1
JOSE LUIZ DE ALMEIDA SIMAO
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Trabalho apresentado à Banca Examinadora da
Universidade Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Direito Político e Econômico.
Orientador: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto
SÃO PAULO
2014
2
S588s
Simão, José Luiz de Almeida
O Supremo Tribunal Federal e a liberdade de expressão. / José Luiz de
Almeida Simão. – 2014.
178 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
Orientador: Felipe Chiarello de Souza Pinto
Bibliografia: f. 142-147
1. Estado Constitucional 2. Liberdade de expressão I. Título II. Supremo
Tribunal Federal - STF
CDDir 341.2732
3
JOSE LUIZ DE ALMEIDA SIMAO
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto (orientador)
Profa. Dra. Samantha Ribeiro Meyer-Pflug (examinador externo)
Prof. Dr. Daniel Francisco Nagao Meneses (examinador interno)
4
Para Catherine e Laura, por terem-me feito menos
egoísta e mostrarem que o amor incondicional não é um
conto de fadas...
Para Flaviana, por ser melhor do que eu...
5
Agradecimentos
Soa como clichê, mas é impossível deixar de agradecer à minha família, minha esposa e
minhas duas meninas. A pesquisa acadêmica com o nível de exigência de uma dissertação de
mestrado é um trabalho individual que importa na renúncia de valiosas horas de convívio com
pessoas próximas e queridas. Espero, em breve, poder compensar cada segundo longe delas.
Mais importante, e isso deve ser creditado única e exclusivamente à Flaviana, a paciência que
teve comigo e a forma como administrou nossa vida doméstica ao longo de quase dois anos
foi determinante para que eu conseguisse concluir o trabalho, especialmente nos momentos de
crise que invariavelmente ocorrem no decorrer da pesquisa, atravessando ela, como se não
bastasse, todo o processo de gravidez da nossa caçula. Daí a epígrafe.
Aos meus pais por terem se esforçado para proporcionar aos filhos educação de qualidade que
certamente contribuiu para o resultado deste trabalho e, embora um pouco distantes, nunca
esconderam terem confiança em mim.
Ao meu orientador Prof. Dr. Felipe Chiarello reservo justas linhas de agradecimento. Além de
notável acadêmico e especialista no tema da liberdade de expressão, com histórico de
pesquisa no exterior, sempre esteve disposto a dialogar e compreender meus propósitos com
esta dissertação e, atento às armadilhas que em alguns momentos havia plantado para mim
mesmo, fez imprescindíveis sugestões sobre os rumos a serem dados na pesquisa. Meu
honesto obrigado pelo inestimável auxílio.
Também agradeço aos integrantes da Banca Examinadora, Profa. Dra. Samantha Ribeiro
Meyer-Pflug e Prof. Dr. Daniel Francisco Nagao Meneses, pelas críticas e apontamentos que
se mostraram fundamentais para a finalização do trabalho.
Por fim, devo fazer menção à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e especialmente à
Escola da Defensoria Pública – EDEPE, que custearam parte considerável dos gastos do curso
de mestrado.
6
Para aumentar seu saber, escute o que dizem os outros.
(Xenofonte, apud Bernardo Carvalho)
Mas a disposição de discordar, rejeitar e dissentir [...] é o sangue
vital a uma sociedade aberta. Precisamos de pessoas que façam
da oposição ao pensamento consagrado uma virtude. Uma
democracia do consenso permanente não dura muito como
democracia.
(Tony Judt)
7
Resumo
Trata-se de dissertação que procurou investigar a argumentação utilizada pelo Supremo
Tribunal Federal nas decisões envolvendo o princípio fundamental da liberdade de expressão
e confrontá-la com o modelo teórico de juiz proposto por Marcelo Neves. Conclui-se que o
Supremo Tribunal Federal adota a postura do juiz Hidra, com forte apelo a argumentos
principiológicos, sem coerência metodológica e comprometedores da solidez das decisões. A
pesquisa seguiu as formas quantitativas e qualitativas e fixou como marco temporal a data do
julgamento “caso Ellwanger”, em setembro de 2003, até o limite de 31 de dezembro de 2013.
Partiu-se da hipótese de trabalho de que a corte constitucional possui uma jurisprudência
vacilante sobre o tema, não empregando argumentos técnicos seguros para conferir a
necessária previsibilidade aos pronunciamentos. Para atingir o objetivo proposto foi realizada
uma análise das características dos Estados Legislativo e Constitucional, sucedida da
apresentação das características dos juízes Hidra, Hércules e Iolau. Em seguida, foram
arroladas as razões pelas quais a liberdade de expressão é entendida como direito
fundamental, bem como as teorias em voga acerca da restrição do direito em questão. A
constatação de que o Supremo Tribunal Federal se assemelha ao juiz Hidra decorreu da
análise de três fatores: a teoria prevalecente de restrição ao direito fundamental, a
constitucionalidade da restrição do conteúdo da mensagem e a dinâmica da limitação a
divulgação de matéria de interesse coletivo.
“Palavras-chave”: Estado Constitucional. Liberdade de Expressão. STF.
8
Abstract
It dissertation sought to investigate the reasoning used by the Supreme Court in decisions
involving the fundamental principle of freedom of expression and to compare it with the
theoretical model proposed by Marcelo Neves. We conclude that the Supreme Court takes the
position of the judge Hydra with strong appeal to principles arguments without compromising
methodological consistency and soundness of decisions. The research followed the
quantitative and qualitative forms and timeframe set as the trial date "Ellwanger case", in
September 2003, up to the limit of December 31, 2013. Starting point was the hypothesis that
the constitutional court has a vacillating jurisprudence on the subject, not using insurance
technical arguments to provide the necessary predictability to pronouncements. To achieve
the proposed objective analysis of the characteristics of State Legislative and Constitutional,
successful presentation of the characteristics of judges Hydra, Hercules and Iolau was
performed. Then were enrolled why freedom of expression is understood as a fundamental
right, as well as theories in vogue on the restriction of the right in question. The finding that
the Supreme Court judge resembles the Hydra was made by analysis of three factors: the
prevailing theory of restriction on a fundamental right, the constitutionality of the restriction
of message content and dynamics of limiting the disclosure of matters of collective interest.
“Keywords”: Constitutional State. Freedom of Speech. STF.
9
Sumário
Introdução..................................................................................................................11
1 O atual paradigma de Estado de Direito e o papel dos tribunais na interpretação dos
direitos fundamentais.................................................................................................18
1.1 A passagem do Estado de Direito “do império da lei” ao “império da
Constituição”.............................................................................................................18
1.2 A proeminência da argumentação como fator de legitimação das decisões
judiciais.....................................................................................................................26
2 Análise qualitativa das decisões do Supremo Tribunal Federal: o modelo teórico de
juízes de Marcelo Neves.............................................................................................31
3 A liberdade de expressão como direito fundamental................................................51
3.1 As justificativas instrumental e constitutiva da liberdade de expressão................55
3.2 A restrição da liberdade de expressão e pensamento e os direitos da
personalidade............................................................................................................67
3.3 Dois modos de encarar o papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: os
sistemas americano e europeu....................................................................................79
3.4 O modelo de funcionamento das restrições à liberdade de expressão: a doutrina das
restrições prévias e a responsabilidade ex post facto...................................................87
4 O Supremo Tribunal Federal e a argumentação na resolução de conflitos sobre a
liberdade de expressão................................................................................................95
4.1 Critérios formais da pesquisa................................................................................98
4.1.1 Os meios processuais de acesso à jurisdição constitucional................................98
4.1.2 As partes nas ações...........................................................................................99
4.1.3 A natureza da tutela jurisdicional pleiteada.....................................................100
4.1.4 Os direitos em conflito com a liberdade de expressão.......................................101
4.1.5 A presença de amicus curiae.............................................................................102
4.2 Critérios materiais da pesquisa...........................................................................104
4.2.1 Teoria da restrição do direito à liberdade de expressão e o método de solução do
conflito.....................................................................................................................105
4.2.2 O papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: sistema
predominante..........................................................................................................119
10
4.2.3 O modo de funcionamento da restrição à liberdade de expressão.....................126
4.3 O modelo predominante de juiz no Supremo Tribunal Federal...........................135
Conclusão.................................................................................................................139
Referências...............................................................................................................142
ANEXO A.................................................................................................................148
ANEXO B................................................................................................................150
ANEXO C................................................................................................................151
ANEXO D................................................................................................................152
ANEXO E................................................................................................................153
ANEXO F................................................................................................................154
ANEXO G...............................................................................................................155
ANEXO H................................................................................................................161
ANEXO I.................................................................................................................164
ANEXO J.................................................................................................................165
ANEXO K................................................................................................................166
ANEXO L................................................................................................................168
ANEXO M...............................................................................................................171
ANEXO N................................................................................................................172
ANEXO O................................................................................................................173
ANEXO P.................................................................................................................174
ANEXO Q................................................................................................................176
ANEXO R.................................................................................................................177
11
Introdução
A promulgação da Constituição Federal em 1988 inaugurou uma fase de
amadurecimento institucional no Brasil que perdura há pelo menos vinte e cinco anos, sendo a
consolidação da democracia o corolário dessa nova etapa.
Fruto do processo de redemocratização que se iniciou nos primeiros anos da
década de 1980, a Carta da República foi um importante instrumento de transição de um
modelo de Estado violento e autoritário, que vigeu por mais de duas décadas, para um Estado
de direito de bases democráticas.1
Fato comum em constituições surgidas após momentos históricos de
regimes autoritários, a Constituição Federal apresenta um amplo catálogo de direitos
fundamentais de natureza civil, política, social e econômica, institui mecanismo de garantia
desses direitos e prevê como direito fundamental o princípio da legalidade, diante do qual
somente a lei pode impor deveres aos indivíduos2. Além disso, elege certos grupos como
merecedores de especial proteção em razão da situação de vulnerabilidade, como crianças3,
idosos4 e indígenas.5
No campo do relacionamento institucional dos poderes constituídos, a
Magna Carta recepcionou a teoria da separação de poderes, com menção detalhada das
funções de cada Poder da República, conferindo ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de
guardião da Constituição Federal, a ser desempenhada no âmbito do controle de
constitucionalidade de leis e atos normativos.
1
BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo. Vinte Anos da Constituição
Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 36.
2
Art.5º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
3
Art. 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
4
Art. 230. “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”
5
Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.”
12
Pode-se dizer, portanto, que a atual Constituição “foi tecida sob os
princípios do devido processo legal, da democracia e dos direitos humanos.”6
É no contexto da positivação dos direitos fundamentais que a liberdade de
expressão encontra assento na vigente Carta Política. Há menção direta ou indireta sobre isso
no art. 5º, incisos IV (liberdade de pensamento)7, IX (liberdade de expressão propriamente
dita)8 e XIV (acesso à informação) 9, e no art. 220 e seu parágrafo 1º (liberdade de
informação).10
No planto internacional, importantes cartas de direitos, que têm efeito direto
no ordenamento jurídico brasileiro, protegem expressamente o direito à liberdade de
expressão, como pode ser visto no Artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 194811, no Artigo 13.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de
São José da Costa Rica12, e no art. 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos.13
Embora a liberdade de expressão goze de ampla proteção jurídica,
frequentemente a prática judiciária fornece exemplos de decisões que embaralham a exata
compreensão do conteúdo da liberdade de expressão e que parecem, à primeira vista,
6
VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do Estado de Direito. In: ______; DIMOULIS, Dimitri.
Estado de Direito e o desafio do desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 221.
7
“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”
8
“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença.”
9
“É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício
profissional.”
10
“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Parágrafo 1º: Nenhuma lei
conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer
veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.”
11
“Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem
interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e
independentemente de fronteiras.”
12
“Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de
buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou
por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.”
13
“1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse
direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza,
independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística,
ou por qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo
implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que
devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito
dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral
públicas.
13
completamente inadequadas ao modelo constitucional brasileiro, trazendo como consequência
risco potencial à democracia.
No ano de 2012, uma decisão judicial fez com que a maior emissora de
radiodifusão do Brasil cancelasse debate político previamente agendado com os principais
candidatos à Prefeitura da Cidade de São Paulo, após um dos postulantes ao cargo obter
pronunciamento judicial que autorizava sua presença no evento. O candidato fora preterido
pela empresa jornalística por conta de ínfima intenção de voto demonstrada por pesquisas
eleitorais.
No ano de 2008, a mesma emissora de televisão optou por não realizar
debates entre os candidatos, também ao cargo de Prefeito de São Paulo, pelo mesmo motivo,
ou seja, em razão de interferência judicial na composição do programa. Estima-se que, ao
todo, cerca de 1.488.000,00 (um milhão, quatrocentos e oitenta e oito mil) pessoas deixaram
de acompanhar o embate de propostas políticas a poucas semanas do dia das eleições.14
Nessa mesma linha, recentemente, duas decisões judiciais impediram que
veículos de comunicação publicassem notícias a respeito das conclusões parciais de
investigação em andamento, nas quais se apuravam desvios de conduta dos Presidentes do
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e da Assembleia Legislativa do Estado de
Pernambuco.15
Em situação que demonstra o extremo descompasso entre as leis em vigor
no Brasil e a atuação do Poder Judiciário, o diretor financeiro de um popular site de buscas
teve uma ordem de prisão emitida contra si, por um juiz do Estado da Paraíba, como resposta
do fato de não ter retirado da internet vídeo humorístico, supostamente ofensivo à reputação
de um político.16
A intenção de trazer exemplos de decisões judiciais restritivas à liberdade de
expressão que, à primeira vista, podem parecer contrárias aos fundamentos político-jurídicos
de um país democrático, é demonstrar que o tema é extremamente polêmico e possui
manifesto interesse prático.
14
SÃO PAULO. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso Eleitoral n.º 190321. Rel. Clarissa Campos Bernardo. J.
24.09.2012.
15
RECIFE. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Processo nº. 0072593-25.2013.8.17.0001. Decisão liminar.
DJEPE 10.09.2013.
16
PARAÍBA. Autos da Representação n. 60-76.2012.6.15.0017. 17ª Zona Eleitoral. Matéria veiculada em
SANTOS, Adelson Barbosa dos. Juiz da PB manda PF prender diretor do Google no Brasil. Disponível em:
[http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,juiz-da-pb-manda-pf-prender-diretor-do-google-noBrasil,930713,0.htm]. Acesso em: 09 dez. 2013.
14
Quanto a este último ponto, mencione-se o atual debate a respeito do
conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade no tocante à
legitimidade da autorização prévia para publicação de biografia de personagens de interesse
público. O tema aguarda solução final do Supremo Tribunal Federal quanto à interpretação
constitucionalmente adequada do artigo 20 e parágrafo único do Código Civil17, no
julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4815.18
Os casos citados são extremamente polêmicos, porque falta no texto
constitucional explicitação clara dos objetivos a serem buscados com a previsão da proteção à
liberdade de expressão, fato que conferiria certeza e segurança jurídica aos cidadãos em geral.
Essa é a tarefa precípua do Supremo Tribunal Federal no exercício do
controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, o que torna necessário o estudo do
comportamento da Corte Constitucional frente aos embates que envolvem o direito
fundamental de se expressar livremente.
A análise das decisões do Supremo Tribunal Federal ganha ainda maior
destaque após as modificações legais introduzidas com a edição da Emenda Constitucional nº
45, chamada de Reforma do Judiciário. A intenção era uniformizar a jurisprudência da
Suprema Corte, especialmente com a criação dos mecanismos da “súmula vinculante” e da
“repercussão geral” dos recursos extraordinários, aumentando consideravelmente a autoridade
do Tribunal diante da vinculação necessária dos órgãos do Poder Judiciário e dos demais
Poderes da República aos seus pronunciamentos.19
A liberdade de expressão é, ademais, um princípio jurídico com relevante
disposição em colidir com outros direitos fundamentais, exigindo do intérprete significativo
17
Art. 20. “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública,
a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de
uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”
Parágrafo único. “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o
cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”
18
Sobre o conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade com a publicação das chamadas
“biografias não autorizadas”, ver GARCIA, Rebeca. Biografias não autorizadas: liberdade de expressão e
privacidade na história da vida privada. Revista de Direito Privado, a. 13, vol. 52, p. 37-70, out.-dez. 2012.
19
Para uma análise crítica das inúmeras modificações legais e constitucionais que importaram no aumento
significativo do poder vinculante das decisões dos Tribunais Superiores (STJ e STF), opinando que isso é
reflexo da crise de paradigmas hermenêuticos no Brasil, ver STRECK, Lenio Luiz. A crise paradigmática do
direito no contexto da resistência positivista ao (neo)constitucionalismo. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 209-212.
15
esforço argumentativo na resolução de casos que impliquem a prevalência de um direito sobre
o outro.20
Apesar de os casos narrados versarem sobre desentendimentos quanto à
definição da liberdade de expressão de decisões não emanadas do Supremo Tribunal Federal,
não há motivos para concluir, a priori, que a atuação da Corte Constitucional difere
substancialmente da verificadas nos órgãos inferiores do Poder Judiciário.
Essa hipótese argumentativa resta potencializada ao verificarmos que são
relativamente recorrentes críticas sobre a qualidade das decisões do Supremo Tribunal
Federal. Virgílio Afonso da Silva, por exemplo, alude ao uso incorreto da regra da
proporcionalidade no tocante à terminologia e ao emprego metodológico do conceito21, e
Marcelo Neves levanta ressalvas sobre o déficit de fundamentação do Tribunal na solução de
controvérsias, envolvendo os direitos fundamentais de forma geral, o que não reduziria o
valor surpresa das decisões de futuros casos, aumentando a insegurança jurídica.22
Este trabalho pretende analisar a metodologia da argumentação adotada pelo
Supremo Tribunal Federal na resolução de casos que importam na restrição ao direito
fundamental da liberdade de expressão, a fim de verificar se há um “modo de decidir”, isto é,
um “percurso” seguido pela corte constitucional entre os pontos de partida e de chegada de
cada decisão.
A pesquisa possui um recorte temporal, pois propõe analisar a postura
seguida pela Corte a partir do julgamento do “Caso Ellwanger” (HC 82.424-RS, publicado em
19.03.2004), tido como “histórico” por alguns dos ministros que participaram do julgamento
em decorrência da repercussão social, jurídica e acadêmica que o caso alcançou.
Com os resultados em mãos, procuraremos confrontar os dados obtidos com
o modelo teórico de juiz, elaborado por Marcelo Neves, com vistas a verificar se há, de fato,
um perfil típico de atuação do Supremo Tribunal Federal na matéria.
A escolha da matriz teórica desenvolvida por Marcelo Neves se justifica em
detrimento de outras opções igualmente relevantes, como Ronald Dworkin, François Ost e
20
PRETZEL, Bruna Romano. Argumentação sobre a liberdade de expressão: resultados da análise dos votos do
Min. Marco Aurélio. COUTINHO, Diogo R.; VOJVODIC, Adriana M. (Org.). Jurisprudência constitucional:
como decide o STF? São Paulo: Malheiros, 2009, p. 55.
21
SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, 2002, p. 31-34.
22
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 199-200.
16
Carlo Guarnieri, em decorrência de o modelo de Neves ter-se originado a partir da experiência
constitucional brasileira do Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, Dworkin concebeu o juiz Hércules tendo como pano de fundo a
história jurídica da Suprema Corte Norte-Americana, sendo que Ost e Guarnieri, por sua vez,
teorizaram a partir das decisões de tribunais europeus.
Considerando que a pesquisa está centrada nos julgamentos do Supremo
Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão, a metodologia de Marcelo Neves parece ser
a mais adequada aos propósitos do trabalho.
Pretende-se, dessa forma, cumprir, ao menos parcialmente, o papel atribuído
à doutrina por Virgílio Afonso da Silva de acompanhar criticamente a vida jurisprudencial
nacional, rompendo com a tradição jurídica brasileira de desconsiderar a jurisprudência como
material de trabalho acadêmico.23
A escolha da liberdade de expressão como assunto de pesquisa sofreu a
conjugação simultânea de dois fatores normalmente presentes no momento da escolha do
tema de uma dissertação: o interesse prático e o interesse teórico.24
O interesse prático da pesquisa está presente na probabilidade de, uma vez
analisar a estrutura da argumentação do Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos
envolvendo a definição do conteúdo da liberdade de expressão. E assim, utilizar os resultados
da pesquisa para o desenvolvimento de posturas teóricas críticas capazes de influenciar, se o
caso, o modelo a ser adotado pela Corte na solução de futuras controvérsias constitucionais,
conferindo maior racionalidade ao procedimento de tomada de decisão.
O interesse teórico sobressai da proposta formulada inicialmente de
confrontar os resultados da pesquisa ao modelo de juiz proposto por Marcelo Neves,
verificando se a teoria é adequada aos pressupostos adotados pelo Supremo Tribunal Federal.
A obtenção do material de pesquisa seguiu uma metodologia bem definida.
O campo temático foi demarcado de maneira bastante ampla, de modo a englobar os direitos
garantidos nos incisos IV, IX e XIV do art. 5º, no caput e § 1º do art. 220 da Constituição
Federal de 1988. A partir da redação destes artigos e de seus possíveis significados, criou-se a
expressão-chave “liberdade de expressão”.
23
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 32-34.
24
ABRAMO, Perseu. Pesquisa em ciências sociais. In: HIRANO, Sedi (Org.). Pesquisa social: projeto e
planejamento. São Paulo: T.A Queiroz, 1979, p. 59.
17
A expressão-chave foi decomposta e posteriormente combinada com outros
termos relevantes ao presente trabalho, de modo a formarem expressões de pesquisas a serem
inseridas no campo “Pesquisa livre”, da página “Pesquisa de Jurisprudência”, no sítio
eletrônico do Supremo Tribunal Federal.25
Inicialmente a palavra-chave “liberdade de expressão” foi cindida em dois
termos autônomos e combinada com os operadores “adj” e “adj2” a fim de obter as palavras
aproximadas nas ementas dos julgados. Assim, inseriram-se na página de pesquisa os termos
“liberdade adj expressão” e “liberdade adj2 expressão”, combinando, em seguida,
isoladamente as palavras “liberdade” e “expressão” com “restrição”, utilizando os operados
“adj” e “adj2”.
Isto é, foram inseridos no campo de pesquisa os termos “liberdade adj
expressão”, “liberdade adj2 expressão”, “liberdade adj restrição”, “liberdade adj2 restrição”,
“expressão adj restrição” e, por fim, “expressão adj2 restrição”.
Todas as palavras foram utilizadas com o preenchimento simultâneo do
campo “Data” da mesma página no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, inserindo
como data inicial o julgamento do “caso Ellwanger”, dia 17/09/2003, e como limite ao
universo temporal da pesquisa o dia 31/12/2013. Optou-se por excluir da pesquisa as decisões
monocráticas em virtude de não refletirem, necessariamente, o posicionamento da Corte.
O trabalho está dividido em quatro seções. A primeira destina a analisar as
transformações verificadas no modelo político de Estado e sua repercussão para o fenômeno
jurídico. Após, será apresentado o modelo tipológico de juiz de Marcelo Neves. Na terceira
seção serão arroladas as justificativas para a catalogação da liberdade de expressão como
direito fundamental e as principais teorias acerca de sua restrição. Na última parte, haverá o
cotejo quantitativo e qualitativo dos conceitos teóricos com o material obtido diretamente da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Na conclusão serão debatidos os resultados
obtidos.
25
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp
18
1 O atual paradigma de Estado de Direito e o papel dos tribunais na interpretação dos
direitos fundamentais
As abordagens conceituais do Estado de Direito têm como principal
pressuposto teórico realçar a conexão entre o modelo atual de Estado com as justificativas
utilizadas para incluir a liberdade de expressão como direito fundamental nas constituições
dos países democráticos.
Tal ênfase não prescinde da análise de temas conexos à proteção da
liberdade de expressão, como a estrutura da norma que garante o direito fundamental em
questão, os casos em que é possível falar em restrição ao direito fundamental, a função
atribuída aos tribunais na solução de casos que envolvem, em última instância, a definição de
seu conceito, bem como os argumentos usados na definição da regra jurídica a incidir sobre o
caso concreto.
1.1 A passagem do Estado de Direito “do império da Lei” ao “império da Constituição”
A experiência histórica do continente europeu forjou dois modelos distintos
de Estado de Direito que podem ser reduzidos às formulas esquemáticas do Estado
Legislativo de Direito e do Estado Constitucional de Direito.26
O Estado Legislativo de Direito nasce com a formação do Estado Moderno
na Europa continental e a afirmação do princípio da legalidade como fonte exclusiva do
direito válido.
Este novo paradigma político-jurídico institui um sistema unitário de fonte
jurídica que procura contrapor-se ao padrão de direito herdado dos tempos medievais (pré-
26
Não se desconhece a existência de outras modalidades de arranjo jurídico-político que tiveram lugar na
experiência democrática do Ocidente e foram responsáveis por modelos diversos de Constituição. Dentre elas
destaca-se a denominada constituição-garantia, fruto do processo histórico norte-americano, cujas linhas gerais
são a crítica da soberania parlamentar e a defesa dos direitos dos colonos, donde resulta o princípio da
supremacia da Constituição (fonte do direito) frente às leis ordinárias, aquela protegida pela via judicial, sendo
que os poderes constituídos estabilizam-se por meio do mecanismo dos freios e contrapesos. De outra parte
sublinhe-se a influente noção de constituição-programa, tributária do processo revolucionário francês, e que se
aproxima dos modelos de Estado de Direito expostos neste capítulo, preocupada com a afirmação de direitos e
com foco na constituição dos poderes nacionais (soberania nacional), colocando em evidência a tensão entre o
poder constituinte e poderes constituídos. Sobre o tema, ver BARBOSA, Samuel. Constituição, democracia e
indeterminação social do direito. Novos Estudos, Cebrap. n. 96, jul. 2013, p. 40-41.
