitucionais realizadas diretamente pelo Poder Judiciário, em decorrência da ausência de manifestação prévia legislativa, são resolvidas com o uso da técnica da ponderação entre os potenciais princípios colidentes no caso. De outro lado, nas situações em que o legislador optou pelo princípio preponderante em determinada colisão de direitos fundamentais, a única saída é o questionamento judicial da constitucionalidade da opção legal. Nesse caso, no âmbito do controle de constitucionalidade, os juízes deverão utilizar a regra da proporcionalidade para dirimir o conflito, lançando mão da tipologia trinária da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.231 O princípio da proporcionalidade exige em um primeiro momento a análise da adequação da medida adotada pelo legislador ou pelo ente estatal para a consecução dos fins pretendidos, isto é, que “as medidas interventivas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos”.232 Em segundo lugar, a necessidade significa que “nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos.”233 Virgílio Afonso da Silva chama atenção para o fato de que o exame da necessidade é imprescindivelmente comparativo com relação a outras medidas estatais que tenham o condão de realizar com a mesma eficiência o objetivo perseguido. Para ele, caso exista uma segunda medida que possa realizar o fim pretendido restringindo menos intensamente o direito fundamental, porém com menor eficácia do que a primeira, sua adoção 230 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 142-143. Id. Ibid., p. 178-179. 232 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 75. 233 Id. Ibid., p. 75. 231 78 não será automática porque decisiva é a perquirição a respeito da eficiência da medida, devendo-se adotar a mais eficaz, mesmo que venha a restringir com maior intensidade o direito violado. Somente seria beneficiada a medida que limitasse menos o direito fundamental se ela fosse igualmente eficaz como a outra. Esse raciocínio é correto, segundo Virgílio da Silva, basicamente por duas razões: em primeiro lugar, se a preferência pela medida recaísse sempre sobre a menos gravosa a resposta está dada de antemão, ou seja, será melhor que o Estado seja sempre omisso, já que não haverá restrição a nenhuma espécie de direito fundamental nessa circunstância. Em segundo lugar, a escolha por uma medida mais eficaz não significa perseguir a eficiência a todo custo, pois o controle sobre o grau de limitação do direito restringido é deslocado para a terceira fase do exame da proporcionalidade.234 A proporcionalidade em sentido estrito tem a função de averiguar se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim perseguido, ou seja, se há equilíbrio entre a adequação e a necessidade da medida interventiva. Para Suzana de Toledo Barros, a diferença entre a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito está em que a primeira almeja uma otimização com relação a possibilidades fáticas, enquanto a segunda envolve a otimização de possibilidades jurídicas.235 É na etapa da aplicação da proporcionalidade em sentido estrito que o julgador realiza o sopesamento dos direitos envolvidos. No entender de Pargendler e Salama a aplicação do teste da proporcionalidade incorpora à técnica jurídica elementos antes tidos como irrelevantes para aplicador da norma (“extrajurídicos”), ligados às consequências de diferentes situações.236 A correta aplicação da proporcionalidade, continuam os autores, exige para a maioria dos casos a familiaridade com dados empíricos ou pelo menos de juízos probabilísticos sobre os esperados efeitos concretos de distintas normas, sendo exigido do Poder Judiciário fundamentação quanto aos efeitos das normas no mundo dos fatos.237 O recurso ao princípio da proporcionalidade para a solução de conflitos entre direitos fundamentais sugere que o legislador e o intérprete estão limitados em sua tarefa 234 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 171-173. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 85-87. 236 PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno Meyerhof. Direito e consequência no Brasil: em busca de um discurso sobre o método. Revista de Direito Administrativo. v. 262, jan./abr. 2013, p. 118. 237 Id. Ibid., p. 119. 235 79 conformadora pelo núcleo essencial de cada direito fundamental, encontrado somente se a restrição estatal ultrapassar com sucesso as três fases acima descritas. Opta-se por uma teoria relativa a respeito do que se entende por núcleo essencial de um direito fundamental, uma vez que este varia em cada caso concreto a depender dos interesses colidentes (situações fáticas e jurídicas), em contraposição a uma visão absoluta de núcleo essencial, que pressupõe existir um centro imutável e intangível de essencialidade de cada direito que resiste ao tempo e a todas as condições sociais.238 3.3 Dois modos de encarar o papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: os sistemas americano e europeu A construção do conceito, extensão e limites das liberdades de expressão e de imprensa nos Estados Unidos, consagradas na Primeira Emenda à Constituição239, foi fruto de um longo processo histórico que teve curso no século XX, especialmente em sua segunda metade. A trajetória da Primeira Emenda teve como principal protagonista a Suprema Corte dos Estados Unidos, chamada a se manifestar a respeito da constitucionalidade de leis restritivas da liberdade de imprensa editadas pelo Congresso.240 A Suprema Corte confere à liberdade de expressão a posição de direito preferencial no sistema de garantias constitucionais241, normalmente prevalecendo frente a outros valores democráticos como a igualdade, dignidade humana e privacidade.242 238 Sobre o debate das teorias que versam sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, ver SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 183-207. 239 O texto da Primeira Emenda é o seguinte: "O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas". ("Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances."). 240 LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias..., cit., p. 09-15; MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 634-635. 241 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 133; BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 20; SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 266. Para um estudo mais detalhado acerca da argumentação da Suprema Corte na construção na doutrina do direito preferencial, ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 100-124. 242 POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão e discurso do ódio. Brasília: Consulex, 2012, p. 27. 80 A consequência mais nítida da posição desfrutada pela Primeira Emenda nos Estados Unidos é a interdição da regulamentação estatal no conteúdo dos discursos públicos. O Estado não deve tomar partido nas discussões, ficando a cargo da capacidade de discernimento de cada cidadão se posicionar frente às inúmeras opiniões colocadas à sua disposição.243 Tal princípio ficou conhecido como da “neutralidade de conteúdo”244 e veda que a autoridade oficial distinga entre discurso protegido e não protegido com base no ponto de vista exposto.245 A doutrina da “neutralidade de conteúdo” teve origem no caso Police Department vs. Mosley de 1972, no qual um carteiro chamado Earl Mosley foi impedido de protestar pacificamente em frente a uma escola pública da cidade de Chicago contra a discriminação racial nos Estados Unidos. Levado o caso para a Suprema Corte, esta decidiu, na lavra do voto do Justice Thurgood Marshall, que a conduta das autoridades públicas de Chicago tinha o propósito de banir o protesto com base exclusivamente no conteúdo do assunto levado a discussão. A Primeira Emenda, disse o Justice, proíbe o governo de limitar a expressão por conta da mensagem, das ideias, do objeto ou do conteúdo. A “neutralidade de conteúdo” tem duas faces: a primeira é que o Estado não pode proibir o discurso por causa de seu conteúdo. A segunda é que o Estado não pode restringir uma espécie de discurso com o propósito de beneficiar outro.246 A respeito da importância da liberdade de expressão e de imprensa para o sistema americano, Thomas Cooley assevera que: Mas sob o ponto de vista constitucional, a sua importância capital consiste em facilitar ao cidadão ensejo de trazer perante o tribunal da opinião pública qualquer autoridade, corporação ou repartição pública, e até mesmo o próprio governo em todos os seus ramos, com o fim de compeli-los uns e outros, a submeterem-se a um exame e a uma crítica sobre a sua conduta, as suas medidas e os seus intentos, diante de todos, tendo em vista obter a correção ou a prevenção dos males; do mesmo 243 A doutrina da posição preferencial da liberdade de expressão nos Estados Unidos surgiu, segundo Chequer, na nota de rodapé 4 do voto proferido pelo juiz Harlan Fisk Stones no caso United States vs. Carolene Products Co., julgado pela Suprema Corte em 1938. Ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 113. 244 FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e Prefácio Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 51; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 138. 245 POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão..., cit., p. 35. 246 HEYMAN, Steven J. Free speech and human dignity. New Haven & London: Yale University Press, 2008, p. 81-82. 81 modo serve para sujeitar a idêntico exame e com os fins idênticos todos aqueles que aspiram a funções públicas. Estas vantagens o povo as conseguiu plenamente durante a época revolucionária e delas gozou; a imprensa foi o principal meio para defender os princípios da liberdade e preparar o país para resistir à opressão; e neste sentido foi tamanha a sua eficácia, que eclipsou todos os outros benefícios. 247 A despeito da reverência conferida à liberdade de expressão, é certo que o sistema americano não compactua com sua absolutização. Em casos de conflito com outros direitos constitucionalmente assegurados, permite-se que o Estado suprima do debate “palavras de incitação à luta” que possam gerar um “perigo iminente e manifesto” de ação ilícita. No entanto, a “defesa genérica de ideias” é protegida, ficando a cargo da jurisprudência a definição da questão casuisticamente, utilizando-se do método denominado ad hoc balancing, que, embora admita restrição à liberdade de expressão, institui uma forte premissa em favor da inconstitucionalidade da limitação.248 A liberdade de expressão não é um direito puramente negativo nos moldes da teoria do livre mercado de ideias, cujo objetivo é impedir a regulação estatal no âmbito da troca de informações. Ela também possui uma faceta positiva que reclama do Estado participação ativa na esfera comunicativa, com o intuito de corrigir falhas com relação à supressão de certos grupos do debate público. Discursos incitadores ao ódio racial, distribuição e divulgação de material pornográfico e permissão ilimitada ao financiamento privado de campanhas políticas são exemplos trazidos por Owen Fiss de como indivíduos e organismos privados podem atentar contra a liberdade de expressão.249 Isso ocorre porque sua propagação desregrada pode impedir que as vítimas (respectivamente minorias, mulheres e pobres) participem das discussões públicas em razão do efeito silenciador que recaem sobre elas, minando as possibilidades de debaterem de forma competitiva e igualitária. O Estado, nesse contexto, tem a função primordial de intervir na arena discursiva a fim de proporcionar um ambiente livre e diversificado para a coexistência de 247 COOLEY, Thomas M. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos da América. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2002, p. 266. 248 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 139; FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão..., cit., p. 34; POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão...,cit., p. 41. 249 FISS, op. cit., p. 47. 82 diferentes pontos de vista. Deve procurar estabelecer precondições essenciais para a autogovernança coletiva, assegurando que todas as vertentes sejam apresentadas ao público, nem que para isso se faça necessário calar alguns para poder ouvir outros. Na visão de Owen Fiss, não se trata de desrespeito ao princípio da neutralidade de conteúdo, mas o fortalecimento de seu postulado, pois, quando o Estado age como mediador, não procura determinar o resultado ou preservar a famigerada ordem pública, e sim assegurar a robustez do debate público e, como consequência, fortalecer a própria democracia.250 É consenso na doutrina que vigora atualmente nos Estados Unidos uma visão restritiva quanto à interferência do Estado no âmbito da liberdade de expressão ao menos desde os anos 1980, ocasião em que a fairness doctrine251 foi abandonada pela agência reguladora das comunicações eletrônicas (FCC) por, supostamente, restringir desnecessariamente a liberdade de expressão. Essa posição posteriormente foi corroborada pela Suprema Corte no julgamento dos casos CBS vs. Democratic National Comitee, Buckley vs. Valeo, e mais recentemente, em Citizens United vs. FEC.252 Os países de democracia consolidada da Europa partem de premissas diversas daquelas adotadas pelos Estados Unidos na definição dos contornos e limites do direito à liberdade de expressão. De fato, o regime europeu, de forma geral, não abona o princípio da neutralidade de conteúdo, sendo que a maioria dos países têm leis criminalizadoras do discurso do ódio ou, quando ausentes leis específicas, seus tribunais nacionais não toleram a exteriorização de pensamentos racistas.253 A exceção parece ser os países escandinavos que 250 FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão..., cit., p. 49-55. A fairness doctrine foi criada pela Federal Communications Comission – FCC como um mecanismo de regulação do mercado de comunicação por meio da imposição às rádios e televisões da obrigatoriedade de cobrir questões de relevante interesse público de maneira equilibrada, apresentando os diversos lados da notícia. Ela também dava aos candidatos a cargos eletivos a oportunidade de responder a editoriais políticos hostis e oferecia um direito de resposta similar àqueles diretamente atingidos (FISS, op. cit., p. 107). 252 FISS, op. cit., p. 139-144; SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 267-272. Para uma análise crítica da decisão da Suprema Corte no caso Citizens United vs. FEC, em virtude do risco de acarretar sério prejuízo ao amplo debate público pela interferência nociva das organizações comerciais nas campanhas eleitorais, ver DWORKIN, Ronald. Uma decisão que ameaça a democracia. In: FREITAS, Juarez; TEIXEIRA, Anderson V. Direito à democracia: ensaios transdisciplinares. São Paulo: Conceito, 2011, p. 41-56. 253 Dentre esses países destacam-se a França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Espanha, Holanda, Polônia e Reino Unido. O Canadá segue a mesma linha adotada pelos europeus. Naquele país é ilegal a prática do racismo, do antissemitismo ou de ato xenófobos, assim como a difusão dessas ideias. Sobre o assunto, ver MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 149-150. 251 83 rejeitam a proibição pura e simples dos discursos difamadores, entendendo que a restrição se justifica somente quando puder ensejar uma ação ilícita concreta ou afetar a ordem pública.254 A forma com que alguns países europeus abordam a temática da liberdade de expressão desperta especial importância no estudo da dogmática da proteção do direito fundamental. Na Alemanha, a liberdade de expressão tem dois enfoques básicos: por um lado, constitui um direito subjetivo individual, importante para a dignidade humana; de outro, ela é compreendida como um direito objetivo, uma garantia institucional, necessário para a formação da opinião pública e para o intercâmbio de ideias entre os cidadãos. A dimensão objetiva da liberdade de expressão tem o condão de compelir o Estado a praticar atos positivos para promover um ambiente de debate livre e plural, ao mesmo tempo em que deve garantir a existência de uma imprensa verdadeiramente independente, impedindo sua violação por grupos particulares.255 Segundo essa visão, o Estado deve estar comprometido com a tarefa de estimular e manter o pluralismo entre os meios de comunicação, não deixando essa função a cargo exclusivo do mercado. O Tribunal Constitucional Federal, em diversas oportunidades, impôs condições para funcionamento das emissoras de rádio e televisão, asseverando que deveriam manter mecanismos propiciadores dos pluralismos interno e externo em benefício público, mediante a divulgação de perspectivas diversas sobre os assuntos de interesse coletivo.256 O Tribunal Constitucional Federal considera que a liberdade de expressão ocupa posição preferencial em relação aos demais direitos fundamentais, quando esse direito estiver relacionado a matérias de interesse geral ou político. Uma vez reconhecido que a liberdade de expressão representa uma importante contribuição para o debate público, a consequência é que o grau de proteção a ela conferido nesse âmbito é bem maior do que em contextos de disputas privadas ou para proteger interesse econômico.257 A proteção dispensada na Alemanha à liberdade de expressão desautoriza a limitação do direito pelas características insurgentes das palavras utilizadas em uma discussão pública, já que a difusão de opiniões políticas está na fronteira entre o racional e o emocional 254 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 151. SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 274-275; MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 642-643. 256 SARMENTO, op. cit., p. 277. 257 CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 124-125. 255 84 e que a linha clara entre um e outro não pode ser extraída sem inibir a robusta e fecunda expressão de diversos aspectos políticos. É que se convencionou chamar de “contra-ataque teórico da expressão”, padrão definido no julgamento do caso Schmid-Spiegel258, de 1961, por meio do qual uma pessoa tem o direito de empregar uma linguagem abusiva, sobretudo na arena política, para defender seus interesses contra críticas amargas e enganosas, caso esse tipo de linguagem seja necessário para compensar o ataque sofrido.259 Embora a proteção da liberdade de expressão possua relevância no âmbito do Tribunal Constitucional Federal, o ordenamento jurídico alemão proíbe discursos de conteúdo, como nos casos da negação da existência do Holocausto, sujeitando o infrator à pena de prisão que varia de três meses a cinco anos, assim como quem auxilia na divulgação dessas ideias, incorrendo em pena restritiva de liberdade de até três anos. O Tribunal Constitucional nunca reformou decisões de cortes inferiores que condenaram pessoas pela prática do discurso do ódio.260 Na França, por sua vez, embora seja unânime o posicionamento acerca da imprescindibilidade da atuação do Estado na promoção da comunicação e do pluralismo, a proteção à liberdade de expressão é menor do que nos Estados Unidos e mesmo em outras nações europeias, dando privilégio aos valores que normalmente com ela conflitam. As decisões do Conselho Constitucional adotam a teoria de que a liberdade de expressão é direito preponderantemente de índole coletiva, isto é, o titular do direito é o público e é com seus interesses que os poderes constituídos franceses demonstram preocupação com a tutela, e não com o emissor da mensagem, justificando a primazia dos direitos à honra e à privacidade.261 258 Em aparecimento público na cidade de Stuttgart, um juiz da alta corte estadual chamado Schmit, disse que 95% da imprensa na Alemanha era controlada por empregadores hostis para negociar com sindicatos trabalhistas. Em reação, a revista Der Spiegel acusou o juiz de ser simpatizante comunista. Na réplica publicada num jornal diário, o juiz redarguiu dizendo que a revista mentia sobre ele e comparou a opinião do Der Spiegel a uma pornografia no campo moral. O Tribunal Constitucional entendeu que o caso deveria ser analisado não apenas com base na honra e na imagem do ofendido, mas tendo em conta as circunstâncias políticas que cercaram a discussão. Sobre o tema, ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 127-128. 259 CHEQUER, op. cit., p. 128. 260 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 178-180. 261 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 280. 85 Partindo dessa premissa restritiva, o parlamento francês promulgou a Lei 90-615, de 13 de julho de 1990, conhecida como Lei Gayssot, que criminaliza o revisionismo histórico, que prega a negação do Holocausto, por ser fonte de antissemitismo e racismo.262 Na Espanha, o Tribunal Constitucional entende a liberdade de expressão como fundamental em uma sociedade aberta, que necessita do debate livre para a realização da democracia. No entanto, não comunga com a posição de que a liberdade de expressão detém caráter absoluto, pois os casos conflituosos são decididos com base na ponderação de interesses.263 O Tribunal Constitucional enxerga uma dupla distinção na liberdade de expressão: em primeiro lugar, a liberdade de expressão é vista em sentido amplo, como o direito de todo cidadão emitir livremente ideias e opiniões e de transmitir atos e notícias; em segundo lugar, distingue-se entre as expressões de interesse público e as de natureza privada. A distinção é importante porque a jurisprudência do Tribunal confere maior amplitude de proteção à liberdade de expressão nos assuntos de interesse público frente às exigências de tutela dos direitos da intimidade, sendo, ademais, critério decisivo na adequada ponderação de interesses.264 Com relação ao discurso do ódio, existe na Espanha uma tendência a censurar essa conduta por meio de sua criminalização da manifestação antissemita, racista ou a que visa negar a ocorrência do genocídio, sendo os casos Violeta Friedman (STC 214/1991) e Hitler SS (STC 176/1995) exemplos de limitação à liberdade de expressão.265 O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) caracteriza a liberdade de expressão como fundamental para a promoção da democracia e estabelece ser condição para o progresso e desenvolvimento da sociedade e de cada um de seus integrantes, demonstrando também uma preferência pela liberdade de expressão apenas quando estiver relacionada com assuntos públicos, de interesse geral ou político. No entanto, como assinala Chequer, nem todas as questões de interesse público gozam da mesma proteção na jurisprudência do TEDH. Com efeito, os limites da crítica são mais amplos se relacionados ao governo do que a um particular ou mesmo a um político. Existem decisões que limitam fortemente critica dirigida contra a atuação do Poder 262 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit. p. 153. ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozobal. Acerca de la doctrina..., cit., p. 243. 264 Id. Ibid., p. 244-245. 265 MEYER-PFLUG, op. cit., p. 163-169. 263 86 Judiciário nacional.266 Assim, no âmbito do TEDH, a extensão da liberdade de expressão depende dos interesses em conflito em determinado caso concreto. Ademais, a jurisprudência do TEDH admite que os países adotem medidas restritivas para a liberdade de expressão. Entretanto, tais medidas devem respeitar os critérios da legalidade da imposição restritiva, a existência de um objetivo legítimo para fundamentar a limitação e a necessidade de preservação de uma sociedade democrática. Meyer-Pflug chama atenção para o fato de que, ao se prever o critério da preservação da sociedade democrática para a restrição da livre expressão, abre-se um amplo campo discricionário para o juiz europeu na conformação do exato conteúdo desse conceito em cada caso concreto. Isso implica na existência de uma “jurisprudência flutuante” no Tribunal Europeu, que ora adota um modelo semelhante ao observado na Suprema Corte dos Estados Unidos de conferir forte proteção à liberdade de expressão, ora privilegia direitos da personalidade em detrimento da propagação de opiniões.267 Embora restrições à liberdade de expressão sejam incontestes diante do regramento constitucional, é certo que limitações baseadas na valoração do mérito ou na qualidade ética do discurso são inadmissíveis no Estado Constitucional. O parâmetro de correção das restrições deve ocorrer por uma medição democrática da ponderação do impacto causado a outros direitos ou bens dignos de proteção constitucional, desde que os danos sejam intersubjetivamente comprovados. O direito fundamental em causa deve proteger não apenas mensagens comunicativas com conteúdo político ou de interesse social, mas todo discurso relativo aos mais diversos domínios e temas da vida social e econômica. Tal postura evita que haja uma espécie de hierarquização das modalidades de discurso amparado constitucionalmente, no qual outros são relegados a um patamar inferior de proteção jurídica. Nesse sentido, leciona Machado que: [...] uma leitura aberta e multifuncional do direito à liberdade de expressão revestese de importantes consequências práticas. Ela prescinde da análise das motivações mais ou menos egoístas ou altruístas dos sujeitos em presença ou dos objectivos espirituais ou materiais da comunicação, como pressuposto da aplicabilidade do seu 266 CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 132. Sobre o tema, citem-se os casos Barford, de 22 de fevereiro de 1989, e Worm, de 29 de agosto de 1997. 