19
modernos), moldado na pluralidade de ordenamentos concorrentes (Igreja, príncipes,
Comunas, Império etc.), supra-ordenados ou coordenados ao do Estado27, cuja unidade era
assegurada pela doutrina e jurisprudência, levando em consideração a tradição e a sabedoria
dos “doutores” acumulada ao longo dos séculos.28
O fundamento de validade das normas jurídicas no Estado Legislativo de
Direito é aferido com base na autoridade do órgão responsável por sua produção, que detém o
monopólio da produção jurídica, e passa a ser vinculante de forma abstrata e geral ao corpo
dos cidadãos apenas pelo fato de ter sido elaborada em respeito aos procedimentos
anteriormente previstos, deixando de lado qualquer valoração a respeito da justiça intrínseca
do ato. 29
O Estado moderno é identificado com três caracteres que marcam
decisivamente a fundação de uma nova ordem jurídica: a ascensão da lei como fonte
exclusiva do Direito em detrimento de qualquer outra, o monopólio por parte do Estado na
produção de normas jurídicas, e a positivação do Direito, isto é, o fenômeno de as normas
jurídicas serem instituídas e modificadas por decisão legal.30
Analisando o modelo do Estado Legislativo de Direito sob o prisma
jurídico-filosófico, é possível dizer que este possui matriz eminentemente positivista, uma vez
que o Direito resulta de um ato de poder competente (Estado nacional), podendo assumir
qualquer conteúdo. Ele é, assim, “autorreferente, é procedimental, é de certo modo irracional
quanto ao conteúdo, à medida que recusa um paradigma externo que configuraria a
possibilidade de uma matéria ética „necessária‟.”31
27
NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de identidade da(s)
esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina. Direito em Debate, v.
4, n. 5, jan./jun., 1995, p. 7.
28
FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o passado e o futuro. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo
(Orgs.). O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Tradução Carlo Alberto Dastoli, São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 419-420.
29
FRANCISCO, José Carlos. (Neo)Constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça
pluralista. ______. (Coord.). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo
judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 71.
30
Id. Ibid., p. 46-47.
31
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 163.
20
Os poderes públicos, nesse contexto, estavam impedidos de intervir no
mercado e nas relações sociais, sendo responsáveis apenas pela manutenção da paz, da
segurança e da produção do direito. 32
O Estado Constitucional de Direito, por sua vez, marca uma evolução em
relação ao modelo normativo anterior. É tributário das mudanças políticas verificadas na
segunda metade do século XX em direção à busca de legitimidade material das leis para a
concretização da justiça social.
Com efeito, a postura meramente ablativa do Estado Legislativo de Direito,
que se satisfazia com a submissão dos indivíduos aos ditames da lei, independentemente do
conteúdo normativo e das carências que certos grupos sociais eventualmente apresentassem,
impedindo, em última análise, a fruição de oportunidades sociais e acesso a bens públicos por
todos, deu causa a uma série de injustiças sociais que acelerou a superveniência do modelo de
Estado Constitucional de Direito.
Esse novo paradigma se firma com a subordinação dos atos normativos
editados pelos Parlamentos a uma lei de natureza superior, a Constituição, a qual, não apenas
disciplina o rito de elaboração do texto legal, mas também determina o conteúdo mínimo que
deve, ou não, estar presente para conferir validade substancial às prescrições normativas33,
prevendo, outrossim, mecanismos procedimentais de mudança de suas próprias disposições,
mais exigentes se comparados àqueles necessários para elaboração da legislação ordinária.34
Enquanto o Estado Legislativo pressupunha a supremacia do Poder
Legislativo sobre os poderes Executivo e Judiciário (onipotência do legislador), condicionado
apenas à forma de produção da norma, o Estado Constitucional de Direito interfere,
sobretudo, no conteúdo dos atos normativos por meio da positivação constitucional de
princípios e direitos fundamentais que conferem caráter legitimador ao trabalho do
Parlamento.
Ou
seja,
no
Estado
Legislativo
o
ato
autorizativo
é
válido
independentemente de seu conteúdo; no Estado Constitucional, o ato autorizativo é válido se
preencher requisitos precisos de conteúdo. Essa substancial diferença de modelos permite
afirmar que, em “um caso o direito se limita a atribuir um poder (e, eventualmente, a
32
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. (Interpretação e crítica). 14. ed. São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 14-20.
33
FERRAJOLI, Luigi. O Estado de direito..., cit., p. 425.
34
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. 6. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 164.
21
descrever procedimentos para o seu exercício); no outro, o direito, além disso, delimita ou
circunscreve o poder conferido.”35
A dicotomia entre Estado Legislativo e Estado Constitucional de Direito
pode ser analisada, também, com olhar na função do Poder Judiciário no interior de cada
forma política.
O marco legitimador do Estado Legislativo de Direito é a teoria da divisão
de poderes, ao fixar limites claros para atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário,
tornando-os independentes entre si. Ao juiz é conferida a limitada tarefa de aplicar a lei dentro
dos quadrantes traçados pelo Legislativo, cujo trabalho de produção normativa é visto como
dotado de alta racionalidade e apto a conferir completude ao ordenamento jurídico, não
havendo espaço, pois, para a interpretação judicial das leis (além das opções postas pelo
legislador) e a escusa de decisão, isto é, ao Judiciário não é lícito deixar de decidir.36
Ao magistrado resta a função de “dar um basta ao conflito de interesses e
garantir direitos individuais por meio da aplicação de uma norma geral (que o ordenamento
sempre fornece ao aplicador) ao caso singular contencioso (sentença).”37
Sobre o papel do Judiciário no Estado Liberal, Adeodato enfatiza que:
O direito de algumas sociedades mais complexas, que pode ser dito dogmático,
caracteriza-se, como postulados iniciais, por só considerar argumentos alegadamente
embasados em um texto de norma preexistente no ordenamento estatal. A
interpretação e a aplicação desse direito apresenta-se (sic) como silogística: a norma
estatal alegada, em geral expressa pela lei ou pela jurisprudência, representa a
premissa maior; o caso concreto, por um processo de subsunção, constitui a
premissa menor; e a norma individual aplicada ao caso concreto corresponde à
conclusão. Essa forma dogmática de organizar o direito estatal está ainda apoiada
sob outros três postulados básicos, dentre vários, quais sejam: a obrigatoriedade de
decidir ou proibição do non liquet; a obrigatoriedade de interpretar, fornecendo
alcance e sentido concretos às normas gerais; e a necessidade de fundamentação ou
legitimação.38
Já o Estado Constitucional de Direito tem como marco legitimador o
controle jurisdicional dos demais poderes, com ênfase no controle específico da
35
GUASTINI, Ricardo. Note su stato di diritto, sistema giuridico e sistema politico. In: MONTANARI, Bruno
(Org.). Stato di diritto e trasformazione della politica. Torino: Giappichelli, 1992, p. 174, apud CAMPILONGO,
Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 44.
36
É o conhecido “princípio da inafastabilidade da jurisdição”, agasalhado pela Constituição Federal de 1988 no
art. 5º, XXXV.
37
CAMPILONGO, op. cit., p. 34.
38
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 370-371 (grifos do autor).
22
constitucionalidade das leis, turvando a linha divisória entre jurisdição e legislação que
marcou o modelo anterior, e alterando a relação do político com o jurídico, estando o Poder
Judiciário autorizado a exercer papéis antes inéditos, como o preenchimento de lacunas
legislativas por meio da interpretação das leis e da Constituição, e intervir no domínio
econômico a fim de corrigir assimetrias.39
Pode-se dizer que a mudança paradigmática da organização político-jurídica
promove uma verdadeira transformação do Estado de Direito, que passa do “império da lei”
ao “império da constituição”.40
As mudanças institucionais representaram duas ordens de rupturas que
ocorreram de forma sucessiva: em primeiro lugar, a quebra de identidade entre Direito e
Moral, uma vez que a fonte legitimadora da lei é a forma legal de sua produção, isenta de
valoração subjetiva (Estado Legislativo); em segundo lugar, o rompimento entre a validade e
a existência do Direito, já que a própria lei está ancorada em princípios substanciais de justiça
tratados, em regra, na Constituição (Estado Constitucional).41
Humberto Ávila42 apresenta quatro fundamentos que entende serem centrais
para explicar as características do modelo inaugurado pelo Estado Constitucional: a)
normativo, em que haveria no texto constitucional a institucionalização preferencial de
princípios em detrimento das regras; b) metodológico, cujo cerne seria não mais o uso do
método da subsunção para a interpretação e aplicação das normas, mas a ponderação de
princípios; c) axiológico, de prevalência da justiça do caso particular (concreto) à justiça
geral, ou seja, a aplicação das normas jurídicas demandaria uma consideração setorial e não
abstrata; e d) organizacional, cuja primazia do Poder Judiciário sobre o Legislativo e
Executivo seria a consequência da adoção de um modelo constitucional baseado,
preferencialmente, em princípios.
De outra parte, Josep Aguiló Regla43 também se aventura na tarefa de
sintetizar os parâmetros dogmáticos que evidenciam o processo de constitucionalização da
39
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 116.
REGLA, Josep Aguiló. Do “Império da Lei” ao “Estado Constitucional.” Dois paradigmas jurídicos em
poucas palavras. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro (Org.). Argumentação e Estado constitucional. São Paulo:
Ícone, 2012, p. 102.
41
FERRAJOLI, Luigi. O Estado de direito..., cit., p. 438.
42
ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “ Direito da Ciência”. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo. Vinte Anos da Constituição
Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 188, ressalvando o posicionamento contrário do autor
quanto à pertinência da adoção desses fundamentos para definir a Constituição Federal de 1988.
43
REGLA, Josep Aguiló. Do “Império da Lei” ao “Estado Constitucional”..., cit., p. 103-104.
40
23
ordem jurídica. Segundo ele, tais fatores são: (i) a existência de uma Constituição rígida que
incorpora uma relação de direitos fundamentais, (ii) a supremacia da Constituição sobre a lei
ordinária, (iii) reconhecimento da força vinculativa da Constituição aos demais poderes e aos
particulares, inclusive com sua aplicação de forma direta, (iv) o fenômeno da
“sobreinterpretação”, isto é, das garantias constitucionais é possível extrair grande quantidade
de normas, sendo que as leis devem ser interpretadas de acordo com a Constituição, (v)
aumento da influência da Constituição no processo e debate políticos, passando os atores
sociais a recorrerem às normas constitucionais para dirimir conflitos, estando, como
consequência, os juízes aptos a se posicionarem frente às chamadas questões políticas.
Para Mariana Pargendler e Bruno Salama três “vetores” são responsáveis
pela proeminência do Poder Judiciário na nova estrutura organizacional do Estado
contemporâneo.44
O primeiro é o “vetor ideológico”, derivado do triunfo do progressismo,
cujo traço marcante é a superveniência do Estado Regulatório, que chama para si a tarefa de
ordenar a vida social e estender o fenômeno jurídico para áreas estranhas ao Direito
(juridificação).
O segundo é o “vetor organizacional”, que alçou o Poder Judiciário ao
centro do espectro político (conscientemente ou não) na condição de ente ativo na formulação
de políticas públicas, e no Brasil o Supremo Tribunal Federal assumiu a posição de árbitro
dos grandes conflitos institucionais e políticos.
O “vetor jurídico” é o último aspecto da mudança estrutural e põe em xeque
a técnica jurídica tradicional de aplicação do Direito diante do aumento expressivo de normas
com caráter de princípios nas Constituições dos países ocidentais em detrimento das regras,
abrindo espaço para uma nova maneira de interpretar e aplicar o Direito em benefício,
segundo os autores, da racionalidade de outras áreas das ciências sociais, que podem
colaborar com o jurista mediante a emissão de juízos probabilísticos ou de causalidade sobre
os efeitos das normas no mundo dos fatos.45
Diante desse quadro, a natureza da linguagem, que passa a fazer parte dos
textos legais, e notadamente nas constituições, é peculiaridade a ser destacada por conta do
impacto direto que exerce no papel da jurisdição. De modo geral, é possível dizer que as
44
PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno Meyerhof. Direito e consequência no Brasil: em busca de um
discurso sobre o método. Revista de Direito Administrativo. v. 262, p. 95-144, jan./abr. 2013, p. 110.
45
Id. Ibid., p. 110-119.
24
normas constitucionais apresentam “maior abertura, maior grau de abstração e,
consequentemente, menor densidade jurídica."46
Hart afirma que o Direito é dotado, em parte, de normas com “textura
aberta”, significando que há “áreas do comportamento nas quais muita coisa deve ser decidida
por autoridades administrativas ou judiciais que busquem obter, em função das circunstâncias,
um equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia de caso para caso.”47
A indeterminação cognitiva dos preceitos legais ocorre porque, como os
princípios albergados pela Constituição possuem forte apelo moral (igualdade, liberdade,
dignidade humana, democracia, separação de poderes) e servem de parâmetro de justiça para
a produção legislativa e a decisão dos tribunais dentro de um ambiente socialmente complexo,
foram recepcionados de forma vaga e imprecisa, deixando aos intérpretes a tarefa de
determinar o seu conteúdo e, principalmente, harmonizar a coexistência de normativas muitas
vezes contraditórias entre si.48
A disputa em torno do sentido jurídico a ser conferido aos princípios
agasalhados implícita ou explicitamente pela Constituição, é transferida do Legislativo para o
âmbito de aplicação da Constituição, estando os tribunais envoltos em litígios de natureza
política que, em última instância, representam conflitos entre poderes soberanos.49
As consequências sentidas no âmbito jurídico podem ser verificadas na
tarefa de interpretação, mais especificamente na busca por legitimidade das leis e decisões
judiciais. Adeodato sugere que o Direito atual calcula e controla o grau de vagueza,
ambiguidade e porosidade dos textos normativos na direção de maior respaldo social, pois um
texto muito impreciso permite maior maleabilidade dos conceitos e confere ao sistema
46
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 107.
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins
Fontes, 2009, p. 175.
48
VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição e os limites da empreitada interpretativa, ou entre
Beethoven e Bernstein. In: SILVA, Virgílio Afonso da. (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 226-227.
49
As peculiaridades da linguagem jurídica presentes no ordenamento jurídico dos Estados que adotam a
supremacia constitucional como critério de valoração do Direito, provocam imprecisões na comunicação e na
exata determinação dos comandos legais. Adeodato aponta três características da linguagem que tornam o
trabalho do intérprete extremamente complexo: vagueza, ambiguidade e porosidade. Uma palavra será tanto
mais vaga quanto mais objetos, classes ou gênero puderem estar sob sua incidência. Já a ambiguidade traz
dúvidas sobre o significado do texto (conotação), pois termos ambíguos se referem a objetos que não têm nada
em comum. Por fim, a porosidade de um termo diz com as mudanças de seu significado ao longo do tempo
provocadas pelo uso cotidiano, resultando exatamente na vagueza e ambiguidade da expressão. ADEODATO,
João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 226.
47
25
dogmático e à decisão concreta elasticidade, isto é, maiores possibilidades de adequação ao
ambiente.50
A abertura semântica das normas constitucionais confere ao juiz
possibilidade de múltiplas interpretações constitucionalmente legítimas diante de um caso
concreto, isto é, o ordenamento apresenta ao intérprete a faculdade de optar por mais de um
caminho na solução da lide sem que a ele seja imputada a pecha de antidemocrático. Assim,
“o juiz não apenas declara o direito existente como também cria direito. Declarar o direito e
criar direito não são funções contraditórias, mas sim complementares.”51
Por outro lado, a atividade interpretativa vai além do mero pressuposto de
aplicação de uma norma para fixar-se como importante mecanismo de atualização e
renovação da ordem jurídica e, em particular, da Constituição Federal. Por meio da
interpretação, as normas adaptam-se às mudanças sociais e mostram-se, a depender da
qualidade do trabalho hermenêutico, coerente com as necessidades reais da sociedade.52
Em tom assertivo, Eros Grau conclui:
Em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não, pois,
meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos
normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, mediante a definição de
uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [...] ao direito. Nesse
sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a
mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular, do
transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [...] no mundo do ser [...].
Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado
semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do
texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao
particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar
plenamente contingencial o particular.53
Seguindo caminho semelhante ao de Grau, Lenio Streck54 enfatiza que as
mudanças normativas provocadas no Direito a partir do segundo pós-guerra, especialmente o
incremento de amplo catálogo de direitos fundamentais individuais e coletivos, que teve o
condão de transferir o poder de conformação constitucional do legislador para o judiciário,
50
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 227.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 48-49.
52
BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A interpretação como fator de
desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação
constitucional. São Paulo: Malheiros, p. 157.
53
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica..., cit., p. 161.
54
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 59.
51
26
fizeram do Direito instrumento de transformação social, sendo fator decisivo para isso a
positivação de princípios nos textos constitucionais.
1.2 A proeminência da argumentação como fator de legitimação das decisões judiciais
A argumentação assume papel decisivo de conferir legitimidade à decisão,
uma vez que o caráter aberto de muitas normas constitucionais, o espaço de indefinição de
conduta deixado pelos princípios (tanto princípios de organização da ordem política quanto de
direitos fundamentais) e os conceitos indeterminados, municiam o intérprete de alto poder de
subjetividade.
Nesse contexto, Manuel Atienza55 aponta alguns fatores que, segundo ele,
explicam a centralidade alcançada pela argumentação jurídica na cultura ocidental. O
primeiro é de caráter teórico e se relaciona com a concepção do Direito no século XX, mais
atento ao problema do controle da atividade interpretativa para preenchimento das lacunas
legislativas.
O segundo fator é de ordem prática, realçando o parâmetro argumentativo
que o Direito assume, principalmente, nos países do common law, que, em certo sentido, tem
servido de inspiração para os países do civil law.
Em terceiro lugar, a passagem do Estado Legislativo ao Estado
Constitucional de Direito importou no controle do conteúdo das leis e incrementou a atividade
do magistrado com a obrigação de justificar suas decisões.
O quarto fator é de natureza pedagógica e está ligado mais ao ensino
jurídico, voltado a análise de casos práticos. Em último lugar, ressalte-se o caráter político do
processo de secularização do Estado e consolidação da democracia, que exige a argumentação
como critério legitimador da tomada de decisão que vincula a todos.56
A demonstração lógica adequada do raciocínio argumentativo, desenvolvido
pelos tribunais, é vital para a legitimidade da decisão proferida, assumindo os tribunais o
papel de discutir, publicamente, o alcance dos princípios e direitos que constituem a reserva
55
ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro (Org.). Argumentação e
Estado constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, p. 58.
56
Ib. Ibid., p. 58-61.
27
de justiça constitucional.57 “É necessário” – conforme sustenta Tavares – “no Estado
Constitucional de Direito, uma elucidação acerca das razões determinantes da escolha do
método bem como dos elementos utilizados”, para que o juiz não descambe para escolhas
arbitrárias de sentido.58
Diante desse novo quadro de atuação do Poder Judiciário, surge a questão
de saber qual das soluções adotadas pode ser considerada constitucionalmente adequada. Ou
seja, como construir um discurso capaz de dar conta de tais perplexidades, sem cair em
decisionismos e discricionariedades do intérprete?
Luís Roberto Barroso oferece três parâmetros de controle da argumentação
que entende necessários para alcançar a solução constitucionalmente adequada.59
O primeiro parâmetro estabelece que a argumentação deve ser capaz de
apresentar fundamentos normativos que apoiem o trabalho do intérprete, que encontrará os
elementos dentro do ordenamento jurídico, de forma implícita ou explícita. Um conflito
normativo, logo, deverá ser resolvido em favor da solução que apresente em seu suporte o
maior número de normas jurídicas.
O segundo método de controle argumentativo se relaciona com a
possibilidade de universalização dos critérios adotados pela decisão a fim de que possam ser
usados em casos semelhantes no futuro. Pretende-se transformar os critérios em normas gerais
com o intuito de projetá-los a um conjunto maior de hipóteses, facilitando a visualização de
desvios e inconsistências.
O último parâmetro de controle é formado por dois conjuntos de princípios:
um de natureza instrumental, formado por princípios específicos de interpretação
constitucional 60, e o segundo por princípios propriamente ditos (materiais), que trazem toda a
carga axiológica e valorativa própria do texto constitucional. Ambos orientam a atividade do
intérprete, sendo que, na hipótese de haver mais de uma solução adequada, é necessário
57
VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição..., cit., p. 252. No mesmo sentido, BARROSO, Luís
Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 367.
58
TAVARES, André Ramos. A teoria da concretização constitucional. Revista Brasileira de Estudos
Constitucionais, a. 2, n. 7, jul./set. 2008, p. 27.
59
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 365.
60
Os princípios instrumentais seriam, segundo Barroso, os princípios da supremacia constitucional, presunção de
constitucionalidade das leis e atos do poder público, interpretação conforme a constituição, unidade da
constituição, razoabilidade e proporcionalidade, e efetividade da constituição. BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação..., cit. p. 369-374.
28
percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar, na medida do possível,
os valores estabelecidos pelos princípios materiais.61
Este incipiente paradigma que redefiniu as atribuições do Estado e do
Direito está inserido num quadro maior de modificação cultural da sociedade contemporânea,
cujos traços principais, para fins deste trabalho, podem ser reduzidos a duas características
expostas por Bauman.
Em primeiro lugar, vivencia-se o colapso da crença moderna de que há um
fim a ser seguido por todos, uma organização política perfeita a ser em breve alcançada, em
que existirá algum tipo de sociedade boa, equilibrada, justa e sem conflitos, cujas
necessidades humanas serão plenamente satisfeitas.62
Em segundo lugar, nota-se a desregulamentação e privatização das tarefas e
deveres modernizantes, antes jungidos à coletividade com base na ideia de aperfeiçoamento
por meio da atividade legislativa, e hoje calcada na autoafirmação individual, refletida no
discurso do direito das pessoas e grupos de “permanecerem diferentes e de escolherem à
vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado”63.
Fica evidente que o projeto da modernidade64 dissocia o conteúdo do Direito
de uma visão de mundo particular, cujo padrão de conduta possa ser aferido previamente,
desconsiderando a presença de modelos concorrentes entre os diversos grupos sociais a
respeito da condução da política e do significado das regras jurídicas.65
61
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 365-366.
Campilongo afirma que “Além da combinação de referências, a modernidade abandona a forma de perfeição
ou natureza essencial e a substitui pela forma da probabilidade, da busca e do contexto social contingente.” Ver
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 154.
63
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 38.
64
Segundo José Asensi Sabater, o “projeto da modernidade” se assentava sob as seguintes premissas: a)
afirmação da existência de uma natureza humana universal que pode ser conhecida por meios racionais e que é
essencialmente superior e distinta do resto da realidade; b) a ideia de que o indivíduo é essencialmente um ser
livre e autônomo, cujo desenvolvimento requer um tipo de sociedade organizada de forma não hierárquica; c) a
ideia de que a pessoa possui uma dignidade irredutível que deve ser defendida tanto da própria sociedade quanto
do Estado; d) a fé na ciência como instrumento a serviço da libertação do ser humano; e) a secularização das
relações políticas e jurídicas no marco do Estado; f) primazia do Estado territorial; g) a missão do Ocidente de
universalizar seus valores e expandí-los pelo resto do mundo. SABATER, José Asensi. Enfoques básicos para un
constitucionalismo actual. In: SANTOS, Gustavo Ferreira (Coord.). Constituição e constitucionalismo. Curitiba:
Juruá, 2010, p. 24.
65
Samuel Barbosa denomina de “indeterminação social do direito” a relação entre a falta de unidade na
definição das normas jurídicas por parte dos tribunais, em decorrência da existência de decisões autônomas e
conflitantes que prejudicam a previsibilidade jurídica, e a vagueza das disposições legais, capaz de incentivar
disputas em torno da definição de seu conteúdo. BARBOSA, Samuel. Constituição, democracia..., cit., p. 36.
62
29
A sociedade contemporânea não está ancorada num padrão moral
tradicional de feição hierárquica. Antes, o pluralismo social66 pressupõe uma diversidade
incontrolável e contraditória de valores e interesses que torna praticamente inviável a
obtenção de consenso em torno de ações e programas, resultando daí a necessidade de
reconhecimento das divergências existentes no interior das inúmeras esferas sociais.
Esta especificidade do Direito contemporâneo havia sido objeto de análise
por teóricos do positivismo, conforme se extrai da seguinte passagem de Kelsen, em que fixa
uma distinção entre os padrões morais e jurídicos de comportamento:
Quando uma teoria do Direito positivo se propõe a distinguir Direito e Moral em
geral e Direito e Justiça em particular, para os não confundir entre si, ela volta-se
contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que
pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta, da
qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e
Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é
independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a
Moral. [...] A pretensão de distinguir Direito e Moral, Direito e Justiça, sob o
pressuposto de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma
ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a
relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas de Moral, e não a relação
entre aquela e “a” Moral. [...] Uma teoria dos valores relativista não significa [...]
que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer Justiça.
Significa, sim, que não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não
existe uma Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós
constituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos
nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a
possibilidade de valores opostos.67
A rigor, o próprio processo de positivação do Direito proporciona as
condições para estabelecer maior tolerância quanto aos comportamentos sociais que desviam
de uma moral ortodoxa, ou mesmo de uma ideia material de justiça.68
66
Kliever apresenta uma boa definição de pluralismo. Segundo ele, “A dispersão de poder politico e a liberdade
de reunião religiosa no interior de sociedades não hierárquicas representam diferenças e desacordos no interior
de um compromisso compartilhado com uma nação e com um Deus. O pluralismo, em contraste, não supõe tal
unidade ou lealdade dominante. O pluralismo é a existência de múltiplas estruturas de referencia, cada qual com
seus próprios critérios de racionalidade. Pluralismo é a coexistência de posições comparáveis e rivais que não se
podem conciliar. Pluralismo é o reconhecimento de que diferentes pessoas e diferentes grupos vivem,
literalmente, em mundos diferentes.” KLIEVER, Lonnie D. Authority in a pluralist world. In: BERNSTEIN,
Richard J. Modernisation, the Humanist Response to its Promisse and Problems. Washington D.C: Paragon
House, 1982, p. 81, apud BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pósmodernidade e intelectuais. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 178 (grifos do autor).
67
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2009, p. 75-76 (grifos do autor).
68
Para uma crítica da tese central do Direito Livre, corrente autointitulada contradogmática, que acusa o direito
positivo de ser ilegítimo em razão de manter uma suposta distância da realidade social e pregar, por isso, sua
30
Isso porque o sistema jurídico tem que lidar com o problema das múltiplas
possiblidades de ação e escolha de uma sociedade plural, que se mostram, muitas vezes,
incompatíveis entre si. A consequência notada é que se exige maior propensão à tolerância em
virtude da maleabilidade de perspectivas sociais e da necessidade permanente de o Direito
justificar-se perante as expectativas normativas não atendidas.69
superação por um direito “achado nas ruas”, ver BORGES, José Souto Maior. Pro-Dogmática: por uma
hierarquização dos princípios constitucionais. Revista Trimestral de Direito Público, n. 1, 1993, p. 140-143.