267 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 187-188. 87 programa normativo, sendo certo que tanto as primeiras como os segundos podem apresentar uma configuração complexa. [...] ela obriga a que as restrições aos diferentes tipos de expressão venham associadas a uma cuidadosa verificação do modo como os mesmos interferem com direitos e interesses constitucionalmente protegidos. Assim, por exemplo, não basta mobilizar categorias genéricas como “obscenidade”, “blasfémia” ou “pornografia” para retirar um determinado conteúdo expressivo do âmbito de protecção do direito à liberdade de expressão, nem alegar, em termos arbitrários e impressionistas, que os mesmos não têm qualquer “redeeming social value”. [...] As diferenças de tratamento a conferir a cada um deles [discurso] devem resultar a posteriori da ponderação proporcional dos mesmos com os diferentes direitos e interesses com que os mesmos possam eventualmente colidir.268 Meyer-Pflug e Machado chamam atenção para o fato de que a dimensão objetiva da liberdade de expressão, tal como originariamente sustentada pela Corte alemã, não é suficiente para proporcionar uma efetiva proteção ao direito fundamental. Isso porque, se é correto a vertente objetiva reconhece a importância coletiva de determinado direito, por outro lado, coaduna-se com uma restrição completa comprometedora do conteúdo essencial do direito em certo caso concreto, sem que o todo social corra semelhante risco. 3.4 O modo de funcionamento das restrições à liberdade de expressão: a doutrina das restrições prévias e a responsabilidade ex post facto Tratando especificamente do tema da liberdade de expressão, foi dito acima que as justificações democráticas e da busca da verdade não admitem a constitucionalidade da censura, nos moldes do que preconiza o parágrafo 2º do artigo 220 da Constituição Federal. É certo que atualmente a censura adquire formas que vão além da restrição imposta por organismos estatais, advinda de agentes privados ou mesmo do próprio veículo de comunicação. Nesse contexto, é possível distinguir a censura em privada e pública, sendo a primeira levada a cabo por entidades particulares em decorrência de interesses econômicos e empresariais e a segunda patrocinada por órgãos oficiais em nome de interesses públicos ou comunitários.269 268 269 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 423-424. Id. Ibid., p. 494. 88 Felipe Chiarello de Souza Pinto classifica a censura prévia em três modalidades: a censura interna, a externa e a autocensura.270 A censura interna consiste na possibilidade de direcionamento de matérias jornalísticas por parte dos diretores ou superiores hierárquicos com base nos interesses da linha editorial ou por questões profissionais e pessoais do veículo de comunicação. Nesse caso o editor modifica o conteúdo de um artigo ou matéria jornalística com a finalidade de prejudicar ou beneficiar um desafeto ou simpatizante, caracterizando o fato como censura interna da própria empresa de comunicação. Já a censura externa ocorre por meio de agentes não pertencentes ao veículo de comunicação que, com a utilização de forte influência política ou econômica, manipula a informação em detrimento da verdade objetiva, sempre requerida das empresas do setor de comunicação. Essa modalidade de censura pode vir, também, na forma de legislação extremamente restritiva à liberdade de imprensa ou até por decisão judicial que impõe barreiras à divulgação da notícia. Por fim, a autocensura diz com uma postura individual do profissional da imprensa que, por motivo particular, por isso mesmo de difícil controle, não confere a necessária imparcialidade ao material exposto ao público.271 Tendo como ponto central de análise a censura pública, alguns defendem que no âmbito da liberdade de expressão, a imprensa, ou a pessoa natural, somente poderá ser responsabilizada civil ou penalmente por eventual dano cometido aos direitos da personalidade em momento ulterior à manifestação. Tal solução é denominada de “doutrina das restrições prévias” e é caracterizada por marcar uma forte distinção constitucional entre restrições prévias e responsabilidades ulteriores (...), englobando nas primeiras todas as medidas oficialmente impostas à expressão antes de sua emissão, publicação ou difusão, ao passo que se agrupam nas segundas as respostas jurídicas a expressões já realizadas, as quais não proíbem envolver-se numa atividade expressiva futura nem requerem obter uma aprovação prévia para qualquer atividade de expressão.272 270 PINTO, Felipe Chiarello de Souza. A ética médica em face da liberdade de expressão, comunicação e sigilo profissional. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 80. 271 Id. Ibid., p. 81-82. 272 TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., cit., p. 23-24. 89 A doutrina das restrições prévias pressupõe que a liberdade de expressão somente admite um sistema de regulação jurídica ex post facto, isto é, satisfaz-se com a reparação dos danos causados por ação antijurídica após sua ocorrência. Procura-se impedir que a interdição da expressão acarrete um grave efeito dissuasório, o chamado efeito silenciador do discurso. O núcleo deste posicionamento consiste na crença de que uma sociedade democrática prefere punir aqueles que abusam do direito à livre expressão do pensamento a sancionar todos indistintamente, sufocando, de antemão, os demais. Como resumo do exposto até aqui, pode-se apontar que, com base na doutrina das restrições prévias, tem-se entendido que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa significam, essencialmente, que a única regulação jurídica legítima é um sistema de responsabilidade ex post facto, que não evite a ação antijurídica cometida através de expressões ou de informações, mas que a repare ou sancione uma vez ocorrida. Consoante isto, a referida doutrina mostra sua maior virtualidade no seguinte: a imunidade de restrições prévias é maior do que a liberdade de responsabilidades ou sanções ulteriores, de maneira a excetuar expressões antijurídicas e até delitivas de medidas preventivas, sem prejuízo de que aquelas, após sua difusão, possam ser, legítima e constitucionalmente, submetidas a razoável responsabilidade civil ou penal.273 A distinção entre os dois modelos de restrição à liberdade de expressão, a prévia e a posterior, porém, é alvo de críticas de setores da doutrina. Jónatas Machado afirma que uma teoria das restrições à liberdade de expressão deve estar atenta para o fato de que nem toda forma de censura remete às mesmas consequências jurídicas, no caso, uma inviabilização completa da limitação da exposição do conteúdo. Ao contrário, comporta três resultados fundamentais. Diz o autor português que, em primeiro lugar, há que se relativizar a hermenêutica constitucional que pretende proibir inflexivelmente a censura prévia, sendo adequada a adoção de entendimento moderado no sentido de se entender presumivelmente inconstitucional medidas de controle preventivo da comunicação, suscetível a refutação casuística por meio de um processo de ponderação com outros bens protegidos. Em situações extremas, as restrições à liberdade devem ser previstas em lei e sua aplicação somente é viável no âmbito de um processo judicial.274 273 274 TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., cit., p. 29-30 (grifos do autor). MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 496-498. 90 Em segundo lugar, haveria o reforço da proteção dos direitos dos particulares frente as formas de censura privada ou de censura sutil por parte das autoridade públicas. E, por fim, essa pretensa teoria das restrições conduziria à análise do modo como as instituições e as normas que estruturam os procedimentos comunicativos podem ser utilizadas para maximizar ou para limitar as possibilidades expressivas dos cidadãos e dos grupos de cidadãos, não podendo as mesmas ficar à margem de uma discussão em torno do conceito amplo de censura.275 Em adição, Gilmar Mendes discorda do entendimento de que a proibição constitucional da censura prévia impede a atuação do Poder Judiciário para reprimir a circulação da expressão nos casos em que esta violar direitos da personalidade, especialmente os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem.276 Sustenta que o próprio texto constitucional estabelece igual proteção aos direitos da personalidade, tratando-os como invioláveis.277 Nesse caso, obstar o acesso ao judiciário por parte do ofendido acarretaria supressão da garantia da efetiva proteção judiciária, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.278 Ainda nessa linha, afirma que a aplicação irrestrita da doutrina das restrições prévias acabaria por esvaziar outros direitos constitucionais de especial relevância, impingindo à liberdade de expressão o caráter avassalador de direito absoluto, insuscetível de restrição.279 E conclui que a interpretação constitucionalmente adequada à inevitável tensão entre a liberdade de expressão e de comunicação e dos direitos da personalidade é admitir a responsabilização posterior apenas nas hipóteses em que não foi possível proibir de forma antecipada a emissão da mensagem.280 Argumenta-se, de outro lado, que a distinção entre restrição prévia e responsabilidade ex post facto está apoiada em fundamento falso, de que uma medida judicial que impõe restrição prévia à expressão, ou impede sua circulação, aniquila a liberdade de 275 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 500-501. MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e direito à honra e à imagem. Revista de Informação Legislativa, a. 31, n. 122, mai./jul.1994, p. 297. No mesmo sentido, por ser a dignidade humana valor axiologicamente superior do ordenamento jurídico nacional, TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade..., cit., p. 46. 277 “Art. 5º. [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” 278 “Art. 5º. [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” 279 MENDES, op. cit., p. 298. 280 Id. Ibid., p. 297-298. 276 91 expressão, fazendo presumir que qualquer medida judicial prévia é inconstitucional, assemelhando-se ao mecanismo da censura prévia. É possível entrever hipóteses nas quais a sanção posterior civil ou penal pode representar uma ameaça real à liberdade de expressão de forma mais contundente do que as medidas judiciais preventivas. E isso ocorre porque, segundo esse posicionamento, o modo de funcionamento e os efeitos práticos do modelo de responsabilização posterior são praticamente idênticos aos da restrição prévia, não sendo justificável uma férrea distinção entre as duas categorias. A análise do funcionamento de três modalidades das chamadas sentenças condicionais pode esclarecer o que foi dito acima. Em primeiro lugar, temos as decisões judiciais que impõem sanções normalmente de natureza penal ao emissor, proferidas após a difusão da expressão, condicionando a execução da medida ao cometimento, dentro de certo período de tempo, de qualquer outro delito. Em sentido análogo, mas com uma pequena diferença, as sentenças em suspenso sujeitam o emissor à aplicação de uma pena, na eventualidade deste incorrer na prática do mesmo delito a que anteriormente condenado pela circulação da informação. Ou seja, a sanção é imposta também posteriormente à expressão, porém sua execução resta condicionada ao cometimento do mesmo tipo de delito já julgado e no qual o processado foi condenado. Em Alberts vs. Califórnia, julgado em 1957, a Suprema Corte dos Estados Unidos aplicou uma sentença condicional a um sujeito que foi condenado ao pagamento de multa e a sessenta dias de prisão em razão de deter livros e folhetos de caráter obsceno destinados à comercialização, condicionando, porém, a execução da pena à desobediência da lei contra a obscenidade pelos próximos dois anos subsequentes.281 Podemos pensar, por fim, na hipótese em que um tribunal proíba, sob a ameaça da aplicação de uma reprimenda, a republicação da mesma expressão tida como antijurídica por sentença judicial anterior, ou seja, pretende-se impedir a ocorrência de agravo específico e determinado, em vez de aplicar diretamente a sanção penal habilitada na norma. 281 TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., cit., p. 68. 92 Foi o que ocorreu em Kingsley Books, Inc. vs Brown, também apreciado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em que se proibiu, ainda no curso da lide e de forma cautelar, a venda de impressos obscenos específicos.282 Ao se aderir ao posicionamento da responsabilidade posterior como a única medida correta no âmbito da liberdade de expressão, a sentença condicional estabelecida em Alberts deve ser aceita, enquanto a solução final do caso Brown será tachada de inconstitucional, pois nesta hipótese a proibição da comercialização de folhetos se deu pendente lite, ao passo que no primeiro exemplo a penalização do emissor ocorreu somente após a publicação. É possível concluir, na esteira da objeção de Fernando Toller, que a férrea separação entre as doutrinas das restrições prévias e da responsabilidade posterior não engendra uma proteção eficaz à liberdade de expressão. O modo de funcionamento e os efeitos das medidas judiciais com relação à expressão aproximam as decisões de verdadeiras restrições prévias, na medida em que a ordem judicial se dá em momento anterior à divulgação da mensagem, sob o risco de prisão ou pesada responsabilização civil, trazendo como consequência um marcante efeito silenciador ao discurso. Como resumo das hipóteses tratadas [...], obtém-se, portanto, que decisões judiciais que têm impacto muito contundente sobre a capacidade de expressão de uma pessoa, prevenindo efetivamente a emissão futura de expressões ou informações, são consideradas constitucionais porque têm a forma de responsabilidades ulteriores, ao passo que decisões judiciais que têm impacto muito preciso e determinado sobre a expressão de um emissor, após haver determinado a sua antijuridicidade e lesividade, são julgadas como inconstitucionais porque têm a forma de restrições prévias.283 A forma mais efetiva de proteger a liberdade de expressão, numa visão alternativa, seria pela análise do modo de funcionamento e das consequências das medidas judiciais prévias, somados aos efeitos das responsabilidades ulteriores, deixando de lado o aspecto meramente formal relativo ao momento da restrição. 282 283 TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., p. 69. Id. Ibid., p. 70 (grifos do autor). 93 Isso porque, em certos casos, o efeito dissuasivo das normas e decisões que impõem penalizações posteriores ao fato pode ser mais danoso à liberdade de expressão do que a censura prévia administrativa. Tudo depende da intensidade imposta à sanção judicial que considera determinada expressão violadora dos direitos fundamentais ou de interesses coletivos, independentemente da natureza penal ou civil do ato judicial. Isso porque não é apenas o temor de ter contra si a máquina repressiva estatal que inibe a difusão da informação, mas as consequências que condenações pecuniárias desarrazoadas podem trazer quanto à dificuldade da publicação de material político controverso e a divulgação de atos delitivos, envolvendo autoridades públicas. É certo que, em alguns casos, o receio da condenação civil ou penal a posteriori constitui indiretamente uma censura prévia à livre expressão em geral, com forte potencial de inibir a divulgação da informação de forma mais veemente do que a tutela inibitória. Afinal de contas, a imposição de volumosa quantia a pequeno veículo de comunicação por meio de decisão judicial, que pode levar a empresa à bancarrota, não seria uma eficaz forma de inibir a divulgação de futuras informações? A Suprema Corte americana enfrentou um caso com essas características, o New York Times vs. Sullivan.284 O jornal New York Times foi condenado a pagar indenização de US$ 500 mil285, por ter publicado um artigo escrito por apoiadores de Martin Luther King Jr., em que dizia que funcionários públicos racistas do sul haviam utilizado táticas ilegais contra movimentos civis. Isto teria levado King Jr. a prisão, por sete vezes, por acusações falsas. O artigo dizia também que vários manifestantes haviam sido espancados. Como algumas das afirmações contidas no anúncio não eram completamente verdadeiras, o comissário de polícia da cidade onde ocorreram os eventos, Montgomery, ajuizou a ação civil contra o jornal. Na decisão do caso, a Suprema Corte firmou o entendimento de que os ocupantes de cargos públicos não poderiam receber de seus críticos indenização por difamação, a menos que provassem que uma afirmação danosa e falsa tivesse sido feita com 284 Segundo Lewis, tratou-se de uma das decisões mais dramáticas e de maior alcance envolvendo a Primeira Emenda. LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias..., cit., p. 67. 285 Era o maior valor de indenização da história do Estado do Alabama. LEWIS, op. cit., p. 68. 94 conhecimento de sua falsidade ou por desconsideração imprudente de sua verdade ou falsidade. A consequência da decisão do caso New York Times vs. Sullivan foi a afirmação de que o ônus da prova da falsidade das alegações cabia ao funcionário público autor da demanda, presumindo-se que a notícia goza de veracidade e sua restrição a priori resta proibida. Portanto, dois fundamentos impedem que a liberdade de expressão seja protegida com mais vigor, com o impedimento cautelar da emissão da opinião: em primeiro lugar, existem casos em que os mecanismos de funcionamento de algumas decisões aproximam sobremaneira os modelos prévios e posteriores de restrição, tornando difícil verificar em qual situação certa medida se enquadra; em segundo lugar, a depender da intensidade da decisão judicial ou administrativa, penalidades posteriores por demais severas, de índole civil ou penal, na realidade, acabam por silenciar o debate público de maneira mais contundente do que a censura administrativa. 95 4 O Supremo Tribunal Federal e a argumentação na resolução de conflitos sobre a liberdade de expressão A presente seção é destinada a confrontar os conceitos teóricos expostos ao longo da pesquisa com as argumentações desenvolvidas pelo Supremo Tribunal Federal na resolução dos casos que dizem respeito ao direito à liberdade de expressão e pensamento. Os temas que merecerão especial atenção fazem referência a três aspectos principais: (i) a teoria predominante no Tribunal acerca da restrição à liberdade de expressão e o método usado para solucionar a controvérsia, (ii) o papel desempenhado pelos órgãos estatais na promoção da liberdade de expressão, e (iii) o modo de funcionamento da restrição ao direito fundamental em questão. O material jurisprudencial foi obtido de acordo com a metodologia de trabalho exposta na Introdução. Foram encontrados 38 (trinta e oito) julgados, proferidos, tanto pelo Plenário, quanto pelas duas Turmas do Tribunal.286 A amostra inicial passou por uma etapa de “depuração” na qual foram excluídos julgados em virtude de três fatores: (i) aqueles em que o mérito não foi apreciado decorrente da existência de obstáculo processual287, (ii) ou por adiamento em virtude do reconhecimento de repercussão geral288, e (iii) nas situações em que o tema da liberdade de expressão não fez parte da quaestio iuris ou não constituiu objeto principal da discussão do Tribunal naquele caso específico, aparecendo apenas como reforço argumentativo no voto de um ou de alguns dos ministros. 286 Os casos são: RE 434.826 AgR/MG, AI 769.601 AgR/RJ, HC 109.676/RJ, ARE 739.383/SP, HC 106.808/RN, ARE 685.520/RJ, ARE 709.146 AgR/RS, ED no RE 596.302/SP, RE 685.493/SP, ARE 660.861/MG, ADPF 54/DF, ADIN 4274/DF, RE 555.320 AgR/SC, RE 414.426/SC, ADPF 187, AO 1390/PR, ADI 4451/MC, AI 675.276 AgR/RJ, HC 95.244/PE, HC 95.348/PE, Rcl 9428/DF, RE 511.961/SP, ADPF 130/DF, ADI 3510/DF, RE 554.772 AgR/RS, Inq 2297/DF, ADI 2398/DF, ADI 3741/DF, RE 327.414 AgR/SP, MS 24.849/DF, MS 24.831/DF, HC 85.041/SP, Inq 2154/DF, Ext 897/DF, HC 83.996/RJ, RE 348.827/RJ, RE 221.239/SP e HC 82.424/RS. 287 Foram os casos da ADI 2398/DF, RE 554.772 AgR/RS, ARE 709.146 AgR/RS, ARE 685.520/RJ e AI 769.601 AgR/RJ. Embora a Rcl 9428/DF tenha sido julgada prejudicada e, portanto, não teve o mérito analisado, optamos por mantê-la como objeto de pesquisa diante do posicionamento do STF de abonar uma decisão judicial que restringiu previamente a divulgação de matéria jornalística, sendo que muitos dos ministros emitiram opinião sobre o mérito do caso analisado. 288 Situação verificada no ARE 660.861/MG e no RE 685.493/SP. 96 Podem ser citados como exemplos de julgados em que a liberdade de expressão não foi discutida, nem mesmo subsidiariamente, a Ext 897/DF, o HC 85.041/SP e o MS 24.831/DF, respectivamente relacionados à extradição de cidadão da República Tcheca por cometimento do crime de estelionato no país de origem, pedido de reconhecimento de ilegalidade na manutenção de pena restritiva de liberdade em crime de trânsito e a possibilidade de instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito em Casa Legislativa do Congresso Nacional por minoria parlamentar. Por sua vez, a ADPF 54/DF (interrupção da gestação por má formação craniana do feto) e a ADI 3510/DF (pesquisas com células-tronco embrionárias), dentre outros casos, são exemplos de julgados em que a liberdade de expressão ocupou posição secundária, vindo à baila apenas como reforço argumentativo sem que sobre ela houvesse aprofundamento a respeito de seu conceito, extensão e limites. Nesse contexto, optou-se por excluir da pesquisa o RE 221.239/SP, RE 327.414 AgR/SP e RE 434.826 AgR/MG, por versarem sobre imunidade tributária de materiais destinados à impressão, respectivamente, de álbum de figurinhas, jornais e serviços de impressão gráfica de jornal pertencente à missão religiosa. O material final de pesquisa consistiu, então, em dezenove casos, listados a seguir: HC 109.676/RJ, 11/06/2013, Min. Luiz Fux; HC 106.808/RN, 09/04/2013, Min. Gilmar; ADI 4274/DF, 23/11/2011, Min. Carlos Britto; RE 555.320 AgR/SC, 18/10/2011, Min. Luiz Fux; RE 414.426/SC, 01/08/2011, Min. Ellen Gracie; ADPF 187/DF, 15/06/2011, Min. Celso de Mello; AO 1390/PB, 12/05/2011, Min. Dias Toffoli; ADI 4451-MC/DF, 02/09/2010, Min. Carlos Brito; AI 675.276 AgR/RJ, 22/06/2010, Min. Celso de Mello; HC 95.348/PE, 02/02/2010, Min. Cezar Peluso; Rcl 9428/DF, 10/12/2009, Min. Cezar Peluso; RE 511.961/SP, 17/06/2009, Min. Gilmar Mendes; ADPF 130/DF, 30/04/2009, Min. Carlos Britto; Inq 2297/DF, 20/09/2007, Min. Carmen Lúcia; ADI 3741/DF, 06/08/2006, Min. Lewandowski; Inq 2154/DF, 17/12/2004, Min. Marco Aurélio; HC 83.996/RJ, 17/08/2004, Min. Carlos Velloso; RE 348.827/RJ, 01/06/2004, Min. Carlos Velloso; HC 82.424/RS, 19/03/2004, Min. Moreira Alves.289 289 A coleta inicial de dados não apontou a ADPF 187/DF. É que, embora a ação tenha sido julgada no mês de junho de 2011, o acórdão não havia sido publicado até abril de 2014, data da revisão da pesquisa. Entendeu-se por bem incluir a ADPF 187/DF em decorrência da importância do julgamento na fixação dos parâmetros para interpretação do art. 287 do Código Penal, em consonância com o direito de manifestação e de livre expressão. A análise do caso baseou-se, pois, nos votos disponibilizados espontaneamente à secretaria do Supremo Tribunal Federal pelos ministros Celso de Mello, relator do caso, Marco Aurélio e Luiz Fux, obtidos após mensagem 97 As referências aos trechos dos votos dos ministros constarão em nota de rodapé da seguinte forma: País (BRASIL), nome do tribunal (Supremo Tribunal Federal), nome da ação, número do processo, o ministro relator original e para o acórdão, se o caso, a página de onde provém o excerto e data da publicação. O número da página será aquele destacado em negrito no canto superior direito do documento, pois o acesso ao inteiro teor dos julgados é extremamente simples, bastando incluir o número do processo na barra de pesquisa na página eletrônica do Supremo Tribunal Federal. A única exceção é a ADPF 187/DF em que o número da página será a do voto de cada um dos ministros que os disponibilizaram para a secretaria do Tribunal, uma vez que o acórdão ainda não foi publicado. As ementas completas dos 19 (dezenove) julgados que compuseram o banco de dados constam nos anexos colocados após as referências bibliográficas, identificados progressivamente com as letras A até R. A inclusão de anexos decorreu da advertência de Rizzatto Nunes sobre o risco de comprometer a qualidade final da dissertação. Como as ementas são muito extensas, haveria dificuldade de compreensão do texto por conta de interrupções do ritmo da leitura e perda da clareza do trabalho.290 A codificação dos resultados da pesquisa seguiu o encadeamento de Perseu Abramo.291 Os dados foram classificados em critérios significativos formais e materiais. Os formais são aqueles relacionados com os meios processuais de acesso à jurisdição constitucional, as partes envolvidas no litígio, a natureza da tutela jurisdicional pleiteada, os direitos em conflito com a liberdade de expressão e a participação social nas decisões. Os materiais, por sua vez, procuram averiguar a teoria utilizada pelo Tribunal para restringir o direito fundamental à liberdade de expressão (teoria interna ou externa), o método de resolução dos conflitos, se a Corte está próxima do modelo americano ou europeu, e, por fim, a análise de adequação das decisões do Supremo Tribunal Federal com o modelo teórico de Marcelo Neves. eletrônica endereçada na data de 27.04.2014 à Seção de Pesquisa de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 290 NUNES, Rizzatto. Manual da monografia jurídica: como se faz: uma monografia, uma dissertação, uma tese. 10. ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 180. 291 Sobre como codificar os dados obtidos em uma pesquisa social, ver ABRAMO, Perseu. Pesquisa em ciências sociais. In: HIRANO, Sedi (Org.). Pesquisa social: projeto e planejamento. São Paulo: T.A Queiroz, 1979, p. 54-55. 98 Aos critérios formais foi atribuído um código numérico a fim de facilitar a sistematização das informações e proporcionar economia na manipulação dos dados. Assim, os números 1 e 2 serviram, respectivamente, para assinalar decisões em controle concentrado e difuso de constitucionalidade; 3 e 4, se as partes foram pessoas físicas ou jurídicas; os códigos 5 e 6 serviram para classificar as demandas em cível ou criminal; e, por fim, a presença ou ausência de amicus curiae receberam, nessa ordem, os números 7 e 8. A ponderação do material obtido assumirá a forma quantitativa e qualitativa292, isto é, serão analisadas algumas questões de índole estatística, bem como a natureza do conjunto das decisões oriundas do Supremo Tribunal Federal, interpretando-a com o modelo teórico de juiz de Marcelo Neves. 4.1 Critérios formais da pesquisa A liberdade de expressão, catalogada como direito fundamental na Constituição Federal de 1988, não prescinde do estudo de certos aspectos formais relacionados ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do tema. A análise quantitativa da pesquisa partirá da investigação de alguns aspectos de natureza formal sobre o material de trabalho relacionado com os meios processuais de acesso ao Supremo Tribunal Federal, as partes envolvidas no litígio, a natureza jurídica da tutela pleiteada, os direitos que em maior número se apresentam em conflito com a liberdade de expressão e a participação social nas decisões. 4.1.1 Os meios processuais de acesso à jurisdição constitucional A primeira questão de relevância é verificar a prevalência dos modelos de controle de constitucionalidade desempenhados pelo Tribunal na análise da liberdade de 292 MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Claudia Sevilha. Manual de metodologia da pesquisa no direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 110. 99 expressão, ou seja, torna-se relevante investigar se o STF analisa os casos postos à apreciação majoritariamente em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade.293 Do total de 19 (dezenove) julgados analisados, verificou-se que o STF se debruçou sobre o tema da liberdade de expressão ou de imprensa em 14 (quatorze) oportunidades em sede de controle difuso de constitucionalidade, incluindo-se habeas corpus, Recurso Extraordinário, Ação Originária, Reclamação, Inquérito e Agravo Regimental em Recurso Extraordinário. Em termos proporcionais, tem-se que o controle difuso de constitucionalidade foi o meio de acesso dominante à jurisdição constitucional para o tema da liberdade de expressão, tendo atingido a proporção de pouco mais de 73% (setenta e três por cento). A constatação de que número significativo de decisões do Supremo Tribunal Federal foi proferido em sede de controle difuso não pode levar à conclusão de que seus efeitos interessam apenas às partes do litígio. A tendência expansiva emprestada às decisões do Tribunal ao longo dos anos importou na diminuição prática dos efeitos dos julgados, tanto no controle de constitucionalidade difuso, quanto concentrado. De fato, após do encerramento do julgamento da Reclamação (Rcl) 4335/AC, em 20 de março de 2014, a Corte conferiu eficácia geral e vinculante para a decisão tomada no HC 82.959/SP, em que se declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos, que vedava o direito à progressão de regime prisional aos condenados por crimes hediondos, sem que ao Senado Federal fosse conferida a prerrogativa de suspender a execução, total ou parcial, do dispositivo legal. Assim, a clássica divisão dos efeitos das decisões proferidas no controle de constitucionalidade, em que o modelo concentrado importaria em efeitos erga omnes e o difuso em efeitos inter partes, perdeu relevância por conta da “objetivação” dos pronunciamentos, tanto em sede de controle concentrado, quanto em controle difuso. 4.1.2 As partes nas ações 293 Foram consideradas na categoria de controle difuso de constitucionalidade as decisões tomadas em Reclamação (Rcl) e Ação Originária (AO), por não terem como escopo a impugnação de lei ou ato normativo federal. 100 No tocante aos atores processuais responsáveis por provocar a Corte Suprema, constatou-se que 11 (onze) casos (57%)294 tiveram como insurgentes pessoas jurídicas de direito público de qualquer dos três níveis da Federação, empresas privadas, associações de classe, o Ministério Público Federal e a Procuradoria Geral da República, catalogadas sob a rubrica de “pessoas jurídicas” para diferenciar do restante dos processos analisados, cujos proponentes foram pessoas físicas. As empresas jornalísticas e respectivas associações de classe estiveram no polo ativo de 4 (quatro) dos 11 (onze) casos analisados, sendo que em um deles aturam em conjunto com o Ministério Público Federal295; dois julgados contaram com a participação das associações profissionais dos músicos296; outros dois foram protagonizados por partidos políticos297; o Ministério Público Federal atuou em dois processos, sendo que um deles teve a participação de empresa de associação de classe jornalística298; e, por fim, duas ações constitucionais foram propostas pela Procuradoria Geral da República.299 4.1.3 A natureza da tutela jurisdicional pleiteada A perquirição sobre a natureza da tutela jurisdicional pleiteada revelou equilíbrio entre as demandas de índole cíveis e criminais. Os números mostram que dos 19 (dezenove) julgados destrinchados, 10 (dez) se referem a matérias cíveis que vão desde pedido de indenização por dano moral em face de publicação jornalística, passam pela análise da isonomia no processo eleitoral, continuam pela necessidade de diploma para exercer a profissão de jornalista, e terminam no aprofundamento do conteúdo jurídico da liberdade de imprensa. De outro lado, no tocante aos 09 (nove) casos criminais, proliferam pedidos de concessão de ordem de habeas corpus e inquéritos para averiguar a ocorrência de crime contra os direitos da personalidade (honra). Optou-se, ademais, por incluir na categoria de 294 A proporção correta é de 57,89%. Editora O Dia S/A (RE 348.827/RJ), Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo - SERTESP (RE 511.961/SP, em conjunto com o MPF), o periódico O Estado de S.Paulo S/A (Rcl 9428/SP) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT (ADI 4451MC/DF). 296 Ordem dos Músicos de Santa Catarina (RE 414.426/SC) e o Conselho Regional da Ordem dos Músicos de Santa Catarina (RE 555.320 AgR/SC). 297 ADI 3741/DF e ADPF 130/DF. 298 Inq. 2154/DF e RE 511.961/SP, este interposto simultaneamente com o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo – SERTESP. 299 ADPF 187/DF e ADI 4274/DF. 295 101 casos criminais a ADPF 187/DF e a ADI 4274/DF que discutiram o tema da descriminalização das drogas, posto que o motivo determinante para ingresso das demandas pela Procuradoria-Geral da República foi a tipificação penal da conduta das pessoas que participaram das chamadas “Marcha da Maconha”. 4.1.4 Os direitos em conflito com a liberdade de expressão Levantamento estatístico relacionado à natureza do direito fundamental em conflito com a liberdade de expressão e pensamento demonstrou que, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, os direitos da personalidade da pessoa humana, entendidos estes na divisão clássica da honra, intimidade, imagem e vida privada, apareceram como os principais adversários ao livre exercício da expressão. Do total de 19 (dezenove) julgados apreciados, constatou-se que os direitos da personalidade estavam em conflito com a liberdade de expressão ou de imprensa em 09 (nove) casos, totalizando a proporção aproximada de 47% (quarenta e sete por cento).300 São os seguintes os casos em que o tribunal verificou a existência de colisão entre a liberdade de expressão e de imprensa e os direitos da personalidade: HC 82.424/RS, Inq 2154/DF, Inq 2297/DF, HC 109.676/RJ, RE 348.827/RJ, ADPF 130/DF, Rcl 9428/DF, AI 675.276 AgR/RJ e AO 1390/PB. Nos outros 10 (dez) julgados o Supremo Tribunal Federal considerou que a liberdade de expressão conflita com outros direitos constitucionais. Dessa forma, o direito coletivo ao pudor público aparece como objeto de análise no HC 83.996/RJ, o prestígio das Forças Armadas brasileiras nos HC‟s 95.348/PE e 106.808/RN, a isonomia do processo eleitoral foi tema de debates na ADI 3741/DF e na ADI 4451-MC/DF, o poder de polícia do Estado conflita com a liberdade de expressão nos RE‟s 511.961/SP e 414.426/SC e no RE 555.320 AgR/SC, e, por fim, a ordem pública foi tida como limitadora da liberdade de expressão e de imprensa na ADPF 187/DF e na ADI 4274/DF. 300 A proporção correta é de 47,36%. 102 4.1.5 A presença de amicus curiae A presença de terceiros interessados na condição de amicus curiae ou de assistente de uma das partes não é fato de destaque na temática da liberdade de expressão. Com efeito, em apenas 31% (trinta e um por cento)301 dos casos houve a intervenção de terceiro nos autos, o que representa a quantia total de apenas seis julgados, sendo que em um deles a intervenção se deu na figura da assistência simples. O amicus curiae esteve presente no HC 82.424/RS, ADPF 130/DF, ADPF 187/DF, ADI 4274/DF e ADI 4451-MC/DF, e o assistente simples somente no RE 511.961/SP. A intervenção do amicus curiae nos processos sujeitos a julgamento da Corte Constitucional não é questão secundária. Consoante afirmado pelo Ministro Celso de Mello nos autos da ADPF 187/DF, a presença dessa figura processual tem dois objetivos essenciais: em primeiro lugar, pluralizar o debate constitucional, permitindo que a Corte tome contato com todos os elementos informativos possíveis e necessários à solução da lide; em segundo lugar, visa o amicus curiae a superar o déficit de legitimidade democrática das decisões emanadas do controle abstrato de constitucionalidade, uma vez que amplia o controle social dos julgamentos proferidos pelo Tribunal e permite a participação de entidades que efetivamente representam os interesses gerais da sociedade.302 Conferindo destaque ao amicus curiae, o Tribunal admite que o terceiro recorra da decisão monocrática que indeferiu seu pedido de ingresso no processo de controle abstrato, apresente memoriais, faça sustenta oral, solicite a realização de exames periciais sobre o objeto da controvérsia e requeira a designação de audiências públicas para a oitiva de especialistas na matéria.303 A relevância destacada à figura do amicus curiae contrasta com a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 82.424/RS. Neste caso, em que o Tribunal por maioria denegou o pedido de habeas corpus do paciente, condenado pelo crime de racismo por ter escrito, publicado, reeditado e exposto à venda livros com conteúdo antissemita, foi amplamente citado pelos ministros que não concederam o habeas corpus o 301 A proporção correta é de 31,57%. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Celso de Mello. p. 06-08 (acórdão não publicado). 303 Ibid., p. 12. 302 103 teor de pareceres dos juristas Celso Lafer e Miguel Reale Júnior “encomendados” diretamente pelo então presidente, o ministro Maurício Corrêa, e apresentados na forma de memoriais. Tal participação de amicus curiae em sede de controle difuso de constitucionalidade (habeas corpus) sem prévia comunicação às partes e aos demais integrantes do Tribunal, mereceu comentário do relator original, ministro Moreira Alves, de que a juntada aos autos dos pareceres foi postura individual do ministro Maurício Corrêa e derivado de um convite, estando os pareceristas a atuar, na prática, como assistentes de acusação.304 O convite declinado pelo ministro Maurício Corrêa para que os juristas ocupassem a posição de “amigos da corte” sem a observância dos requisitos legais possui relevância por dois motivos principais. O primeiro é que a intervenção de terceiros possui previsão legal somente para ações em sede de controle abstrato de constitucionalidade na Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, para a Ação Direta de Inconstitucionalidade305 e a Ação Declaratória de Constitucionalidade306, e na Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, para a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.307 O segundo motivo é que a intervenção do amicus curiae pressupõe ampla publicidade às partes e principalmente aos demais ministros da Corte. Isso porque as razões apresentadas pelo interveniente poderão servir como fundamento para a decisão do caso concreto em benefício de uma das partes, porém sem que ao prejudicado seja conferida 304 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424- 2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. original min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 594. DJU 19.03.2004. Ver ementa no anexo A. 305 “Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. [...] § 2 o O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades. [...] Art. 9o [...] § 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.” 306 “Art. 18. Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação declaratória de constitucionalidade. [...] Art. 20. [...] § 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.” 307 “Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1 o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. § 2 o Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo.” 104 oportunidade de produzir material para contrapor os pareceres constantes nos autos, em clara ofensa a paridade de armas. A remição aos trabalhos teóricos dos amici curiae foi prática amplamente adotada pelos ministros no julgamento do HC 82.424/RS. Com exceção dos ministros Sepúlveda Pertence e Cezar Peluso, os demais integrantes que denegaram a ordem de habeas corpus ao paciente apoiaram-se, em maior ou menor extensão, nos pareceres dos juristas trazidos aos autos, inclusive citando textualmente trechos das peças. Utilizaram os argumentos dos intervenientes para fundamentar suas decisões os ministros Maurício Corrêa308, Celso de Mello309, Gilmar Mendes310, Carlos Velloso311 , Nelson Jobim312e Ellen Gracie313, sendo certo que os ministros Moreira Alves, Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio votaram pela concessão da ordem de habeas corpus. Merecem destaques quanto a esse ponto os votos dos ministros Maurício Corrêa e Nelson Jobim, o primeiro por fazer constantes remições aos pareceres de Celso Lafer e Miguel Reale Júnior, e o segundo por citar excerto extremamente longo da peça de Lafer que ocupou nada menos do que oito páginas consecutivas, além das citações em outros trechos do voto. Tal fato comprova a extrema influência exercida pelo amicus curiae no Tribunal, comprometendo, por outro lado, o procedimento adotado pela Corte no HC 82.424/RS, especialmente no tocante à falta de transparência e isonomia do julgamento. 4.2 Critérios materiais da pesquisa No âmbito da análise qualitativa, os dados angariados na pesquisa permitem dividi-la materialmente em quatro tópicos, todos relacionados com os subsídios teóricos expostos nas seções anteriores: a teoria utilizada pelo Tribunal para restringir o direito fundamental à liberdade de expressão e o método utilizado para solucionar a controvérsia, o papel desempenhado pelo Estado na promoção da liberdade de expressão, o modo de 308 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424- 2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. P. 597 passim. DJU 19.03.2004. 309 Ibid., p. 626, entre outras. 310 Ibid., p. 647-649. 311 Ibid., p. 687. 312 Ibid., p. 739 e 741-749. 313 Ibid., p. 755. 105 funcionamento da restrição ao direito fundamental, e, por fim, a análise de adequação das decisões do Supremo Tribunal Federal ao modelo teórico de juiz proposto por Marcelo Neves. 4.2.1 Teoria da restrição do direito à liberdade de expressão e o método de solução do conflito Foi visto que duas teorias se destacam no estudo da dogmática da restrição dos direitos fundamentais: a teoria externa e a teoria interna.314 Ambas rejeitam a ideia de direitos absolutos e têm posições distintas acerca do direito e sua limitação. Enquanto a teoria externa concebe os direitos fundamentais de forma a priori ampla e adota o princípio da proporcionalidade como técnica adequada para solucionar a colisão dos direitos fundamentais, a teoria interna rejeita a tese de que há colisão e concebe o direito com determinado conteúdo predefinido e encontrado com a exclusão de antemão de certos atos, fatos e posições jurídicas do âmbito de proteção do direito fundamental. Utiliza os artifícios dos limites imanentes e da concepção institucional dos direitos fundamentais como métodos para alcançar o direito definitivo. A análise detida do acervo de julgados obtidos no Supremo Tribunal Federal demonstra que a teoria interna é amplamente utilizada para restringir o direito à liberdade de expressão e pensamento. Entretanto, não existe por parte do Tribunal coerência metodológica na adoção da teoria interna. Ora a Corte lança mão da teoria de forma implícita, entendendo que os limites à liberdade de expressão foram previamente traçados pela própria Constituição; ora combina a teoria interna com o princípio da proporcionalidade sem mencionar os três subprincípios; em certos casos, ainda, alguns ministros chegam a conferir, em atenção à situação concreta, caráter absoluto a determinados direitos constitucionais, algo vedado tanto pela teoria interna quanto externa. A principal estratégia argumentativa do Supremo Tribunal Federal no âmbito da teoria interna é excluir fato, ação, estado ou posição jurídica do suporte fático da norma de direito fundamental. 314 Ver 3.2. 106 Diversos acórdãos que recorreram a esse artifício podem ser citados. No HC 83.996/RJ, o diretor de teatro Gerald Thomas, ao término da apresentação de uma peça, foi vaiado pela plateia e reagiu fazendo gestos obscenos que simulavam a masturbação masculina, mostrando também as nádegas ao público presente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Acusado do crime de ultraje ao pudor público, o diretor teve a ordem de habeas corpus concedida para trancar a ação penal por vislumbrar o Tribunal ausência da intenção de ofender a moral pública. A Corte entendeu que a análise da manifestação do acusado deve estar adstrita ao contexto social em que proferida a fim de verificar até que ponto merece proteção constitucional, ainda mais contra a repressão do Direito Penal. O Tribunal afirmou que existem outros meios, às vezes mais eficientes, de repressão ao ato do paciente, como, por exemplo, a crítica, e que em um Estado Democrático de Direito a liberdade é a regra geral e deve ser respeitada, até mesmo pelo legislador.315 Virgílio Afonso da Silva, analisando o “caso Gerald Thomas”, concluiu que o Supremo Tribunal Federal recorreu à teoria interna da restrição dos direitos fundamentais para solucionar a questão, pois optou por excluir a conduta do diretor de teatro do âmbito de incidência da regra penal e considerá-la como mero exercício da liberdade de expressão. Segundo o autor, o Tribunal poderia ter argumentado, caso quisesse utilizar a teoria externa, que apesar de a conduta ser obscena e estar incluída no suporte legal, a regra não seria aplicável em respeito ao princípio da liberdade de expressão.316 Semelhante ratio decidendi pode ser encontrada nos Inq‟s. 2154/DF e 2297/DF317, nos quais a Corte considerou não ter havido caracterização de crimes contra a honra porque certas manifestações hão de ser temperadas com o contexto em que veiculadas, além do que o agente público deve se acostumar com a liberdade de expressão, sujeitando-se a críticas e opiniões contrárias em decorrência do exercício da profissão.318 315 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 83.996-7 Rio de janeiro. Segunda Turma. Rel. min. Gilmar Mendes. p. 350. DJU 26.08.2005. Ver ementa no anexo C. 316 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrição e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 54. 317 Ver ementa no anexo F. 318 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 2154 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Marco Aurélio. p. 108. DJU 17.12.2004. Ver ementa no anexo D. 107 Aos três julgados acima analisados, podem-se acrescentar outros nos quais se recorreu a fundamentos similares. É o caso do HC 109.676/RJ, em que a Corte afirmou que “a liberdade de expressão não pode ser anteparo para práticas ilícitas de ofensa à honra subjetiva”.319 Assim como nos HC‟s 106.808/RN320 e 95.348/PE, sendo que, neste último, ficou consignado que a liberdade de expressão é direito fundamental inerente à condição humana e, assim, os artigos do Código Penal (lei ordinária) não podem ser interpretados, embora semanticamente possível, em sentido que afronte o direito fundamental em questão.321 Caso extremamente importante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema da liberdade de expressão e revestido, segundo alguns ministros que participaram do julgamento, de relevância histórica, é o HC 82.424/RS, conhecido como “caso Ellwanger”322. Este caso é relevante porque decidido com base na teoria interna dos direitos fundamentais, porém em sentido oposto aos anteriormente citados, já que o Tribunal optou por denegar a ordem de habeas corpus e manter a condenação imposta pelo tribunal local. A posição prevalecente entre a maioria formada na ocasião foi a de que os limites para a liberdade de expressão estão previamente definidos na própria Constituição Federal, devendo este direito ser exercido em respeito aos direitos da imagem, honra e privacidade. Esta leitura pode ser extraída do artigo 220 que remete ao artigo 5º, X, todos do Texto Maior, reconhecendo haver uma restrição intrínseca à liberdade de expressão. O ministro Maurício Corrêa é explicito nesse sentido ao afirmar em seu voto que: Malgrado não seja fundamento do writ, penso também não ocorrer na hipótese qualquer violação ao principio constitucional que assegura a liberdade de expressão e pensamento [...]. Como sabido, tais garantias, como de resto as demais, não são incondicionais, razão pela qual devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites traçados pela própria Constituição Federal [...]. Atos discriminatórios de qualquer natureza ficaram expressamente vedados, com alentado relevo para a questão racial, o que impõe certos temperamentos quando possível 319 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 109.676 Rio de Janeiro. Primeira Turma. Rel. min. Luiz Fux. p. 02. DJU 11.06.2013. Ver ementa no anexo R. 320 Ver ementa no anexo Q. 321 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 95.348 Pernambuco. Segunda Turma. Rel. min. Cezar Peluso. p. 658. DJU 02.02.2010. Ver ementa no anexo J. 322 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 619. DJU 19.03.2004. 108 contrapor-se uma norma fundamental a outra [...]. A aparente colisão de direitos essenciais encontra, nesse caso, solução no próprio texto constitucional. 323 Embora o ministro tenha usado o principal postulado da teoria interna para fundamentar seu voto, em seguida expressamente optou pela técnica da ponderação de bens e valores para concluir que os direitos da personalidade são hierarquicamente superiores à liberdade de expressão, pois aqueles se relacionam com os direitos humanos, especificamente a dignidade humana, o tratamento igualitário, a cidadania e a vida.324 A ideia que parece repousar no entendimento do ministro Maurício Corrêa é a de que a liberdade de expressão é desvinculada da noção de direitos humanos, não merecendo tutela jurisdicional quando em confronto com os direitos da personalidade.325 O apelo à teoria interna da restrição aos direitos fundamentais é compartilhado por quase todos os julgadores que denegaram o habeas. O ministro Celso de Mello chegou a afirmar que, embora a igualdade e a dignidade sejam restrições externas ao direito à liberdade de expressão, a Constituição não fornece garantia aos chamados discursos odiosos, promotores da discriminação e preconceito.326 Contraditoriamente, o ministro Celso de Mello argumentou que a liberdade de expressão sofre restrições externas, dando a entender que aceita o suporte fático amplo para o direito. Na sequência, porém, concluiu que os limites para o direito fundamental já estão previstos antecipadamente na própria Constituição Federal, retirando certos atos do âmbito de proteção da liberdade de expressão, o que evidentemente é incoerente com a tese das restrições externas. Semelhante posicionamento foi adotado na ADPF 130/DF. O ministro aduziu que os direitos da personalidade representam limitações externas ao direito de livremente expressar-se. Em seguida argumentou que a incitação ao ódio público contra 323 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 584. DJU 19.03.2004 (grifos do autor). 