69
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica..., cit., p. 205-207; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política,
sistema jurídico…, cit., p. 21.
31
2 Análise qualitativa das decisões do Supremo Tribunal Federal: o modelo teórico de
juízes de Marcelo Neves
O objetivo principal, ao propor interpretar as decisões do Supremo Tribunal
Federal a partir do modelo de juiz desenvolvido por Marcelo Neves, é analisar a
argumentação utilizada pela corte constitucional nos julgamentos de casos conflituosos,
envolvendo o direito fundamental à liberdade de expressão.
Optou-se pelo marco teórico de Marcelo Neves, tendo em vista a tese ser
fruto de estudo crítico da experiência da corte constitucional brasileira, diferenciando-se,
nesse particular, de construções alternativas que, embora tenham alcançado grande influência,
referem-se a outras realidades jurídicas.
Podem-se citar, exemplificativamente, como modelos-tipo alternativos ao de
Neves, o juiz Hércules de Dworkin, os juízes Júpiter, Hércules e Hermes de François Ost, e o
esquema de Carlo Guarnieri a respeito dos juízes executor, delegado, guardião e político,
exposto por Celso Campilongo.
Na perspectiva de Dworkin, para os casos que não encontram uma solução
por meio do uso das regras (casos difíceis), deve-se lançar mão dos princípios jurídicos, que
tiram do juiz qualquer possibilidade discricionária. O magistrado que conseguir identificar os
princípios corretos para a melhor solução de um caso difícil é chamado por Dworkin de
Hércules, que possui uma capacidade “sobre-humana”.70
Logo, os princípios são hercúleos. A descoberta dos princípios adequados é
a tarefa primordial de Hércules por meio da utilização da prova da coerência, em que os
princípios advêm da moralidade comunitária. Para Dworkin, Hércules deve construir um
“esquema de princípios abstratos e concretos que forneça uma justificação coerente a todos os
precedentes do direito costumeiro e, na medida em que estes devem ser justificados por
princípios, também um esquema que justifique as disposições constitucionais e legislativas.”71
François Ost elabora tipologia com arrimo na metáfora mitológica dos
juízes Júpiter, Hércules e Hermes. Para o autor, Júpiter seria o juiz com formação tradicional
que aposta na ideia de unidade e coerência do ordenamento jurídico. Desenvolve a
70
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010, p. 165.
71
Id. Ibid. p.182. Para uma crítica ao juiz Hércules de Dworkin, ver NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules:
princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes,
2013, p. 55-63.
32
argumentação baseada no processo lógico-formal, reduzindo a aplicação do direito à técnica
da subsunção. A concepção de direito subjacente é a do Estado Legislativo de Direito.
O juiz Hércules possui uma visão mais próxima da realidade social. Decide
casos complexos extraindo suas decisões de normas válidas, não necessariamente presentes
em códigos, uma vez que a lei é somente o ponto de partida para a intepretação, que deve ter
os olhos voltados para a complexidade social. A concepção de direito subjacente é do Estado
Social.
Por fim, o juiz Hermes concebe o direito como algo inacabado que adquire
sentido com a mediação de conflitos e controle das mudanças sociais. Diagnostica que a
sociedade apresenta um alto grau de complexidade com a multiplicidade de atores jurídicos e
níveis de poder, que requer a fixação de procedimentos capazes de respeitar a autonomia dos
diferentes subsistemas. Aposta na argumentação jurídica, levando em conta que as decisões
judiciais serão sempre provisórias, eis que sujeitas aos influxos das variações
socioeconômicas. Preocupa-se com as consequências sociais e políticas de seus
pronunciamentos. É concepção próxima ao modelo de Estado Constitucional de Direito.72
Carlo Guarnieri apresenta divisão quadripartite de juiz com base na posição
assumida pelos tribunais frente à política. São elas: o juiz-executor, o juiz-delegado, o juizguardião e o juiz-político.
O primeiro é típico de um ordenamento jurídico composto majoritariamente
de regras legais (Estado Liberal), no qual o magistrado não deve fazer política e muito menos
contrapor-se às instituições representativas, cabendo ao legislador a prerrogativa de conferir
sentido às leis e ao juiz a aplicação mecânica do direito. São características desse juiz baixa
autonomia política e baixa criatividade.73
O juiz-delegado parte do pressuposto de que é inevitável a atuação política
do magistrado como consequência de o ordenamento jurídico, muitas vezes, não oferecer
regras claras e precisas para a solução de casos. Embora ao juiz seja franqueado agir como
72
OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa, n. 14, 1993, p. 169-194. Para uma
crítica aos modelos de juiz de Ost, ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e
teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 381-387. Para um estudo sobre a aplicação do modelo de
François Ost às decisões do Supremo Tribunal Federal na estabilização monetária em decorrência das edições
dos planos econômicos da década de 1990, ver DURAN, Camila Villard. Direito e moeda: o controle dos planos
de estabilização monetária pelo Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2010.
73
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 50-51.
33
legislador, não pode fazer escolhas arbitrárias e sua atuação é balizada pelas normas préexistentes. São características baixa independência e alta criatividade.74
O juiz-guardião é corolário da consolidação de uma Constituição que arrola
direitos fundamentais individuais e coletivos e um modelo de controle de constitucionalidade
das leis. Deve atuar como guardião da Constituição e das leis ordinárias contra os ataques da
maioria parlamentar de ocasião, contrapondo-se, se o caso, à comunidade e aos demais
poderes constituídos. Emerge a questão do conflito entre Poder Judiciário e os postulados
democráticos. Sua atividade é limitada pelas diretrizes da Constituição, o que lhe tolhe a
discricionariedade. São características alta independência e baixa criatividade.75
Em arremate, o juiz-político possui enfoque na identificação do magistrado
com um ator político que divide a atribuição de dar sentido à lei com o Legislativo. A imagem
do Direito é de uma rede, suficientemente fluido para se adaptar a circunstâncias variadas.
Admite que é impossível renunciar à tarefa da interpretação. São características do modelo
alta autonomia e alta criatividade.76
A tese desenvolvida por Marcelo Neves tem como pressuposto a existência
de uma trivialização e inconsistência no tratamento dos princípios constitucionais por parte do
Supremo Tribunal Federal. Os princípios são vistos como remédios para os problemas de
inefetividade das normas constitucionais no Brasil e muitas vezes utilizados estrategicamente
para satisfazer interesses particularistas, embebidos de uma retórica principiológica.77
Esse principialismo inadequado levado a efeito no Brasil impõe obstáculos à
concretização e realização constitucional e impede a reprodução consistente do Direito. Por
sua vez, a inconsistência jurídica desemboca na fragilização da dogmática e da teoria do
direito (elementos da reflexão jurídica), acarretando o desprezo pelas regras e o abuso
excessivo do uso dos princípios os quais, diante da ausência de definitividade em seu
comando abstrato, servem a desvios no processo de concretização.
Soma-se a esse fator o recurso corriqueiro à “ponderação desmedida”, que
traz subjacente, na interpretação de Neves, a ideia de que os princípios são intrinsecamente
mais “justos” do que as regras, sendo aceitável o afastamento de uma regra completa em favor
74
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 52.
Id. Ibid., p. 54.
76
Id. Ibid., p. 57.
77
NEVES, Marcelo. Abuso de princípios no Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
[http://www.conjur.com.br/2012-out-27/observatorio-constitucional-abuso-principios-supremo-tribunal]. Acesso
em: 31 mar. 2014.
75
34
da aplicação de princípio(s) ao sabor do intérprete, implicando na negação da própria
consistência das decisões.78
A ponderação casuística não apresenta perspectiva de longo prazo e fica
dependente da constelação concreta de interesses envolvidos em cada caso, servindo menos
como uma técnica excepcional de redução do valor-surpresa dos julgamentos futuros, e mais
como meio de acomodação de interesses que circulam ao largo do Estado de Direito e da
democracia.79
Ademais, a elevação de um princípio constitucional ao patamar de “bem
maior” e de elemento unificador do ordenamento jurídico, pode levar a um moralismo
incompatível com o funcionamento da sociedade complexa hodierna, que convive com
diferentes pontos de vista a respeito do significado de um determinado princípio. Isso ocorre,
na visão de Neves, com a absolutização da dignidade da pessoa humana, que parece assumir
forma de superprincípio imune a qualquer tipo de restrição, mesmo às constitucionalmente
legítimas, por vezes veiculadas por outros princípios constitucionais, ou até por regras
extraídas da Constituição.
Tendo em vista essas considerações críticas de Marcelo Neves, o modelo
adequado de juiz por ele proposto deve ser capaz de resolver com sucesso uma relação que
enxerga como paradoxal no Direito contemporâneo: a relação complexa entre regras e
princípios jurídico-constitucionais.
Essa relação paradoxal é nota característica do Estado de Direito e do
sistema jurídico da moderna sociedade plural e diferenciada, marcada pela crescente
politização de temas relevantes para o convívio social que impede, diante da existência de
diversas racionalidades parciais conflitantes80, a aceitação geral das decisões políticas.
Assim, somente é possível falar em valores morais socialmente
compartilhados, com o reconhecimento do dissenso generalizado em torno de expectativas e
interesses, como inexorável na sociedade moderna.81 O pluralismo social significa que todos
os valores podem apresentar-se igual e livremente no âmbito dos procedimentos políticos e
jurídicos estabelecidos na Constituição Federal.
78
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: regras e princípios constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, p. 190-192.
79
Id. Ibid., p. 196.
80
Id. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 23-24.
81
Id. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 127-129.
35
Sendo a sociedade moderna marcada pela complexidade82 e por relações
impessoais, torna-se relevante averiguar o papel a ser desempenhado pelo Direito na função
de ordenador de expectativas futuras. Nesse contexto é que se pode falar do conceito de
“universalismo-procedimental”, entendido como uma ferramenta a ser utilizada pelo Estado
Democrático de Direito na tarefa de fomentar e absorver as contrárias tendências presentes na
vida societária.
Isto significa que Direito e sociedade estão imbrincados no nível
procedimental, isto é, as diversas visões de mundo são passíveis de prevalecer eventualmente
nos procedimentos democráticos, atuando os sistemas politico e jurídico como mecanismos de
seleção de expectativas. Os procedimentos democráticos, por sua vez, não se legitimam
apenas porque viabilizam a luta pelo poder, mas fundamentalmente enquanto permanecem
constantemente abertos para a pluralidade social.83
À Constituição compete criar procedimentos viabilizadores da absorção do
dissenso e possibilitar a legitimação das expectativas através da imputação de significado
político e jurídico cogente a que todos devem respeitar. Logo, a legitimação do Estado
Democrático de Direito e, em particular, das normas jurídicas, ocorre “na medida em que não
se privilegia ou exclui a inserção de valores e interesses de determinados grupos, indivíduos
ou organizações nos procedimentos constitucionais.”84
Nesses termos, o Estado de Direito estaria fundado na “moral do dissenso”,
pressupondo o consenso a respeito dos procedimentos constitucionais, desde que estejam
acessíveis a potenciais influências no futuro, mesmo àqueles que, num determinado momento,
foram derrotados nos termos procedimentais.85
82
Complexidade social deve ser entendida como o processo de secularização que resultou na separação do
Direito de outras esferas sociais, tais como religião, moral, política, economia, etiqueta. Nesse sentido,
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 155.
83
Segundo Campilongo, a principal tarefa da política numa sociedade complexa é manter o contínuo incremento
das possibilidades de escolha e a contínua disponibilidade do trato da contingência. Ou seja, a cada decisão
tomada em respeito aos procedimentos legais e que se tornam vinculantes para a comunidade, correspondem
novas alternativas e demandas por outras decisões, possibilitando a reversibilidade das decisões e a abertura para
novos temas. A função da politica é justamente manter esse processo de valorização da complexidade, sendo a
democracia o pressuposto para sua manutenção. “Em última análise, governabilidade democrática importa em
capacidade de tomada de decisões coletivamente vinculantes, num contexto de múltiplas alternativas.”
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 71-73.
84
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã..., cit., p. 133.
85
Id. Ibid., p. 148.
36
Partindo-se de que a moral aponta para o reconhecimento do outro, um espaço de
moralidade no mundo da vida só pode ser concebido exatamente como âmbito de
viabilização do dissenso em torno de valores e interesses. Além do mais, com o
aumento da complexidade e da crescente diferenciação funcional da sociedade, o
respeito à autonomia das diversas esferas de comunicação transforma-se cada vez
mais em uma exigência moral. [...] O consenso moral que se impõe diz respeito aos
padrões de expectativas (princípios) que tornam possível e promovem a interação
dissensual. Estes não visam à busca de um resultado racionalmente consensual ou a
afastar o risco do dissenso. Destinam-se precisamente a promover o dissenso
provável e a tornar provável o dissenso improvável nas relações interpessoais. Nas
condições presentes da sociedade mundial, só os princípios de uma moral do
dissenso podem ter o caráter universalista e includente no sentido do acesso de toda
e qualquer pessoa, independentemente de seus interesses, expectativas e valores, a
procedimentos discursivamente abertos.86
A função atribuída à Constituição de absorção do dissenso pressupõe
conceituá-la como resultado da diferenciação funcional entre Direito e política como
subsistemas sociais.87 A Constituição é modernamente definida como “acoplamento
estrutural” entre Direito e política, possibilitando a diferenciação e a interpenetração entre os
dois sistemas originariamente autônomos, que funcionam (reproduzem-se) segundo regras
internas próprias.
A Constituição como acoplamento estrutural autoriza a interferência da
política sobre o Direito somente na forma mediatizada pelo código “lícito/ilícito”,
aumentando a possibilidade de aprendizado aos sistemas participantes.88 A Constituição não
isola o Direito dos outros sistemas sociais, mas define que os critérios para admissão das
influências dos demais subsistemas, e em particular do político, são fixados pelo próprio
direito positivo (filtragem) mediante seus procedimentos de modificação e adaptação
(legislação e jurisdição constitucional, por exemplo).
86
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã..., cit., p. 129-130.
Na terminologia da teoria dos sistemas, os subsistemas sociais, na medida em que se tornaram reciprocamente
autônomos com a superação da sociedade pré-moderna, passaram a se autodeterminarem por meio do controle
dos códigos-diferença específicos que permitem a reprodução de cada um deles. Assim, o Direito trabalha
exclusivamente com o código diferença “lícito/ilícito” – que ocorre com a positivação – e a política com o
código-diferença “poder/não-poder”. Os códigos sociais possuem duas funções principais: de um lado, permitem
a comunicação do sistema com seu ambiente, tornando possível a abertura cognitiva, e de outro são uma
condição para o fechamento operacional do sistema. Isso significa que o sistema jurídico pode assimilar, de
acordo com seus próprios critérios, fatores do ambiente, não sendo diretamente influenciados por eles. A
vigência normativa não é, em regra, determinada por interesses econômicos, religiosos, morais, pois depende de
processos seletivos de filtragem conceitual do interior do Direito, realizado através do código-diferença. A
capacidade de aprendizagem (abertura cognitiva) do sistema jurídico positivado possibilita que ele se altere para
adaptar-se às rápidas mudanças do ambiente. O fechamento operacional (normativo) impede a confusão entre
sistema jurídico e seu ambiente, exige a digitalização interna de informações provenientes do ambiente. A
diferenciação do Direito na sociedade não é outra coisa senão o resultado da mediação dessas duas orientações.
Sobre o assunto, NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.
127-140; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 65-71.
88
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 66.
87
37
O
acoplamento
estrutural
realiza-se
mediante
os
procedimentos
constitucionalmente instituídos (os judiciais, os administrativos, os legislativo-parlamentares,
os eleitorais e os democráticos diretos), conferindo legitimidade política ao Direito e
legitimidade jurídica à política, e, ao final, excluindo qualquer forma de subordinação
estrutural de um sistema sobre o outro.89
Ou seja, o acoplamento estrutural viabiliza o aprendizado do sistema
jurídico (abertura cognitiva), mantendo-o permeável ao influxo de novos valores e, também,
influenciando, em direção contrária, a política.90 Mediante o acoplamento estrutural, a
estrutura do Direito passa a ser relevante e, num certo sentido, imprescindível à reprodução da
política.91
A Constituição, por um lado, torna o código-diferença “lícito/ilícito” relevante para
o sistema político; isso implica que as exigências do Estado de direito e dos direitos
fundamentais passam a constituir contornos estruturais da reprodução dos processos
políticos de busca pelo poder e de tomada de decisões coletivamente vinculantes,
inclusive na medida em que decisões majoritárias democraticamente deliberadas
podem ser declaradas inconstitucionais. Por outro lado, torna o código-diferença
“poder/não poder” [...] relevante para o sistema jurídico. Isso significa que o
processo democrático de tomada de decisão política, no sentido de formação da
maioria, passa a constituir variável estrutural da reprodução dos procedimentos
jurídicos de solução e absorção de conflitos, inclusive na medida em que a produção
de normas jurídicas legislativas fica dependente das decisões políticas deliberadas
democraticamente e tomadas majoritariamente. 92
A Constituição pode ser compreendida sob outro enfoque, como um
instituto do sistema jurídico. A análise está centrada no funcionamento interno do Direito,
com relação à adequabilidade da produção de seus elementos. Como o Direito e os demais
subsistemas sociais são reciprocamente autônomos, o sistema jurídico precisa de critérios
internos para a aplicação jurídica concreta e para a produção de normas legais.
A Constituição funciona como a instância reflexiva mais abrangente do
Direito, permeando-lhe todos os âmbitos de validade, o material, o temporal, o pessoal e o
89
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 57-58.
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 241-242. Entendendo o acoplamento estrutural da Constituição como causa da inevitável
“politização da magistratura”, ver CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 60-61.
Marcelo Neves afirma que sem a existência desses vínculos estruturais entre sistemas que possibilita a
comunicação recíproca, haveria a tendência a autodestruição da sociedade. NEVES, Marcelo.
Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 34-35.
91
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., cit., p. 35. “O que é predefinido politicamente é compreensível
juridicamente mediante a Constituição.” (Id. Ibid., p. 62).
92
Id. Ibid., p. 57.
90
38
territorial (transversalidade do sistema). Nesse sentido específico, a Constituição estipula os
procedimentos básicos mediante os quais se pode ingressar no sistema jurídico, conferindo
consistência ao sistema jurídico e determinando que a constitucionalidade sobrepõe-se à
legalidade.93
Essa reflexividade imposta pela Constituição ao próprio sistema jurídico
implica a superação dos fundamentos externos ao Direito (jusnaturalistas) e resulta na
autofundamentação constitucional do Direito através do seu “fechamento” para outros
sistemas, já que passa a ser determinado por seus próprios elementos.94
Por outro lado, a Constituição admite o reingresso da política no Direito
mediante os procedimentos constitucionais, especialmente o legislativo, porém delimitando,
com a previsão dos mecanismos da reforma constitucional e das cláusulas pétreas, até que
ponto o sistema jurídico pode reciclar-se sem perder sua autonomia operacional.95
A definição da Constituição como acoplamento estrutural e como instituto
do sistema jurídico torna relevante a discussão sobre a consistência interna (autorreferência) e
adequabilidade externa (heterorreferência) do Direito.
Como já sublinhado, os sistemas sociais operam com base em seus códigos
próprios que lhes conferem unidade e fechamento operacional. O fechamento é condição para
abertura dos sistemas para as referências externas (ambiente) e, no caso do sistema jurídico,
somente é possível absorver as referências externas na medida em que estas se adaptam ao
código “lícito/ilícito”, do contrário, são irrelevantes para o Direito.
Embora o sistema jurídico possua requisitos exclusivos de autorreprodução
com base em operações internas, é certo que seus programas (textos e precedentes, leis e
contratos, regulamentos e práxis jurisprudenciais) podem ser alterados pela variação dos
elementos externos ao Direito, desde que, insista-se, possam ser mediatizados pelo código
“licito/ilícito”.
93
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., cit., p. 59. Usando a linguagem da teoria dos sistemas, há uma
reflexividade ao código “lícito/ilícito” no interior do sistema por meio do código
“constitucional/inconstitucional”.
94
Embora inexista vinculação da Constituição com nenhuma ordem moral hierarquicamente superior, é certo
que ela não resta bloqueada pelas diversas e incompatíveis expectativas de comportamentos sociais. De fato, a
não-identificação da Constituição com concepções abrangentes de caráter religioso, moral, filosófico, ideológico
etc., permite a ela promover a complexidade interna do sistema jurídico de forma adequada a seu ambiente
hipercomplexo. Ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 72-73.
95
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., cit., p. 56-62; NEVES, Marcelo. A constitucionalização
simbólica..., cit., p. 69-74.
39
Assim, a reprodução interna do sistema jurídico opera-se pela combinação
das referências interna e externa, e cabe ao Direito distinguir entre os interesses protegidos e
repelidos pelo sistema. Nesse contexto, a “Justiça [...] não seria a pura correspondência entre a
decisão e os interesses externos, mas sim a consistência das operações internas que
reconhecem e qualificam os interesses como protegidos ou repelidos pelo direito.”96
Diante dessa definição, a tarefa do sistema jurídico passa a ser a de oferecer
respostas, claras e justificadas, no caso de conflito (autorreferência consistente) e de garantir e
manter expectativas quanto aos interesses tutelados pelo Direito (heterorreferência adequada
ao ambiente). Em outras palavras, o sistema jurídico se vê envolto no dilema de equacionar as
variáveis da consistência jurídica de suas decisões e da adequação social do Direito.97
No âmbito da aplicação normativa da Constituição, o tratamento adequado
da questão está relacionado à relação entre princípios e regras constitucionais. Na concepção
de Marcelo Neves, a distinção entre os dois elementos somente é inteligível tendo em vista a
noção sistêmica da observação de primeira e de segunda ordem.
A observação de primeira ordem está relacionada aos usos e práticas
cotidianas de cumprimento/descumprimento do Direito por parte dos agentes sociais e da
burocracia estatal (celebração de casamento, compra de um imóvel, pagamento de
vencimentos de servidores públicos etc.), sem que os sujeitos questionem a validade das
normas a serem seguidas.
Já a observação de segunda ordem implica em um estágio posterior, de
desacordo a respeito da aplicação da norma a uma situação conflituosa. Aqui, instaura-se a
controvérsia argumentativa em torno do sentido, validade e condições de aplicação das
96
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico..., cit., p. 78.
Para Marcelo Neves, a autorreferência consistente do sistema jurídico decompõe-se em três elementos: a
autorreferência de base ou elementar, a reflexividade e a reflexão. A primeira significa a capacidade do sistema
de manter coerência interna entre seus elementos constituintes; por reflexividade deve-se entender que processos
referem-se a processos com base no mesmo código sistêmico de preferência; e reflexão significa que o sistema
reflete sobre sua própria identidade. Esses momentos podem ser relacionados à legalidade (autorreferência),
constitucionalidade (reflexividade) e dogmática jurídica (reflexão). A heterorreferência, por sua vez, está
relacionada aos elementos da função e prestação do sistema. A função diz respeito à relação do subsistema com a
sociedade como um todo, e no caso específico do sistema jurídico, realiza-se por meio da orientação congruente
de expectativas normativas futuras. Já a prestação é a relação do sistema com outros sistemas sociais, e no caso
do Direito, está estampada na tarefa de solução de conflitos que não podem mais ser resolvidos por outros
sistemas. No plano constitucional, a função do sistema jurídico de generalização congruente de expectativas é
possibilitada pela institucionalização dos direitos fundamentais e do Estado de bem-estar social. A prestação é
assegurada com o estabelecimento dos procedimentos constitucionais de resolução de conflitos. Sobre o assunto,
ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica..., cit., p. 153-160.
97
40
normas, tornando relevante a diferença entre regras e princípios constitucionais (no caso de
desacordo quanto à aplicação da Constituição) para o desenvolvimento do sistema jurídico.98
A partir do momento em que a base de sustentação do poder não está mais
associada a um padrão moral geral destacável das relações sociais, e isso é corolário da
positivação do Direito, os princípios metajurídicos deixam de atuar, na prática, como critério
de orientação normativa.
A solução para a questão se dá com a construção da noção de princípios
constitucionais, cuja função principal está na tarefa de filtrar as expectativas normativas
existentes no ambiente do sistema social com pretensão de se tornarem vinculantes.99 As
regras, com a ambição de atuar de forma definitiva na solução de controvérsias, mostram-se
insuficientes na missão de selecionar essas expectativas, posto serem subcomplexas para
oferecer critérios seletivos perante uma pluralidade desordenada de valores nas esferas
sociais.
Princípios e regras cumprem funções diferentes e complementares no
processo argumentativo. Os princípios constitucionais, por apresentarem certa distância do
caso a decidir e uma relação mais flexível entre o antecedente (hipótese normativa do fato) e o
consequente (hipótese normativa do efeito jurídico), são mais adequados a enfrentar a
diversidade de expectativas normativas que circulam na sociedade, sendo que, exatamente por
essa característica de generalidade, são subcomplexos perante o caso a decidir. As regras, por
sua vez, mostram-se mais adequadas para oferecer fundamento imediato à decisão
particular.100
Portanto, no âmbito do Estado Democrático de Direito a complexidade
desestruturada do ambiente, que implica uma pluralidade de expectativas normativas
contraditórias, “passaria por um crivo seletivo dos princípios, tornando-se complexidade
estruturável. Porém, só com a determinação da regra a aplicar ao caso a complexidade passa a
ser estruturada, tornando-se possível a subsunção mediante uma norma de decisão.”101
A relação entre regras e princípios não se esgota sob o parâmetro da
complementaridade entre eles, mas vai além e apresenta uma relação de circularidade no
98
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 99-100.
Nesse sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição..., cit., p. 254.
100
NEVES, op. cit., p. 118.
101
Id. Ibid., p. 119. Essa capacidade dos princípios constitucionais de apresentarem maior mobilidade na seleção
normativa das expectativas que circulam no ambiente social reforça seu caráter heterorreferente na argumentação
jurídica na medida em que apontam para algo já existente fora do sistema jurídico (p. 127).
99
41
plano da concretização, marcada por um modelo de articulação entre princípios e regras
constitucionais.