324 Ibid., p. 585. 325 Analisando julgados oriundos dos principais tribunais do Brasil e do Superior Tribunal de Justiça, Cláudio Chequer observa que há uma tendência do Poder Judiciário brasileiro de conferir primazia aos direitos da personalidade quando em confronto com a liberdade de expressão, especialmente nas situações em que se reclama proteção judicial a posteriori, ou seja, após a manifestação do pensamento ou a publicação da notícia, embora se recorra frequentemente à técnica da ponderação de bens. Ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 203-219. 326 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 631. DJU 19.03.2004. 109 pessoa ou grupo social não está amparada pela liberdade de expressão, ou seja, ele excluiu, de antemão, condutas do suporte fático do direito fundamental, a exemplo do que havia feito no “caso Ellwanger”.327 Da mesma forma, na ADPF 187/DF assevera que a liberdade de expressão não é direito absoluto, pois não pode ser usada para discriminar minorias ou incitar o ódio, retirando condutas do âmbito de proteção do direito fundamental, e cita, em abono a sua tese, o artigo 13, parágrafo 5º do Pacto de San Jose da Costa Rica328, dispositivo que também exclui antecipadamente matérias da proteção da liberdade de expressão.329 O ministro Dias Toffoli parece comungar da mesma opinião. No julgamento da AO 1390/PB, por ele relatada, decidiu-se que acusações dirigidas a pessoas públicas não estão imunes à responsabilização cível ou criminal. No caso o réu da ação acusou o autor, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Estado da Paraíba, de participar de esquema objetivando fraudar eleições, sem comprovar a veracidade das alegações. Na solução do caso, o ministro aduziu que a liberdade de expressão não é direito absoluto e está limitada pelos direitos da personalidade, extraindo o raciocínio da Constituição Federal. Manteve a condenação cível do réu utilizando-se de argumentos da teoria interna, posto que não fez menção ao princípio da proporcionalidade (aos três subprincípios) nem a outro argumento qualquer, senão de natureza processual, como ausência de provas das alegações.330 Fato interessante da jurisprudência da Corte é que o apelo ao cerne da teoria interna da restrição aos direitos fundamentais (exclusão de condutas a priori do suporte fático) no embate entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade não ocorre somente nas hipóteses em que o Tribunal favorece os direitos à honra, à imagem e à privacidade. No AI 675.276 AgR/RJ recorreu-se à teoria interna para flexibilizar a proteção aos direitos da personalidade, no caso concreto a honra. Para concluir que pessoas 327 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 149 e 159. DJU 06.11.2009. 328 “Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão. [...] 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.” 329 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Celso de Mello. p. 48 (acórdão não publicado). 330 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Originária 1390 Paraíba. Tribunal Pleno. Rel. min. Dias Toffoli. p. 27. DJU 30.08.2011. Ver ementa no anexo M. 110 públicas ou que desempenham atividades de interesse coletivo possuem âmbito menor de proteção dos direitos da personalidade, podendo sofrer críticas ácidas da imprensa, a Corte se viu obrigada a excluir do raio de proteção do direito da personalidade a opinião emitida por intermédio da imprensa.331 O que se verifica é que a estratégia de retirar fatos e condutas do suporte fático dos direitos fundamentais não acontece somente para restringir a liberdade de expressão, mas é utilizada quando a restrição se dá sobre os direitos da personalidade, donde é possível concluir que se trata de uma conduta disseminada no âmbito da Corte. A constatação de que predomina na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o uso da teoria interna como modelo de restrição ao direito fundamental da liberdade de expressão não permite afirmar que a ponderação e a proporcionalidade são técnicas ignoradas pelos ministros. Ao contrário, em vários casos analisados é possível verificar que se recorre frequentemente à ponderação de bens e ao princípio da proporcionalidade nas situações em que os ministros rechaçaram a existência de colisão de direitos fundamentais ou quando conferiram primazia a determinado direito fundamental. No “caso Ellwanger”, conforme assinalado, o ministro Maurício Corrêa inaugurou a divergência ao adotar a teoria interna da restrição aos direitos fundamentais sustentando que a liberdade de expressão deve ser exercida com observância dos limites traçados pela Constituição Federal. No mesmo sentido seguiu o ministro Celso de Mello, em voto que se apoia quase que exclusivamente no princípio da dignidade da pessoa humana. Ele, diferentemente do ministro Maurício Corrêa, é explicito ao afirmar que não há colisão de direitos no caso, contudo assevera que a igualdade e a dignidade são restrições externas à liberdade de expressão, que de antemão não abarca o discurso odioso. De forma contraditória, mais adiante o ministro Celso de Mello admite um aparente conflito de direitos e alude ao critério da ponderação de bens e valores como método apto a solucionar o caso, porém sem detalhar como se daria sua aplicação. O magistrado se limita a recorrer a argumentação consequencialista de que os atos praticados pelo paciente 331 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Agravo de Instrumento 675.276 Rio de Janeiro. Segunda Turma. Rel. min. Celso de Mello. p. 308. DJU 14.04.2011. Ver ementa no anexo K. 111 instauram tratamentos discriminatórios fundados em ódio racial contra minorias, sem apresentar dado para corroborar a afirmação.332 No mesmo “caso Ellwanger”, o ministro Gilmar Mendes utilizou argumentos parcialmente diferentes, porém chegou à mesma conclusão. Aceita a tese de que os limites à liberdade de expressão são inerentes à Constituição Federal, no entanto enxerga colisão entre os direitos fundamentais em tela que deve ser resolvida mediante o uso do princípio da proporcionalidade.333 O ministro fez referência às três máximas do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) e esmiuçou com bastante clareza o modo de solução da controvérsia para concluir pela não concessão da ordem de habeas corpus. Para o ministro Gilmar Mendes a condenação do paciente foi adequada para atingir o fim almejado da salvaguarda de uma sociedade pluralista e tolerante. A necessidade também estaria presente, na visão do ministro, porque não existiriam meios menos gravosos e igualmente eficazes do que a aplicação da pena criminal. Por fim, a proporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto à liberdade de expressão estaria satisfeito em virtude da disposição do texto constitucional de excepcionar da proteção da liberdade de expressão os discursos de intolerância racial. 334 Para reforçar a afirmação de que há incoerência metodológica entre os votos, o ministro Marco Aurélio adota fundamentação semelhante a Gilmar Mendes para reconhecer a existência da colisão entre a liberdade de expressão e a dignidade humana, compartilhando a tese de que a solução do caso se dá pelo princípio da proporcionalidade. Marco Aurélio, a exemplo de Gilmar Mendes, mencionou expressamente os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, contudo alcançou resultado diametralmente oposto ao conceder o habeas. Embora o ministro entenda ser a medida inadequada para atingir o fim proposto pela decisão de segundo grau de acabar com a discriminação contra o povo judeu, fato que prescindiria da análise dos demais subprincípios, ele prossegue na analisa dos demais 332 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 630-633. DJU 19.03.2004. Compartilharam dos mesmos fundamentos os ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie e Nelson Jobim. 333 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 656-658. DJU 19.03.2004. 334 Ibid., p. 669-670. 112 subprincípios e conclui que o correto uso do princípio da proporcionalidade absolve o acusado, acrescentando, da mesma forma que o ministro Celso de Mello, porém em sentido diverso, argumento consequencialista de que a restrição da liberdade de expressão não pode ser pautada por simples alegação de discriminação sem respaldo empírico. 335 Em perspectiva similar no que diz respeito à incoerência metodológica, pode-se citar o julgamento da ADPF 130/DF, que resultou na revogação da denominada Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967). O cerne da discussão foi a compatibilidade da Lei de Imprensa com a Constituição Federal. A Corte entendeu, por maioria, que a lei não foi recepcionada pela nova ordem constitucional por infringir os dispositivos asseguradores da liberdade de expressão. O relator do processo, ministro Carlos Britto, aduziu que a Constituição Federal estabeleceu dois grandes blocos normativos: de um lado, os direitos relativos às liberdades de pensamento, criação, expressão e informação, constantes nos incisos IV, IX, XIII e XIV do artigo 5º, o artigo 220, caput, e parágrafo 1º, e de outro, os direitos da personalidade, retratados nos incisos V e X do artigo 5º. Segundo Carlos Britto, a Carta Política procedeu antecipadamente ao legislador a uma ponderação ou sopesamento de valores em benefício das liberdades de expressão e pensamento nos casos em que estas forem exercidas por intermédio da imprensa. Para ele, esta circunstância consagrou o direito de imprensa como direitos superiores (sobredireitos) se comparados a outros, sobretudo aos direitos da personalidade.336 A estratégia argumentativa do ministro para justificar a primazia das liberdades de expressão e de imprensa foi aproximá-las ao princípio da dignidade da pessoa humana a fim de evitar uma costumeira dissociação entre eles, postura normalmente adotada por aqueles que restringem em demasia a liberdade de expressão. Para o ministro Carlos Britto, como a liberdade de imprensa promove o desenvolvimento social e a democracia, possuindo com esta uma relação de mútua dependência ou retroalimentação, a liberdade de expressão, em última análise, se reveste de importância para toda a coletividade e para cada indivíduo na medida em que é responsável pela efetivação de outros direitos fundamentais. 335 Ibid., p. 884-888 e 895-901. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 50. DJU 06.11.2009. Ver ementa no anexo G. 336 113 Daqui já se vai desprendendo a intelecção do quanto a imprensa livre contribui para a concretização dos mais excelsos princípios constitucionais. A começar pelos mencionados princípios da "soberania" (inciso I do art. 1º) e da "cidadania" (inciso II do mesmo art. 1º), entendida a soberania como exclusiva qualidade do eleitorsoberano, e a cidadania como apanágio do cidadão, claro, mas do cidadão no velho e sempre atual sentido grego: aquele habitante da cidade que se interessa por tudo que é de todos; isto é, cidadania como o direito de conhecer e acompanhar de perto as coisas do Poder, os assuntos da pólis. Organicamente. Militantemente. Saltando aos olhos que tais direitos serão tanto melhor exercidos quanto mais denso e atualizado for o acervo de informações que se possa obter por conduto da imprensa (contribuição que a INTERNET em muito robustece, faça-se o registro).337e Mais adiante, acrescenta que: É precisamente isto: no último dispositivo transcrito [artigo 220, caput] a Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. Requinte de proteção que bem espelha a proposição de que a imprensa é o espaço institucional que melhor se disponibiliza para o uso articulado do pensamento e do sentimento humanos como fatores de defesa e promoção do indivíduo, tanto quanto da organização do Estado e da sociedade. Plus protecional que ainda se explica pela anterior consideração de que é pelos mais altos e largos portais da imprensa que a democracia vê os seus mais excelsos conteúdos descerem dos colmos olímpicos da pura abstratividade para penetrar fundo na carne do real. Dando-se que a recíproca é verdadeira: quanto mais a democracia é servida pela imprensa, mais a imprensa é servida pela democracia. 338 A referência de que os limites da liberdade de expressão estão previamente inscritos na Constituição Federal é demonstrativo de que o pressuposto adotado no voto do ministro Carlos Britto é o da teoria interna da restrição aos direitos fundamentais, eis que não considera a restrição como categoria externa ao direito. Coerente com a tese da supremacia do bloco normativo da liberdade de expressão, o ministro Carlos Britto sustenta que inexiste colisão de direitos fundamentais. Na visão do ministro, não se deve considerar os direitos em jogo como mandamentos de otimização a serem satisfeitos na maior medida possível dependendo das situações fáticas e jurídicas de cada caso. A precedência constitucional se impõe a toda e qualquer situação concreta, tanto na relação Estado-cidadão quanto cidadão-cidadão. 337 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 37. DJU 06.11.2009 (grifos do autor). 338 Ibid., p. 43-44 (grifos do autor). 114 Nas palavras do ministro Carlos Britto: [...] o segundo parêntese é para nos possibilitar dizer que essa hierarquia axiológica, essa primazia político-filosófica das liberdades de pensamento e de expressão lato sensu afasta sua categorização conceitual como "normas-princípio" (categorização tão bem exposta pelo jurista alemão Robert Alexy e pelo norte-americano Ronald Dworkin). É que nenhuma dessas liberdades se nos apresenta como "mandado de otimização", pois não se cuida de realizá-las "na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes" [...] . Tais possibilidades não contam, simplesmente, porque a precedência constitucional é daquelas que se impõe em toda e qualquer situação concreta. Assim na esfera de atuação do Estado quanto dos indivíduos. Logo, valendo terminantemente para todas as situações da vida em concreto, pouco importando a natureza pública ou privada da relação entre partes, ambas as franquias constitucionais encarnam uma tipologia normativa bem mais próxima do conceito de "normas-regra"; isto em consideração ao fato de que, temporalmente, e com o timbre da invariabilidade, preferem à aplicação de outras regras constitucionais sobre direitos de personalidade. Não para invalidar estes últimos, mas para sonegar-lhes a nota da imediata produção dos efeitos a que se preordenam, sempre que confrontados com as liberdades de manifestação do pensamento e de expressão lato sensu. Mormente se tais liberdades se dão na esfera 339 de atuação dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social. É certo que, embora o voto do ministro tenha conduzido em parte a Corte ao resultado conclusivo da não recepção da Lei de Imprensa, a premissa por ele fixada a respeito da primazia de um bloco de direitos sobre outro não encontrou respaldo dos demais integrantes do Tribunal. Com as exceções do ministro Eros Grau, que se limitou a aderir integralmente ao voto do relator, e do ministro Marco Aurélio, que julgou improcedente a ADPF 130/DF por não enxergar incompatibilidade com a ordem constitucional vigente, os demais componentes fizeram importantes ressalvas ao voto inicial, muitos deles incorrendo, também, em alguns desvios técnicos. Assim, em sentido oposto ao apontado pelo relator, o ministro Menezes Direito entendeu que a Constituição Federal de 1988 dotou de especial garantia os direitos da personalidade. O equilíbrio entre esses direitos e a liberdade de imprensa se dá por meio da ponderação, o que inadmite a tese de precedência de um direito sobre o outro. Há uma colisão de direitos fundamentais, cabendo ao intérprete adequá-los harmonicamente. E, de forma aparentemente incoerente, afirma que a dignidade da pessoa humana prevalece sobre a 339 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 61-62. DJU 06.11.2009 (grifos do autor). 115 liberdade de expressão na permanente tensão constitucional existente entre os direitos da personalidade e a liberdade de expressão.340 Em tom de certa forma concordante com o ministro Direito, o ministro Gilmar Mendes crê num inexorável conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, uma verdadeira colisão de direitos fundamentais. No entanto, diz que a Constituição Federal consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana como postulado essencial da ordem constitucional o que, aparentemente, revela contradição com a afirmação anterior acerca da colisão de direitos, já que não se fala em colisão de direitos quando há precedência de um sobre o outro.341 De forma geral, é possível dizer que a maioria dos ministros se posicionou no sentido de reconhecer a tensão entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, rechaçando a tese da primazia prévia de um bloco normativo, tal como formulada pelo ministro Carlos Britto. Com essa perspectiva se posicionaram os ministros Joaquim Barbosa, Cezar Peluso e Ellen Gracie. Já o ministro Celso de Mello asseverou que os direitos da personalidade representam limitações externas ao direito de livremente expressar-se, o que faz instaurar um conflito permanente advindo do estado de colisão entre direitos fundamentais, reclamando decisão casuística a respeito da preferência. O método a ser utilizado é a ponderação de bens e valores constitucionais, embora em seu voto não haja detalhamento dos subcritérios do princípio da proporcionalidade.342 Embora os argumentos desenvolvidos pelos ministros tenham partido de premissas muitas vezes antagônicas entre si, é possível concluir que a teoria interna da restrição aos direitos fundamentais foi dominante na Corte. Verifica-se, contudo, no âmbito do Supremo Tribunal Federal forte contradição entre dois importantes julgados. Se é certo que na ADPF 130/DF a teoria interna da restrição dos direitos fundamentais serviu de retórica para rechaçar in totum legislação infraconstitucional violadora da liberdade de expressão, no HC 82.424/RS, analisado acima, o Tribunal manteve a condenação do paciente pelo cometimento de crime de opinião lançando mão quase que exclusivamente dos mesmos pressupostos da teoria interna dos direitos 340 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 86-90. DJU 06.11.2009 (grifos do autor). 341 Ibid., p. 228-235. 342 Ibid., p. 149-175. 116 fundamentais, conferindo primazia aos direitos da personalidade, o que é, consoante reiteradamente afirmado, incompatível com ambas as teorias, interna e externa. O que se pretende sublinhar é o fato de em um caso o Tribunal utilizar o expediente de retirar antecipadamente do âmbito de proteção do direito fundamental à liberdade de expressão fatos, atos, estado e posições jurídicas como argumento para proteger o direito em questão, e em outra oportunidade a mesma teoria interna servir retoricamente para a condenação criminal por ter professado uma opinião, mesmo que odiosa, porque se entendeu que os direitos da personalidade têm preferência. Outros julgados da base de dados da pesquisa podem ser citados para demonstrar a variação dos argumentos do Supremo Tribunal Federal. Na ADI 3741/DF, o Plenário da Corte declarou inconstitucional lei restritiva à liberdade de expressão aplicando ao caso o princípio da proporcionalidade. Afirmou-se que a lei era inadequada, desnecessária e desproporcional ao objetivo almejado, qual seja, permitir que o cidadão forme sua convicção de maneira mais ampla possível. No entanto, o ministro relator, Ricardo Lewandowski, não especificou com rigor o percurso argumentativo desenvolvido para chegar à conclusão da inconstitucionalidade da lei, tendo aludido expressamente a circunstância de estarem os limites da liberdade de expressão dispostos na Constituição Federal, especificamente no artigo 220, parágrafo 1º.343 A limitação ao direito da liberdade de expressão foi tema no julgamento do RE 511.961/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, em que se discutiu a constitucionalidade da exigência de diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista. O centro da discussão girou em torno do tema da reserva legal como limitação de direito fundamental, já que havia o questionamento sobre a constitucionalidade do artigo 4º, V, do Decreto-Lei nº 972/1969, que exigia o diploma, e a definição do conceito de núcleo essencial de um direito fundamental, insuscetível de restrição. A trajetória argumentativa não difere de maneira substancial da verificada na maioria dos casos analisados, especialmente no tocante ao uso concomitante da teoria interna da restrição dos direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade. 343 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3741 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Ricardo Lewandowski. p. 203-208. DJU 23.02.2007. Ver ementa no anexo E. 117 Para o ministro Gilmar Mendes há correlação entre o âmbito de proteção dos direitos individuais de defesa e a restrição, pois quanto mais amplo for o âmbito de proteção do direito fundamental maior serão as possibilidades de qualificar um ato de restrição. Segundo o relator, o âmbito de proteção pode sofrer restrição pela própria Constituição Federal ou pela reserva legal. No entanto, cabe verificar, mediante a utilização do princípio da proporcionalidade, a razoabilidade da intensidade da regulamentação do direito fundamental a ponto de não atingir seu núcleo essencial, segundo o ministro o exercício da profissão de jornalista. Enfatiza que as restrições derivam da própria Constituição Federal (limites imanentes), aceitando a ideia de que a legitimidade das limitações tem que ser analisada sob o ângulo do princípio da proporcionalidade com o uso dos três subprincípios. Nesse ponto, é possível encontrar o mesmo equívoco levado a efeito pelo ministro Celso de Mello no “caso Ellwanger”, bem como de todos os ministros que negaram o pedido de habeas corpus, pois restou afirmado que o núcleo essencial de um direito fundamental e o princípio da proporcionalidade são coisas diferentes. No dizer do ministro Gilmar Mendes: Certamente, há, nessas hipóteses, uma esfera de livre expressão protegida pela ordem constitucional contra qualquer intervenção estatal cujo objetivo principal seja o controle sobre as qualificações profissionais para o exercício dessas atividades. Por isso, não obstante o acerto de todas essas considerações, que explicitam uma análise de proporcionalidade, o certo é que, mais do que isso, a questão aqui verificada é de patente inconstitucionalidade, por violação direta ao art. 5o, inciso XIII, da Constituição. Não se trata apenas de verificar a adequação de uma condição restritiva para o exercício da profissão, mas de constatar que, num âmbito de livre expressão, o estabelecimento de qualificações profissionais é terminantemente proibido pela ordem constitucional, e a lei que assim proceder afronta diretamente o art. 5o, inciso XIII, da Constituição.344 Em seguida, o ministro aduz que a liberdade de expressão não é direito absoluto e sua restrição somente ocorre de forma excepcional, sempre reservadas para as imperiosas necessidades de resguardos de outros valores constitucionais, como no caso dos direitos da personalidade. Conclui da seguinte maneira: 344 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min. Gilmar Mendes. p. 758. DJU 13.11.2009. Ver ementa no anexo H. 118 Assim, no caso da profissão de jornalista, a interpretação do art. 5o, inciso XIII, em conjunto com o art. 5o, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, leva à conclusão de que a ordem constitucional apenas admite a definição legal das qualificações profissionais na hipótese em que sejam elas estabelecidas para proteger, efetivar e reforçar o exercício profissional das liberdades de expressão e de informação por parte dos jornalistas. Fora desse quadro, há patente inconstitucionalidade da lei. É fácil perceber, nessa linha de raciocínio, que a exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação – não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1o, da Constituição. Portanto, em se tratando de jornalismo, atividade umbilicalmente ligada às liberdades de expressão e de informação, o Estado não está legitimado a estabelecer condicionamentos e restrições quanto ao acesso à profissão e respectivo exercício profissional. 345 Embora o ministro Gilmar Mendes lance mão do princípio da proporcionalidade para decidir sobre a compatibilidade constitucional da matéria legal, este trecho deixa claro que houve apelo à teoria interna da restrição dos direitos fundamentais na medida em que optou por retirar certas condutas do âmbito da alçada do legislador, que não poderia sobre elas dispor diante da interdição promovida pela Constituição Federal. De forma oposta ao defendido pelo ministro relator, porém coerente com a posição assumida na ADPF 130/DF, ao concluir pela inconstitucionalidade da exigência de diploma, o ministro Carlos Britto defende que a liberdade de imprensa é valor superior, inigualável pela Constituição Federal a nenhum outro direito, pois protege bens jurídicos de relevância maior, não havendo que se falar em aplicação do princípio da proporcionalidade, eis que a ponderação foi feita previamente pela constituinte.346 A conclusão que é possível extrair dessa série de decisões é que o Supremo Tribunal Federal não é guiado pelo rigor metodológico das técnicas de argumentação. Os ministros costumam utilizar certas teorias para embasar seus votos lançando mão, muitas vezes, de pressupostos equivocados, ou dois ministros utilizam a mesma técnica de decisão para chegar a resultados antagônicos. Exemplo do primeiro caso é a combinação do princípio da proporcionalidade com a teoria interna da restrição dos direitos fundamentais, como na ADPF 130/DF, ADI 3741/DF, entre outros, e o segundo é a utilização da proporcionalidade pelos 345 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min. Gilmar Mendes. p. 760-761. DJU 13.11.2009. 346 Ibid., p. 807. 119 ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio no “caso Ellwanger” para, respectivamente, condenar e absolver o paciente. Não há comprometimento apenas da qualidade hermenêutico-argumentativa das decisões do Supremo Tribunal Federal, mas principalmente dificuldade de realizar um prognóstico seguro das balizas a serem usadas no julgamento de casos futuros. 4.2.2 O papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: sistema predominante Fundamentalmente, dois são os modos de encarar o papel a ser desempenhado pelo Estado na promoção das liberdades de expressão e imprensa: exige-se uma postura omissiva de não interferência no conteúdo da mensagem endereçada ao público, primando pela capacidade de discernimento do cidadão; ou exige-se um ente oficial dotado da capacidade de diversificar o debate público e detentor do poder para punir o emissor da palavra, dependendo do que for veiculado. O primeiro modelo possui primazia nos Estados Unidos da América e o segundo, que reclama maior interferência do Estado, nos países da Europa.347 O objetivo desta subseção é averiguar para qual modelo pende a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isto é, se a Corte reprime a manifestação da expressão em razão do conteúdo ou se há tolerância com os discursos verbalizados pelos indivíduos ou pela imprensa. O primeiro julgado que compõe o banco de dados da pesquisa é significativo quanto a essa questão. É possível dizer que a maioria que compôs a Corte no “caso Ellwanger” abonou a postura da forte intromissão no conteúdo da mensagem. Para o relator do processo, ministro Maurício Corrêa, que abriu a divergência e conduziu o Tribunal para o resultado final, é ilegal professar ideias e opiniões classificadas de discriminatórias e que afrontam a dignidade de grupos sociais específicos, no caso em apreço a teoria revisionista contra o povo judeu. O ministro é explicito ao afirmar que: 347 Ver 3.3. 120 “a exegese constitucional [...] justifica a necessidade de coibir de forma veemente atos dessa natureza, mesmo porque as teorias anti-semitas propagadas nos livros editados pelo paciente disseminam ideias que, se executadas, constituirão risco para a pacífica convivência dos judeus no País, dado que dissimulam a sua eliminação de nosso convívio.”348 Com poucas variações de argumentação, os ministros que não concederam a ordem de habeas corpus abraçaram a tese de que há necessidade de coibir determinados tipos de discursos e ideias com o fim de evitar sua propagação para outros círculos sociais. O ministro Cezar Peluso é enfático ao afirmar que a edição de livros com reiteração nazista é crime porque importa no induzimento ao cometimento de racismo 349, no que é secundado pelo ministro Carlos Velloso para quem a edição de livros hostis aos judeus implica em conduta criminosa.350 Em sentido semelhante seguiram os ministros Celso de Mello351, Gilmar Mendes352, Nelson Jobim353, Ellen Gracie354 e Sepúlveda Pertence355. A tese vencida neste julgamento é formada pelos ministros Carlos Britto e Marco Aurélio. Para eles é inadmissível a intromissão no conteúdo da mensagem para punir o emissor, ainda mais quando se trata de repressão de natureza penal. O ministro Carlos Britto aduziu que a Constituição Federal estabeleceu um tripé comportamental de excludentes da abusividade da liberdade da palavra: a crença religiosa, a convicção filosófica e a convicção política.356 O ministro entendeu que o paciente agiu dentro das excludentes da abusividade. Para ele o acusado tentou produzir uma obra objetivamente convincente sobre os rumos da Segunda Guerra Mundial, por meio da análise de farto material de pesquisa, como documentos históricos, fotos, livros, revistas, jornais, entre outros. O ministro Carlos Britto afirma que: 348 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 586. DJU 19.03.2004. 349 Ibid., p. 760. 350 Ibid., p. 687. 351 Ibid., p. 632 e ss. 352 Ibid., p. 657. 353 Ibid., p. 691 e ss. 354 Ibid., p. 750 e ss. 355 Ibid., p. 1009. 356 Ibid., p. 811. 121 Uma coisa é não gostar e até mesmo discordar do que se leu (como, de fato, não gostei e ainda discordei, em boa parte). Outra, bem ao contrário, é desqualificar a obra quanto à perspectiva revisionista do seu objeto e quanto à consistência da metodologia empregada na sua elaboração (caso dos autos). É que os episódios e personalidades que marcaram a Segura Grande Guerra comportam mais de uma explicação e toda pessoa é livre para se posicionar nessa ou naquela direção. A menos que, a pretexto de escrever um livro, em realidade passe a trilhar os aleivosos caminhos do panfleto, da ridicularia ou da pasquinada. 357 Em síntese, o ministro concluiu que o valor constitucional do pluralismo político e a proibição da perda de direitos por motivos de convicção política ou filosófica impedem a criminalização do exercício de uma ideologia, assuma esta o matiz que for.358 O ministro Marco Aurélio, igualmente, assevera que as ideias odiosas devem estar a salvo das restrições de conteúdo, posto que a limitação somente é válida com relação a forma da expressão. A restrição da liberdade de expressão não pode pautar-se por simples alegação de discriminação sem respaldo empírico, pois do contrário haveria margem para puro decisionismos e arbitrariedades.359 É interessante observar como o conteúdo de uma opinião ou de um ato é relevante na apreciação da controvérsia. No chamado “caso Gerald Thomas” (HC 83.996/RJ), a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem de habeas corpus para trancar ação penal em face do diretor de teatro por conta de manifestações ultrajantes do pudor público. O Tribunal argumentou, contraditoriamente ao que afirmado no “caso Ellwanger”, e adotando, conforme assinalado, a teoria interna da restrição aos direitos fundamentais, que a análise da manifestação deve estar adstrita ao contexto social em que proferida, pois pode ser decisiva para a proteção constitucional. Disse, ademais, que existem outros meios, às vezes mais eficientes, de repressão ao ato do paciente, como, por exemplo, a crítica, e que em um Estado Democrático de Direito a liberdade é a regra geral e deve ser respeitada. Essa circunstância é relevante porque no “caso Ellwanger”, decidido pelo Plenário poucos meses antes do “caso Gerald Thomas”, a minoria formada na Corte apelou para a tese agora vencedora de que não havia riscos de discriminação efetiva para os judeus com a edição e publicação de livros antissemitas tanto tempo após o fim da Segunda Guerra 357 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel. originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 840. DJU 19.03.2004. 358 Ibid., p. 841. 359 Ibid., p. 882-888. 122 Mundial, além do que a crítica do público como elemento da excludente de antijuridicidade da conduta não foi levada em consideração pelos ministros. É nítido que a qualidade do grupo vitimado e o teor da manifestação foram fatores determinantes para a condenação do paciente no HC 82.424/RS (judeus) e para a absolvição do acusado no HC 83.996/RJ (pudor público). Semelhante fundamentação para absolver o acusado pode ser vista nos Inq‟s 2154/DF e 2297/DF. Importante aspecto para averiguar a consistência das decisões do Supremo Tribunal Federal, e de cada um dos ministros em particular, é a mudança de opinião do ministro Marco Aurélio na apreciação do HC 109.676/RJ. Dez anos após o julgamento do “caso Ellwanger”, o Supremo Tribunal Federal, agora por sua Segunda Turma, se viu diante de discurso do ódio. Tratou-se do caso de indivíduo que publicou na internet mensagens ofensivas contra uma pessoa por ser judeu. Processado criminalmente por cometimento de crime contra a honra, o Tribunal não concedeu a ordem e utilizou, basicamente, as mesmas razões do HC 82.424/RS. O curioso é que o ministro Marco Aurélio, que participou dos dois julgamentos e formou a minoria no “caso Ellwanger”, simplesmente aderiu ao voto do relator, ministro Luiz Fux, sem explicar os motivos que o levaram a mudar de opinião. É certo que a mudança de posição de todo o Tribunal ou de um ministro em particular é normal e às vezes até desejável, porém se exige que haja uma fundamentação clara das razões que levam um integrante a assumir posição contrária, sob pena de a Corte comprometer a segurança jurídica e a previsibilidade de suas decisões. O tema da constitucionalidade da interferência do conteúdo da mensagem foi objeto de intenso debate no julgamento da ADPF 130/DF. A relação umbilical que a imprensa possui com a democracia traz como consequência, na visão do ministro relator Carlos Britto, o fato de a liberdade de expressão proteger qualquer tipo de palavra, até mesmo aquelas que chocam e ofendem uns e outros (“quem quer que seja pode dizer o que quer que seja”).360 Ademais, como visto anteriormente, para o ministro Carlos Britto os direitos dos incisos IV e IX do artigo 5º são tidos como sobredireitos (superiores direitos) que se exercidos pela imprensa recebem sobretutela da Constituição Federal no capítulo “Da 360 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. Rel. p. 51. DJU 06.11.2009. 123 Comunicação Social”. Assim, o ministro enxerga um “núcleo duro” da liberdade de imprensa que está imune à atividade regulatória legislativa. Esse “núcleo duro” é formado basicamente pelas coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento e da criação lato sensu quando veiculada por órgão de comunicação social, sendo que apenas questões laterais podem ser regulamentadas. Talvez com maior precisão hermenêutica: a liberdade de informação jornalística, para se revestir do pleno desembaraço que lhe assegura a Constituição, há de implicar interdição à lei quanto a duas nucleares dimensões: primeira, o tempo de início e de duração do seu exercício; segunda, sua extensão ou tamanho do seu conteúdo. Coordenadas de tempo e de conteúdo que exprimem o que vimos chamando de "núcleo duro" ou essência mesma da liberdade de imprensa. Seu epicentro. Restando claro que, se o Estado puder interferir nesse compactado núcleo, estará marcando limites ou erguendo diques para o fluir de uma liberdade que a nossa Lei Maior somente concebeu em termos absolutos; ou seja, sem a mínima possibilidade de apriorístico represamento ou contenção. [...] Um segundo desdobramento hermenêutico ainda se desprende dessa mesma interdição legislativa quanto à medula mesma da liberdade de informação jornalística: a de que, no tema, há uma necessária linha direta entre a Imprensa e a sociedade civil. Se se prefere, vigora em nosso ordenamento constitucional uma forma de interação imprensa/sociedade civil que não passa, não pode passar pela mediação do Estado. Interação que pré-exclui, portanto, a figura do Estado-ponte em matéria nuclear ou axialmente de imprensa. Tudo sob a ideia-força de que à imprensa incumbe controlar o Estado, e não o contrário.361 A ideia de que as liberdades de expressão e de imprensa possuem um “núcleo duro” a salvo de interferência estatal aparece na ADI 4451-MC/DF e no RE 511.961/SP. O primeiro cuida de caso em que se discutiu a constitucionalidade da proibição legal da publicação de sátiras jornalísticas a políticos durante o processo eleitoral e o segundo da exigência de diploma para a profissão de jornalista. Para o ministro Carlos Britto na ADI 4451-MC/DF a ligação que há entre a liberdade de imprensa e democracia impede à lei ordinária restringir previamente o conteúdo da manifestação jornalística. Britto reiterou seu entendimento de que há um “núcleo duro” do direito à liberdade de imprensa ao argumentar que esta não é uma bolha normativa, não é uma fórmula prescritiva oca, estando o jornalista autorizado a emitir juízos críticos e mesmo em tom áspero a qualquer pessoa, especialmente agente público.362 361 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 55-56. DJU 06.11.2009. 362 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4451 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 07. DJU 24.08.2012. 124 Em tom semelhante, no RE 511.961/SP o ministro Carlos Britto reforça que apenas as matérias lateralmente de imprensa (indenização após a publicação e o direito de resposta) podem ser objeto de lei, mas não as nuclearmente de imprensa, que estariam fora do alcance do legislador, posto serem irrestringíveis.363 Esta assunção de haver um conjunto de atividades fora do alcance do legislador dividiu as opiniões do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130/DF. O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, se mostrou contrário à regulação legislativa dos temas do direito de resposta e da indenização por danos materiais e morais diante do universo amplo que a comunicação possui364, ao passo que o ministro Joaquim Barbosa admite a regulamentação na matéria por entende que o Estado nem sempre é inimigo da liberdade de expressão, principalmente nos casos em que grupos minoritários estigmatizados não têm acesso ao ambiente público de debate365, no que foi seguido pelos ministros Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carmen Lúcia. O ministro Celso de Mello menciona em seu voto na ADPF 130/DF que é contrário a interferência do Estado no conteúdo da mensagem emitida, pois o direito de imprensa seria constituído pelo direito de informar, de buscar informação, de opinar e o direito de criticar. Contudo, no já citado “caso Ellwanger”, o ministro criminalizou as condutas da publicação e edição de livros com ideias discriminatórias, promovendo uma verdadeira afetação no cerne da opinião do escritor. A argumentação vacilante do ministro Celso de Mello permite concluir, embora de forma precária já que falta clareza de sua parte, é que a difusão de uma ideia e de notícia recebe proteção constitucional ampla se veiculadas pelos órgãos de comunicação social. Em sentido contrário, na hipótese de a manifestação partir de qualquer cidadão, por intermédio da internet ou não, a tolerância para o conteúdo do que exposto ao público seria menor, sujeitando o agente emissor à responsabilização. A postura assumida pelas autoridades públicas com relação ao conteúdo da expressão ganhou especial atenção nas discussões da ADPF 187/DF e da ADI 4274/DF, 363 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min. Gilmar Mendes. p. 807. DJU 17.06.2009. 364 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 103. DJU 06.11.2009. 365 Ibid., p. 110. 125 ambas relacionadas com a constitucionalidade da realização da denominada “marcha da maconha”. Para o Supremo Tribunal Federal, adotando as razões do voto do relator, ministro Celso de Mello na ADPF 187/DF, o direito de reunião é qualificado como instrumental à liberdade de expressão, pois propicia a troca de ideias e a superveniência de debates públicos sobre temas de interesse coletivo. Como consequência, o Estado não pode imiscuir-se no conteúdo e no tipo da deliberação pública e deve viabilizar a ocorrência da reunião. O Estado não pode embaraçar o direito de reunião e de expressão apoiando-se em fundamentos que revelem oposição governamental ao conteúdo político, doutrinário ou ideológico do movimento, ou ainda, invocando restrições fundadas em mero juízo de oportunidade, de conveniência ou de utilidade. As minorias podem desfrutar desse direito fundamental, sendo irrelevantes quaisquer resistências que a coletividade venha a opor às opiniões veiculadas, ainda que desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou impopulares. O pensamento “há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre”, como que não aceitando restrições.366 O ministro Celso de Mello chega a afirmar que a Constituição Federal revelou hostilidade extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de ideias e de pensamento, não podendo o Estado impedir sua difusão. Contraditoriamente ao quanto alegado em outras oportunidades, especialmente no “caso Ellwanger” e na APDF 130/DF, o ministro afirma categoricamente que a liberdade de pensamento tem posição de “hegemonia essencial” no sistema constitucional.367 Com relação a ADPF 187/DF, é interessante mencionar que os ministros Luiz Fux e Marco Aurélio partem de premissas semelhantes para acompanhar o voto do relator, chamando atenção para um aspecto até então ignorado pelo Supremo Tribunal Federal que é enxergar o exercício do direito à liberdade de expressão como realização da autossatisfação individual, estreitando a ligação que há entre esse direito fundamental e a dignidade humana. 366 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Celso de Mello. p. 19-22 e 44 (acórdão não publicado). 367 Ibid., p. 45 (acórdão não publicado). 126 O ministro Carlos Britto asseverou que: Também em contexto reflexivo desta natureza foi que deixei assentado no julgamento da ADPF 187: nenhuma lei, seja ela civil ou penal, pode se blindar contra a discussão do seu próprio conteúdo. Nem mesmo a Constituição está a salvo da ampla e livre discussão dos seus defeitos e das suas virtudes. Impedir o questionamento de qualquer lei equivale a negar a licitude da discussão de qualquer tema. Quando o certo é reconhecer que tudo é franqueado ao ser humano no uso da sua liberdade de pensamento, de expressão e de informação. 368 Não obstante os votos acima darem a impressão de que a Corte é unânime a respeito da impossibilidade de restrição do conteúdo da expressão, é certo que há divergência no âmbito do Tribunal quanto ao papel do Estado. Mesmo aqueles ministros que promovem uma estreita ligação entre o direito à liberdade de expressão e o regime democrático em certa medida parecem aceitar a constitucionalidade de penalização civil ou penal do emissor, a depender do discurso por ele professado, a exemplo do que se viu no “caso Ellwanger” e na discussão na ADI 4274/DF. 4.2.3 O modo de funcionamento da restrição à liberdade de expressão A conjugação da ideia de que não há direitos fundamentais absolutos com a vedação da censura impõe ao Supremo Tribunal Federal a difícil tarefa de fixar critérios sobre a constitucionalidade da dinâmica da restrição à liberdade de expressão. Nesta seção pretende-se investigar se predomina no Tribunal um método que limita a divulgação da palavra nos moldes da doutrina da restrição prévia ou da responsabilização ex post facto.369 Os casos que compuseram o universo amostral da pesquisa não apontaram discussão envolvendo a imposição de censura por órgãos administrativos estatais a empresas jornalísticas ou a indivíduos, e apenas um julgado tratou de impugnação de decisão judicial que interditou a veiculação de matéria jornalística por periódico de circulação nacional, a Rcl 9428/DF. 368 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4272 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 10. DJU 02.05.2012 (grifos do autor). 369 Ver 3.4. 127 A decisão tomada na ADPF 130/DF, conforme dito ao longo do trabalho, resultou na revogação da Lei de Imprensa por incompatibilidade material com a Constituição Federal de 1988. O relator do processo foi o ministro Carlos Britto e ele iniciou o voto fazendo uma diferenciação dicotômica do conceito de imprensa. Uma de natureza objetiva, na qual a imprensa é conceituada como um plexo de atividade com a finalidade de multiplicar condutas e plasmar caracteres humanos. Seria, pela importância sócio-cultural, uma instituição-ideia ou ideia-força. A segunda tem caráter subjetivo e vê a imprensa constituída por um conjunto de órgãos, veículos, empresas, meios, enfim, juridicamente personalizados. É, sob esse ângulo, uma instituição-entidade. Tanto em um sentido como em outro, a comunicação social é o traço distintivo da imprensa e as funções opinativa, investigativa e informativa da imprensa faz dela um patrimônio imaterial que corresponde ao mais elevado estado de evolução político-cultural de um povo, circunstancia que reclama especial proteção constitucional.370 O ministro Carlos Brito fundamenta seu voto aduzindo que a total liberdade desfrutada pela imprensa na Constituição Federal, explicitada com a proibição da censura prévia, traz uma permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa e da sociedade. Dizendo de outro modo, sustenta o ministro que o único regime jurídico restritivo da liberdade de imprensa admissível seria a autorregulação, pois o povo possuiria autonomia suficiente, diante de uma imprensa livre, de servir como filtro ou peneira da informação que a ele é destinada.371 O ministro Carlos Britto afirma que a relação íntima da imprensa com a democracia traz como consequência o fato de a liberdade de imprensa ser mais importante do que as liberdades de pensamento e de expressão, até porque essas duas últimas somente ganham corpo no momento em que praticadas por meio da imprensa. Este pressuposto permite ao ministro assinalar que a exceção trazida pela parte final do caput do artigo 220 da Constituição Federal, no sentido de que a própria 370 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 22-23. DJU 06.11.2009. 371 Ibid., p. 33-34. 128 Constituição delimita as restrições para a manifestação do pensamento, da expressão e da informação, se refere somente à vedação do anonimato, ao direito de resposta, ao direito a indenização por dano moral e material à imagem, intimidade, vida privada e honra das pessoas, ao livre exercício da profissão, atendidas as exigências legais, e ao direito de resguardo da fonte.372 Disso resulta uma importante conclusão de que existe uma relação de precedência cronológica entre o exercício da liberdade de imprensa e a possibilidade de restrição, que não pode ser a priori, pois o regime constitucional admite apenas o direito de resposta e a indenização por práticas abusivas como verdadeiros limites à imprensa.373 Atento com o efeito silenciador do discurso provocado pelos altos valores das indenizações impostas às empresas jornalísticas, o ministro afirma que a condenação indenização na órbita cível deve ser proporcional ao agravo e não pode assumir as vestes da extravagância por conta da real possibilidade de inibir a liberdade de imprensa e fechar pequenos jornais. A indenização deve ser imposta independente se o ofendido for pessoa privada ou pública, sendo que no caso de agente público a reparação civil tem que ser módica, bem como não basta fundamentar a condenação no fato de a ofensa ter sido praticada pela imprensa. No âmbito penal, por sua vez, é inadmissível a imposição legislativa de penalidade maior para jornalista, pois a Constituição Federal priorizou a plenitude da comunicação.374 Tomando como premissa as teses expostas na ADPF 130/DF e analisadas nas seções precedentes de que a liberdade de expressão e de imprensa são sobredireitos e a última possui um “núcleo duro” de matérias a salvo da intervenção legislativa, afirma peremptoriamente que: Essa interdição ao poder legislativo do Estado significa, então, que nem mesmo o Direito-lei tem a força de interferir na oportunidade/duração de exercício, tanto quanto no cerne material da liberdade de informação jornalística (conteúdo/extensão). Noutro dizer, liberdade que têm suas coordenadas temporais e materiais exclusivamente ao dispor do seu individualizado titular em cada caso concreto. Assumindo ele, óbvio, as consequências civis e penais que são próprias das pessoas ou agentes comuns. Além de não poder se opor a eventual direito de resposta. Direito que se manifesta como ação de replicar, ora para o efeito de simples retificação da matéria publicada, ora para o fim de centrado contradiscurso por parte daquele que se vê ofendido em sua subjetividade, ou, então, 372 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 44. DJU 06.11.2009. 373 Ibid., p. 46-47. 374 Ibid., p. 48-50. 