Na medida em que os princípios e as regras isoladamente considerados se
mostram incapazes de conferir unidade e coerência às decisões judiciais, em virtude de os
primeiros desprezarem a consistência jurídica e as segundas a adequação social do Direito,
conclui-se que existe uma implicação recíproca entre as categorias normativas.
Nesse sentido:
Os princípios constitucionais servem ao balizamento, construção, desenvolvimento,
enfraquecimento, fortalecimento de regras, assim como, eventualmente, para
restrição e ampliação de seu conteúdo. Em suma, pode-se dizer, com o devido
cuidado, que eles atuam como razão ou fundamento de regras, inclusive de regras
constitucionais, nas controvérsias jurídicas complexas. Mas as regras são condições
de aplicação dos princípios na solução de casos constitucionais. [...] Ou seja, caso
não haja uma regra diretamente atribuída a texto constitucional ou legal nem seja
construída judicialmente uma regra à qual o caso possa ser subsumido mediante uma
norma de decisão, os princípios perdem o seu significado prático ou servem apenas à
manipulação retórica para afastar a aplicação de regras completas, encobrindo a
inconsistência do sistema jurídico. [...] A relação reflexiva circular entre princípios e
regras implica uma fortificação recíproca das respectivas estruturas (normas) e
processos (argumentos).102
De outro lado, a mera invocação de princípios e regras extraídas da
Constituição para a solução de um caso é insuscetível de fornecer critérios para a decisão
final. Surge, ao longo do processo concretizador, uma etapa de seleção de quais princípios e
regras devem ser aplicados, sendo que os princípios indiretamente extraídos do texto
constitucional somente são aplicados através de regras completas que ofereçam critérios
definitivos para a solução do caso.103
Uma vez determinada a regra geral aplicada para o deslinde da controvérsia
por meio da etapa concretizadora, há redução do “valor-surpresa” da decisão de futuros casos
que contenham os mesmos suportes fáticos e normativos do(s) anterior(es). Entretanto, nada
impede que outras demandas, com os mesmos elementos fáticos e normativos, sejam
decididas de maneira diversa porque litígios cujos cernes argumentativos sejam constituídos
por princípios colidentes, expõem “uma racionalidade que é fortemente marcada pela
102
103
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 134-135.
Id. Ibid., p. 138.
42
falibilidade, sendo superável pela introdução de novos argumentos principialistas: Hidra gera
novas cabeças.”104
É nesse contexto que se torna essencial a atividade argumentativo-decisória
do magistrado de fundamentar e justificar as razões que o levaram a tomar uma decisão. É
este imperativo que faz do procedimento argumentativo-decisório judicial um instrumento
mais propício para se decidir sobre questões de princípios.105
A disputa concorrente entre esferas sociais autônomas a respeito da
atribuição de sentido ao texto constitucional acarreta a existência de diferentes leituras e
modelos argumentativos a respeito da concretização de um mesmo princípio constitucional, o
que envolve a questão da colisão intraprincípios.
É relativamente comum que, numa contenda judicial em que se discute a
correta aplicação das normas constitucionais, as partes envolvidas invoquem o mesmo
princípio como razão de decidir em sentidos diametralmente opostos,106 denotando que “os
princípios variam conforme a esfera de comunicação em que se aplicam.”107
Como no caso da colisão intraprincípios não há choque entre dois princípios
antagônicos, mas sim expectativas normativas de diferentes esferas sociais a respeito da
aplicação de um mesmo princípio, torna-se relevante analisar o método a ser adotado para a
solução da controvérsia jurídica.
Nesse passo, cabem algumas considerações sobre importantes teorias em
voga, que procuram distinguir as regras dos princípios e os modos de aplicação de cada um
deles.
104
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 140. Segundo o autor, a possibilidade de modificação da
regra geral para solução do caso formulada por um Tribunal Constitucional relaciona-se com o problema da
incomensurabilidade da argumentação jurídica. De fato, a sociedade atual, marcada pela nota da
hipercomplexidade, apresenta visões múltiplas e antagônicas acerca da definição da própria Constituição, e por
extensão dos princípios constitucionais. Assim, não havendo uma ordem supraordenada a qual é possível apelar
no julgamento dos “casos difíceis”, o remédio seria criar caminhos para a preservação do dissenso estrutural e a
heterogeneidade social (dupla contingência). Em suma, essa perspectiva aponta para o fato de que sempre haverá
a possibilidade do surgimento de novas visões a respeito dos conflitos normativos que demandarão nova busca
por solução jurídica, com potencial, a depender do ponto de vista adotado, de alterar o julgado paradigma. A
argumentação jurídica, nesse particular, somente poderia evitar uma sobreposição de um sistema sobre o outro,
impedindo que se incidisse no perigo da desdiferenciação funcional, fenômeno típico de organizações sociais
pré-modernas (Id. Ibid., p. 141-160).
105
VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da constituição..., cit., p. 252.
106
A título exemplificativo, o princípio da dignidade da pessoa humana é usado em perspectivas diversas para
defender a legalidade ou ilegalidade da prática do aborto. E isso se repete com os outros princípios
constitucionais, na medida em que o principio da igualdade, da livre concorrência, da liberdade religiosa, da
educação, enfim, são tratados diversamente num litigio constitucional a depender da esfera de comunicação
analisada, na família, na religião, na economia etc.
107
NEVES, op. cit., p. 162.
43
Dworkin estabelece, de modo geral, três espécies normativas: as regras, os
princípios e as políticas. Regras seriam normas a serem aplicadas na solução de um litígio na
maneira tudo-ou-nada, isto é, diante dos fatos a serem subsumidos, ou a regra é válida, e será
aplicada no caso concreto, ou não é válida e será tida por descartável para o caso, podendo-se
incluir uma exceção para contornar a falta de aplicação.108 Assim, na relação de conflito entre
regras, apenas uma prevalecerá como válida, aplicando-se critérios internos previstos no
ordenamento jurídico.109
Os princípios, por sua vez, são logicamente diferentes das regras em
decorrência da natureza das ordens que veiculam.110 Eles possuem uma dimensão de peso ou
importância, ausente nas regras, que determina, diante de uma relação conflituosa, ser
obrigatório levar em conta a força relativa de cada um111, não sendo possível definir qual será
aplicado preferencialmente em uma situação concreta.
Ademais, o princípio não estabelece “condições que tornem sua aplicação
necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa
direção”112, mas não necessita de uma decisão particular. O princípio, para Dworkin, seria um
padrão que deve ser observado, não porque vá promover um melhoramento social, econômico
ou politico, mas sim “porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra
dimensão da moralidade.”113
Já “políticas” seria aquele padrão normativo que estabelece um objetivo a
ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, politico ou social da
comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum
estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas).
Os princípios jurídicos na visão de Dworkin apoiam-se na moralidade de
uma determinada comunidade politica e surgem no decorrer do processo histórico, sendo
aplicados somente após passarem no teste da coerência, cujo trabalho de descoberta a respeito
de qual princípio é coerente deve ser promovido pelo juiz Hércules.114
A concepção principiológica de Dworkin é passível de restrições, ao menos
nos moldes como proposto por Marcelo Neves. O apelo a uma ordem moral superior
108
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos..., cit., p. 39.
Id. Ibid., p. 41.
110
Id. Ibid., p. 39.
111
Id. Ibid., p. 42.
112
Id. Ibid., p. 41.
113
Id. Ibid., p. 36.
114
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 54-55.
109
44
compartilhada por todos os membros de uma certa comunidade ignora a característica
principal da atual sociedade complexa, marcada fundamentalmente pelo dissenso estrutural,
ou seja, por diferentes e antagônicas expectativas normativas em torno do sentido do texto
constitucional.
Dworkin despreza a relação de complementaridade entre os princípios e as
regras. Os princípios possuem a função de, conforme referido acima, selecionar as inúmeras
tendências do ambiente acerca de quais direitos e deveres constitucionais devem prevalecer,
sendo capazes de estruturar a complexidade desestruturada do ambiente do sistema jurídico,
enriquecendo, por outro lado, os potenciais da cadeia argumentativa dos intérpretes da
Constituição. As regras, por sua vez, têm a tarefa de reduzir a complexidade dos princípios,
contribuindo para a passagem de um estado inicial de incerteza para a solução final do
caso.115
Robert Alexy propõe um modelo de análise da distinção entre princípios e
regras de forma diversa da adotada por Dworkin. Para Alexy as regras não são aplicadas na
maneira do “tudo-ou-nada”, são normas que serão sempre satisfeitas ou não satisfeitas, sendo
que no conflito entre regras uma deve ser declarada inválida.116
Os princípios, para Alexy, são mandamentos de otimização que ordenam
que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas
existentes, podendo ser satisfeitos em graus variados a depender dos princípios e regras
colidentes num determinado caso concreto.117
A colisão entre princípios não acarreta a invalidade de um deles, mas
determina que um terá precedência em face do outro sob determinadas condições. O conflito
entre regras ocorre na dimensão da validade, enquanto a colisão entre princípios se dá na
dimensão do peso.
A verificação do princípio topicamente prevalecente se dá com o
sopesamento dos interesses conflitantes a fim de estabelecer qual dos interesses têm maior
peso no caso concreto (mandamentos de otimização).118 Para Alexy, portanto, “princípios são
115
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 57-58.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 92.
117
Id. Ibid., p. 90.
118
Id. Ibid., p. 94-95.
116
45
sempre razões prima facie e regras são, se não houver o estabelecimento de alguma exceção,
razões definitivas.”119
À teoria de Alexy podem ser apontadas objeções, em parte semelhantes, às
de Dworkin. Em primeiro lugar porque não está atenta à complexidade social, especialmente à
dupla contingência, em que visões concorrentes sobre direitos oferecem perspectivas opostas
a respeito de um mesmo princípio constitucional, o que afastaria as ideias de sopesamento e
otimização em busca de uma solução adequada.120
Em segundo lugar, existem situações nas quais, ao longo do processo de
concretização constitucional, regras antagônicas atribuídas à Constituição devem ser
sopesadas para, no final do processo interpretativo, chegar à regra aplicável. As regras não
teriam, assim, em certos casos, o caráter de razão definitiva, como quer Alexy, permitindolhes a aplicação da técnica da ponderação.
É oportuno mencionar, nesse ponto, que as teorias de Dworkin e Alexy,
embora tenham encontrado ampla ressonância na doutrina brasileira, com juristas de escol
adotando, em maior ou menor grau, aspectos consideráveis de ambas, receberam críticas
especialmente a respeito da distinção entre princípios e regras e ao modo de aplicação de cada
um deles.
Dentre os doutrinadores entusiastas, Luís Roberto Barroso faz uma
mixagem aleatória entre as teorias de Dworkin e Alexy ao prescrever três critérios distintivos
entre as categorias das regras e dos princípios: conteúdo, estrutura e aplicação.121 No plano do
conteúdo, as regras são entendidas como normas que se limitam a traçar uma conduta
enquanto os princípios identificam valores a serem preservados ou fins a serem atingidos
(políticas); trazem, ademais, um relato de corte axiológico, de índole moral, ou seja, veiculam
valores.
Quanto à estrutura normativa, as regras especificam os atos a serem
adotados pelo intérprete para sua correta aplicação, devendo este “dar o toque de humanidade
que liga o texto à vida real”. Já os princípios indicam estados ideais a serem alcançados e que
dependem, em certos casos, da concepção ideológica ou filosófica do intérprete para a efetiva
concretização do núcleo essencial que todo principio possui.
119
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais..., cit., p. 106 (grifos do autor).
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 83-88 e 169.
121
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 350.
120
46
Por fim, no âmbito da aplicação, regras e princípios distinguem-se na
medida em que as primeiras são aplicadas na maneira tudo-ou-nada, incidindo ao caso
concreto de forma automática por meio da subsunção; os princípios contêm um caráter ético e
valorativo e, diante da abrangência de temas que normatiza, podem se contrapor a outros
princípios de idêntica estatura jurídica, devendo reconhecer, nessas hipóteses, a dimensão de
peso de cada princípio conflitante. A solução do caso difícil se dará por meio da ponderação
de valores, bens, interesses e normas.122
Eros Grau, depois de enxergar na Constituição Federal princípios explícitos,
implícitos e princípios gerais de direito, os quais podem ser perfeitamente enquadrados nas
classificações de Dworkin (princípios e diretrizes), de Canotilho (princípios jurídicos
fundamentais,
princípios
políticos
constitucionalmente
conformadores,
princípios
constitucionais impositivos e princípios-garantia), e de José Afonso da Silva (normas
constitucionais
de
princípio,
normas-princípio
ou
normas
fundamentais,
normas
constitucionais de princípios gerais e princípios político-constitucionais), entende que a
aplicação/concretização desses “valores” ocorre por meio da ponderação dos princípios
explícitos e implícitos da ordem constitucional.123
Virgílio Afonso da Silva adota integralmente a metodologia de Alexy sobre
a diferença entre regras e princípios, sendo as primeiras normas instituidoras de direitos ou
deveres definitivos e os segundos direitos ou deveres prima facie.124
Na vertente dos juristas críticos aos modelos de Dworkin e Alexy, podem
ser citados Lenio Streck e Humberto Ávila. Streck atribui aos princípios a função normativa
de impedir a discricionariedade ampla do intérprete (“fechamento interpretativo”) através do
recurso ao apelo a valores intersubjetivos partilhados pela comunidade, opinando que os
princípios estão positivados na Constituição porque refletem esses valores comuns. Os
princípios, ademais, conferem ao juiz a obrigação de decidir de forma correta em respeito aos
valores comunitários, concluindo que a obtenção da resposta correta é um direito
fundamental.125
122
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação..., cit., p. 350-362.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição..., cit., p. 154-164.
124
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 44, com a ressalva de que admite a hipótese de colisão entre uma regra e um princípio (Id.
Ibid., p.51).
125
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso..., cit., p. 57.
123
47
Ávila, de outro lado, sustenta que a distinção entre regras e princípios com
base no “modo final de aplicação” não se sustenta, eis que há situações em que as regras
passam por um processo de ponderação para sua aplicação, caso as circunstâncias concretas
indiquem a impossibilidade da aplicação na forma do tudo-ou-nada. Existem conflitos entre
regras e princípios, ou mesmo entre duas regras, sem que resulte, no último caso, na
eliminação de uma delas do ordenamento jurídico ou na inclusão de uma cláusula de exceção.
Para Ávila as regras também têm uma dimensão de peso em certas situações
que exigem do aplicador um trabalho ponderativo para atribuição das razões justificadoras da
regra. Dessa forma, princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se
demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos
decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
Já as regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a
avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos
princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da
descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.126
A colisão intraprincípio, tal como realçada por Marcelo Neves, impede a
conceituação dos princípios como mandamentos de otimização que veiculam direitos ou
deveres prima facie aplicados por meio da técnica da ponderação, posto que, nesse caso,
inexiste colisão entre princípios antagônicos. A maximização também estaria em xeque
porque importa na prevalência de uma determinada interpretação de um princípio em
detrimento de outras interpretações concorrentes, medida incabível no seio de uma sociedade
complexa como a atual.127
A forma de solucionar essa questão, para evitar o perigo da hipertrofia de
uma orientação normativa em desfavor de outra e de reorientar as expectativas normativas dos
envolvidos na controvérsia, é adotar uma “ponderação comparativa” entre as várias
perspectivas concorrentes dos princípios, fundamental para a adequação social do Direito, já
126
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. rev. atual.
ampl. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 40-64 e p. 78-79. Para uma crítica da posição de Ávila, ver SILVA,
Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 56-64.
127
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 165.
48
que não despreza o fato de que haverá uma absorção seletiva e excludente em face do
dissenso estrutural.128
Nessas circunstâncias, a decisão tanto mais se justifica quanto maior for sua
capacidade de impedir a hipertrofia de uma esfera social (economia, política,
midiática, científica, religiosa etc.), assim como de uma perspectiva de grupo,
organização, pessoa ou ordem jurídica na compreensão do respectivo princípio, sem
reprimir o dissenso estrutural, mas antes possibilitando-lhe e, inclusive,
estimulando-lhe a emergência em futuros casos. Em síntese, dentro de seus limites,
os juízes e tribunais constitucionais (em sentido amplo) também têm o papel de
reagir aos perigos da desdiferenciação (politização, economicismo, fundamentalismo
religioso, cientificismo, corporativismo, moralismo, domínio da mídia etc.) e da
negação da dupla contingência (a eliminação de alter por ego e vice-versa) no
processo de concretização constitucional. Para isso, têm que enfrentar
permanentemente o paradoxo da relação entre consistência jurídica, associada
primariamente à argumentação formal com base em regras, e adequação social do
direito, vinculada primariamente à argumentação substantiva com base em
princípios.129
Nesse passo, é de se ter que os princípios e as regras relacionam-se de forma
conflituosa. Se de um lado, a tendência a superestimar os princípios pode acarretar alto grau
de incerteza apta a abalar os quadrantes da segurança jurídica e solapar a consistência do
ordenamento, de outro, a profusão de regras tem como corolário o engessamento do sistema
normativo e o torna funcionalmente incapaz de lidar com os inúmeros problemas sociais,
incompatibilizando-o com a adequação social do Direito.
O tratamento adequado do relacionamento entre regras e princípios requer a
superação no plano argumentativo, em cada caso concreto, do paradoxo entre a consistência
jurídica (regras) e a adequação social (princípios).
A relação conflituosa entre regras e princípios se estende à própria Justiça.
Esta apresenta duas perspectivas: uma interna, relativa à tomada de decisão juridicamente
consistente; e outra externa, referente à tomada de decisão adequadamente complexa à
sociedade atual.130
Sem que se possa contar com uma solução juridicamente consistente, o
Direito perde sua racionalidade, posto que, do contrário, os julgamentos serão orientados por
fins particularistas sem significado jurídico-constitucional, incapazes de orientar condutas.
128
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 169.
Id. Ibid., p. 170 (grifos do autor).
130
Id. Ibid., p. 223-224.
129
49
De outro lado, a Justiça importa na adequação social do Direito, entendida,
na ótica de uma sociedade multifacetada, na capacidade de possibilitar a convivência não
destrutiva de diversos projetos e perspectivas sociais, levando à legitimação dos
procedimentos constitucionalmente estabelecidos, “na medida em que estes servem para
reorientar as expectativas em face do direito, sobretudo daqueles que eventualmente tenham
suas pretensões rejeitadas por decisões jurídicas.”131
Levando em consideração o exposto, Marcelo Neves apela à figura da
mitologia para desenvolver o modelo de juiz Iolau, adequado para lidar com o paradoxo entre
regras e princípios.
Diferentemente do juiz Hidra, o juiz Iolau não se subordina ao poder dos
princípios de se regenerar infinitamente em cada caso concreto. Não modifica sua posição a
cada invocação de princípios, deixando-se impressionar pela retórica principiológica.
Também, o juiz Iolau não regenera, ele mesmo e a cada caso novo, um
princípio para encobrir a sua atuação em favor de interesses particulares, vinculados ao poder,
à amizade etc. Isto é, não utiliza da retórica principiológica para impressionar as partes de um
processo judicial e dissimular sua prática juridicamente inconsistente.132
Por outro lado, o juiz Iolau não pode ser confundido com o juiz Hércules.
Iolau não se deixa levar por argumentos que insistem na simplificação do ordenamento
jurídico mediante o uso desenfreado das regras em nome de uma pretensa segurança jurídica,
impedindo o direito de oferecer respostas adequadas às complexidades sociais.
Iolau não se prende a argumentos lógico-formais, invocando uma posição de
superioridade intelectual para adotar regras criadas por ele mesmo para solucionar intrincadas
controvérsias jurídicas.
O juiz Iolau não é adepto do uso da técnica da ponderação a cada caso que
se apresenta, posto que tal prática não auxilia na redução do “efeito surpresa” na resolução de
idênticas questões no futuro. Não ignora a utilidade da ponderação, no entanto, procura usá-la
com parcimônia, preferindo a modalidade da “ponderação comparativa”, em busca do modelo
de sopesamento definitório que servirá para evitar novo recomeço a cada caso a ser julgado.133
131
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 225.
Id. Ibid., p. 222.
133
Id. Ibid.
132
50
Essa postura do juiz Iolau não tem a pretensão de eliminar o paradoxo
permanente da Justiça na busca por consistência e adequação. Antes, Iolau atua no sentido de
buscar topicamente um equilíbrio entre os princípios (argumentação substantiva) e as regras
constitucionais (argumentação formalista), pois tem a consciência de que numa sociedade
complexa essa questão nunca será superada plenamente devido a seu caráter contingente,
implicando na contínua abertura para outras possibilidades.134
De outro lado, o juiz Iolau é avesso à absolutização das regras e dos
princípios constitucionais com o intuito de oferecer soluções que contribuam para impedir a
expansão e o imperialismo de uma certa racionalidade em detrimento das outras.
Com o propósito de esclarecer se modelo de juiz Iolau teria correspondência
com a realidade, Marcelo Neves assevera, em tom conclusivo, que:
É possível que se suponha ser o juiz Iolau mais um ideal regulativo. Parece-me que
não. Se pensarmos nos limites paradoxais da justiça como fórmula de contingência
(ou de transcendência), poder-se-ia afirmar, com Derrida, que o juiz Iolau confrontase com “uma experiência do impossível.” E caberia concluir: na busca de equilíbrio
entre regras e princípios constitucionais, o juiz Iolau é, ele próprio, uma experiência
com o impossível. Para enfatizar a contingência, é mais plausível, porém, a seguinte
conclusão: o juiz Iolau é a experiência com o impossível.135
Desse modo, é de se supor que o modelo oferecido por Marcelo Neves não
pode ser perfeitamente encontrado na prática constitucional. Deve ser compreendido como
uma teoria hermenêutica que busca conferir racionalidade e previsibilidade (e, portanto,
controle social) aos julgamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal, evitando
decisionismos e arbitrariedades como consequência do uso indiscriminado e inflacionário dos
princípios constitucionais.
O título da obra em que Marcelo Neves apresenta o modelo de juiz Iolau é
bastante sugestivo a respeito do lugar que este deve ocupar para realizar com êxito a difícil
tarefa de desparadoxizar a própria Justiça: ele deve estar situado entre Hidra e Hércules.
134
135
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules..., cit., p. 226.
Id. Ibid., p. 227-228 (grifos do autor).
51
3 A liberdade de expressão como direito fundamental
A extensão do direito à liberdade de expressão deve ser interpretada, tendose em vista a concepção contemporânea do Estado Democrático de Direito. É somente a partir
daí que cabem questionamentos a respeito das razões da fundamentalidade do direito de
livremente expressar-se.
Colocando a questão em forma de pergunta, deve-se responder por que a
liberdade de expressão merece positivação constitucional sob o rótulo de direito fundamental?
A importância da liberdade de expressão levou todas as constituições
editadas no Brasil a preverem proteção a esse direito fundamental136, variando a amplitude da
garantia de acordo com o modelo político vigente em cada momento histórico.137
Os artigos da atual Constituição Federal que regulam o direito à liberdade
de expressão, a exemplo dos dispositivos que tratam dos direitos fundamentais de forma
geral, possuem redação por demais genérica, o que dificulta a determinação de seu exato
significado.
Não é possível determinar de antemão se o direito à livre expressão protege,
por exemplo, alguém que escreve e publica livro com ideias antissemitas, se beneficia um
grupo de pessoas que se reúne em local público para defender a legalização das drogas, ou se
pode ser invocada em prol do direito de um veículo de imprensa publicar notícias sobre
investigação criminal contra filho de ex-presidente da República.
A liberdade de expressão é uma das dimensões do direito geral à liberdade e
pode ser conceituada como o poder conferido aos cidadãos para externar opiniões, ideias,
convicções, juízos de valor, bem como sensações e sentimentos, garantindo-se, também, os
136
Os dispositivos das constituições que vigoraram no Brasil antes da atual que fizeram referência ao direito à
liberdade de expressão e pensamento são os seguintes: Carta Imperial de 25 de março de 1824, art. 179, IV;
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de Fevereiro de 1891, art. 72, §12. Constituição
da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, art. 113, inciso 9. Constituição dos Estados
Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, art. 122, inciso 15; Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de
18 de setembro de 1946, art.141,§ 5º, e art. 173. Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro
de 1967, art. 150,§ 8º.
137
PINTO, Felipe Chiarello de Souza. Os símbolos nacionais e a liberdade de expressão. São Paulo: Max
Limonad, 2001, p. 85-86.
52
suportes por meio dos quais a expressão é manifestada, tais como a atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação.138
Protegido pela disposição constitucional da liberdade de expressão, com
status de cláusula pétrea139, ao indivíduo é conferida a prerrogativa de pensar e acolher as
ideias que pareçam corretas, sem sofrer interferência do Poder Público ou da sociedade.140
A liberdade de expressão compreende o “direito de comunicar-se, ou de
participar de relações comunicativas, quer como portador de mensagens (orador, escritor,
expositor), quer como destinatário (ouvinte, leitor, espectador)”141, abrangendo a
comunicação em torno de informações, opiniões, sentimentos, propostas, por meio do uso da
linguagem, gestos, imagens ou mesmo o silêncio, e sob os mais variados temas (religião,
moral, política, ciência, história etc).
Owen Fiss estende o conceito de discurso protegido pela cláusula da
liberdade de expressão para incluir os discursos incitadores do ódio, a pornografia e o gasto
privado de dinheiro em campanhas eleitorais, assim como o ato de escrever livros e os
recursos e instituições destinados a sua distribuição ao público.142
O regime jurídico da liberdade de expressão admite uma dualidade quanto a
seu conteúdo. Nele está incluída a liberdade de expressão propriamente dita, ou em sentido
estrito, e a liberdade de informação, sendo esta uma espécie da primeira e englobada por
aquela.
Enquanto a liberdade de expressão propriamente dita consiste no direito de
participar de relações comunicativas exprimindo suas convicções, a liberdade de informação
assegura ao indivíduo o direito de ser informado e de ter acesso a dados e notícias sem sofrer
138
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009, p. 34-35.
139
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato; [...] IX - É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”; “Art. 60 [...]§4º - Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais.”
140
Segundo Kelsen, na medida em que uma conduta não é proibida pelo direito, isto é, inexiste previsão de
sanção para o ato, o indivíduo é juridicamente livre para realizar a ação. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.
Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 46.
141
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade de expressão. Florianópolis: Insular, 2008, p.
27.
142
FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública.
Tradução e Prefácio Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.