129 insultuosamente desqualificado enquanto pensador, cientista, criador, ou simples observador da cena existencial. [...] Do que aflora a nítida compreensão de que os bens jurídicos em confronto são daqueles que, em parte, se caracterizam por uma recíproca excludência no tempo. A opção que se apresentou ao Poder Constituinte de 1987/1988 foi do tipo radical, no sentido de que não era possível, no tema, servir ao mesmo tempo a dois senhores. Donde a precedência que se conferiu ao pensamento e à expressão, resolvendo-se tudo o mais em direito de resposta, ações de indenização e desencadeamento da chamada persecutio criminis, quando for o caso.375 O ministro Carlos Britto sumariza suas ideias da seguinte maneira: É hora de uma primeira conclusão deste voto e ela reside na proposição de que a Constituição brasileira se posiciona diante de bens jurídicos de personalidade para, de imediato, cravar uma primazia ou precedência: a das liberdades de pensamento e de expressão lato sensu (que ainda abarca todas as modalidades de criação e de acesso à informação, esta última em sua tríplice compostura, conforme reiteradamente explicitado). Liberdades que não podem arredar pé ou sofrer antecipado controle nem mesmo por força do Direito-lei, compreensivo este das próprias emendas à Constituição, frise-se. Mais ainda, liberdades reformadamente protegidas se exercitadas como atividade profissional ou habitualmente jornalística e como atuação de qualquer dos órgãos de comunicação social ou de Imprensa. Isto de modo conciliado: I - contemporaneamente, com a proibição do anonimato, o sigilo da fonte e o livre exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão; II - a posteriori, com o direito de resposta e a reparação pecuniária por eventuais danos à honra e à imagem de terceiros. Sem prejuízo do uso de ação penal também ocasionalmente cabível, nunca, porém, em situação de rigor mais forte do que o prevalecente para os indivíduos em geral.376 Considerando que o único regime constitucionalmente admissível para o momento da restrição é posterior à divulgação da informação e sendo este tema pertencente ao “núcleo duro” da liberdade de imprensa, concluiu o ministro Carlos Britto que uma lei de imprensa que dispusesse sobre o assunto seria ilegítima. A parte dispositiva do voto do ministro Carlos Britto foi aceita pela maioria da Corte, com exceção do ministro Marco Aurélio, que julgou a ação improcedente, consoante já sublinhado. Sucede que a argumentação utilizada pelo relator, especialmente o conceito de “núcleo duro” e limitação a posteriori da liberdade de imprensa, não recebeu apoio dos demais integrantes do Supremo Tribunal Federal. 375 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 58-59. DJU 06.11.2009. 376 Ibid., p. 58 (grifos do autor). 130 Com efeito, a maioria do Tribunal admitiu a possibilidade de edição de lei para regular itens específicos do tema da liberdade de imprensa, tais como direito de resposta, indenização civil e penal para proteger a honra, vida privada e intimidade, e restrição da atividade da empresa para compelir a uma pluralização da cobertura jornalística com o intuito de trazer para o debate público diferentes pontos de vista de assunto de interesse coletivo. Nessa toada, o ministro Gilmar Mendes defende a possibilidade da regulação legislativa na matéria diante do caráter objetivo-institucional (modelo alemão)377 da liberdade de imprensa. Para ele, o direito de resposta e a proteção dos direitos da personalidade são valores constitucionais que reclamam mediação legal. Há, pois, na visão do ministro, uma reserva legal qualificada para restringir a liberdade de expressão autorizada pela Constituição Federal e que permite a restrição prévia caso a veiculação possa acarretar violação ao direito da personalidade. O desacordo entre os fundamentos dos votos dos ministros que compuseram a maioria foi fato marcante no julgamento da ADPF 130/DF. Isso porque a ementa do caso não refletiu de maneira fiel a razão determinante da decisão do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, é possível ler na ementa do julgado378 afirmações que não fizeram parte da fundamentação da maioria do Tribunal, mas apenas do voto do relator. Constou na ementa da arguição, por exemplo, a afirmação de que as liberdades de manifestação do pensamento, de informação e de expressão artística, científica, intelectual e comunicacional são bens superiores aos demais direitos constitucionais e a ponderação de bens foi realizada previamente pela Constituição Federal, a qual estatuiu dois blocos de constitucionalidade, o da imprensa e o da personalidade. Sucede que, conforme visto acima, a consideração sobre a prevalência da liberdade de expressão, a desnecessidade da ponderação e a existência de dois blocos de direitos constitucionais, partiu única e exclusivamente do ministro relator, Carlos Britto, não tendo tido aderência de nenhum integrante do Tribunal. Mesmo o ministro Eros Grau, que pareceu seguir integralmente o relator, em outros casos, como na Rcl 9428/DF, emite opinião contrária ao do ministro Carlos Britto. 377 378 Ver 3.3. Ver ementa no anexo G. 131 Outro exemplo de desacerto entre os votos e o texto da ementa é assertiva de que a limitação imposta pelo artigo 220 da Constituição Federal versa apenas sobre a vedação do anonimato, do direito de resposta, direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional. Ademais, não faz parte da opinião dominante da Corte a afirmação de que há uma lógica constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência dos blocos de dispositivos constitucionais que assegura o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a “livre” e “plena” manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana. Como se não bastasse, o item 10.1 da ementa da ADPF 130/DF menciona que o Tribunal entendeu constitucionalmente inadmissível a confecção de uma nova lei de imprensa que regulamente o “núcleo duro” da liberdade de imprensa, por este ser irregulamentável. Ou seja, pela ementa seria possível concluir que no julgamento da ADPF 130/DF o Supremo Tribunal Federal decidiu, entre outras coisas, que as liberdades de expressão e de imprensa são direitos superiores por constituírem bens da personalidade humana, que não cabe ao Estado punir civil e/ou criminalmente o emissor de uma opinião, independentemente de seu conteúdo, e que a dinâmica de restrição da liberdade de imprensa abraça a teoria da restrição prévia, que inadmite interdição de notícia veiculada pelos órgãos de comunicação social. O Plenário do Tribunal será chamado a se manifestar sobre a gritante incoerência havida entre a ementa e o teor dos votos da maioria dos ministros na ADPF 130/DF. E isso se deu na Rcl 9428/DF, na qual o tema do momento da restrição da liberdade de imprensa dominou as discussões no Plenário. No caso foi interposta Reclamação Constitucional em face de uma decisão liminar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDF) que proibiu o jornal “O Estado de S. Paulo” de publicar matérias sobre a 132 existência de uma investigação que apurava o cometimento de crimes envolvendo, dentre outras pessoas, o empresário e filho de ex-presidente da República, Sr. Fernando Sarney. Apesar de a Rcl 9428/DF não ter sido conhecida pela maioria dos membros por deficiência de requisito processual, é certo que os ministros adentraram na análise do mérito e fizeram importantes considerações a respeito da ratio decidendi adotada na ADPF 130/DF. A discussão sobre os motivos determinantes no julgamento da ADPF 130/DF veio à tona porque a causa de pedir da Reclamação era a preservação da autoridade da decisão da Corte tomada na arguição, a qual, segundo o autor, teria fixado que é inconstitucional a interdição prévia administrativa ou judicial da publicação de matérias jornalísticas. O relator da Rcl 9428/DF, ministro Cezar Peluso, para além de considerações de ordem processual de não conhecimento da Reclamação, aduziu que somente haveria desrespeito à autoridade do Tribunal caso a decisão do TJDF tivesse feito referência aos dispositivos da Lei de Imprensa não recepcionada. Fato extremamente interessante e que chama atenção no caso é que o ministro Cezar Peluso comenta que os fundamentos determinantes da ADPF 130/DF não são idênticos aos discutidos na Rcl 9428/DF, esses ligados a possibilidade de revelação de informações colhidas por escuta telefônica em processo atingido pelo segredo de justiça, mas sim meras opiniões pessoais dos ministros que não revelam unidade harmônica da Corte. O ministro relator acrescenta que a teoria dos motivos determinantes utilizada pelo Supremo Tribunal Federal é heterodoxa, resultando na ausência de uma posição unívoca sobre qualquer tema no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. É que aqui, diferentemente do que sucede em outros sistemas constitucionais, não há, de regra, tácita e concordância necessária entre os argumentos adotados pelos Ministros, que, em essência, quando acordes, assentimos aos termos do capítulo decisório ou parte dispositiva da sentença, mas já nem sempre sobre os fundamentos que lhe subjazem. Não raro, e é coisa notória, colhem-se, ainda em casos de unanimidade quanto à decisão em si, públicas e irredutíveis divergências entre os fundamentos dos votos que a compõem, os quais não refletem, nem podem refletir, sobretudo para fins de caracterização de paradigmas de controle, a verdadeira opinion of the Court.379 379 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9428 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Cezar Peluso. p. 197. DJU 25.06.2010. 133 O julgamento da Rcl 9428/DF se revestiu de verdadeira explicitação da real fundamentação tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130/DF. Nesse contexto, o ministro Gilmar Mendes reafirmou sua posição exposta na ADPF 130/DF de que o Poder Judiciário pode impedir a publicação prévia de notícia, caso estejam presentes hipóteses de violações de direitos da personalidade380, com a ressalva de que, no caso RE 511.961/SP, aduziu que o abuso não pode ser evitado ou controlado por qualquer tipo de medida estatal de índole preventiva, sujeitando-se a responsabilização civil e penal.381 A ministra Carmen Lúcia e o ministro Ricardo Lewandowski, na esteira do que enfatizado pelo ministro Carlos Britto, aduzem que a ADPF 130/DF fixou o entendimento segundo o qual é inconstitucional o impedimento da divulgação da notícia pelo Judiciário382. O ministro Celso de Mello votou de acordo com o ministro Carlos Britto. Disse que a imprensa é livre para criticar e nesse ofício está isenta das limitações dos direitos da personalidade. Asseverou que o Estado não possui poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social. Por conta disso, a autoridade judiciária não pode prescrever o que será ortodoxo em política ou em outras matérias que envolvam temas de natureza filosófica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrições aos meios de divulgação do pensamento. O ministro é enfático ao afirmar que o poder geral de cautela dos juízes transformou-se em inadmissível instrumento de censura estatal, com grave comprometimento da liberdade de expressão. Para ele, o poder geral de cautela é, hoje, o novo nome da censura.383 A importante questão do momento da restrição da liberdade de expressão começou a ficar mais nítida com a apreciação da ADI 4451-MC/DF, referente a 380 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9428 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Cezar Peluso. p. 232. DJU 25.06.2010. 381 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min. Gilmar Mendes. p. 766. DJU 17.06.2009. 382 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9428 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Cezar Peluso. p. 240 e 242. DJU 25.06.2010. 383 Ibid., p. 272. 134 constitucionalidade de lei que proibiu a veiculação de sátiras jornalísticas a políticos durante o processo eleitoral. O relator do caso, ministro Carlos Britto fez uma referência à ligação existente entre a liberdade de imprensa e a democracia. Diz que não cabe à lei ordinária restringir previamente o conteúdo da manifestação jornalística, estando, por isso, o profissional sujeito a responsabilização somente a posteriori ou restringido pelo direito de resposta, pois, caso contrário, seria censura prévia.384 Em seguida, a ministra Carmen Lúcia e o ministro Cezar Peluso não aderiram aos fundamentos de Carlos Britto, porque entenderam que somente a responsabilização posterior poderia afrontar o princípio da inafastabilidade da jurisdição, já que ameaça de lesão aos direitos da personalidade ficariam sem resposta judicial, aderindo à posição anterior do ministro Gilmar Mendes. No entanto, comungaram da parte dispositiva do voto do ministro Carlos Britto e referendaram a cautelar. Já o ministro DiasToffoli votou pela primeira vez sobre o momento da restrição à liberdade de expressão, pois quando da apreciação da ADPF 130/DF e da Rcl 9428/DF, não ocupava a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal. Apesar de o ministro ter referendado a cautelar e permitido a sátira, fez uma ligeira confusão quanto aos fundamentos adotados na ADPF130/DF, posto que o ministro afirmou que a Corte havia estabelecido o direito à liberdade de expressão era direito absoluto, posição adotada somente pelo ministro Carlos Britto e que, no entanto, constou na ementa. Por fim, no bojo do julgamento da ADPF 187/DF e da ADI 4274/DF, os ministros Celso de Mello, Carlos Britto e Marco Aurélio adotaram a posição de que no Estado Democrático de Direito a restrição prévia ao pensamento assemelha-se à censura, seja a ordem emitida por autoridade administrativa ou judicial. A conclusão que se permite extrair, sem muita segurança diante das inconsistências nos fundamentos dos votos na ADPF 130/DF, e, também, em razão de o único caso que versou sobre a temática da dinâmica da restrição à liberdade de expressão não foi admitido por falha processual, é que a maioria dos integrantes do Tribunal comungam da doutrina da restrição prévia, inadmitindo interdição a priori da difusão da palavra ou escrito. 384 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 07. DJU 24.08.2012. 135 4.3 O modelo predominante de juiz no Supremo Tribunal Federal A análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal permite verificar que, apesar de ter havido prevalência do uso de princípios para solução da controvérsia, a Corte é avessa à padronização dos fundamentos jurídicos de suas decisões. Foram raros os casos decididos pela aplicação de regras jurídicas por meio do processo formal lógico-dedutivo. Mesmo naquelas situações em que a subsunção bastava para solucionar o caso concreto, como, por exemplo, nos julgados de natureza criminal, em determinado momento da argumentação os ministros enxergaram um estado de colisão de princípios que reclamou outra modalidade de argumentação. É possível asseverar que o Supremo Tribunal Federal agiu preponderantemente nos moldes do juiz Hidra. Decidiu a quase totalidade dos casos apreciados mediante o uso da retórica principiológica, incorrendo, porém, em graves imprecisões ao não apresentar uma metodologia coerente no trato do princípio da liberdade expressão. Em várias passagens foi possível constatar a utilização aleatória da técnica da ponderação de bens e do princípio da proporcionalidade, em conjunto com a teoria interna da restrição dos direitos fundamentais. O roteiro segue o mesmo caminho. Determinado ministro argumentou que a liberdade de expressão possui seus limites traçados previamente pela Constituição Federal. Não obstante, aplicava, em seguida, o princípio da proporcionalidade, sem qualquer menção aos três subprincípios, para concluir que a conduta verificada no caso não se enquadrava nas hipóteses de proteção constitucional. A aproximação entre a teoria interna e o princípio da proporcionalidade como método de decisão não é adequada porque a proporcionalidade pressupõe o estado de colisão de direitos fundamentais que apresentam suporte fático amplo, permitindo a aplicação dos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. 136 A teoria interna, no entanto, tem como recursos argumentativos as concepções dos limites imanentes e a teoria institucional dos direitos fundamentais que partem de pressupostos contrários ao exigido pela proporcionalidade. A teoria interna exclui de antemão fato, ato, conduta e posição do âmbito de proteção do direito fundamental, pois para ela não existe o fenômeno da colisão de direitos, mas somente um direito com conteúdo predefinido aguardando a revelação do intérprete. Sendo assim, o uso do princípio da proporcionalidade não é recomendável nesses casos diante do fato de ser impossível controlar os critérios utilizados pelo julgador para retirar determinadas condutas do raio de aplicação da ponderação, dando azo a dissimulações e arbitrariedades. Situação grave foi encontrada nos votos dos ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio no “caso Ellwanger”. De acordo com as fundamentações apresentadas, ambos partiram da hipótese de colisão entre o direito fundamental à liberdade de expressão e os direitos da personalidade, em particular a dignidade da pessoa humana. Para os ministros, o conflito reclama solução por meio do princípio da proporcionalidade. No entanto, após submeterem a intervenção às três etapas, chegaram a resultado diametralmente oposto, o ministro Gilmar Mendes não concedeu a ordem e o ministro Marco Aurélio trancou a ação penal. Essa situação coloca em xeque a solidez das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que não seria logicamente possível dois ministros seguirem o mesmo percurso e chegarem a lugares diversos. A falta de critério metodológico compromete seriamente a previsibilidade das decisões e afeta a segura jurídica. De outro lado, alguns ministros utilizaram o artifício de considerar determinado direito fundamental como absoluto, como se tal prática pudesse conferir maior força persuasiva aos seus argumentos. A esse expediente recorreram o ministro Carlos Britto com as liberdades de expressão e de imprensa em mais de uma oportunidade, em especial na ADPF 130/DF, e, de forma disseminada, os ministros que votaram pela não concessão da ordem de habeas corpus no HC 82.424/RS (“caso Ellwanger”), sob o fundamento de que a dignidade da pessoa humana prevalece incondicionalmente e desfruta da posição de um princípio metajurídico insuscetível de restrição. 137 Nas oportunidades em que um ministro tentou uma argumentação diferente, evitando o uso da ponderação e se ancorando em outra racionalidade, como pretende o juiz Iolau, esbarrou na argumentação da precedência principiológica. Cite-se como exemplo o ministro Carlos Britto na ADPF 130/DF, que elevou as liberdades de expressão e de imprensa ao patamar de sobredireitos com ascendência axiológica no ordenamento constitucional. O recurso a absolutização do direito vai de encontro a postura do juiz Iolau, não auxiliando na redução do “efeito surpresa” da decisão e contribuindo, em última análise, para a expansão imperialista de um subsistema sobre os outros. Outras vezes, também, deparou-se com situações de ministros que mudaram de posição sem a explicitação dos motivos que levaram a isso. Pode ser citado o caso do ministro Marco Aurélio, que concedeu a ordem no HC 82.424/RS privilegiando a liberdade de expressão, porém, diante de caso semelhante no HC 109.676/RJ, simplesmente se omitiu e contentou-se em aderir, sem maiores justificativas, ao voto condenatório do relator. O caso do ministro Celso de Mello também pode ser arrolado como exemplo de inconstância argumentativa. Se de um lado é enfático em afirmar que as minorias podem desfrutar do direito à liberdade de expressão, sendo irrelevante a resistência da coletividade ao exercício desse direito, ainda que as opiniões sejam desagradáveis, chocantes e impopulares (ADPF 130/DF, Rcl 9428/DF e AI 675.276 AgR/RJ), de outro criminaliza a conduta de mera publicação de livro com base exclusivamente no conteúdo das ideias veiculadas (HC 82.424/RS). Situação emblemática de incoerência das decisões do Supremo Tribunal Federal ocorreu na ADPF 130/DF, em que a ementa do caso não reflete a opinião majoritária do Tribunal, mas sim a postura individual do relator. E como se não bastasse essa idiossincrasia, os integrantes da Corte, ao perceberem o ocorrido por ocasião da apreciação da Rcl 9428/DF, em especial o relator do caso, ministro Cezar Peluso, não tomaram providência para corrigir o erro, limitando-se a afirmar que no sistema constitucional brasileiro vigora uma heterodoxa teoria dos motivos determinantes na qual a ementa do acórdão apenas reflete a opinião pessoal do relator e não a do Tribunal. 138 Essa situação é tão grave que provocou um incomum equívoco de um dos ministros do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. No voto proferido na ADI 4451MC/DF, o ministro argumentou que a Corte havia fixado na ADPF 130/DF a premissa de que a liberdade de imprensa é um direito absoluto, fato que, conforme visto anteriormente, não é verdadeiro, pois não houve aderência por parte dos demais integrantes, embora conste tal assertiva na ementa do acórdão. Em suma, o manejo indiscriminado da técnica da ponderação, muitas vezes partindo de premissas teóricas equivocadas como a teoria interna, e uso metodologicamente equivocado do principio da proporcionalidade, somados a tendência verificada de conferir primazia a determinado direito fundamental como reforço argumentativo, assim como a mudança de posição de ministros em diferentes julgados, permite concluir que o modelo adotado pelo Supremo Tribunal Federal é de juiz Hidra, incoerente e pouco responsável com a previsibilidade de suas manifestações. 139 Conclusão A pesquisa procurou investigar a argumentação dispensada pelo Supremo Tribunal Federal quando em jogo o princípio fundamental da liberdade de expressão. Fixou-se o marco temporal a data de julgamento do histórico “caso Elwanger”, em setembro de 2003, até o limite de 31 de dezembro de 2013. Os resultados da pesquisa foram confrontados com o modelo de juiz teorizado por Marcelo Neves. Partiu-se da hipótese de trabalho de que o Supremo Tribunal Federal possui uma jurisprudência vacilante sobre o tema, não empregando argumentos técnicos seguros para conferir a necessária previsibilidade às suas decisões. Para atingir o objetivo proposto foi realizada uma análise da mudança do fenômeno jurídico ao longo das últimas décadas que elevou a argumentação jurídica ao posto de destaque na tarefa de conferir legitimidade às decisões judiciais. O pano de fundo utilizado foi a mudança da organização político-estatal na qual a proeminência era do Poder Legislativo (Estado Legislativo) e passou a ser exercida pelo Poder Judiciário (Estado Constitucional), em decorrência da positivação de direitos e garantias fundamentais no texto rígido da Constituição Federal. A segunda seção do trabalho foi destinada a apresentar os conceitos de regras e princípios de Marcelo Neves e a relação existente entre eles. Após, arrolou-se as principais características das figuras dos juízes Hidra, Hércules e Iolau. A seção seguinte teorizou acerca das razões pelas quais a doutrina entende que a liberdade de expressão é um direito fundamental, apresentando as justificativas instrumental e constitutiva. As teorias sobre a possibilidade de restrição não foram negligenciadas, optando-se por fracionar o tema nos tópicos das teorias interna e externa, o papel desempenhado pelo Estado na conformação da liberdade de expressão e a dinâmica de funcionamento da limitação do direito fundamental em questão, apresentando a doutrina das restrições prévias e da responsabilização ex post facto. 140 O aporte teórico teve como missão fornecer subsídios para a análise do vasto material jurisprudencial obtido no Supremo Tribunal Federal. Com o material em mãos, procurou-se identificar em cada um dos julgados a técnica argumentativa utilizada pelos ministros e pelo Tribunal na apreciação do tema da liberdade de expressão a fim de concluir se havia um método próprio de decisão da Corte e, em caso positivo, se o modelo de juiz de Marcelo Neves poderia ser aplicado. Questões recorrentes do Tribunal foram levantadas, todas espelhadas na parte teórica, quais sejam: a teoria da restrição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, a interferência no conteúdo da expressão e o modo de funcionamento da limitação do direito fundamental. Conclui-se que o Supremo Tribunal Federal adota preferentemente a teoria interna da restrição dos direitos fundamentais, mesmo que em certos casos isso se dê de forma implícita, e com o uso conjunto com o principio da proporcionalidade. Foi detectado, também, no âmbito da restrição do conteúdo da mensagem, que a Corte tem uma leve tendência a seguir o que neste trabalho foi chamado de “modelo europeu”, que aceita como legítima a responsabilização do emissor da palavra em razão do conteúdo divulgado. No tocante à dinâmica da restrição à liberdade de expressão, constatou-se que o assunto relativo à interdição prévia da publicação de matéria jornalística foi discutido apenas na Rcl 9428/DF, que, embora o mérito não tenha sido apreciado por falha processual, revelou a posição de alguns ministros no sentido de abonarem a doutrina da restrição prévia, não obstante, frise-se, não ser possível afirmar com segurança. As inúmeras inconsistências e desvios metodológicos na argumentação dos ministros trouxeram como conclusão que o Supremo Tribunal Federal adota o modelo teórico de juiz Hidra, afeito a recursos argumentativos de natureza principiológica e sem se preocupar com a previsibilidade e solidez de suas decisões. Essa afirmação vem corroborada é corroborada de forma mais vigorosa a partir da verificação da discrepância existente entre o teor da ementa da ADPF 130/DF e os fundamentos adotados pela maioria na decisão, revelando que o procedimento adotado para os pronunciamentos pecam pela obscuridade e falta de diálogo intersubjetivo, prejudicando uma 141 análise mais consistente na opinião da Corte institucionalmente considerada, e não apenas de trechos isolados dos votos dos ministros. 