44-45, com a ressalva de que o autor entende legítima a regulação do discurso do ódio, da pornografia e do
financiamento de campanhas a fim de preservar a própria liberdade de expressão (p. 46).
53
ameaças ou impedimentos, totais ou parciais, por parte do Estado ou da sociedade.143 Assim
também aos meios de comunicação é assegurado o direito de produzir notícias (conteúdo) e
adotar a linha editorial que entender pertinente para a emissão da opinião.144
É fácil de ver que a liberdade de expressão do pensamento, portanto,
completa-se no direito à informação, livre e plural, que constitui um valor indissociável da
ideia de democracia. É um direito tão caro à cidadania que somente é viável sua suspensão, no
Brasil, na vigência do estado de sítio, decretado nas hipóteses previstas na Constituição
Federal.145
A cisão entre liberdade de expressão e de informação tem um importante
efeito prático relacionado aos requisitos necessários para a proteção e limitação de cada
direito. A garantia da liberdade de expressão não está condicionada à prova da veracidade da
opinião veiculada, exigência feita apenas para a liberdade de informação.
Como a liberdade de informação se refere a fatos, a divulgação destes deve
vir precedida de um trabalho de apuração sobre sua veracidade146, mesmo superficial e
condicionado pelas circunstâncias objetivas do caso. A liberdade de expressão em sentido
estrito, por se referir a ideias e opiniões, não está atrelada à verdade, ao passo que a liberdade
de informação, ao contrário, possui a verdade como limite (interno ou externo), uma vez que
se destina a dar ciência da realidade ao público.147
Nesse ponto é importante esclarecer que, ao se falar na verdade como limite
à liberdade de expressão, não se faz referência a um conceito absoluto de verdade, impossível
de ser alcançado. Como a definição de verdade varia historicamente, a época atual possui uma
visão particular do que pode ser considerado verdadeiro. Entendido menos como um padrão
objetivo de comportamento superiormente válido, fora do qual tudo deve ser reprimido, e
143
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 42.
SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão e pluralismo: perspectivas de regulação. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 205.
145
“Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa
Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I - comoção
grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o
estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. [...] Art. 139. Na
vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as
seguintes medidas: [...] III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das
comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;”
146
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 12.
147
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de
ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de
Direito Administrativo, n. 235, jan./mar. 2004, p. 19 e 23.
144
54
mais como um juízo relativo à questão da dupla contingência, que valoriza a plausibilidade e
o ponto de observação de outros participantes, torna-se pois, o conhecimento, produto da
interpretação e da intersubjetividade.148
Nesse contexto, Habermas enfatiza que
Visto que todos os discursos reais, que se desenrolam no tempo, são provincianos,
não podemos saber se os enunciados que hoje, mesmo em condições
aproximadamente ideais, são racionalmente aceitáveis se afirmarão também no
futuro contra tentativas de refutação.149
É por isso que a publicação de uma matéria jornalística, posteriormente tida
como falsa, não conduzirá inexoravelmente a uma condenação do veículo de comunicação.
Caso os profissionais tenham sido razoavelmente diligentes antes da publicação da notícia,
lançando mão de averiguações a respeito da origem do fato que chega a seu conhecimento,
estarão isentos de responsabilidade, desde que a matéria não seja uma invenção ou um
rumor.150
Independentemente da diferenciação que se faz entre a liberdade de
expressão em sentido estrito e a liberdade de informação, é certo que ambas são espécies do
gênero direito à liberdade de expressão, consagrado na Constituição Federal de 1988.
148
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 14. ed. São Paulo: Ática, 2012, p. 130; BAUMAN, Zygmunt.
Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p.
176-202; BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 25; SANKIEVICZ,
Alexandre. Liberdade de expressão..., cit., p. 29.
149
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução Milton Camargo Mota, São
Paulo: Loyola, 2004, p. 255, apud NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais
como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 205, nota de rodapé 90.
150
ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Acerca de la doctrina del tribunal constitucional em materia de libertad
de expresion. Revista de estudios políticos (Nueva Epoca). n. 77, jul./sep. 1992, p. 245. O Superior Tribunal de
Justiça parece ter adotado esse posicionamento no julgamento de recente caso envolvendo os limites da liberdade
de informação jornalística. Um juiz de direito pediu a condenação de veículo de comunicação a pagar
compensação por danos morais por ofensa à honra objetiva, por conta da publicação de notícia sobre a existência
de investigação criminal que procurava reunir provas sobre a prática de fatos criminosos. Por unanimidade, o
Tribunal reverteu condenação de segunda instância sob o argumento de que a entidade responsável por prestar
serviços de comunicação não tem o dever de indenizar pessoa física em razão da publicação de matéria de
interesse público em jornal de grande circulação a qual tenha apontado a existência de investigações pendentes
sobre ilícito supostamente cometido pela referida pessoa, ainda que posteriormente tenha ocorrido absolvição
quanto às acusações, na hipótese em que a entidade busque fontes fidedignas, ouça as diversas partes
interessadas e afaste quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulga. A Corte aduziu ainda que, no
tocante à veracidade do que noticiado pela imprensa, a diligência que se deve exigir na verificação da
informação antes de divulgá-la não pode chegar ao ponto de as notícias não poderem ser veiculadas até se ter
certeza plena e absoluta de sua veracidade. O processo de divulgação de informações satisfaz o verdadeiro
interesse público, devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um
procedimento judicial, no qual deve haver cognição plena e exauriente dos fatos analisados (Resp. 1.297.567-RJ,
Rel. Min. Nancy Andrighi).
55
3.1 As justificativas instrumental e constitutiva da liberdade de expressão
Os termos abstratos com que vazada a liberdade de expressão, na atual
Constituição exige que se questione sobre os objetivos para a proteção desse direito, questão
de considerável importância para a interpretação e aplicação das suas disposições ao caso
concreto, especialmente nos casos controversos.
Nesse ponto, é possível arrolar duas justificativas gerais para a catalogação
da liberdade de expressão como direito fundamental: uma de natureza instrumental e outra
constitutiva (moral).
O objetivo instrumental para proteção da liberdade de expressão faz alusão
aos benefícios de que goza a sociedade com a permissão que as pessoas têm de poder falar o
que bem entenderem. Essa explicação para a liberdade de expressão “se baseia na adoção de
uma estratégia especial [...], uma espécie de aposta coletiva na idéia de que, a longo prazo, a
liberdade de expressão nos fará mais bem do que mal.”151
A justificativa constitutiva, por sua vez, agrega um valor intrínseco à
liberdade de expressão. Ela é importante não apenas por causa das consequências que
provoca, mas fundamentalmente porque obriga o Estado e grupos privados a tratar os
cidadãos adultos e capazes como agentes morais responsáveis, sendo esse um traço essencial
de uma sociedade política justa.
As duas justificativas gerais sobre a fundamentalidade da liberdade de
expressão, porém, não respondem de forma adequada à pergunta sobre os motivos que levam
a considerá-la um direito fundamental.
É preciso desdobrar cada um dos objetivos gerais em outros mais
específicos. Desse modo, o fundamento instrumental subdivide-se em três: (i) contribui para o
avanço do conhecimento e obtenção da verdade, (ii) representa uma forma de garantir a
democracia e (iii) mantém em equilíbrio os pratos da balança entre a estabilidade e a mudança
da sociedade. Por sua vez, o fundamento constitutivo promove a autossatisfação individual.
A defesa da liberdade de expressão como instrumento para o avanço do
conhecimento e descoberta da verdade está ancorada na ideia de que num contexto de debate
livre entre pontos de vista divergentes, os melhores argumentos prevalecerão por sua
151
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução de
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 319.
56
qualidade intrínseca, gerando um clima de busca da verdade, de críticas ao governo, e que
resulta no incremento da participação política dos cidadãos.152
A melhor prova da verdade de uma ideia é ela ser aceita após exposta ao
debate público, no que se convencionou chamar de “teoria do livre mercado de ideias”.153
A teoria do livre mercado de ideias propugna a busca da verdade do
conteúdo de uma afirmação por meio da competição entre dois ou mais pontos de vista, que
muitas vezes carregam ideias diametralmente opostas uns aos outros, dentro de um ambiente
plural e livre de interferências e constrangimentos.154
Exige-se que a maior quantidade possível de informação tenha sido
disponibilizada ao público ao menos uma vez. Essa postura limita consideravelmente o poder
estatal, aceitando-se o “risco inerente à expressão e respeito pela autonomia individual.”155
A ideia subjacente é a de que não há assunto cuja discussão deva ser
interditada. Segundo Ingo Sarlet e Carlos Molinaro:
Sabemos que muitas questões submetidas ao debate público podem constituir-se em
perigosas ou mesmo perversas armadilhas para a vida sociopolítica, mas ainda assim
não podem ou devem ser evitadas, ou, o que é pior, invisibilizadas. Com efeito, há
palavras que, a despeito dos significados que carregam, devem poder ser
pronunciadas, seja para o bem, seja para o mal, sem que aqui se esteja a incentivar
um maniqueísmo irracional e destrutivo. Aliás, importa frisar que o eventual
benefício ou prejuízo advindo de determinada manifestação revela-se, em geral,
apenas mediante diferenças de grau do sentido que lhes dá o intérprete. Além disso,
não se negligenciam os limites que dizem com a responsabilização dos que utilizam
a liberdade de expressão como instrumento de incitação ao ódio, para o ultraje à
honra, ou mesmo para insultar os sentimentos e as crenças de uma dada
152
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,
p. 234.
153
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 132. Essa função instrumental da
liberdade de expressão teve origem a partir do voto dissidente proferido pelo juiz Holmes da Suprema Corte dos
Estados Unidos em Abrahms vs. United States, em 1919. Segue trecho do voto de Holmes: “Quando os homens
perceberam que o tempo mudou muitas das concepções pelas quais eles lutaram, eles passaram a acreditar que o
verdadeiro bem é melhor alcançado pela livre troca de idéias – que o melhor teste para a verdade é o poder de
uma tese ser aceita na dura competição do mercado e que a verdade é o único fundamento sobre o qual seus
desejos podem ser realizados. Essa é sobre qualquer medida a teoria da nossa Constituição. É um experimento,
como toda a vida é um experimento. Enquanto esse experimento for parte do nosso sistema eu creio que
devemos ser eternamente vigilantes para impedir tentativas de acabar com opiniões que odiemos, ao menos que
elas representem uma ameaça imediata ao direito e aos objetivos mais urgentes da lei, requeridos para salvar o
país.” 250 U.S. 616 (1919), apud SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão..., cit., p. 27, nota de
rodapé 41.
154
Entendendo que a teoria do livre mercado de ideias é apanágio da visão neoliberal marcada pela tendência a
integração economia e política, ver MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão: dimensões
constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 250.
155
TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade de expressão. Tradução Frederico Bonaldo, São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 27.
57
coletividade, pois, se assim não fosse, estar-se-ia admitindo a própria afronta aos
princípios fundamentais e democráticos do Estado Democrático, justamente os
princípios que asseguram e legitimam o caráter fundamental da liberdade de
expressão. [...] O mais importante aí é a garantia de liberdade para a produção do
debate, bem como a afirmação da atribuição de responsabilidade aos atores sociais
envolvidos.156
A teoria foi posteriormente confirmada pela Suprema Corte em diversos
julgados157 e especialmente utilizada no famoso e polêmico caso “Documentos do Pentágono”
(New York Times vs. United States), tido como “um dos maiores conflitos sobre a liberdade de
imprensa” da história americana158.
Nesse julgado, o presidente americano em exercício, Richard Nixon,
afirmou que a conduta do jornal New York Times, de publicar documentos secretos
pertencentes ao governo sobre a realidade da Guerra do Vietnã, ameaçava a segurança
nacional. Por maioria de seis votos a três, a Suprema Corte decidiu que era lícito ao veículo
publicar os documentos, já que o órgão de imprensa tem o direito de colocar em circulação
informações ao menos uma vez.
A teoria do livre mercado de ideias, por outro lado, proíbe que a autoridade
pública intervenha para impedir previamente a difusão da informação, mesmo que a
publicação possa representar dano a direito fundamental de um indivíduo, sob o risco da
institucionalização do mecanismo da censura prévia.159
A repressão à liberdade de expressão é um castigo que atinge a sociedade
como um todo, penalizando aqueles que apostam no progresso geral da humanidade. Na
esteira da lição de Stuart Mill:
Fosse a opinião apenas um objeto pessoal, sem nenhum valor exceto para o seu
proprietário, e se o impedimento do usufruto dela fosse apenas um dano privado,
156
SARLET, Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto. Liberdade de expressão! [Superando os limites do
“politicamente incorreto”]. Revista da Ajuris, a. XXXIX, n. 126, v. 39, jun. 2012, p. 42-43.
157
Segundo Anthony Lewis, o posicionamento da Suprema Corte em favor da liberdade de expressão começou a
mudar no ano de 1931 com a apreciação do caso Stromberg vs. Califórnia, em que uma lei do Estado da
Califórnia que proibia a exibição de uma bandeira vermelha como sinal de oposição ao governo estabelecido foi
declarada inconstitucional, sob a influência dos votos dissidentes dos juízes Holmes e Brandeis em Abrahms vs
United States, Whitney vs. Califórnia e United States vs. Schwimmer (LEWIS, Anthony. Liberdade para as
ideias que odiamos: uma biografia da primeira emenda à constituição americana. Tradução Rosana Nucci. São
Paulo: Aracati, 2011, p. 52-57.
158
LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias..., cit., p. 65.
159
A Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente a censura prévia nos seguintes termos: “Art. 220. A
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo
não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. [...] § 2º - É vedada toda e qualquer
censura de natureza política, ideológica e artística.”
58
então poderia fazer alguma diferença se esse dano atingisse apenas algumas pessoas
ou muitas. Mas o prejuízo característico de silenciar uma opinião reside no fato de
que isto é roubar a raça humana, tanto a posteridade quanto a geração atual, tanto
aqueles que discordam da opinião quanto aqueles que a sustentam, e esses ainda
mais que os primeiros. Pois, se a opinião está certa, eles são privados da
oportunidade de trocar o erro pela verdade e, se ela está errada, eles perdem a
percepção mais clara e vívida da verdade, produzida pela colisão desta com o erro,
um benefício tão grande quanto o primeiro.160
O fundamento da busca da verdade não protege apenas as expressões
carregadas de componente político. Servem para uma variedade imensa de temas (história,
cinema, esportes, artes, música, ciência, religião, ensino etc.) e para valorações puramente
morais.
Isso porque, sendo correta a afirmação de Larry Alexander de que a
justificação da importância da liberdade de expressão com base unicamente na ideia de busca
da verdade é perigosa em decorrência da inexistência, em termos filosóficos, de uma verdade
acima das demais161, é certo, por outro lado, que adotar esse posicionamento como argumento
para admitir a supressão da circulação da informação conferiria um expressivo poder às
autoridades estatais de determinar o conteúdo das mensagens que podem ou não fazer parte da
esfera pública, acarretando o empobrecimento da qualidade do debate público e, em última
instância, da própria democracia.
Acrescentando ao conceito de verdade exposto na seção anterior, Jónatas
Machado enfatiza que:
A interpretação da liberdade de expressão com base na procura da verdade deve ser
valorada de uma forma que dê conta das suas debilidades epistemológicas e das suas
virtualidades cognitivas e comunicativas. Por um lado, preclude-se a sua
funcionalização relativamente a um qualquer dever moral de procurar a verdade
última das coisas, heteronomamente imposto. Num Estado Constitucional,
desvinculado de quaisquer metanarrativas oficiais, a existência e o sentido da
verdade são em si mesmos objecto de discussão, o mesmo sucedendo com qualquer
hipotético dever moral de procura da mesma. [...] Numa sociedade aberta, a
discussão deve reservar-se para as diferentes visões compreensivas do mundo que se
digladiam entre si. Ora, mesmo que se ponha em causa a competência racional e
moral-prática dos indivíduos, sempre se há-de concordar que é mais desejável um
sistema em que todos possam dar o seu contributo, do que um outro em que o
governo ou qualquer outra entidade tenha o poder de decidir o que as pessoas podem
dizer, mostrar, ouvir e ver.162
160
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução Ari R. Tank Brito. São Paulo: Hedras. 2010, p. 60.
ALEXANDER, Larry. Is there a right of freedom of expression? New York: Cambridge University Press,
2005, p. 128-129.
162
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 244-245.
161
59
Sustenta-se, ademais, que a liberdade de expressão é um direito fundamental
por representar uma forma valiosa de garantir o funcionamento da democracia e educar para a
tolerância.
A democracia repousa sob os fundamentos da soberania popular e da
proteção dos direitos fundamentais, estes garantidos em documento constitucional contra
modificação patrocinada pela maioria de ocasião.
Isso significa que as decisões políticas vinculantes da comunidade são
tomadas pelos cidadãos, diretamente ou por meio de representantes. No entanto, essas
escolhas possuem legitimidade, embora tomadas pela maioria da população, somente se
mantiverem hígidos certos direitos considerados necessários para o convívio social.
Robert Dahl sustenta que o regime democrático está presente com a
realização concomitante de cinco elementos: participação efetiva dos membros da sociedade
nas decisões políticas, igualdade de voto, aquisição de entendimento esclarecido sobre os
assuntos públicos, exercício do controle definitivo do planejamento das políticas públicas
adotadas pela comunidade, e inclusão de todos os adultos nos direitos previstos nas leis
fundamentais.163
Para Dahl esses critérios são fundamentais porque tratam todos os cidadãos
como politicamente iguais e abrem a possibilidade para os menos afeitos às questões públicas
obterem conhecimento específico que os habilitem a participar efetivamente do controle dos
atos do governo.164
Faz parte da lógica do sistema democrático a existência de um ambiente
público robusto e dinâmico, em que os temas de interesse geral possam ser debatidos com
ampla liberdade, e que seja franqueado aos cidadãos o acesso a toda espécie de opinião sobre
as mais variadas questões, permitindo-lhes formar seu convencimento e, consequentemente,
participar ativamente da condução da coisa pública e exercitar o autogoverno.165
A democracia confere aos cidadãos garantias de que a mentira e o engodo
na política poderão ser descobertos mais facilmente e os eleitores estarão capacitados para
tomar as melhores decisões públicas quando as discussões políticas forem travadas num
ambiente livre de impedimentos à expressão, propiciando o estímulo ao autogoverno do povo
e o controle sobre os atos dos governantes.
163
DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Unb, 2009, p. 49-50.
Id. Ibid., p. 52.
165
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 237.
164
60
O argumento da promoção da democracia assegura que a dissidência
política deve ser respeitada, mesmo a mais isolada, pois “se toda a humanidade, exceto uma
pessoa, tivesse uma opinião, e essa pessoa tivesse uma opinião contrária, a humanidade não
teria mais justificativas para silenciá-la do que ela para silenciar a humanidade.”166
É fácil de concluir que existe uma íntima ligação entre a liberdade de
expressão, a democracia e o ideal republicano da participação cívica na vida pública, este
entendido atualmente não apenas como um direito dos cidadãos, mas um “dever dos
indivíduos de falar livremente sobre os assuntos de interesse comunitário, acentuando-se a
responsabilidade especial de vigilância permanente que anda associada ao auto-governo.”167
A positivação do direito fundamental à liberdade de expressão, seja em
textos constitucionais escritos, seja por meio de reiteradas decisões judiciais, tem um
importante aspecto contramajoritário de proteção das minorias (raciais, étnicas, sexuais,
nacionais).
Com efeito, tomando-se como natural a tendência da maioria de utilizar atos
formais ou informais de repressão para sufocar as vozes dissidentes a fim de que não
propaguem juízos contrários aos costumes, tradições, instituições ou convenções vigentes,
encontramos no direito à liberdade de expressão um obstáculo à pretensão de hegemonia,
incutindo nas pessoas a consciência da necessidade de ser tolerante. “Se os direitos de
expressão das minorias e dos dissidentes são assegurados, a mensagem endereçada é a de que
o respeito à diversidade de pensamento é uma virtude que as pessoas devem praticar.”168
Ingo Sarlet e Carlos Molinaro mencionam interessante passagem que retrata
claramente a enorme força dos atos informais de repressão à livre expressão.169 Os autores
fazem alusão a um episódio protagonizado pelo escritor e romancista Günter Grass, vencedor
do Prêmio Nobel de Literatura de 1999. Em abril de 2012, Grass publicou artigo em um jornal
alemão em que fazia críticas à questão Israel-Irã e às potências ocidentais, em especial à
própria Alemanha, fornecedora de material bélico para Israel.
Segundo ele, o Ocidente seria conivente com a política militar imposta por
Israel contra o Irã, responsável por milhares de mortes no país persa e cuja justificativa é a
intenção deste país em produzir uma bomba atômica. Grass acentua as exigências feitas por
166
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade..., cit., p. 59-60.
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 260.
168
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 67.
169
SALERT, Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto. Liberdade de expressão!..., cit., p. 39.
167
61
organismos internacionais em face de Teerã para enriquecimento de urânio sem que o mesmo
seja feito com Israel, detentor de arsenal atômico. Por fim, Grass questiona se não seria Israel
o grande vilão da paz mundial.
O posicionamento de Grass poderia ser contabilizado como mais uma crítica
à intrincada guerra não declarada existente entre Israel e Irã, não fosse seu passado de
colaboração com o regime de Hiltler. Com efeito, noticiam Sarlet e Molinaro que Grass
publicou em 2006 um livro de memórias em que confessou ter, aos dezessete anos de idade,
servido a Waffen-SS, composição militar responsável por muito dos crimes contra a
humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial.
As palavras de Grass provocaram intensa celeuma em âmbito internacional,
com acusações de veículos de comunicação de que o escritor alemão estaria a fabricar os
fatos, a ponto de o Primeiro-Ministro israelense Benjamin Netanyahu afirmar que as
declarações de Grass são ignorantes e vergonhosas e o Ministro do Interior Eli Yishai ter
colocado o romancista na lista dos indesejáveis de Israel.
Sarlet e Molinaro concluem que as reações da mídia internacional e dos
políticos de acusar Grass de antissemitismo fazem parte de uma campanha de desmoralização
do escritor e refletem a tensão existente entre “liberdade de expressão” e “correção política”,
que tem o potencial de subtrair da discussão pública opiniões por mais importantes que sejam,
notadamente nos casos em que a intenção não é disseminar o ódio, mas apenas criticar
Estados e Governos.170
Com a mudança dos enfoques teórico e pragmático da teoria democrática
em favor do conceito deliberativo, vê-se que a justificação da liberdade de expressão como
mola propulsora da democracia é a mais importante das razões de sua fundamentalidade.
De fato, a democracia, como visualizada nos dias atuais, pressupõe a
existência de uma sociedade descentralizada, a qual constitui uma arena pública altamente
diversificada, preparada para a percepção, a identificação e o tratamento dos problemas de
toda a sociedade.171
A concepção deliberativa da democracia considera a participação dos
cidadãos nas deliberações e nas tomadas de decisão o elemento central da compreensão do
processo democrático. E isso envolve não apenas a institucionalização de procedimentos para
170
SALERT, Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto. Liberdade de expressão!..., cit., p. 39-62.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 24.
171
62
a formação da vontade, mas também a existência de uma rede informal de comunicação
(esfera pública informal) imune a regulações prévias de conteúdo em que, a rigor, qualquer
assunto ou questão problematizável pode ser tematizado publicamente, passando por um
processo de depuração ao longo da cadeia de filtragem até obter aprovação institucional.172
Do exposto se conclui que, entre os modelos de Estado de direito
apresentados no primeiro capítulo, o direito fundamental à liberdade de expressão somente
pode ser compreendido no âmbito do Estado Constitucional de Direito.
Com efeito, a liberdade reconhecida de livremente expressar opiniões deve
ser tida como um direito contramajoritário, uma vez que cada cidadão, individualmente
considerado, possui a prerrogativa de opor-se à maioria de ocasião e utilizar argumentos que
contrariem todos os demais, ao mesmo tempo em que as minorias têm o direito de externar
sua discordância sobre determinada política pública e demonstrar a eventual superioridade de
seu programa político.173
Por outro lado, uma ordem jurídica calcada nas premissas do Estado
Legislativo de Direito, cuja legitimidade advém do mero respeito ao procedimento de
elaboração legislativa, mostra-se evidentemente incompatível com as dimensões da liberdade
de expressão, posto que a maioria pode impor à minoria pensamentos e condutas dominantes
mediante a promulgação de atos normativos que apenas seguiram o rito processual.
No que toca à obrigação da tolerância social com os diferentes tipos
discursivos, importante questão se relaciona com o potencial agressivo dos conteúdos
expressivos especialmente aqueles direcionados em desfavor de grupos sociais alvos de
discriminações, os denominados discursos do ódio.
Nesses casos têm-se um interessante dilema envolvendo a acomodação do
princípio da igual dignidade e liberdade de todos com a necessidade de assegurar a
integridade de uma esfera de discurso público aberta e pluralista.
Duas frentes teóricas ganham destaque nessa questão: uma de corte liberal
propugna ser importante a manutenção de uma estrutura comunicativa livre de intervenção
estatal em que as diversas perspectivas estabeleçam uma relação de confrontação pública
entre si à margem de qualquer órgão de censura politicamente correto dotado de competência
para discernir as boas das más ideias. De outro lado, o caráter irracional e coercitivo que o
172
173
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia..., cit., p. 40-41.
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 52.
63
discurso pode assumir é realçado por outros, pois a presença sistemática de preconceito atenta
contra a razão de ser do ambiente plural, além de bloquear o atendimento da experiência real
dos grupos minoritários.
Sobre o tema, Machado assim se pronuncia:
A valoração e proscrição de qualquer das opiniões em confronto implicaria a
existência de um sistema de censura, o qual teria naturalmente uma tendência
expansiva, razão pela qual uma doutrina de restrição do discurso a partir do ódio [...]
em nome de uma moralmente correcta política do amor tem que ser objecto da
maior precaução, sob pena de a “nova liberdade de expressão” acabar por se
confundir com a “velha censura”. Recorde-se que uma das funções da liberdade de
expressão consiste em proporcionar uma alternativa à violência física na libertação
de sentimentos e tensões acumuladas, incluindo o ódio, ou especialmente o ódio.
Quando muito, o referido equilíbrio poderá passar pela limitação de formas extremas
de discurso ostensivamente produzido, na sua forma e no seu conteúdo, tendo em
vista estigmatizar, insultar e humilhar um determinado grupo, seja ele minoritário ou
maioritário, para além de qualquer objectivo sério de confronto de factos, ideias e
opiniões. [...] No entanto, ele [o princípio da igual consideração e respeito] não pode
ser utilizado para subtrair à discussão temas tão importantes como a identidade dos
grupos sociais e as suas relações com os indivíduos, nem sempre isentas de coerção
e discriminação.174
Outro argumento normalmente levantado para justificar as funções da
liberdade de expressão diz com a capacidade desta de manter em equilíbrio os pratos da
balança entre a estabilidade e a mudança da sociedade.
Nesse aspecto, a liberdade de expressão agiria como condição essencial para
garantir a estabilidade governamental, uma vez que um Estado garantidor da livre expressão é
forte e se defronta com poucas convulsões sociais, ao passo que um Estado autoritário
estabelece seu poder na arbitrariedade e no medo, estando sujeito a contestações por parte da
população.175
As pessoas têm razões para aderir aos ideais de um ordenamento jurídico
que respeita o direito fundamental da liberdade de expressão porque sabem que podem ser
beneficiadas com a transformação de seus pontos de vista em normas legais, desde que exista
uma esfera pública plural que possibilite o alcance das opiniões ao maior número de
indivíduos, bem como os procedimentos constitucionais estejam estruturalmente abertos à
inserção de seus valores e interesses.
Cláudio Chequer entende que:
174
175
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 847-848 (grifos do autor).
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 32-33.
64
A teoria da liberdade de expressão envolve [...] mais que uma simples técnica para
alcançar o melhor julgamento social; ela compreende uma visão de sociedade, uma
crença e um completo meio de vida. Ela é revigorada por uma ideia de uma nova
sociedade, na qual mentes humanas são livres e seu destino determinado pelo seu
próprio poder e razão. A liberdade de expressão é prescrita para alcançar uma
criação progressiva e excitante e uma comunidade intelectualmente robusta,
contemplando um meio de vida que encoraja a tolerância, o ceticismo, as reações e
iniciativas. Deseja que o homem realize suas potencialidades em plenitude,
rejeitando, por outro lado, a alternativa de uma sociedade tirânica, conformista,
irracional e estagnada.176
Consoante acentuado por Machado, a liberdade de expressão como garantia
da estabilidade governativa permite às pessoas tornarem conhecidos os seus desejos de
mudanças ou correção política, aumentando a probabilidade de tomada de decisões
apropriadas, bem como ensina a todos a respeitar a tolerância das diferenças, contribuindo
decisivamente para a estabilidade social. Isso porque, rejeitar o poder da discussão significa
aceitar o poder da força física.177
A justificativa constitutiva da liberdade de expressão (como realização
pessoal) apela para o caráter não consequencialista na proteção do direito. Com efeito,
segundo essa justificativa, a garantia constitucional da liberdade de expressão é um
imperativo da condição humana, isto é, funda-se na premissa de que a finalidade do ser
humano é a realização de suas características e potencialidades, incluindo a possibilidade do
exercício das faculdades racionais em sua plenitude, sendo condição da nossa própria
humanidade.178
Se o que diferencia o homem das demais criaturas vivas é a capacidade de
discernimento e de desenvolver processos de comunicação por meio da linguagem, atos e
gestos, isso significa que a ele deve ser conferida a prerrogativa de pensar e concluir por si
próprio, ou seja, ter assegurado o direito à autonomia de consciência.
Por direito à autonomia de consciência entende-se um âmbito de deliberação
intelectual sob o domínio exclusivo do indivíduo composto por convicções, crenças, opiniões,
sentimentos, preferências que, embora possam parecer despropositadas para alguns, ou
176
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 34.
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 284.
178
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 242.
177
65
mesmo para a maioria, estão incólumes à intervenção externa por representarem as mais puras
vocações humanas.179
É certo, no entanto, que em termos jurídicos a proteção tão somente das
crenças individuais é insuficiente, já que pensar e concluir em silêncio, sem a possibilidade de
exteriorizar as convicções, importa na consideração implícita de que o pensamento é ilegítimo
e, a rigor, não merece proteção caso venha a ser divulgado.
Para que o direito à livre consciência tenha repercussão social, é imperioso o
reconhecimento legal da dupla face do direito: em primeiro lugar, o indivíduo é digno, tanto
de possuir pensamento próprio, quanto de apropriar-se deles, resultando daí que se trata de um
direito não suscetível à expropriação ou confisco, ou seja, ninguém pode determinar a uma
pessoa o que pensar, sentir ou gostar. Em segundo lugar, ainda como corolário da condição
humana, o indivíduo detém a faculdade de expressar-se no âmbito comunicativo, em especial,
de comunicar aos outros o teor de seus pensamentos, sentimentos e crenças.180
É nesse contexto que a autonomia da consciência mantém íntima ligação
com o direito fundamental à liberdade de expressão181, reconhecendo-se que a liberdade de
consciência não é só um direito do homem ao pensamento próprio, mas também ao processo
de pensamento, isto é, a realização plena requer uma comunicação livre, vale dizer, liberdade
de expressão.182
Essa teoria estima a liberdade de expressão como um fim intrínseco, um
bem independente, um fim em si mesmo. Conforme assinala Dworkin,
[...] as pessoas moralmente responsáveis fazem questão de tomar suas próprias
decisões acerca do que é bom ou mal na vida e na política e do que é verdadeiro ou
falso na justiça ou na fé. O Estado ofende seus cidadãos e nega a responsabilidade
moral deles quando decreta que eles não têm qualidade moral suficiente para ouvir
opiniões que possam persuadi-los de convicções perigosas ou desagradáveis. Só
conservamos nossa dignidade individual quando insistimos em que ninguém – nem
o governante nem a maioria dos cidadãos – tem o direito de nos impedir de ouvir
uma opinião por medo de que não estejamos aptos a ouvi-la e ponderá-la. Para muita
gente, a responsabilidade moral tem um outro aspecto, um aspecto mais ativo: seria
a responsabilidade não só de constituir convicções próprias, mas também de
expressá-las para os outros, sendo essa expressão movida pelo respeito para com as
179
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 59.
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 61.
181
ZISMAN, Célia Rosenthal. A liberdade de expressão na constituição federal e suas limitações: os limites dos
limites. São Paulo: Livraria Paulista, 2003, p. 29-30.
182
MARTINS NETO, op. cit., p. 63.
180
66
outras pessoas e pelo desejo ardente de que a verdade seja conhecida, a justiça seja
feita e o bem triunfe.183
A exposição dos fundamentos da liberdade de expressão é relevante na
medida em que define os atos comunicativos que merecem proteção constitucional. Na
realidade, como este direito fundamental protege a expressão propriamente dita,
comunicações desprovidas de caráter expressivo não gozam de amparo constitucional, e
podem ser reprimidas legislativamente por não se beneficiarem de qualquer dos fundamentos
da liberdade de expressão, ou seja, não promovem a satisfação do indivíduo, não possibilitam
o avanço do conhecimento e da verdade, não se relacionam com a promoção da democracia e
não são aptas a ensejar mudança social.184
As teorias constitutiva e instrumental não conferem a mesma força protetiva
à liberdade de expressão, podendo ser escalonadas em grau de importância.
Para Dworkin, a justificativa instrumental é mais frágil e mais limitada do
que a constitutiva. Frágil porque a razão instrumental se apoia em teses que, em última
análise, acabam por minar a própria liberdade de expressão. E é mais limitada, ao contrário da
faceta constitutiva, porque pugna pela proteção apenas dos discursos com propósitos
políticos.185
Tomando como correta a gradação feita por Dworkin, não seria lícito, então,
invocar o princípio da liberdade de expressão em favor da ciência, da literatura, da
independência acadêmica, das artes, ou das decisões pessoais tomadas por cada cidadão
quanto ao rumo a ser dado em suas vidas.186
A liberdade de expressão, portanto, teria uma única finalidade: proteger as
modalidades de expressão com conteúdo claramente político. E, mesmo aqueles que
defendem sua extensão para as artes ou a ciência, insistem na tese de que o discurso deve
derivar dessa função principal.187
183
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 320.
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 47.
185
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 321.
186
Por conta da necessidade de proteger os discursos além do aspecto meramente político, Dworkin entende que
manifestações extremamente polêmicas como o discurso do ódio devem ser permitidas. DWORKIN, op. cit., p.
325-327. Em sentido contrário, defendendo que é errôneo admitir uma interpretação tão extensiva ao princípio
da liberdade de expressão, ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Acerca de la doctrina..., cit., p. 246-248.
187
DWORKIN, op. cit., p. 322.
184
67
O perigo de traçar essa linha fronteiriça, entre o que é atingido e não
atingido pela amplitude da liberdade de expressão, está em admitir a interferência estatal no
conteúdo da expressão propagada.
Quando se disse que o ato comunicativo atende ao predicado da liberdade
de expressão no momento em que realiza uma das suas justificativas, foi para asseverar que o
valor expressivo é ideologicamente neutro, isto é, independente do tema do discurso.188 É
exatamente esse o cerne da finalidade constitutiva da liberdade de expressão: as pessoas
querem viver numa sociedade que incentiva a responsabilidade moral individual, e que
censura qualquer intervenção no conteúdo da manifestação do pensamento.189
3.2 A restrição da liberdade de expressão e pensamento e os direitos da personalidade
As razões arroladas acerca da fundamentalidade do direito à liberdade de
expressão não conduzem, no entanto, à conclusão sobre a inadmissibilidade da restrição ao
direito à liberdade de expressão e pensamento.
O estudo do conteúdo e alcance dos direitos fundamentais é aferível com a
inclusão de cláusulas de restrição que auxiliam na clarificação dos exatos limites a que estão
sujeitos, definindo melhor o núcleo essencial de cada direito fundamental, aí incluída a
liberdade de expressão.
A relevância prática na análise dos direitos fundamentais está precisamente
no estudo de suas restrições, não sendo exagerado dizer que estudar os direitos fundamentais é
estudar suas limitações.190 O tema da limitação dos direitos fundamentais faz parte, pois, de
sua dogmática.191
O conceito de restrição de um direito fundamental pressupõe a existência de
dois elementos: o direito e a restrição.192
188
MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da liberdade..., cit., p. 75.
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade..., cit., p. 327.
190
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012, p. 395.
191
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33.
192
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 277.
189
68
Nessa perspectiva, é possível entrever duas categorias distintas. Em
primeiro lugar, o direito em si antes da restrição, na sua modalidade absoluta. Em segundo
lugar, o que restou do direito após sofrer o processo de restrição, ou seja, o direito
restringido.193
De modo geral, a dicotomia entre o direito e a restrição é a característica
principal da denominada teoria externa dos direitos fundamentais. Segundo ela, as restrições,
quaisquer que sejam suas naturezas, não têm influência no conteúdo do direito, podendo
apenas, no caso concreto, restringir seu exercício.194
A teoria externa sustenta a tese de que, embora nos ordenamentos jurídicos
os direitos apareçam de forma restringida, eles são concebíveis sem restrições e a exigência de
efetuar a limitação a um direito se dá nas hipóteses, externas a ele, nas quais é preciso
conciliar os direitos de diversos indivíduos ou direitos individuais e interesses coletivos.
A adoção da teoria externa pressupõe filiação à tese de que os direitos
fundamentais (a liberdade de expressão incluída) possuem um amplo suporte fático de
proteção, ou seja, “toda ação, estado ou posição jurídica que tenha alguma característica que,
isoladamente considerada, faça parte do „âmbito temático‟ de um determinado direito
fundamental deve ser considerada como abrangida por seu âmbito de proteção”, sem que se
indague a respeito de outras variáveis, consideradas em momento posterior no processo de
ponderação.
Assim, da pergunta sobre o que seria protegido pelo direito à liberdade de
expressão e pensamento, conclui-se que a resposta é propositalmente ampla, ao afirmar que
toda e qualquer manifestação, independentemente do conteúdo, forma, veículo, local, dia e
horário recebe, a priori, o beneplácito constitucional.195
Partindo de pressuposto diametralmente oposto, a teoria interna dos direitos
fundamentais não admite a contraposição em categorias autônomas entre o direito e a
restrição, mas sim a ideia de um direito com determinado conteúdo.
193
MENDES, op. cit., p. 40.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrição e eficácia. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 138.
195
Id. Ibid., p. 109.
194
69
Para a teoria interna, a definição dos limites de um direito é algo interno a
ele, por isso o nome da teoria. Assim, existe somente um objeto de consideração: o direito
com seus limites imanentes, não havendo que se falar em restrição.196
Segundo Virgílio Afonso da Silva, o processo de fixação dos limites não é
definido nem influenciado por aspectos externos, sobretudo não por colisões com outros
direitos. Em termos de estrutura normativa, os direitos definidos a partir do enfoque da teoria
interna têm sempre a estrutura de regras, não admitindo, assim, o uso da técnica do
sopesamento.197
A postura da teoria interna de rejeitar a necessidade de restrições aos
direitos fundamentais acarreta a utilização de dois artifícios argumentativos principais: os
limites imanentes dos direitos fundamentais e a concepção institucional dos direitos
fundamentais.
Na perspectiva dos limites imanentes dos direitos fundamentais, propugnase que os direitos fundamentais não são absolutos, pois têm seus limites definidos, implícita
ou explicitamente, pela própria Constituição. O recurso à ideia de “limites” está justificado na
medida em que não se fala em restrições aos direitos ou colisões entre eles, mas apenas em
limites que estão previamente presentes na Constituição.
A diferença entre os limites imanentes (teoria interna) e as restrições a
direitos fundamentais decorrentes de colisões (teoria externa) é facilmente traduzível pelo
binômio declarar/constituir. Enquanto no âmbito da teoria externa as restrições a direitos
advindas das colisões entre posições jurídicas constituem novos conteúdos aos direitos, no
caso da teoria interna a interpretação constitucional apenas declara conteúdos previamente
existentes.
A concepção institucional dos direitos fundamentais, tal como exposta por
Virgílio Afonso da Silva a partir das lições de Peter Häberle, tem como ponto de partida a
rejeição da noção corrente de que a liberdade é mera esfera de autonomia individual a ser
protegida contra a atividade estatal.198
Para Häberle a ideia de direitos fundamentais deve ser considerada como
uma ideia-diretriz, isto é, que está enraizada na comunidade e desenvolve sua realidade social
ao mesmo tempo em que a define. A instituição da noção de direitos fundamentais no seio
196
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais..., cit., p. 397.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 129.
198
Id. Ibid., p. 134.
197
70
social não é obra exclusiva da Constituição e de seu complexo normativo, mas sim da
atividade do legislador e de todos os titulares dos direitos fundamentais, tal como um
processo contínuo que recebe a colaboração constante dos titulares dos direitos fundamentais
e do legislador.
A liberdade é entendida como algo criada e desenvolvida no âmbito e a
partir do Direito, regulada e delimitada pelo Direito, não havendo que se falar, a exemplo das
teorias contratualistas, de liberdade natural ou pré-jurídica. A atividade legislativa ordinária
não é uma atividade restritiva da liberdade porque a liberdade não é preexistente que possa ser
restringida pelo legislador, mas ao contrário, é criada por ele.199
A teoria interna adota, ao contrário da teoria externa, o modelo de suporte
fático restrito, excluindo, de antemão, condutas e posições jurídicas do âmbito de proteção
dos direitos fundamentais que poderiam, ao menos em tese, estarem neles incluídas.200
O grande problema desta corrente teórica, salientado por Ingo Sarlet, reside
na obscuridade que ronda a definição do que é protegido e do que não é protegido pela norma
de direito fundamental. Como não há critérios claros para excluir certas condutas do âmbito
de proteção de determinado direito, o ônus argumentativo para o intérprete resta seriamente
enfraquecido, aumentando o risco de restrições arbitrárias da liberdade e sentenças baseadas
em decisionismos.201
O tema da restrição à liberdade de expressão e pensamento necessariamente
aproxima esse direito fundamental dos denominados direitos da personalidade. Com efeito, a
forma extremamente vaga com que a Constituição Federal previu a liberdade de expressão e
pensamento dificulta a delimitação precisa de seu contorno conceitual, propiciando uma
permanente tensão com outros direitos fundamentais, especialmente os direitos da
personalidade202, ainda mais se levarmos em consideração a ressalva da parte final do art. 220,
parágrafo 1º da Constituição Federal.203
Os direitos da personalidade são aqueles “direitos que constituem o mínimo
necessário e imprescindível ao conteúdo da personalidade, sendo próprios da pessoa em si,
199
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 136-137.
Id. Ibid., p. 80.
201
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais..., cit., p. 398; SILVA, op. cit., p. 180-181.
202
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 02; DWORKIN, Ronald. O direito
da liberdade..., cit., p. 342.
203
“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística
em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.”
200
71
como ente humano, existentes desde o seu nascimento”, cujo objeto é formado pelos modos
de ser físicos ou morais do indivíduo.204
A doutrina costuma classificar os direitos da personalidade em dois grandes
grupos: os direitos à integridade física e os direitos à integridade moral. No primeiro grupo
está o direito à vida, o direito ao próprio corpo e ao cadáver. No segundo encontramos o
direito à honra, o direito à liberdade, o direito ao recato, o direito à imagem, o direito ao nome
e o direito moral do autor.205
Luís Roberto Barroso assinala que os direitos da personalidade possuem
duas características fundamentais que os tornam merecedores de especial proteção: além de
serem
direitos
atribuídos
a
todos
os
seres
humanos
em
geral
e
positivados
constitucionalmente206, são oponíveis tanto contra o Estado quanto contra a coletividade.
Outrossim, sua violação produz um prejuízo que muitas vezes escapa da esfera econômica ou
patrimonial, requerendo outras modalidades de tutela, como o direito de resposta, a
divulgação de desmentidos e/ou indenização de natureza moral.207
Os direitos da personalidade que mais de perto interessam ao tema da
liberdade de expressão, diante do alto índice de confronto verificado na prática judiciária, são
os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria imagem.
A honra, como atributo da personalidade de status constitucional, qualificase como direito inerente à dignidade da pessoa humana, cuja proteção independe de
consideração a respeito da raça, sexo, religião ou cor, bem como reclama proteção tanto no
aspecto objetivo, referente a reputação desfrutada pela pessoa no ambiente social em que vive
(consideração dos outros pela dignidade do indivíduo), quanto no aspecto subjetivo, sendo a
estimação da pessoa sobre a sua dignidade moral (dignidade da pessoa refletida no sentimento
próprio).208
204
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a
liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 106-107.
205
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: ______.
Temas de Direito Civil. Cap. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 35.
206
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem; [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;”
207
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 12.
208
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos..., cit., p. 109.
72
É assente que a honra encontra limite na circunstância de o fato imputado a
determinada pessoa ser verdadeiro (exceptio veritatis), caso em que não seria possível opor a
honra pessoal à verdade, com exceção, no Brasil, de algumas hipóteses nos crime de calúnia e
difamação e, em regra, vedado no crime de injúria.
Barroso aponta três fatores que, de modo geral, admitem a divulgação de
notícias veiculadoras da prática de crime e/ou da existência de investigação criminal sem que
se possa invocar a proteção à honra para proibir sua divulgação ou requerer reparação
pecuniária. São eles: a circunstância de os fatos criminosos serem verdadeiros e a informação
a respeito deles ter sido obtida licitamente, o fato de os atos criminosos repercutirem sobre
terceiros e a coletividade, e a existência de interesse público específico na prevenção geral,
própria do Direito Penal, de desestímulo aos potenciais infratores.209
A intimidade e a vida privada decorrem do reconhecimento da existência de
espaços na vida das pessoas que devem ser preservados da curiosidade alheia por envolverem
o modo de ser de cada um, as suas particularidades. Apesar de a intimidade e a vida privada
representarem esferas distintas, estão inseridas no amplo conceito de direito de privacidade. 210
A intimidade é um âmbito mais exclusivo da privacidade se comparada à
vida privada. Relaciona-se aos seguintes aspectos: confidenciais, informes de ordem pessoal,
lembranças de família, sepultura, vida amorosa ou conjugal, saúde física e mental, afeições,
entretenimento, costumes domésticos e atividades negociais reservados pela pessoa para si e
para seus familiares ou pequeno círculo de amizade.211
Os fatos da vida privada de uma pessoa seriam aqueles atinentes ao mundo
dos negócios ou das próprias relações pessoais entre os cidadãos que apenas a estes dizem
respeito, não se justificando o interesse do público no conhecimento dos mesmos.212
O grau de exposição pública de uma pessoa em razão de seu cargo ou
atividade é elemento decisivo na definição dos limites à proteção da intimidade. A
privacidade de indivíduos de vida pública se sujeita a parâmetros menos estreitos de tutela do
que as pessoas de vida estritamente privada, decorrência natural do interesse público na
transparência de determinadas condutas.
209
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 15-16.
Id. Ibid., p. 13.
211
FARIAS, op. cit., p. 115.
212
Id. Ibid., p. 118.
210
73
O direito à imagem protege a representação física do corpo humano ou de
qualquer de suas partes, ou ainda os traços característicos da pessoa pelos quais ela possa ser
reconhecida. Duas limitações são impostas ao direito em questão. A primeira é relativa a
possibilidade de a própria pessoa autorizar a captação ou exposição de sua imagem, e a
segunda advém da notoriedade angariada pelo titular, afastando, a priori, a alegação de ofensa
ao direito fundamental.213
A necessidade de se restringir, em determinado caso concreto, o direito à
liberdade de expressão e pensamento em favor da incolumidade dos direitos da personalidade
reclama, basicamente, dois tipos de solução.
É possível apelar para a figura dos limites imanentes ou para a concepção
institucional dos direitos fundamentais, nos moldes propalados pela teoria interna, e optar por
excluir do suporte fático da liberdade de expressão certas condutas, atos ou posições jurídicas
que abstratamente estariam nela incluídas, justificando tal recurso argumentativo-decisório na
proteção conferida pela Constituição aos direitos da personalidade.
Outra postura, no entanto, pode ser adotada frente ao embate e acolher a tese
da amplitude do suporte fático do direito fundamental e incluir todas as condutas, atos e
posições jurídicas no âmbito de proteção da liberdade de expressão. Isso pressupõe que o
choque entre direitos fundamentais é inevitável e, sendo certo que no Estado Constitucional
inexiste hierarquia prévia de direitos fundamentais, a realização de um princípio pode ser
restringida por princípios colidentes.
As duas modalidades apresentadas expõe a distinção entre o direito
definitivo (restringido) e o direito prima facie, distinção essa propugnada pela teoria externa.
Ao reconhecimento de terem os direitos fundamentais a mesma natureza
jurídica dos princípios, que reclamam realização na maior medida possível, observadas certas
condições do caso concreto, acarretando na frequente colisão entre dois ou mais direitos, temse que não é possível argumentar no sentido da absolutização de direitos fundamentais, isto é
supor a existência de hierarquia entre direitos fundamentais.
Embora intuitivamente a ausência de hierarquia entre direitos fundamentais
possa parecer uma afirmação óbvia, verifica-se que no âmbito doutrinário há certa objeção à
tese, mesmo em relação àqueles doutrinadores que, num primeiro momento, parecem
concordar com este posicionamento.
213
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 17.
74
Sob essa ótica, soa como inapropriada a posição de Edilsom Farias a
respeito do princípio da dignidade da pessoa humana. Se, por um lado, o autor é explícito ao
afirmar que a dignidade humana não é um princípio absoluto e, por isso, deve se submeter ao
sopesamento podendo, em certos casos, não prevalecer frente à necessidade de realizar outros
direitos fundamentais214, mais adiante assevera, aparentemente de forma contraditória, que a
dignidade confere unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais estabelecidos na
Constituição Federal, assumindo os demais direitos a posição de meros densificadores e
concretizadores do princípio fundamental da pessoa humana215, dando a entender que a
dignidade seria um metaprincípio colocado acima de todos os demais sem o qual esses não
teriam razão de ser.
Raciocínio semelhante parece desenvolver Gustavo Tepedino para quem o
texto constitucional considera a personalidade não como um novo reduto de poder do
indivíduo, no âmbito do qual seria exercido a sua titularidade, “mas como valor máximo do
ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade
econômica a novos critérios de validade.”216 Aduz que a dignidade da pessoa humana,
colocada como fundamento da República, assegura uma “verdadeira cláusula geral de tutela e
promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.”217
Fernando Toller afirma de início, em interessante estratégia argumentativa,
que não existe hierarquia entre direitos fundamentais mas sim entre os bens jurídicos
protegidos por cada direito fundamental. Isso porque alguns valores garantidos por direitos
constitucionais teriam preferência em certos casos específicos, tais como os imprescindíveis a
dignidade humana (vida, integridade física e moral, intimidade etc.), se comparados com
outros desprovidos dessa imprescindibilidade como, por exemplo, os direitos do autor.218
Sustenta, contudo, que não basta para a solução de um caso concreto em que
se evidencia a efetiva colisão de direitos fundamentais contraditórios a mera prevalência do
bem jurídico superior. Segundo ele, a saída seria conferir, prima facie, certa presunção a favor
do direito fundamental que tutela o bem tido como prevalente, acautelando o juiz a respeito da
214
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos..., cit., p. 52.
Id. Ibid., p. 54.
216
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade..., cit., p. 47.
217
Id. Ibid., p. 48 (grifos do autor).
218
TOLLER, Fernando M. Jeraquía de derechos, jerarquía de bienes y posición de la vida en el elenco de los
derechos humanos. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo:
Quartier Latin, 2005, p. 506.
215
75
amplitude das diferentes lesões a que estão submetidos os bens jurídicos a reclamarem
diferentes espécies de tutela jurisdicional, especialmente de índole cautelar.219
Luís Roberto Barroso, ao defender, de início, a tese da inexistência de
hierarquia entre direitos fundamentais em decorrência do princípio da unidade da
Constituição220, acaba por aceitar, em seguida, que a liberdade de expressão e de imprensa
gozam de uma posição preferencial no sistema constitucional por servirem de fundamento
para o exercício de outras liberdades.221
Por fim, José Souto Maior Borges é enfático ao afirmar que a Constituição
Federal faz uma explícita valoração de princípios ao colocar os direitos arrolados nos arts. 1º
a 5º como transcendentes em relação aos demais, destacando-se os princípios da igualdade e
da legalidade, vetores que condicionam a interpretação e aplicação dos demais.222
Ainda quanto ao tema da restrição dos direitos fundamentais, a doutrina
costuma mencionar a existência de um “sistema de reserva legal” no rol de direitos do artigo
5º da Constituição Federal diante do fato de que diversos incisos fazem referência à lei
infraconstitucional, tais como “nas hipóteses previstas em lei”, “a lei estabelecerá”, “regulada
pela lei”, dentre outras.