142 Referências ABRAMO, Perseu. Pesquisa em ciências sociais. In: HIRANO, Sedi (Org.). Pesquisa social: projeto e planejamento. São Paulo: T.A Queiroz, 1979, p. 21-88. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ALEXANDER, Larry. Is there a right of freedom of expression? New York: Cambridge University Press, 2005. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 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Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídicoconstitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 149 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, indeferir o habeas-corpus. Brasília, 17 de setembro de 2003. MAURÍCIO CORREA – PRESIDENTE E RELATOR PARA O ACÓRDÃO 150 ANEXO B – RECURSO EXTRAORDINÁRIO 348.827 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. CARLOS VELLOSO RECORRENTE: EDITORA O DIA S/A ADVOGADOS: JOSEVAL SIRQUEIRA E OUTROS ADVOGADO: WALMYR MATTOS RECORRIDO: CARLOS ALBERTO DE OLIVEIRA ADVOGADOS: FÁBIO AUGUSTO DE SOUZA BORGES E OUTROS EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. DANO MORAL: OFENSA PRATICADA PELA IMPRENSA. DECADENCIA: LEI 5.250, de 09.02.67 – Lei de Imprensa – art. 56: NÃO RECEPÇÃO PELA CF/88, art. 5º, V e X. I – O art. 56 da Lei 5.250 – Lei de Imprensa – não foi recebido pela Constituição de 1988, art. 5º, V e X . II – R.E. conhecido e improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer o recurso e negar-lhe provimento. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello. Brasília, 1º de junho de 2014. CARLOS VELLOSO – PRESIDENTE E RELATOR 151 ANEXO C – HABEAS CORPUS 83. 996-7 RIO DE JANEIRO RELATOR ORIGINÁRIO: MIN. MOREIRA ALVES RELATOR PARA O ACÓRDÃO: MIN. GILMAR MENDES PACIENTE (S): GERALD THOMAS SIEVERS IMPETRANTE (S): PAULO FREITAS RIBEIRO COATOR (A/S) (ES): TURMA RECURSAL DO RIO DE JANEIRO EMENTA: Habeas corpus. Ato obsceno (art. 233 do Código Penal). 3. Simulação de masturbação e exibição das nádegas, após o término da peça teatral, em reação a vaias do público. 3. Discussão sobre a caracterização da ofensa ao pudor público. Não se pode olvidar o contexto em que se verificou o ato incriminado. O exame objetivo do caso concreto demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada e deseducada. 4. A sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal. 5. Empate na decisão. Deferimento da ordem para trancara a ação penal. Ressalva dos votos dos Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que defendiam que a questão não pode ser resolvida na via estreita do habeas corpus. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do Senhor Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, deferir o pedido de habeas corpus (RISTF, art. 150, par. 3º) e determinar, em consequência, a extinção do processo penal de conhecimento, com o imediato trancamento da ação penal, em virtude de se haver registrado empate na votação. Brasília, 17 de agosto de 2004. MINISTRO GILMAR MENDES – REDATOR P/ ACÓRDÃO 152 ANEXO D – INQUÉRITO 2154-7 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO AUTOR (A/S)(ES): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL INDICIADO (A/S): JORGE DOS REIS PINHEIRO PASTOR OU PASTOR JORGE ADVOGADO (A/S): ERIK FRANKLIN BEZERRA E OUTROS DIFAMAÇAO – TIPICIDADE. A tipicidade do crime contra a honra que é a difamação há de ser definida a partir do contexto em que veiculadas as expressões, cabendo afastá-la quando se tem simples crítica à atuação de agente público, revelando-a fora das balizas próprias. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, em rejeitar a denúncia, nos termos do voto do relator. Brasília, 17 de dezembro de 2004. MARCO AURÉLIO – RELATOR 153 ANEXO E – AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.741-2 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI REQUERENTE (S): PARTIDO SOCIAL CRISTÃO – PSC ADVOGADO (A/S): VITOR NÓSSEIS REQUERENTE (S): PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT ADVOGADO (A/S): MARA HOFANS E OUTROS ADVOGADO (A/S): IAN RODRIGUES DIAS REQUERENTE (S): PARTIDO TRABALHISTA CRISTÃO – PTC ADVOGADO (A/S): GUSTAVO DO VALE ROCHA E OUTRO REQUERIDO (A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA ADVOGADO (A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO REQUERIDO (A/S): CONGRESSO NACIONAL Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 11.300/2006 (MINIREFORMA ELEITORAL). ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16). INOCORRÊNCIA. MERO APERFEIÇOAMENTO DOS PROCEDIMENTOS ELEITORAIS. INEXISTÊNCIA DE ALTERAÇÃO DO PROCESSO ELEITORAL. PROIBIÇÃO DE DIVULGAÇÃO DE PESQUISAS ELEITORAIS QUINZE DIAS ANTES DO PLEITO. INCONSTITUCIONALIDADE. GARANTIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO DIREITO À INFORMAÇÃO LIVRE E PLURAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA AÇÃO DIRETA. I - Inocorrência de rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral. II - Legislação que não introduz deformação de modo a afetar a normalidade das eleições. III - Dispositivos que não constituem fator de perturbação do pleito. IV - Inexistência de alteração motivada por propósito casuístico. V - Inaplicabilidade do postulado da anterioridade da lei eleitoral. VI - Direto à informação livre e plural como valor indissociável da idéia de democracia. VII - Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 35-A da Lei introduzido pela Lei 11.300/2006 na Lei 9.504/1997. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por decisão unânime, julgar a ação direta procedente, em parte, para declarar inconstitucional o artigo 35-A, conforme a redação que lhe deu a Lei nº 11.300, de 10 de maio d 2006, e improcedente no mais, nos termo do voto do Relator. Votou a Presidente. Ausentes justificadamente, os Senhores Ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso. Brasília, 06 de setembro de 2006. RICARDO LEWANDOWSKI – RELATOR 154 ANEXO F – INQUÉRITO 2.297-7 DISTRITO FEDERAL RELATORA: MIN. CARMEN LÚCIA QUERELANTE(S): YVES HUBLET ADVOGADO (A/S): ELENICE PEREIRA CARLILLE QUERELADO (A/S): JOSÉ ALDO REBELO FIGUEIREDO QUERELADO (A/S): RENATA MOURA EMENTA: INQUÉRITO. AÇÃO PENAL PRIVADA. QUEIXA-CRIME OFERECIDA CONTRA DEPUTADO FEDERAL E JORNALISTA. PRETENSAS OFENSAS PRATICADAS PELO PRIMEIRO QUERELADO E PUBLICADAS PELA SEGUNDA QUERELADA EM MATÉRIA JORNALÍSTICA: CRIMES DE INJÚRIA E DIFAMAÇÃO (ARTS. 21 E 22 DA LEI DE IMPRENSA). 1. As afirmações tidas como ofensivas pelo Querelante foram feitas no exercício do mandato parlamentar, por ter o Querelado se manifestado na condição de Deputado Federal e de Presidente da Câmara, não sendo possível desvincular aquelas afirmações do exercício da ampla liberdade de expressão, típica da atividade parlamentar (art. 51 da Constituição da República). 2. O art. 53 da Constituição da República dispõe que os Deputados são isentos de enquadramento penal por suas opiniões, palavras e votos, ou seja, têm imunidade material no exercício da função parlamentar. 3. Ausência de indício de animus difamandi ou injuriandi, não sendo possível desvincular a citada publicação do exercício da liberdade de expressão, própria da atividade de comunicação (art. 5º, inc. IX, da Constituição da República). 4. Não-ocorrência dos crimes imputados pelo Querelante. Queixa-crime rejeitada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Tribunal Pleno, sob a Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, à unanimidade, em rejeitar a queixa-crime, nos termos do voto da Relatora. Ausentes justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau. Brasília, 20 de setembro de 2007. CARMEN LÚCIA – RELATORA 155 ANEXO G – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 130 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO ARGTE. (S): PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT ADV. (A/S): MIRO TEIXEIRA E OUTRO (A/S) ARGDO. (A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA ADV. (A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO ARGDO. (A/S): CONGRESSO NACIONAL INTDO. (A/S): FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS PROFISSIONAIS – FENAJ ADV. (A/S): CLAUDISMAR ZUPIROLI E OUTRO (A/S) INTDO. (A/S): ASSOCIAÇAO BRASILEIRA DE IMPRENSA – ABI ADV. (A/S): THIAGO BOTTINO DO AMARAL INTDO. (A/S): ARTIGO 19 BRASIL ADV. (A/S): PANNUNZIO E OUTROS EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA “LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A “PLENA” LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E AUTÔNOMO FATOR DE 156 INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. A ADPF, fórmula processual subsidiária do controle concentrado de constitucionalidade, é via adequada à impugnação de norma préconstitucional. Situação de concreta ambiência jurisdicional timbrada por decisões conflitantes. Atendimento das condições da ação. 2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome “Da Comunicação Social” (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de “atividades” ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. 3. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como 157 eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional “observado o disposto nesta Constituição” (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da “plena liberdade de informação jornalística” (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação. 4. MECANISMO CONSTITUCIONAL DE CALIBRAÇÃO DE PRINCÍPIOS. O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma Constituição Federal: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os mencionados incisos do art. 5º). Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a “livre” e “plena” manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa. 5. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Sem embargo, a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido. Nada tendo a ver com essa equação a circunstância em si da veiculação do agravo por órgão de imprensa, porque, senão, a liberdade de informação jornalística deixaria de ser um elemento de expansão e de robustez da liberdade de pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator de contração e de esqualidez dessa liberdade. Em se tratando de agente público, ainda que injustamente ofendido em sua honra e imagem, subjaz à indenização uma imperiosa cláusula de 158 modicidade. Isto porque todo agente público está sob permanente vigília da cidadania. E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um comportamento antijurídico francamente sindicável pelos cidadãos. 6. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado “poder social da imprensa”. 7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e “real alternativa à versão oficial dos fatos” ( Deputado Federal Miro Teixeira). 8. NÚCLEO DURO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO PARCIAL DE LEGISLAR. A uma atividade que já era “livre” (incisos IV e IX do art. 5º), a Constituição Federal acrescentou o qualificativo de “plena” (§ 1º do art. 220). Liberdade plena que, repelente de qualquer censura prévia, diz respeito à essência mesma do jornalismo (o chamado “núcleo duro” da atividade). Assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu, sem o que não se tem o desembaraçado trânsito das ideias e opiniões, tanto quanto da informação e da criação. Interdição à lei quanto às matérias nuclearmente de imprensa, retratadas no tempo de início e de duração do concreto exercício da liberdade, assim como de sua extensão ou tamanho do seu conteúdo. Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o “estado de sítio” (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de 159 indenização, proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte (“quando necessário ao exercício profissional”); responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e espetáculos públicos; estabelecimento dos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (inciso II do § 3º do art. 220 da CF); independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º); participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF); composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social (art. 224 da Constituição). Regulações estatais que, sobretudo incidindo no plano das consequências ou responsabilizações, repercutem sobre as causas de ofensas pessoais para inibir o cometimento dos abusos de imprensa. Peculiar fórmula constitucional de proteção de interesses privados em face de eventuais descomedimentos da imprensa (justa preocupação do Ministro Gilmar Mendes), mas sem prejuízo da ordem de precedência a esta conferida, segundo a lógica elementar de que não é pelo temor do abuso que se vai coibir o uso. Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”. 9. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. É da lógica encampada pela nossa Constituição de 1988 a autorregulação da imprensa como mecanismo de permanente ajuste de limites da sua liberdade ao sentir-pensar da sociedade civil. Os padrões de seletividade do próprio corpo social operam como antídoto que o tempo não cessa de aprimorar contra os abusos e desvios jornalísticos. Do dever de irrestrito apego à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa. Repita-se: não é jamais pelo temor do abuso que se vai proibir o uso de uma liberdade de informação a que o próprio Texto Magno do País apôs o rótulo de “plena” (§ 1 do art. 220). 10- NÃO RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL. EM BLOCO DA LEI 5.250 PELA NOVA ORDEM 10.1. Óbice lógico à confecção de uma lei de imprensa que se orne de compleição estatutária ou orgânica. A própria Constituição, quando o quis, convocou o legislador de segundo escalão para o aporte regratório da parte restante de seus dispositivos (art. 29, art. 93 e § 5º do art. 128). São irregulamentáveis os bens de personalidade que se põem como o próprio conteúdo ou substrato da liberdade de informação jornalística, por se tratar de bens jurídicos que têm na própria interdição da prévia interferência do Estado o seu modo natural, cabal e ininterrupto de incidir. Vontade normativa que, em tema elementarmente de imprensa, surge e se exaure no próprio texto da Lei Suprema. 10.2. Incompatibilidade material insuperável entre a Lei n° 5.250/67 e a Constituição de 1988. Impossibilidade de conciliação que, sobre ser do tipo material ou de substância (vertical), contamina toda a Lei de Imprensa: a) quanto ao seu entrelace de comandos, a serviço da prestidigitadora lógica de que para cada regra geral afirmativa da liberdade é aberto um leque de exceções que praticamente tudo desfaz; b) quanto ao seu inescondível efeito prático de ir além de um simples projeto de governo para alcançar a realização de um projeto de poder, este a se eternizar no tempo e a sufocar todo pensamento crítico no País. 160 10.3 São de todo imprestáveis as tentativas de conciliação hermenêutica da Lei 5.250/67 com a Constituição, seja mediante expurgo puro e simples de destacados dispositivos da lei, seja mediante o emprego dessa refinada técnica de controle de constitucionalidade que atende pelo nome de “interpretação conforme a Constituição”. A técnica da interpretação conforme não pode artificializar ou forçar a descontaminação da parte restante do diploma legal interpretado, pena de descabido incursionamento do intérprete em legiferação por conta própria. Inapartabilidade de conteúdo, de fins e de viés semântico (linhas e entrelinhas) do texto interpretado. Caso-limite de interpretação necessariamente conglobante ou por arrastamento teleológico, a pré-excluir do intérprete/aplicador do Direito qualquer possibilidade da declaração de inconstitucionalidade apenas de determinados dispositivos da lei sindicada, mas permanecendo incólume uma parte sobejante que já não tem significado autônomo. Não se muda, a golpes de interpretação, nem a inextrincabilidade de comandos nem as finalidades da norma interpretada. Impossibilidade de se preservar, após artificiosa hermenêutica de depuração, a coerência ou o equilíbrio interno de uma lei (a Lei federal nº 5.250/67) que foi ideologicamente concebida e normativamente apetrechada para operar em bloco ou como um todo pro indiviso. 11. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. Aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal às causas decorrentes das relações de imprensa. O direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma, essa, “de eficácia plena e de aplicabilidade imediata”, conforme classificação de José Afonso da Silva. “Norma de pronta aplicação”, na linguagem de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária conjunta. 12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação, o que fazem nos termos do voto do Relator e por maioria de votos, em sessão presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Vencidos, em parte, o Ministro Joaquim Barbosa e a Ministra Ellen Gracie, que a julgavam improcedentes quanto aos artigo 1º, par. 1º; artigo 2º, caput; artigo 14; artigo 16, inciso I e artigos 20,21 e 22, todos da Lei nº 5.250, de 9.2.1967; o Ministro Gilmar Mendes (Presidente), que a julgava improcedente quanto aos artigos 29 e 36, e vencido integralmente o Ministro Marco Aurélio, que julgava improcedente a ADPF em causa. Brasília, 30 de abril de 2009. CARLOS AYRES BRITTO – RELATOR 161 ANEXO H – RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO RELATOR : MIN. GILMAR MENDES REGTE.(S) : SINDICATO DAS EMPRESAS DE RÁDIO E TELEVISÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO SERTESP ADV.(A/S) : RONDON AKIO YAMADA E OUTRO(A/S) RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA RECDO.(A/S) : UNIÃO ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO RECDO.(A/S) : FENAJ- FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS E OUTRO(A/S) ADV.(A/S) : JOÃO ROBERTO EGYDIO PIZA FONTES EMENTA: JORNALISMO. EXIGÊNCIA DE DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR, REGISTRADO PELO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE JORNALISTA. LIBERDADES DE PROFISSÃO, DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. CONSTITUIÇÃO DE 1988 (ART. 5°, IX E XIII, E ART. 220, CAPUT E § 1°). NÃO RECEPÇÃO DO ART. 4°, INCISO V, DO DECRETOLEI N° 972, DE 1969. 1. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. ART. 102, III, "A", DA CONSTITUIÇÃO. REQUISITOS PROCESSUAIS INTRÍNSECOS E EXTRÍNSECOS DE ADMISSIBILIDADE. Os recursos extraordinários foram tempestivamente interpostos e matéria constitucional que deles é objeto foi amplamente debatida nas instâncias inferiores. Recebidos nesta Corte antes do marco temporal de 3 de maio de 2007 (AI-QO n° 664.567/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence), os recursos extraordinários não se submetem ao regime da repercussão geral. 2. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOSITURA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. O Supremo Tribunal Federal possui sólida jurisprudência sobre o cabimento da ação civil pública para proteção de interesses difusos e coletivos e a respectiva legitimação do Ministério Público para utilizá-la, nos termos dos arts. 127, caput, e 129, III, da Constituição Federal. No caso, a ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público com o objetivo de proteger não apenas os interesses individuais homogêneos dos profissionais do jornalismo que atuam sem diploma, mas também os direitos fundamentais de toda a sociedade (interesses difusos) à plena liberdade de expressão e de informação. 3. CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. A não-recepção do Decreto-Lei n° 972/1969 pela Constituição de 1988 constitui a causa de pedir da ação civil pública e não o seu pedido principal, o que está plenamente de acordo com a jurisprudência desta Corte. A controvérsia constitucional, portanto, constitui apenas questão prejudicial indispensável à solução do litigio, e não seu pedido único e principal. Admissibilidade da utilização da ação civil pública como instrumento de fiscalização incidental de constitucionalidade. Precedentes do STF. 4. ÂMBITO DE PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL (ART. 5°, INCISO XIII, DA CONSTITUIÇÃO). IDENTIFICAÇÃO DAS RESTRIÇÕES E CONFORMAÇÕES LEGAIS CONSTITUCIONALMENTE PERMITIDAS. RESERVA LEGAL QUALIFICADA. PROPORCIONALIDADE. A Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5o, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na 162 formulação do art. 5o, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Representação n.° 930, Redator p/ o acórdão Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2-9-1977. A reserva legal estabelecida pelo art. 5o, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade profissional a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial. 5. JORNALISMO E LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. INTEPRETAÇÃO DO ART. 5o, INCISO XIII, EM CONJUNTO COM OS PRECEITOS DO ART. 5°, INCISOS IV, IX, XIV, E DO ART. 220 DA CONSTITUIÇÃO. O jornalismo é uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das liberdades de expressão e de informação. O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada. Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão. O jornalismo e a liberdade de expressão, portanto, são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensadas e tratadas de forma separada. Isso implica, logicamente, que a interpretação do art. 5o, inciso XIII, da Constituição, na hipótese da profissão de jornalista, se faça, impreterivelmente, em conjunto com os preceitos do art. 5o, incisos IV, IX, XIV, e do RE 511.961/SP art. 220 da Constituição, que asseguram as liberdades de expressão, de informação e de comunicação em geral. 6. DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR COMO EXIGÊNCIA PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE JORNALISTA. RESTRIÇÃO INCONSTITUCIONAL ÀS LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. As liberdades de expressão e de informação e, especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em hipóteses excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à personalidade em geral. Precedente do STF: ADPF n° 130, Rel. Min. Carlos Britto. A ordem constitucional apenas admite a definição legal das qualificações profissionais na hipótese em que sejam elas estabelecidas para proteger, efetivar e reforçar o exercício profissional das liberdades de expressão e de informação por parte dos jornalistas. Fora desse quadro, há patente inconstitucionalidade da lei. A exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1o, da Constituição. 7. PROFISSÃO DE JORNALISTA. ACESSO E EXERCÍCIO. CONTROLE ESTATAL VEDADO PELA ORDEM CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL QUANTO À CRIAÇÃO DE ORDENS OU CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5o, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5o, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O 163 exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação. Jurisprudência do STF: Representação n.° 930, Redator p/ o acórdão Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2-9-1977. 8. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. POSIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA. A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência de diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 25 de fevereiro de 2009). RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS CONHECIDOS E PROVIDOS. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, conhecer e dar provimento aos recursos extraordinários, declarando a nãorecepção do artigo 4o, inciso V, do Decreto-lei n° 972/1969, nos termos do voto do relator. Brasília, 17 de junho de 2009. MINISTRO GILMAR MENDES PRESIDENTE E RELATOR 164 ANEXO I – RECLAMAÇÃO 9.428 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO RECLTE (S): S. AO ESTADO DE S. PAULO ADV. (E/S): MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA E OUTROS RECLDO. (E/S): TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS INTDO. (A/S): FERNANDO JOSÉ MACIEIRA SARNEY ADV. (A/S): MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA E OUTRO EMENTA: LIBERDADE DE IMPRENSA. Decisão liminar. Proibição de reprodução de dados relativos ao autor de ação inibitória ajuizada contra empresa jornalística. Ato decisório fundado na expressa invocação da inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça. Contraste teórico entre liberdade de imprensa e os direitos previstos nos arts. 5º, incs. X e XII, e 220, caput, da CF. Ofensa à autoridade do acórdão proferido na ADPF nº 130, que deu por não recebida a Lei de Imprensa. Não ocorrência. Matéria não decidida na ADPF. Processo de reclamação extinto, sem julgamento de mérito. Votos vencidos. Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADPF nº 130, a decisão que, proibindo a jornal a publicação de fatos relativos ao autor de ação inibitória, se fundou, de maneira expressa, na inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro GILMAR MENDES, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em não conhecer do pedido, julgado extinto sem julgamento do mérito, contra os votos dos Senhores Ministros CARLOS BRITTO, CARMEN LÚCIA e CELSO DE MELLO. Votou o Presidente Ministro GILMAR MENDES. Não votou o Senhor Ministro MARCO AURÉLIO por ter se ausentado ocasionalmente. Ausente, licenciado, o Senhor Ministro JOAQUIM BARBOSA. Brasília, 10 de dezembro de 2009. MINISTRO CEZAR PELUSO RELATOR 165 ANEXO J – HABEAS CORPUS 95.348 PERNAMBUCO RELATOR: MIN. CESAR PELUSO PACTE. (S): JOILSON FERNANDES DE GOUVEIA IMPTE. (S): ALESSANDRO SAMARTIN DE GOUVEIA COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime militar. Incitamento e ofensas às Forças Armadas. Denúncia. Peça que omite a descrição de comportamentos típicos. Inadmissibilidade. Inépcia reconhecida. Habeas corpus concedido para trancar a ação penal. É inepta a denúncia que não imputa fato típico ao acusado, ou não demonstra a lesividade da conduta. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conceder a ordem, para trancar a ação penal. Ausente, licenciado, neste julgamento, o Senhor Ministro Celso de Mello. Brasília, 02 de fevereiro de 2010. MINISTRO CEZAR PELUSO RELATOR 166 ANEXO K – AG. REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 675.276 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO AGTE. (S): RICARDO TERRA TEIXEIRA ADV. (A/S): JOSÉ MAURO COUTO DE ASSIS FILHO AGDO. (A/S): JOSÉ CARLOS AMARAL KFOURI ADV. (A/S): MÁRCIO MARÇAL FERNANDES SOUZA E OUTROS E M E N T A: LIBERDADE DE EXPRESSÃO - DIREITO DE CRÍTICA PRERROGATIVA POLÍTICO-JURÍDICA DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL – ENTREVISTA JORNALÍSTICA NA QUAL SE VEICULA OPINIÃO EM TOM DE CRÍTICA – DENÚNCIA DE IRREGULARIDADES NO MUNDO ESPORTIVO CIRCUNSTÂNCIA QUE EXCLUI O INTUITO DE OFENDER - AS EXCLUDENTES ANÍMICAS COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO DO “ANIMUS INJURIANDI VEL DIFFAMANDI” - AUSÊNCIA DE ILICITUDE NO COMPORTAMENTO DO PROFISSIONAL DE IMPRENSA - INOCORRÊNCIA DE ABUSO DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO - CARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DO REGULAR EXERCÍCIO DA LIBERDADE CONSTITUCIONAL DE EXPRESSÃO - A QUESTÃO DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO (E DO DIREITO DE CRÍTICA NELA FUNDADO) EM FACE DE FIGURAS PÚBLICAS OU NOTÓRIAS – JURISPRUDÊNCIA – DOUTRINA – SUBSISTÊNCIA, NO CASO, DA DECLARAÇÃO DE IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO INDENIZATÓRIA – “AGRAVO REGIMENTAL” IMPROVIDO. - A liberdade de expressão – que não traduz concessão do Estado, mas, ao contrário, representa direito fundamental dos cidadãos – é condição inerente e indispensável à caracterização e à preservação de sociedades livres, organizadas sob a égide dos princípios estruturadores do regime democrático. O Poder Judiciário, por isso mesmo, não pode ser utilizado como instrumento de injusta restrição a essa importantíssima franquia individual cuja legitimidade resulta da própria declaração constitucional de direitos. - A liberdade de manifestação do pensamento traduz prerrogativa políticojurídica que representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade, por tal razão, inclusive a autoridade judiciária, pode prescrever (ou impor), segundo suas próprias convicções, o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento. - O exercício regular do direito de crítica, que configura direta emanação da liberdade constitucional de manifestação do pensamento, ainda que exteriorizado em entrevista jornalística, não importando o conteúdo ácido das opiniões nela externadas, não se reduz à dimensão do abuso da liberdade de expressão, qualificando-se, ao contrário, como verdadeira excludente anímica, que atua, em tal contexto, como fator de descaracterização do intuito doloso de ofender. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência comparada (Corte Européia de Direitos Humanos e Tribunal Constitucional Espanhol). ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello (RISTF, 167 art. 37, II), na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, e, justificadamente, o Senhor Ministro Eros Grau. Brasília, 22 de junho de 2010. MINISTRO CELSO DE MELLO RELATOR 168 ANEXO L – REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.451 DISTRITO FEDERAL RELATOR :MIN. AYRES BRITTO REQTE.(S) :ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO - ABERT ADV.(A/S) :GUSTAVO BINENBOJM E OUTRO(A/S) REQDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA REQDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO INTDO.(A/S) :PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA - PDT EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCISOS II E III DO ART. 45 DA LEI 9.504/1997. 1. Situação de extrema urgência, demandante de providência imediata, autoriza a concessão da liminar “sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado” (§ 3º do art. 10 da Lei 9.868/1999), até mesmo pelo relator, monocraticamente, ad referendum do Plenário. 2. Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da Constituição Federal: liberdade de “manifestação do pensamento”, liberdade de “criação”, liberdade de “expressão”, liberdade de “informação”. Liberdades constitutivas de verdadeiros bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da nossa Constituição intitula de “Fundamentais”: a) “livre manifestação do pensamento” (inciso IV); b) “livre [...] expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (inciso IX); c) ”acesso a informação” (inciso XIV). 3. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a imprensa mantém com a democracia a mais entranhada relação de interdependência ou retroalimentação. A presente ordem constitucional brasileira autoriza a formulação do juízo de que o caminho mais curto entre a verdade sobre a conduta dos detentores do Poder e o conhecimento do público em geral é a liberdade de imprensa. A traduzir, então, a ideia-força de que abrir mão da liberdade de imprensa é renunciar ao conhecimento geral das coisas do Poder, seja ele político, econômico, militar ou religioso. 4. A Magna Carta Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como a mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Os jornalistas, a seu turno, como o mais desanuviado olhar sobre o nosso cotidiano existencial e os recônditos do Poder, enquanto profissionais do comentário crítico. Pensamento crítico que é parte integrante da informação plena e fidedigna. Como é parte do estilo de fazer imprensa que se convencionou chamar de humorismo (tema central destes autos). A previsível utilidade social do labor jornalístico a compensar, de muito, eventuais excessos desse ou daquele escrito, dessa ou daquela charge ou caricatura, desse ou daquele programa. 5. Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação 169 ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de “imprensa”, sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. A crítica jornalística em geral, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das coisas, conforme decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130. Decisão a que se pode agregar a ideia de que a locução “humor jornalístico” enlaça pensamento crítico, informação e criação artística. 6. A liberdade de imprensa assim abrangentemente livre não é de sofrer constrições em período eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. Tanto em período não-eleitoral, portanto, quanto em período de eleições gerais. Se podem as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, précandidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no período eleitoral. Processo eleitoral não é estado de sítio (art. 139 da CF), única fase ou momento de vida coletiva que, pela sua excepcional gravidade, a Constituição toma como fato gerador de “restrições à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei” (inciso III do art. 139). 7. O próprio texto constitucional trata de modo diferenciado a mídia escrita e a mídia sonora ou de sons e imagens. O rádio e a televisão, por constituírem serviços públicos, dependentes de “outorga” do Estado e prestados mediante a utilização de um bem público (espectro de radiofrequências), têm um dever que não se estende à mídia escrita: o dever da imparcialidade ou da equidistância perante os candidatos. Imparcialidade, porém, que não significa ausência de opinião ou de crítica jornalística. Equidistância que apenas veda às emissoras de rádio e televisão encamparem, ou então repudiarem, essa ou aquela candidatura a cargo político-eletivo. 8. Suspensão de eficácia do inciso II do art. 45 da Lei 9.504/1997 e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo, incluídos pela Lei 12.034/2009. Os dispositivos legais não se voltam, propriamente, para aquilo que o TSE vê como imperativo de imparcialidade das emissoras de rádio e televisão. Visa a coibir um estilo peculiar de fazer imprensa: aquele que se utiliza da trucagem, da montagem ou de outros recursos de áudio e vídeo como técnicas de expressão da crítica jornalística, em especial os programas humorísticos. 9. Suspensão de eficácia da expressão “ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes”, contida no inciso III do art. 45 da Lei 9.504/1997. Apenas se estará diante de uma conduta vedada quando a crítica ou matéria jornalísticas venham a descambar para a propaganda política, passando nitidamente a favorecer uma das partes na disputa eleitoral. Hipótese a ser avaliada em cada caso concreto. 10. Medida cautelar concedida para suspender a eficácia do inciso II e da parte final do inciso III, ambos do art. 45 da Lei 9.504/1997, bem como, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em referendar a liminar, o que fazem por maioria de votos, suspendendo as normas do inciso II e da segunda parte do inciso III, ambos do artigo 45, bem como, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo da Lei federal nº 9.504, de 30/9/97, contra os votos dos Senhores 170 Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que, nos termos do pedido sucessivo da inicial, deferiam a liminar, declarando a inconstitucionalidade parcial das normas impugnadas mediante interpretação conforme. Tudo em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas. Votou o Presidente. Brasília, 02 de setembro de 2010. 171 ANEXO M – AÇÃO ORIGINÁRIA 1.390 PARAÍBA RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI AUTOR (A/S) (E/S): JOSÉ MARTINHO LISBOA ADV. (A/S): IRAPUAN SOBRAL FILHO E OUTROS AUTOR (A/S) (E/S): JOSÉ TARGINO MARANHÃO ADV. (A/S): ALUÍSIO LUNDGREN CORRÊA RÉGIS E OUTROS RÉU (E/S): OS MESMOS Ação originária. Fatos incontroversos. Dispensável a instrução probatória. Liberdade de expressão limitada pelos direitos à honra, à intimidade e à imagem, cuja violação gera dano moral. Pessoas públicas. Sujeição a críticas no desempenho das funções. Limites. Fixação do dano moral. Grau de reprovabilidade da conduta. Fixação dos honorários. Art. 20, § 3º, do CPC. 1. É dispensável a audiência de instrução quando os fatos são incontroversos, uma vez que esses independem de prova (art. 334, III, do CPC). 2. Embora seja livre a manifestação do pensamento, tal direito não é absoluto. Ao contrário, encontra limites em outros direitos também essenciais para a concretização da dignidade da pessoa humana: a honra, a intimidade, a privacidade e o direito à imagem. 3. As pessoas públicas estão sujeitas a críticas no desempenho de suas funções. Todavia, essas não podem ser infundadas e devem observar determinados limites. Se as acusações destinadas são graves e não são apresentadas provas de sua veracidade, configurado está o dano moral. 4. A fixação do quantum indenizatório deve observar o grau de reprovabilidade da conduta. 5. A conduta do réu, embora reprovável, destinou-se a pessoa pública, que está sujeita a críticas relacionadas com a sua função, o que atenua o grau de reprovabilidade da conduta. 6. A extensão do dano é média, pois apesar de haver publicações das acusações feitas pelo réu, foi igualmente publicada, e com destaque (capa do jornal), matéria que inocenta o autor, o que minimizou o impacto das ofensas perante a sociedade. 7. O quantum fixado pela sentença (R$ 6.000,00) é razoável e adequado. 8. O valor dos honorários, de 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação, está em conformidade com os critérios estabelecidos pelo art. 20, § 3º, do CPC. 9. O valor dos honorários fixados na reconvenção também é adequado, representando a totalidade do valor dado à causa. 10. Agravo retido e apelações não providos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do Sr. Ministro Ayres Britto, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso de agravo retido, interposto pelo demandado, bem como às apelações propostas pelo autor e pelo réu, mantendo integralmente a sentença, nos termos do voto do Relator. Brasília, 12 de maio de 2011. MIN. DIAS TOFFOLI RELATOR 172 ANEXO N – Recurso Extraordinário 414.426 Santa Catarina RELATOR :MIN. ELLEN GRACIE RECTE.(S) :ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL – CONSELHO REGIONAL DE SANTA CATARINA ADV.(A/S) :AVANI SERAFIM DE SANTANA E OUTRO(A/S) RECDO.(A/S) :MARCO AURÉLIO DE OLIVEIRA SANTOS OUTRO(A/S) ADV.(A/S) :RAFAEL VICENTE ROGLIO DE OLIVEIRA DIREITO CONSTITUCIONAL. EXERCÍCIO PROFISSIONAL E LIBERDADE DE EXPRESSÃO. EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO EM CONSELHO PROFISSIONAL. EXCEPCIONALIDADE. ARTS. 5º, IX E XIII DA CONSTITUIÇÃO. Nem todos os ofícios e profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional. A atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso extraordinário, nos termo do voto da relatora. Brasília, 1º de agosto de 2011. 173 ANEXO O – Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 555.320 Santa Catarina RELATOR :MIN. LUIZ FUX AGTE.(S) :CONSELHO REGIONAL DA ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL DO ESTADO DE SANTA CATARINA ADV.(A/S) :AVANI SERAFIM DE SANTANA E OUTRO(A/S) AGDO.(/S) :LUCIANO STIMAMIGLIO ADV.(A/S) :LARAINE NUNES DE SOUZA Emente: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSELHO PROFISSIONAL. ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL. EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO PARA EFEITO DE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ARTÍSTICA. INCOMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. LIBERDADES CONSTITUCIONAIS DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA (ARTIGO 5º, IX, DA CF) E DE OFÍCIO OU PROFISSÃO (ARTIGO 5º, XIII, DA CF). JURISPRUDÊNCIA ASSENTADA PELO PLENÁRIO DESTA SUPREMA CORTE NO RE N. 414.426. 1. A atividade de músico não está condicionada a inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil e, consequentemente, inexige a comprovação de quitação da respectiva anuidade, sob pena de afronta ao livre exercício da profissão e à garantia da liberdade de expressão (artigo 5º, IX e XIII, da Constituição Federal). Precedentes: RE n. 414.426, Plenário, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe 12.8.11; RE n. 600.497, Relatora a Ministra Carmen Lúcia, DJe 28.09.11; RE 509.409, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe 08.09.11; RE 652.771, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 02.09.11; RE 510.126, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe 08.09.11; RE 510.527, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe 15.08.11; RE 547.888, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe 24.08.11; RE 504.425, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe 10.08.11, dentre outros. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Senhora Ministra Carmen Lúcia, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termo do voto do Relator. Brasília, 18 de outubro de 2011. 174 ANEXO P – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.274 DISTRITO FEDERAL RELATOR :MIN. AYRES BRITTO REQTE.(S) :PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO INTDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL AM. CURIAE. :ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS SOCIAIS DO USO DE PSICOATIVOS - ABESUP ADV.(A/S) :MAURO MACHADO CHAIBEN E OUTRO(A/S) EMENTA: ACÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE “INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO” DO § 2º DO ART. 33 DA LEI Nº 11.343/2006, CRIMINALIZADOR DAS CONDUTAS DE “INDUZIR, INSTIGAR OU AUXILIAR ALGUÉM AO USO INDEVIDO DE DROGA”. 1. Cabível o pedido de “interpretação conforme à Constituição” de preceito legal portador de mais de um sentido, dando-se que ao menos um deles é contrário à Constituição Federal. 2. A utilização do § 3º do art. 33 da Lei 11.343/2006 como fundamento para a proibição judicial de eventos públicos de defesa da legalização ou da descriminalização do uso de entorpecentes ofende o direito fundamental de reunião, expressamente outorgado pelo inciso XVI do art. 5º da Carta Magna. Regular exercício das liberdades constitucionais de manifestação de pensamento e expressão, em sentido lato, além do direito de acesso à informação (incisos IV, IX e XIV do art. 5º da Constituição Republicana, respectivamente). 3. Nenhuma lei, seja ela civil ou penal, pode blindar-se contra a discussão do seu próprio conteúdo. Nem mesmo a Constituição está a salvo da ampla, livre e aberta discussão dos seus defeitos e das suas virtudes, desde que sejam obedecidas as condicionantes ao direito constitucional de reunião, tal como a prévia comunicação às autoridades competentes. 4. Impossibilidade de restrição ao direito fundamental de reunião Supremo Tribunal Federal que não se contenha nas duas situações excepcionais que a própria Constituição prevê: o estado de defesa e o estado de sítio (art. 136, § 1º, inciso I, alínea “a”, e art. 139, inciso IV). 5. Ação direta julgada procedente para dar ao § 2º do art. 33 da Lei 11.343/2006 “interpretação conforme à Constituição” e dele excluir qualquer significado que enseje a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do uso de drogas ou de qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico, ou então viciado, das suas faculdades psicofísicas. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação direta para dar ao § 2º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 interpretação conforme à Constituição, para dele excluir qualquer significado que enseje a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do 175 uso de drogas ou de qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico, ou então viciado, das suas faculdades psico-físicas. Tudo nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Votou o Presidente. Impedido o Ministro Dias Toffoli. Brasília, 23 de novembro de 2011. MINISTRO AYRES BRITTO - RELATOR 176 ANEXO Q – HABEAS CORPUS 106.808 RIO GRANDE DO NORTE RELATOR :MIN. GILMAR MENDES PACTE.(S) :ANDERSON ROGERIO BORGES DOS SANTOS IMPTE.(S) :KÁTIA MARIA LOBO NUNES COATOR(A/S)(ES) :SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR Habeas corpus. 2. Crime militar. Paciente denunciado porque teria praticado o delito de incitamento (art. 155 do CPM) e de publicação ou crítica indevida (art. 166 do CPM). 3. Indeferido o pedido de extensão da ordem concedida pelo STF ao corréu no HC 95348, em razão de as situações fáticas não se confundirem. 4. Em que pese à extensa peça acusatória, com vários denunciados, no que diz respeito ao paciente, houve individualização da conduta acoimada criminosa. 4. As condutas narradas na denúncia não se subsumem ao tipo penal do art. 155 do COM porque em nenhum momento houve incitação ao descumprimento de ordem de superior hierárquico. 5. As condutas e episódios descritos na inicial acusatória também não se subsumem ao art. 166 do CPM, que tipifica o delito de publicação ou crítica indevida. 6. O direito à plena liberdade de associação (art. 5º, XVII, da CF) está intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteção da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da liberdade de expressão. 7. Uma associação que deva pedir licença para criticar situações de arbitrariedades terá sua atuação completamente esvaziada. 8. O juízo de tipicidade não se esgota na análise de adequação ao tipo penal, pois exige a averiguação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente. A Constituição Federal é peça fundamental à análise da adequação típica. 8. Ordem concedida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conceder a ordem, nos termos do voto do Relator. Brasília, 9 de abril de 2013. Ministro GILMAR MENDES Relator Documento assinado digitalmente 177 ANEXO R - HABEAS CORPUS 109.676 RIO DE JANEIRO RELATOR :MIN. LUIZ FUX PACTE.(S) :VITAL DA CRUZ MENDES CURTO IMPTE.(S) :EDUARDO BANKS DOS SANTOS PINHEIRO COATOR(A/S)(ES) :SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. DIREITO CONSTITUCIONAL. CRIME DE INJÚRIA QUALIFICADA. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA PENA PREVISTA NO TIPO, POR OFENSA AO PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE, E PRETENSÃO DE VER ESTABELECIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOVO PARÂMETRO PARA A SANÇÃO. CRIAÇÃO DE TERCEIRA LEI. IMPOSSIBILIDADE. SUPOSTA ATIPICIDADE DA CONDUTA E PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO PARA INJÚRIA SIMPLES. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA NA VIA DO WRIT. IMPOSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. A Lei nº 9.459/97 acrescentou o § 3º ao artigo 140 do Código Penal, dispondo sobre o tipo qualificado de injúria, que tem como escopo a proteção do indivíduo contra a exposição a ofensas ou humilhações, pois não seria possível acolher a liberdade que fira direito alheio, mormente a honra subjetiva. 2. O legislador ordinário atentou para a necessidade de assegurar a prevalência dos princípios da igualdade, da inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas para, considerados os limites da liberdade de expressão, coibir qualquer manifestação preconceituosa e discriminatória que atinja valores da sociedade brasileira, como o da harmonia interracial, com repúdio ao discurso de ódio. 3. O writ veicula a arguição de inconstitucionalidade do § 3º do artigo 140 do Código Penal, que disciplina o crime de injúria qualificada, sob o argumento de que a sanção penal nele prevista – pena de um a três anos de reclusão – afronta o princípio da proporcionalidade, assentando-se a sugestão de ser estabelecida para o tipo sanção penal não superior a um ano de reclusão, considerando-se a distinção entre injúria qualificada e a prática de racismo a que se refere o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal. 3.1 – O impetrante alega inconstitucional a criminalização da conduta, porém sem demonstrar a inadequação ou a excessiva proibição do direito de liberdade de expressão e manifestação de pensamento em face da garantia de proteção à honra e de repulsa à prática de atos discriminatórios. 4. A pretensão de ser alterada por meio de provimento desta Corte a sanção penal prevista em lei para o tipo de injúria qualificada implicaria a formação de uma terceira lei, o que, via de regra, é vedado ao Judiciário. Precedentes: RE nº 196.590/AL, relator Ministro Moreira Alves, DJ de 14.11.96; ADI 1822/DF, relator Ministro Moreira Alves, DJ de 10.12.99; AI (Agr) 360.461/MG, relator Ministro Celso de Mello, DJe de 06.12.2005; RE (Agr) 493.234/RS, relator Ricardo Lewandowski, julgado em 27 de novembro de 2007. 5. O pleito de reconhecimento da atipicidade ou de desclassificação da conduta, do tipo de injúria qualificada para o de injúria simples, igualmente não pode ser acolhido, por implicar revolvimento de matéria fático-probatória, não admissível na via do writ. 178 6. In casu, o paciente foi condenado à pena de um ano e quatro meses de reclusão, substituída por uma pena restritiva de direito consistente em prestação de serviço à comunidade, e à prestação pecuniária de 16 (dezesseis) cestas básicas, de valor não inferior a R$ 100,00 (cem reais), em virtude de infração do disposto no artigo 140, § 3º, do Código Penal, a saber, injúria qualificada pelo preconceito. 7. Ordem de habeas corpus denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Luiz Fux, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em rejeitar a questão de ordem formulada pelo Senhor Ministro Marco Aurélio no sentido de submissão do feito ao Plenário, e, por unanimidade de votos, em denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 11 de junho de 2013. LUIZ FUX – Relator Documento assinado digitalmente