Assim, seria possível classificar as restrições a direitos fundamentais com
base na divisão trinaria da reserva legal simples, reserva legal qualificada e sem expressa
previsão legal.223
Na reserva legal simples a Constituição autoriza a intervenção do legislador
no âmbito dos direitos fundamentais, exigindo-se apenas que eventual restrição seja prevista
em lei.224 Na reserva legal qualificada a Constituição, além de autorizar a edição de lei,
estabelece condições especiais, fins a serem perseguidos ou meios a serem utilizados para
legitimar a tarefa legislativa.225 Por fim, no caso dos direitos sem reserva legal, a Constituição
não prevê a possibilidade de interferência legislativa em seu âmbito.226
219
Id. Ibid., p. 509.
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 05.
221
Id. Ibid., p. 20.
222
BORGES, José Souto Maior. Pró-Dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais. Revista
Trimestral de Direito Público, n.1, p. 140-146, 1993.
223
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 47.
224
Exemplos de direitos submetidos a reserva legal simples são os dos incisos VI, VII e XV do art. 5º.
225
Exemplos de direitos submetidos a reserva legal qualificada são os dos incisos XII e XIII do art. 5º.
226
Pode ser citado como exemplo de direito não submetido a reserva legal o inciso IX do art. 5º.
220
76
Sobre a importância de se estabelecer um sistema de reserva legal para os
direitos fundamentais, assim se manifesta Gilmar Mendes:
Sem dúvida, o estabelecimento de reservas legais impede a multiplicação de conflitos entre
direitos individuais diversos. Não se deve olvidar, no entanto, que a técnica que exige
expressa autorização constitucional para intervenção legislativa no âmbito de proteção dos
direitos individuais traduz, também, uma preocupação de segurança jurídica, que impede o
estabelecimento de restrições arbitrárias ou aleatórias.227
A ideia da existência de um sistema de reserva legal para os direitos
fundamentais no Brasil é alvo de críticas por parte de Virgílio Afonso da Silva. Segundo ele,
esse modelo é importado a partir de realidades constitucionais distintas da verificada aqui,
como ocorre na Alemanha e Portugal. Isso porque a Constituição brasileira não contém
dispositivo, a semelhança dos dois países citados, dirigido ao legislador no sentido de que
somente quando a Carta Magna autorizar é possível restringir ou regular direito
fundamental.228
Esse fator seria decisivo para tornar completamente inaplicável ao Direito
Constitucional brasileiro o sistema de reserva legal de restrição a direito fundamental.
Ademais, duas consequências indesejáveis teriam que ser aceitas caso a
reserva legal seja uma realidade por aqui: em primeiro lugar, haveria uma difícil determinação
do alcance da discricionariedade do legislador na conformação do direito fundamental sujeito
a algum tipo de reserva. Em segundo lugar, haveria a total impossibilidade de restrição a
direito fundamental quando garantidos por dispositivos não submetidos a nenhuma reserva,
isto é, teria que se comungar com a tese da existência de direitos absolutos, insuscetíveis a
limitações.229
O sistema da reserva legal pressupõe que a limitação a direito fundamental
ocorre por meio de regras, normalmente lei infraconstitucional. Contudo, restrições a direitos
fundamentais podem ser baseadas, também, em princípios.
Seguindo esse raciocínio, a limitação imposta por regras implica em que o
legislador, no momento da edição da lei, realizou um juízo prévio de sopesamento entre dois
227
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 46.
SILVA, Virgílio Afonso da. Os direitos fundamentais e a lei: a Constituição brasileira tem um sistema de
reserva legal? In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.).
Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 610.
229
Id. Ibid., p. 613-614.
228
77
ou mais princípios abstratamente colidentes, tendo optado por uma solução (a lei) a qual,
segundo sua visão, prestigiou o princípio mais relevante no caso.
Já com relação às restrições baseadas em princípios, não há regra legal
disciplinadora de determinada matéria, isto é, o legislador ainda não procedeu à ponderação
entre princípios. Nessas hipóteses, é o juiz o encarregado de decidir, diante de um caso posto
sob sua apreciação, qual princípio prevalecerá, implicando em restrição calcada em outro
direito fundamental procedida por decisão judicial.230
Do exposto é possível concluir que as restrições a princípios constitucionais
realizadas diretamente pelo Poder Judiciário, em decorrência da ausência de manifestação
prévia legislativa, são resolvidas com o uso da técnica da ponderação entre os potenciais
princípios colidentes no caso.
De outro lado, nas situações em que o legislador optou pelo princípio
preponderante em determinada colisão de direitos fundamentais, a única saída é o
questionamento judicial da constitucionalidade da opção legal. Nesse caso, no âmbito do
controle de constitucionalidade, os juízes deverão utilizar a regra da proporcionalidade para
dirimir o conflito, lançando mão da tipologia trinária da adequação, da necessidade e da
proporcionalidade em sentido estrito.231
O princípio da proporcionalidade exige em um primeiro momento a análise
da adequação da medida adotada pelo legislador ou pelo ente estatal para a consecução dos
fins pretendidos, isto é, que “as medidas interventivas mostrem-se aptas a atingir os objetivos
pretendidos”.232
Em segundo lugar, a necessidade significa que “nenhum meio menos
gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos
pretendidos.”233
Virgílio Afonso da Silva chama atenção para o fato de que o exame da
necessidade é imprescindivelmente comparativo com relação a outras medidas estatais que
tenham o condão de realizar com a mesma eficiência o objetivo perseguido. Para ele, caso
exista uma segunda medida que possa realizar o fim pretendido restringindo menos
intensamente o direito fundamental, porém com menor eficácia do que a primeira, sua adoção
230
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 142-143.
Id. Ibid., p. 178-179.
232
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais..., cit., p. 75.
233
Id. Ibid., p. 75.
231
78
não será automática porque decisiva é a perquirição a respeito da eficiência da medida,
devendo-se adotar a mais eficaz, mesmo que venha a restringir com maior intensidade o
direito violado.
Somente seria beneficiada a medida que limitasse menos o direito
fundamental se ela fosse igualmente eficaz como a outra. Esse raciocínio é correto, segundo
Virgílio da Silva, basicamente por duas razões: em primeiro lugar, se a preferência pela
medida recaísse sempre sobre a menos gravosa a resposta está dada de antemão, ou seja, será
melhor que o Estado seja sempre omisso, já que não haverá restrição a nenhuma espécie de
direito fundamental nessa circunstância. Em segundo lugar, a escolha por uma medida mais
eficaz não significa perseguir a eficiência a todo custo, pois o controle sobre o grau de
limitação do direito restringido é deslocado para a terceira fase do exame da
proporcionalidade.234
A proporcionalidade em sentido estrito tem a função de averiguar se o meio
utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim perseguido, ou seja, se há equilíbrio
entre a adequação e a necessidade da medida interventiva. Para Suzana de Toledo Barros, a
diferença entre a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito está em que a primeira
almeja uma otimização com relação a possibilidades fáticas, enquanto a segunda envolve a
otimização de possibilidades jurídicas.235 É na etapa da aplicação da proporcionalidade em
sentido estrito que o julgador realiza o sopesamento dos direitos envolvidos.
No entender de Pargendler e Salama a aplicação do teste da
proporcionalidade incorpora à técnica jurídica elementos antes tidos como irrelevantes para
aplicador da norma (“extrajurídicos”), ligados às consequências de diferentes situações.236 A
correta aplicação da proporcionalidade, continuam os autores, exige para a maioria dos casos
a familiaridade com dados empíricos ou pelo menos de juízos probabilísticos sobre os
esperados efeitos concretos de distintas normas, sendo exigido do Poder Judiciário
fundamentação quanto aos efeitos das normas no mundo dos fatos.237
O recurso ao princípio da proporcionalidade para a solução de conflitos
entre direitos fundamentais sugere que o legislador e o intérprete estão limitados em sua tarefa
234
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 171-173.
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis
restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 85-87.
236
PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno Meyerhof. Direito e consequência no Brasil: em busca de um
discurso sobre o método. Revista de Direito Administrativo. v. 262, jan./abr. 2013, p. 118.
237
Id. Ibid., p. 119.
235
79
conformadora pelo núcleo essencial de cada direito fundamental, encontrado somente se a
restrição estatal ultrapassar com sucesso as três fases acima descritas.
Opta-se por uma teoria relativa a respeito do que se entende por núcleo
essencial de um direito fundamental, uma vez que este varia em cada caso concreto a
depender dos interesses colidentes (situações fáticas e jurídicas), em contraposição a uma
visão absoluta de núcleo essencial, que pressupõe existir um centro imutável e intangível de
essencialidade de cada direito que resiste ao tempo e a todas as condições sociais.238
3.3 Dois modos de encarar o papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: os
sistemas americano e europeu
A construção do conceito, extensão e limites das liberdades de expressão e
de imprensa nos Estados Unidos, consagradas na Primeira Emenda à Constituição239, foi fruto
de um longo processo histórico que teve curso no século XX, especialmente em sua segunda
metade.
A trajetória da Primeira Emenda teve como principal protagonista a
Suprema Corte dos Estados Unidos, chamada a se manifestar a respeito da constitucionalidade
de leis restritivas da liberdade de imprensa editadas pelo Congresso.240
A Suprema Corte confere à liberdade de expressão a posição de direito
preferencial no sistema de garantias constitucionais241, normalmente prevalecendo frente a
outros valores democráticos como a igualdade, dignidade humana e privacidade.242
238
Sobre o debate das teorias que versam sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, ver SILVA,
Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais..., cit., p. 183-207.
239
O texto da Primeira Emenda é o seguinte: "O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um
estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da
imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que
sejam feitas reparações de queixas". ("Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or
prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the
people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.").
240
LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias..., cit., p. 09-15; MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos
fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 634-635.
241
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 133; BARROSO, Luís Roberto.
Colisão entre liberdade de expressão..., cit., p. 20; SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 266. Para um
estudo mais detalhado acerca da argumentação da Suprema Corte na construção na doutrina do direito
preferencial, ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 100-124.
242
POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão e discurso do ódio. Brasília: Consulex, 2012, p. 27.
80
A consequência mais nítida da posição desfrutada pela Primeira Emenda
nos Estados Unidos é a interdição da regulamentação estatal no conteúdo dos discursos
públicos. O Estado não deve tomar partido nas discussões, ficando a cargo da capacidade de
discernimento de cada cidadão se posicionar frente às inúmeras opiniões colocadas à sua
disposição.243
Tal princípio ficou conhecido como da “neutralidade de conteúdo”244 e veda
que a autoridade oficial distinga entre discurso protegido e não protegido com base no ponto
de vista exposto.245
A doutrina da “neutralidade de conteúdo” teve origem no caso Police
Department vs. Mosley de 1972, no qual um carteiro chamado Earl Mosley foi impedido de
protestar pacificamente em frente a uma escola pública da cidade de Chicago contra a
discriminação racial nos Estados Unidos.
Levado o caso para a Suprema Corte, esta decidiu, na lavra do voto do
Justice Thurgood Marshall, que a conduta das autoridades públicas de Chicago tinha o
propósito de banir o protesto com base exclusivamente no conteúdo do assunto levado a
discussão. A Primeira Emenda, disse o Justice, proíbe o governo de limitar a expressão por
conta da mensagem, das ideias, do objeto ou do conteúdo.
A “neutralidade de conteúdo” tem duas faces: a primeira é que o Estado não
pode proibir o discurso por causa de seu conteúdo. A segunda é que o Estado não pode
restringir uma espécie de discurso com o propósito de beneficiar outro.246
A respeito da importância da liberdade de expressão e de imprensa para o
sistema americano, Thomas Cooley assevera que:
Mas sob o ponto de vista constitucional, a sua importância capital consiste em
facilitar ao cidadão ensejo de trazer perante o tribunal da opinião pública qualquer
autoridade, corporação ou repartição pública, e até mesmo o próprio governo em
todos os seus ramos, com o fim de compeli-los uns e outros, a submeterem-se a um
exame e a uma crítica sobre a sua conduta, as suas medidas e os seus intentos, diante
de todos, tendo em vista obter a correção ou a prevenção dos males; do mesmo
243
A doutrina da posição preferencial da liberdade de expressão nos Estados Unidos surgiu, segundo Chequer,
na nota de rodapé 4 do voto proferido pelo juiz Harlan Fisk Stones no caso United States vs. Carolene Products
Co., julgado pela Suprema Corte em 1938. Ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 113.
244
FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública.
Tradução e Prefácio Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.
51; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 138.
245
POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão..., cit., p. 35.
246
HEYMAN, Steven J. Free speech and human dignity. New Haven & London: Yale University Press, 2008, p.
81-82.
81
modo serve para sujeitar a idêntico exame e com os fins idênticos todos aqueles que
aspiram a funções públicas. Estas vantagens o povo as conseguiu plenamente
durante a época revolucionária e delas gozou; a imprensa foi o principal meio para
defender os princípios da liberdade e preparar o país para resistir à opressão; e neste
sentido foi tamanha a sua eficácia, que eclipsou todos os outros benefícios. 247
A despeito da reverência conferida à liberdade de expressão, é certo que o
sistema americano não compactua com sua absolutização. Em casos de conflito com outros
direitos constitucionalmente assegurados, permite-se que o Estado suprima do debate
“palavras de incitação à luta” que possam gerar um “perigo iminente e manifesto” de ação
ilícita.
No entanto, a “defesa genérica de ideias” é protegida, ficando a cargo da
jurisprudência a definição da questão casuisticamente, utilizando-se do método denominado
ad hoc balancing, que, embora admita restrição à liberdade de expressão, institui uma forte
premissa em favor da inconstitucionalidade da limitação.248
A liberdade de expressão não é um direito puramente negativo nos moldes
da teoria do livre mercado de ideias, cujo objetivo é impedir a regulação estatal no âmbito da
troca de informações. Ela também possui uma faceta positiva que reclama do Estado
participação ativa na esfera comunicativa, com o intuito de corrigir falhas com relação à
supressão de certos grupos do debate público.
Discursos incitadores ao ódio racial, distribuição e divulgação de material
pornográfico e permissão ilimitada ao financiamento privado de campanhas políticas são
exemplos trazidos por Owen Fiss de como indivíduos e organismos privados podem atentar
contra a liberdade de expressão.249
Isso ocorre porque sua propagação desregrada pode impedir que as vítimas
(respectivamente minorias, mulheres e pobres) participem das discussões públicas em razão
do efeito silenciador que recaem sobre elas, minando as possibilidades de debaterem de forma
competitiva e igualitária.
O Estado, nesse contexto, tem a função primordial de intervir na arena
discursiva a fim de proporcionar um ambiente livre e diversificado para a coexistência de
247
COOLEY, Thomas M. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos da América. Tradução
Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2002, p. 266.
248
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 139; FISS, Owen M. A ironia da
liberdade de expressão..., cit., p. 34; POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão...,cit., p. 41.
249
FISS, op. cit., p. 47.
82
diferentes pontos de vista. Deve procurar estabelecer precondições essenciais para a
autogovernança coletiva, assegurando que todas as vertentes sejam apresentadas ao público,
nem que para isso se faça necessário calar alguns para poder ouvir outros.
Na visão de Owen Fiss, não se trata de desrespeito ao princípio da
neutralidade de conteúdo, mas o fortalecimento de seu postulado, pois, quando o Estado age
como mediador, não procura determinar o resultado ou preservar a famigerada ordem pública,
e sim assegurar a robustez do debate público e, como consequência, fortalecer a própria
democracia.250
É consenso na doutrina que vigora atualmente nos Estados Unidos uma
visão restritiva quanto à interferência do Estado no âmbito da liberdade de expressão ao
menos desde os anos 1980, ocasião em que a fairness doctrine251 foi abandonada pela agência
reguladora
das
comunicações
eletrônicas
(FCC)
por,
supostamente,
restringir
desnecessariamente a liberdade de expressão. Essa posição posteriormente foi corroborada
pela Suprema Corte no julgamento dos casos CBS vs. Democratic National Comitee, Buckley
vs. Valeo, e mais recentemente, em Citizens United vs. FEC.252
Os países de democracia consolidada da Europa partem de premissas
diversas daquelas adotadas pelos Estados Unidos na definição dos contornos e limites do
direito à liberdade de expressão.
De fato, o regime europeu, de forma geral, não abona o princípio da
neutralidade de conteúdo, sendo que a maioria dos países têm leis criminalizadoras do
discurso do ódio ou, quando ausentes leis específicas, seus tribunais nacionais não toleram a
exteriorização de pensamentos racistas.253 A exceção parece ser os países escandinavos que
250
FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão..., cit., p. 49-55.
A fairness doctrine foi criada pela Federal Communications Comission – FCC como um mecanismo de
regulação do mercado de comunicação por meio da imposição às rádios e televisões da obrigatoriedade de cobrir
questões de relevante interesse público de maneira equilibrada, apresentando os diversos lados da notícia. Ela
também dava aos candidatos a cargos eletivos a oportunidade de responder a editoriais políticos hostis e oferecia
um direito de resposta similar àqueles diretamente atingidos (FISS, op. cit., p. 107).
252
FISS, op. cit., p. 139-144; SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 267-272. Para uma análise crítica
da decisão da Suprema Corte no caso Citizens United vs. FEC, em virtude do risco de acarretar sério prejuízo ao
amplo debate público pela interferência nociva das organizações comerciais nas campanhas eleitorais, ver
DWORKIN, Ronald. Uma decisão que ameaça a democracia. In: FREITAS, Juarez; TEIXEIRA, Anderson V.
Direito à democracia: ensaios transdisciplinares. São Paulo: Conceito, 2011, p. 41-56.
253
Dentre esses países destacam-se a França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Espanha, Holanda, Polônia e Reino
Unido. O Canadá segue a mesma linha adotada pelos europeus. Naquele país é ilegal a prática do racismo, do
antissemitismo ou de ato xenófobos, assim como a difusão dessas ideias. Sobre o assunto, ver MEYER-PFLUG,
Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 149-150.
251
83
rejeitam a proibição pura e simples dos discursos difamadores, entendendo que a restrição se
justifica somente quando puder ensejar uma ação ilícita concreta ou afetar a ordem pública.254
A forma com que alguns países europeus abordam a temática da liberdade
de expressão desperta especial importância no estudo da dogmática da proteção do direito
fundamental.
Na Alemanha, a liberdade de expressão tem dois enfoques básicos: por um
lado, constitui um direito subjetivo individual, importante para a dignidade humana; de outro,
ela é compreendida como um direito objetivo, uma garantia institucional, necessário para a
formação da opinião pública e para o intercâmbio de ideias entre os cidadãos. A dimensão
objetiva da liberdade de expressão tem o condão de compelir o Estado a praticar atos
positivos para promover um ambiente de debate livre e plural, ao mesmo tempo em que deve
garantir a existência de uma imprensa verdadeiramente independente, impedindo sua violação
por grupos particulares.255
Segundo essa visão, o Estado deve estar comprometido com a tarefa de
estimular e manter o pluralismo entre os meios de comunicação, não deixando essa função a
cargo exclusivo do mercado. O Tribunal Constitucional Federal, em diversas oportunidades,
impôs condições para funcionamento das emissoras de rádio e televisão, asseverando que
deveriam manter mecanismos propiciadores dos pluralismos interno e externo em benefício
público, mediante a divulgação de perspectivas diversas sobre os assuntos de interesse
coletivo.256
O Tribunal Constitucional Federal considera que a liberdade de expressão
ocupa posição preferencial em relação aos demais direitos fundamentais, quando esse direito
estiver relacionado a matérias de interesse geral ou político. Uma vez reconhecido que a
liberdade de expressão representa uma importante contribuição para o debate público, a
consequência é que o grau de proteção a ela conferido nesse âmbito é bem maior do que em
contextos de disputas privadas ou para proteger interesse econômico.257
A proteção dispensada na Alemanha à liberdade de expressão desautoriza a
limitação do direito pelas características insurgentes das palavras utilizadas em uma discussão
pública, já que a difusão de opiniões políticas está na fronteira entre o racional e o emocional
254
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 151.
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 274-275; MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos
fundamentais..., cit., p. 642-643.
256
SARMENTO, op. cit., p. 277.
257
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 124-125.
255
84
e que a linha clara entre um e outro não pode ser extraída sem inibir a robusta e fecunda
expressão de diversos aspectos políticos.
É que se convencionou chamar de “contra-ataque teórico da expressão”,
padrão definido no julgamento do caso Schmid-Spiegel258, de 1961, por meio do qual uma
pessoa tem o direito de empregar uma linguagem abusiva, sobretudo na arena política, para
defender seus interesses contra críticas amargas e enganosas, caso esse tipo de linguagem seja
necessário para compensar o ataque sofrido.259
Embora a proteção da liberdade de expressão possua relevância no âmbito
do Tribunal Constitucional Federal, o ordenamento jurídico alemão proíbe discursos de
conteúdo, como nos casos da negação da existência do Holocausto, sujeitando o infrator à
pena de prisão que varia de três meses a cinco anos, assim como quem auxilia na divulgação
dessas ideias, incorrendo em pena restritiva de liberdade de até três anos. O Tribunal
Constitucional nunca reformou decisões de cortes inferiores que condenaram pessoas pela
prática do discurso do ódio.260
Na França, por sua vez, embora seja unânime o posicionamento acerca da
imprescindibilidade da atuação do Estado na promoção da comunicação e do pluralismo, a
proteção à liberdade de expressão é menor do que nos Estados Unidos e mesmo em outras
nações europeias, dando privilégio aos valores que normalmente com ela conflitam.
As decisões do Conselho Constitucional adotam a teoria de que a liberdade
de expressão é direito preponderantemente de índole coletiva, isto é, o titular do direito é o
público e é com seus interesses que os poderes constituídos franceses demonstram
preocupação com a tutela, e não com o emissor da mensagem, justificando a primazia dos
direitos à honra e à privacidade.261
258
Em aparecimento público na cidade de Stuttgart, um juiz da alta corte estadual chamado Schmit, disse que
95% da imprensa na Alemanha era controlada por empregadores hostis para negociar com sindicatos
trabalhistas. Em reação, a revista Der Spiegel acusou o juiz de ser simpatizante comunista. Na réplica publicada
num jornal diário, o juiz redarguiu dizendo que a revista mentia sobre ele e comparou a opinião do Der Spiegel a
uma pornografia no campo moral. O Tribunal Constitucional entendeu que o caso deveria ser analisado não
apenas com base na honra e na imagem do ofendido, mas tendo em conta as circunstâncias políticas que
cercaram a discussão. Sobre o tema, ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 127-128.
259
CHEQUER, op. cit., p. 128.
260
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 178-180.
261
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais..., cit., p. 280.
85
Partindo dessa premissa restritiva, o parlamento francês promulgou a Lei
90-615, de 13 de julho de 1990, conhecida como Lei Gayssot, que criminaliza o revisionismo
histórico, que prega a negação do Holocausto, por ser fonte de antissemitismo e racismo.262
Na Espanha, o Tribunal Constitucional entende a liberdade de expressão
como fundamental em uma sociedade aberta, que necessita do debate livre para a realização
da democracia. No entanto, não comunga com a posição de que a liberdade de expressão
detém caráter absoluto, pois os casos conflituosos são decididos com base na ponderação de
interesses.263
O Tribunal Constitucional enxerga uma dupla distinção na liberdade de
expressão: em primeiro lugar, a liberdade de expressão é vista em sentido amplo, como o
direito de todo cidadão emitir livremente ideias e opiniões e de transmitir atos e notícias; em
segundo lugar, distingue-se entre as expressões de interesse público e as de natureza privada.
A distinção é importante porque a jurisprudência do Tribunal confere maior amplitude de
proteção à liberdade de expressão nos assuntos de interesse público frente às exigências de
tutela dos direitos da intimidade, sendo, ademais, critério decisivo na adequada ponderação de
interesses.264
Com relação ao discurso do ódio, existe na Espanha uma tendência a
censurar essa conduta por meio de sua criminalização da manifestação antissemita, racista ou
a que visa negar a ocorrência do genocídio, sendo os casos Violeta Friedman (STC 214/1991)
e Hitler SS (STC 176/1995) exemplos de limitação à liberdade de expressão.265
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) caracteriza a liberdade
de expressão como fundamental para a promoção da democracia e estabelece ser condição
para o progresso e desenvolvimento da sociedade e de cada um de seus integrantes,
demonstrando também uma preferência pela liberdade de expressão apenas quando estiver
relacionada com assuntos públicos, de interesse geral ou político.
No entanto, como assinala Chequer, nem todas as questões de interesse
público gozam da mesma proteção na jurisprudência do TEDH. Com efeito, os limites da
crítica são mais amplos se relacionados ao governo do que a um particular ou mesmo a um
político. Existem decisões que limitam fortemente critica dirigida contra a atuação do Poder
262
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit. p. 153.
ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozobal. Acerca de la doctrina..., cit., p. 243.
264
Id. Ibid., p. 244-245.
265
MEYER-PFLUG, op. cit., p. 163-169.
263
86
Judiciário nacional.266 Assim, no âmbito do TEDH, a extensão da liberdade de expressão
depende dos interesses em conflito em determinado caso concreto.
Ademais, a jurisprudência do TEDH admite que os países adotem medidas
restritivas para a liberdade de expressão. Entretanto, tais medidas devem respeitar os critérios
da legalidade da imposição restritiva, a existência de um objetivo legítimo para fundamentar a
limitação e a necessidade de preservação de uma sociedade democrática.
Meyer-Pflug chama atenção para o fato de que, ao se prever o critério da
preservação da sociedade democrática para a restrição da livre expressão, abre-se um amplo
campo discricionário para o juiz europeu na conformação do exato conteúdo desse conceito
em cada caso concreto. Isso implica na existência de uma “jurisprudência flutuante” no
Tribunal Europeu, que ora adota um modelo semelhante ao observado na Suprema Corte dos
Estados Unidos de conferir forte proteção à liberdade de expressão, ora privilegia direitos da
personalidade em detrimento da propagação de opiniões.267
Embora restrições à liberdade de expressão sejam incontestes diante do
regramento constitucional, é certo que limitações baseadas na valoração do mérito ou na
qualidade ética do discurso são inadmissíveis no Estado Constitucional. O parâmetro de
correção das restrições deve ocorrer por uma medição democrática da ponderação do impacto
causado a outros direitos ou bens dignos de proteção constitucional, desde que os danos sejam
intersubjetivamente comprovados.
O direito fundamental em causa deve proteger não apenas mensagens
comunicativas com conteúdo político ou de interesse social, mas todo discurso relativo aos
mais diversos domínios e temas da vida social e econômica. Tal postura evita que haja uma
espécie de hierarquização das modalidades de discurso amparado constitucionalmente, no
qual outros são relegados a um patamar inferior de proteção jurídica.
Nesse sentido, leciona Machado que:
[...] uma leitura aberta e multifuncional do direito à liberdade de expressão revestese de importantes consequências práticas. Ela prescinde da análise das motivações
mais ou menos egoístas ou altruístas dos sujeitos em presença ou dos objectivos
espirituais ou materiais da comunicação, como pressuposto da aplicabilidade do seu
266
CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão..., cit., p. 132. Sobre o tema, citem-se os casos Barford, de 22
de fevereiro de 1989, e Worm, de 29 de agosto de 1997.
267
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão..., cit., p. 187-188.
87
programa normativo, sendo certo que tanto as primeiras como os segundos podem
apresentar uma configuração complexa. [...] ela obriga a que as restrições aos
diferentes tipos de expressão venham associadas a uma cuidadosa verificação do
modo como os mesmos interferem com direitos e interesses constitucionalmente
protegidos. Assim, por exemplo, não basta mobilizar categorias genéricas como
“obscenidade”, “blasfémia” ou “pornografia” para retirar um determinado conteúdo
expressivo do âmbito de protecção do direito à liberdade de expressão, nem alegar,
em termos arbitrários e impressionistas, que os mesmos não têm qualquer
“redeeming social value”. [...] As diferenças de tratamento a conferir a cada um
deles [discurso] devem resultar a posteriori da ponderação proporcional dos mesmos
com os diferentes direitos e interesses com que os mesmos possam eventualmente
colidir.268
Meyer-Pflug e Machado chamam atenção para o fato de que a dimensão
objetiva da liberdade de expressão, tal como originariamente sustentada pela Corte alemã, não
é suficiente para proporcionar uma efetiva proteção ao direito fundamental. Isso porque, se é
correto a vertente objetiva reconhece a importância coletiva de determinado direito, por outro
lado, coaduna-se com uma restrição completa comprometedora do conteúdo essencial do
direito em certo caso concreto, sem que o todo social corra semelhante risco.
3.4 O modo de funcionamento das restrições à liberdade de expressão: a doutrina das
restrições prévias e a responsabilidade ex post facto
Tratando especificamente do tema da liberdade de expressão, foi dito acima
que as justificações democráticas e da busca da verdade não admitem a constitucionalidade da
censura, nos moldes do que preconiza o parágrafo 2º do artigo 220 da Constituição Federal.
É certo que atualmente a censura adquire formas que vão além da restrição
imposta por organismos estatais, advinda de agentes privados ou mesmo do próprio veículo
de comunicação. Nesse contexto, é possível distinguir a censura em privada e pública, sendo a
primeira levada a cabo por entidades particulares em decorrência de interesses econômicos e
empresariais e a segunda patrocinada por órgãos oficiais em nome de interesses públicos ou
comunitários.269
268
269
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 423-424.
Id. Ibid., p. 494.
88
Felipe Chiarello de Souza Pinto classifica a censura prévia em três
modalidades: a censura interna, a externa e a autocensura.270
A censura interna consiste na possibilidade de direcionamento de matérias
jornalísticas por parte dos diretores ou superiores hierárquicos com base nos interesses da
linha editorial ou por questões profissionais e pessoais do veículo de comunicação. Nesse
caso o editor modifica o conteúdo de um artigo ou matéria jornalística com a finalidade de
prejudicar ou beneficiar um desafeto ou simpatizante, caracterizando o fato como censura
interna da própria empresa de comunicação.
Já a censura externa ocorre por meio de agentes não pertencentes ao veículo
de comunicação que, com a utilização de forte influência política ou econômica, manipula a
informação em detrimento da verdade objetiva, sempre requerida das empresas do setor de
comunicação. Essa modalidade de censura pode vir, também, na forma de legislação
extremamente restritiva à liberdade de imprensa ou até por decisão judicial que impõe
barreiras à divulgação da notícia.
Por fim, a autocensura diz com uma postura individual do profissional da
imprensa que, por motivo particular, por isso mesmo de difícil controle, não confere a
necessária imparcialidade ao material exposto ao público.271
Tendo como ponto central de análise a censura pública, alguns defendem
que no âmbito da liberdade de expressão, a imprensa, ou a pessoa natural, somente poderá ser
responsabilizada civil ou penalmente por eventual dano cometido aos direitos da
personalidade em momento ulterior à manifestação.
Tal solução é denominada de “doutrina das restrições prévias” e é
caracterizada por marcar
uma forte distinção constitucional entre restrições prévias e responsabilidades
ulteriores (...), englobando nas primeiras todas as medidas oficialmente impostas à
expressão antes de sua emissão, publicação ou difusão, ao passo que se agrupam nas
segundas as respostas jurídicas a expressões já realizadas, as quais não proíbem
envolver-se numa atividade expressiva futura nem requerem obter uma aprovação
prévia para qualquer atividade de expressão.272
270
PINTO, Felipe Chiarello de Souza. A ética médica em face da liberdade de expressão, comunicação e sigilo
profissional. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 80.
271
Id. Ibid., p. 81-82.
272
TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., cit., p. 23-24.
89
A doutrina das restrições prévias pressupõe que a liberdade de expressão
somente admite um sistema de regulação jurídica ex post facto, isto é, satisfaz-se com a
reparação dos danos causados por ação antijurídica após sua ocorrência.
Procura-se impedir que a interdição da expressão acarrete um grave efeito
dissuasório, o chamado efeito silenciador do discurso. O núcleo deste posicionamento
consiste na crença de que uma sociedade democrática prefere punir aqueles que abusam do
direito à livre expressão do pensamento a sancionar todos indistintamente, sufocando, de
antemão, os demais.
Como resumo do exposto até aqui, pode-se apontar que, com base na doutrina das
restrições prévias, tem-se entendido que a liberdade de expressão e a liberdade de
imprensa significam, essencialmente, que a única regulação jurídica legítima é um
sistema de responsabilidade ex post facto, que não evite a ação antijurídica cometida
através de expressões ou de informações, mas que a repare ou sancione uma vez
ocorrida. Consoante isto, a referida doutrina mostra sua maior virtualidade no
seguinte: a imunidade de restrições prévias é maior do que a liberdade de
responsabilidades ou sanções ulteriores, de maneira a excetuar expressões
antijurídicas e até delitivas de medidas preventivas, sem prejuízo de que aquelas,
após sua difusão, possam ser, legítima e constitucionalmente, submetidas a razoável
responsabilidade civil ou penal.273
A distinção entre os dois modelos de restrição à liberdade de expressão, a
prévia e a posterior, porém, é alvo de críticas de setores da doutrina.
Jónatas Machado afirma que uma teoria das restrições à liberdade de
expressão deve estar atenta para o fato de que nem toda forma de censura remete às mesmas
consequências jurídicas, no caso, uma inviabilização completa da limitação da exposição do
conteúdo. Ao contrário, comporta três resultados fundamentais.
Diz o autor português que, em primeiro lugar, há que se relativizar a
hermenêutica constitucional que pretende proibir inflexivelmente a censura prévia, sendo
adequada a adoção de entendimento moderado no sentido de se entender presumivelmente
inconstitucional medidas de controle preventivo da comunicação, suscetível a refutação
casuística por meio de um processo de ponderação com outros bens protegidos. Em situações
extremas, as restrições à liberdade devem ser previstas em lei e sua aplicação somente é
viável no âmbito de um processo judicial.274
273
274
TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., cit., p. 29-30 (grifos do autor).
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 496-498.
90
Em segundo lugar, haveria o reforço da proteção dos direitos dos
particulares frente as formas de censura privada ou de censura sutil por parte das autoridade
públicas. E, por fim, essa pretensa teoria das restrições conduziria à análise do modo como as
instituições e as normas que estruturam os procedimentos comunicativos podem ser utilizadas
para maximizar ou para limitar as possibilidades expressivas dos cidadãos e dos grupos de
cidadãos, não podendo as mesmas ficar à margem de uma discussão em torno do conceito
amplo de censura.275
Em adição, Gilmar Mendes discorda do entendimento de que a proibição
constitucional da censura prévia impede a atuação do Poder Judiciário para reprimir a
circulação da expressão nos casos em que esta violar direitos da personalidade, especialmente
os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem.276
Sustenta que o próprio texto constitucional estabelece igual proteção aos
direitos da personalidade, tratando-os como invioláveis.277 Nesse caso, obstar o acesso ao
judiciário por parte do ofendido acarretaria supressão da garantia da efetiva proteção
judiciária, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.278
Ainda nessa linha, afirma que a aplicação irrestrita da doutrina das
restrições prévias acabaria por esvaziar outros direitos constitucionais de especial relevância,
impingindo à liberdade de expressão o caráter avassalador de direito absoluto, insuscetível de
restrição.279
E conclui que a interpretação constitucionalmente adequada à inevitável
tensão entre a liberdade de expressão e de comunicação e dos direitos da personalidade é
admitir a responsabilização posterior apenas nas hipóteses em que não foi possível proibir de
forma antecipada a emissão da mensagem.280
Argumenta-se, de outro lado, que a distinção entre restrição prévia e
responsabilidade ex post facto está apoiada em fundamento falso, de que uma medida judicial
que impõe restrição prévia à expressão, ou impede sua circulação, aniquila a liberdade de
275
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão..., cit., p. 500-501.
MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e
direito à honra e à imagem. Revista de Informação Legislativa, a. 31, n. 122, mai./jul.1994, p. 297. No mesmo
sentido, por ser a dignidade humana valor axiologicamente superior do ordenamento jurídico nacional,
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade..., cit., p. 46.
277
“Art. 5º. [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
278
“Art. 5º. [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
279
MENDES, op. cit., p. 298.
280
Id. Ibid., p. 297-298.
276
91
expressão, fazendo presumir que qualquer medida judicial prévia é inconstitucional,
assemelhando-se ao mecanismo da censura prévia.
É possível entrever hipóteses nas quais a sanção posterior civil ou penal
pode representar uma ameaça real à liberdade de expressão de forma mais contundente do que
as medidas judiciais preventivas. E isso ocorre porque, segundo esse posicionamento, o modo
de funcionamento e os efeitos práticos do modelo de responsabilização posterior são
praticamente idênticos aos da restrição prévia, não sendo justificável uma férrea distinção
entre as duas categorias.
A análise do funcionamento de três modalidades das chamadas sentenças
condicionais pode esclarecer o que foi dito acima.
Em primeiro lugar, temos as decisões judiciais que impõem sanções
normalmente de natureza penal ao emissor, proferidas após a difusão da expressão,
condicionando a execução da medida ao cometimento, dentro de certo período de tempo, de
qualquer outro delito.
Em sentido análogo, mas com uma pequena diferença, as sentenças em
suspenso sujeitam o emissor à aplicação de uma pena, na eventualidade deste incorrer na
prática do mesmo delito a que anteriormente condenado pela circulação da informação. Ou
seja, a sanção é imposta também posteriormente à expressão, porém sua execução resta
condicionada ao cometimento do mesmo tipo de delito já julgado e no qual o processado foi
condenado.
Em Alberts vs. Califórnia, julgado em 1957, a Suprema Corte dos Estados
Unidos aplicou uma sentença condicional a um sujeito que foi condenado ao pagamento de
multa e a sessenta dias de prisão em razão de deter livros e folhetos de caráter obsceno
destinados à comercialização, condicionando, porém, a execução da pena à desobediência da
lei contra a obscenidade pelos próximos dois anos subsequentes.281
Podemos pensar, por fim, na hipótese em que um tribunal proíba, sob a
ameaça da aplicação de uma reprimenda, a republicação da mesma expressão tida como
antijurídica por sentença judicial anterior, ou seja, pretende-se impedir a ocorrência de agravo
específico e determinado, em vez de aplicar diretamente a sanção penal habilitada na norma.
281
TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., cit., p. 68.
92
Foi o que ocorreu em Kingsley Books, Inc. vs Brown, também apreciado
pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em que se proibiu, ainda no curso da lide e de forma
cautelar, a venda de impressos obscenos específicos.282
Ao se aderir ao posicionamento da responsabilidade posterior como a única
medida correta no âmbito da liberdade de expressão, a sentença condicional estabelecida em
Alberts deve ser aceita, enquanto a solução final do caso Brown será tachada de
inconstitucional, pois nesta hipótese a proibição da comercialização de folhetos se deu
pendente lite, ao passo que no primeiro exemplo a penalização do emissor ocorreu somente
após a publicação.
É possível concluir, na esteira da objeção de Fernando Toller, que a férrea
separação entre as doutrinas das restrições prévias e da responsabilidade posterior não
engendra uma proteção eficaz à liberdade de expressão.
O modo de funcionamento e os efeitos das medidas judiciais com relação à
expressão aproximam as decisões de verdadeiras restrições prévias, na medida em que a
ordem judicial se dá em momento anterior à divulgação da mensagem, sob o risco de prisão
ou pesada responsabilização civil, trazendo como consequência um marcante efeito
silenciador ao discurso.
Como resumo das hipóteses tratadas [...], obtém-se, portanto, que decisões judiciais
que têm impacto muito contundente sobre a capacidade de expressão de uma pessoa,
prevenindo efetivamente a emissão futura de expressões ou informações, são
consideradas constitucionais porque têm a forma de responsabilidades ulteriores,
ao passo que decisões judiciais que têm impacto muito preciso e determinado sobre
a expressão de um emissor, após haver determinado a sua antijuridicidade e
lesividade, são julgadas como inconstitucionais porque têm a forma de restrições
prévias.283
A forma mais efetiva de proteger a liberdade de expressão, numa visão
alternativa, seria pela análise do modo de funcionamento e das consequências das medidas
judiciais prévias, somados aos efeitos das responsabilidades ulteriores, deixando de lado o
aspecto meramente formal relativo ao momento da restrição.
282
283
TOLLER, Fernando M. O formalismo na liberdade..., p. 69.
Id. Ibid., p. 70 (grifos do autor).
93
Isso porque, em certos casos, o efeito dissuasivo das normas e decisões que
impõem penalizações posteriores ao fato pode ser mais danoso à liberdade de expressão do
que a censura prévia administrativa.
Tudo depende da intensidade imposta à sanção judicial que considera
determinada expressão violadora dos direitos fundamentais ou de interesses coletivos,
independentemente da natureza penal ou civil do ato judicial.
Isso porque não é apenas o temor de ter contra si a máquina repressiva
estatal que inibe a difusão da informação, mas as consequências que condenações pecuniárias
desarrazoadas podem trazer quanto à dificuldade da publicação de material político
controverso e a divulgação de atos delitivos, envolvendo autoridades públicas.
É certo que, em alguns casos, o receio da condenação civil ou penal a
posteriori constitui indiretamente uma censura prévia à livre expressão em geral, com forte
potencial de inibir a divulgação da informação de forma mais veemente do que a tutela
inibitória.
Afinal de contas, a imposição de volumosa quantia a pequeno veículo de
comunicação por meio de decisão judicial, que pode levar a empresa à bancarrota, não seria
uma eficaz forma de inibir a divulgação de futuras informações?
A Suprema Corte americana enfrentou um caso com essas características, o
New York Times vs. Sullivan.284 O jornal New York Times foi condenado a pagar indenização
de US$ 500 mil285, por ter publicado um artigo escrito por apoiadores de Martin Luther King
Jr., em que dizia que funcionários públicos racistas do sul haviam utilizado táticas ilegais
contra movimentos civis. Isto teria levado King Jr. a prisão, por sete vezes, por acusações
falsas. O artigo dizia também que vários manifestantes haviam sido espancados. Como
algumas das afirmações contidas no anúncio não eram completamente verdadeiras, o
comissário de polícia da cidade onde ocorreram os eventos, Montgomery, ajuizou a ação civil
contra o jornal.
Na decisão do caso, a Suprema Corte firmou o entendimento de que os
ocupantes de cargos públicos não poderiam receber de seus críticos indenização por
difamação, a menos que provassem que uma afirmação danosa e falsa tivesse sido feita com
284
Segundo Lewis, tratou-se de uma das decisões mais dramáticas e de maior alcance envolvendo a Primeira
Emenda. LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias..., cit., p. 67.
285
Era o maior valor de indenização da história do Estado do Alabama. LEWIS, op. cit., p. 68.
94
conhecimento de sua falsidade ou por desconsideração imprudente de sua verdade ou
falsidade.
A consequência da decisão do caso New York Times vs. Sullivan foi a
afirmação de que o ônus da prova da falsidade das alegações cabia ao funcionário público
autor da demanda, presumindo-se que a notícia goza de veracidade e sua restrição a priori
resta proibida.
Portanto, dois fundamentos impedem que a liberdade de expressão seja
protegida com mais vigor, com o impedimento cautelar da emissão da opinião: em primeiro
lugar, existem casos em que os mecanismos de funcionamento de algumas decisões
aproximam sobremaneira os modelos prévios e posteriores de restrição, tornando difícil
verificar em qual situação certa medida se enquadra; em segundo lugar, a depender da
intensidade da decisão judicial ou administrativa, penalidades posteriores por demais severas,
de índole civil ou penal, na realidade, acabam por silenciar o debate público de maneira mais
contundente do que a censura administrativa.
95
4 O Supremo Tribunal Federal e a argumentação na resolução de conflitos sobre a
liberdade de expressão
A presente seção é destinada a confrontar os conceitos teóricos
expostos ao longo da pesquisa com as argumentações desenvolvidas pelo Supremo Tribunal
Federal na resolução dos casos que dizem respeito ao direito à liberdade de expressão e
pensamento.
Os temas que merecerão especial atenção fazem referência a três
aspectos principais: (i) a teoria predominante no Tribunal acerca da restrição à liberdade de
expressão e o método usado para solucionar a controvérsia, (ii) o papel desempenhado pelos
órgãos estatais na promoção da liberdade de expressão, e (iii) o modo de funcionamento da
restrição ao direito fundamental em questão.
O material jurisprudencial foi obtido de acordo com a metodologia de
trabalho exposta na Introdução.
Foram encontrados 38 (trinta e oito) julgados, proferidos, tanto pelo
Plenário, quanto pelas duas Turmas do Tribunal.286
A amostra inicial passou por uma etapa de “depuração” na qual foram
excluídos julgados em virtude de três fatores: (i) aqueles em que o mérito não foi apreciado
decorrente da existência de obstáculo processual287, (ii) ou por adiamento em virtude do
reconhecimento de repercussão geral288, e (iii) nas situações em que o tema da liberdade de
expressão não fez parte da quaestio iuris ou não constituiu objeto principal da discussão do
Tribunal naquele caso específico, aparecendo apenas como reforço argumentativo no voto de
um ou de alguns dos ministros.
286
Os casos são: RE 434.826 AgR/MG, AI 769.601 AgR/RJ, HC 109.676/RJ, ARE 739.383/SP, HC
106.808/RN, ARE 685.520/RJ, ARE 709.146 AgR/RS, ED no RE 596.302/SP, RE 685.493/SP, ARE
660.861/MG, ADPF 54/DF, ADIN 4274/DF, RE 555.320 AgR/SC, RE 414.426/SC, ADPF 187, AO 1390/PR,
ADI 4451/MC, AI 675.276 AgR/RJ, HC 95.244/PE, HC 95.348/PE, Rcl 9428/DF, RE 511.961/SP, ADPF
130/DF, ADI 3510/DF, RE 554.772 AgR/RS, Inq 2297/DF, ADI 2398/DF, ADI 3741/DF, RE 327.414 AgR/SP,
MS 24.849/DF, MS 24.831/DF, HC 85.041/SP, Inq 2154/DF, Ext 897/DF, HC 83.996/RJ, RE 348.827/RJ, RE
221.239/SP e HC 82.424/RS.
287
Foram os casos da ADI 2398/DF, RE 554.772 AgR/RS, ARE 709.146 AgR/RS, ARE 685.520/RJ e AI
769.601 AgR/RJ. Embora a Rcl 9428/DF tenha sido julgada prejudicada e, portanto, não teve o mérito analisado,
optamos por mantê-la como objeto de pesquisa diante do posicionamento do STF de abonar uma decisão judicial
que restringiu previamente a divulgação de matéria jornalística, sendo que muitos dos ministros emitiram
opinião sobre o mérito do caso analisado.
288
Situação verificada no ARE 660.861/MG e no RE 685.493/SP.
96
Podem ser citados como exemplos de julgados em que a liberdade de
expressão não foi discutida, nem mesmo subsidiariamente, a Ext 897/DF, o HC 85.041/SP e o
MS 24.831/DF, respectivamente relacionados à extradição de cidadão da República Tcheca
por cometimento do crime de estelionato no país de origem, pedido de reconhecimento de
ilegalidade na manutenção de pena restritiva de liberdade em crime de trânsito e a
possibilidade de instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito em Casa Legislativa do
Congresso Nacional por minoria parlamentar.
Por sua vez, a ADPF 54/DF (interrupção da gestação por má formação
craniana do feto) e a ADI 3510/DF (pesquisas com células-tronco embrionárias), dentre
outros casos, são exemplos de julgados em que a liberdade de expressão ocupou posição
secundária, vindo à baila apenas como reforço argumentativo sem que sobre ela houvesse
aprofundamento a respeito de seu conceito, extensão e limites.
Nesse contexto, optou-se por excluir da pesquisa o RE 221.239/SP, RE
327.414 AgR/SP e RE 434.826 AgR/MG, por versarem sobre imunidade tributária de
materiais destinados à impressão, respectivamente, de álbum de figurinhas, jornais e serviços
de impressão gráfica de jornal pertencente à missão religiosa.
O material final de pesquisa consistiu, então, em dezenove casos, listados a
seguir: HC 109.676/RJ, 11/06/2013, Min. Luiz Fux; HC 106.808/RN, 09/04/2013, Min.
Gilmar; ADI 4274/DF, 23/11/2011, Min. Carlos Britto; RE 555.320 AgR/SC, 18/10/2011,
Min. Luiz Fux; RE 414.426/SC, 01/08/2011, Min. Ellen Gracie; ADPF 187/DF, 15/06/2011,
Min. Celso de Mello; AO 1390/PB, 12/05/2011, Min. Dias Toffoli; ADI 4451-MC/DF,
02/09/2010, Min. Carlos Brito; AI 675.276 AgR/RJ, 22/06/2010, Min. Celso de Mello; HC
95.348/PE, 02/02/2010, Min. Cezar Peluso; Rcl 9428/DF, 10/12/2009, Min. Cezar Peluso;
RE 511.961/SP, 17/06/2009, Min. Gilmar Mendes; ADPF 130/DF, 30/04/2009, Min. Carlos
Britto; Inq 2297/DF, 20/09/2007, Min. Carmen Lúcia; ADI 3741/DF, 06/08/2006, Min.
Lewandowski; Inq 2154/DF, 17/12/2004, Min. Marco Aurélio; HC 83.996/RJ, 17/08/2004,
Min. Carlos Velloso; RE 348.827/RJ, 01/06/2004, Min. Carlos Velloso; HC 82.424/RS,
19/03/2004, Min. Moreira Alves.289
289
A coleta inicial de dados não apontou a ADPF 187/DF. É que, embora a ação tenha sido julgada no mês de
junho de 2011, o acórdão não havia sido publicado até abril de 2014, data da revisão da pesquisa. Entendeu-se
por bem incluir a ADPF 187/DF em decorrência da importância do julgamento na fixação dos parâmetros para
interpretação do art. 287 do Código Penal, em consonância com o direito de manifestação e de livre expressão. A
análise do caso baseou-se, pois, nos votos disponibilizados espontaneamente à secretaria do Supremo Tribunal
Federal pelos ministros Celso de Mello, relator do caso, Marco Aurélio e Luiz Fux, obtidos após mensagem
97
As referências aos trechos dos votos dos ministros constarão em nota de
rodapé da seguinte forma: País (BRASIL), nome do tribunal (Supremo Tribunal Federal),
nome da ação, número do processo, o ministro relator original e para o acórdão, se o caso, a
página de onde provém o excerto e data da publicação.
O número da página será aquele destacado em negrito no canto superior
direito do documento, pois o acesso ao inteiro teor dos julgados é extremamente simples,
bastando incluir o número do processo na barra de pesquisa na página eletrônica do Supremo
Tribunal Federal. A única exceção é a ADPF 187/DF em que o número da página será a do
voto de cada um dos ministros que os disponibilizaram para a secretaria do Tribunal, uma vez
que o acórdão ainda não foi publicado.
As ementas completas dos 19 (dezenove) julgados que compuseram o banco
de dados constam nos anexos colocados após as referências bibliográficas, identificados
progressivamente com as letras A até R. A inclusão de anexos decorreu da advertência de
Rizzatto Nunes sobre o risco de comprometer a qualidade final da dissertação. Como as
ementas são muito extensas, haveria dificuldade de compreensão do texto por conta de
interrupções do ritmo da leitura e perda da clareza do trabalho.290
A codificação dos resultados da pesquisa seguiu o encadeamento de Perseu
Abramo.291 Os dados foram classificados em critérios significativos formais e materiais.
Os formais são aqueles relacionados com os meios processuais de acesso à
jurisdição constitucional, as partes envolvidas no litígio, a natureza da tutela jurisdicional
pleiteada, os direitos em conflito com a liberdade de expressão e a participação social nas
decisões.
Os materiais, por sua vez, procuram averiguar a teoria utilizada pelo
Tribunal para restringir o direito fundamental à liberdade de expressão (teoria interna ou
externa), o método de resolução dos conflitos, se a Corte está próxima do modelo americano
ou europeu, e, por fim, a análise de adequação das decisões do Supremo Tribunal Federal com
o modelo teórico de Marcelo Neves.
eletrônica endereçada na data de 27.04.2014 à Seção de Pesquisa de Jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal.
290
NUNES, Rizzatto. Manual da monografia jurídica: como se faz: uma monografia, uma dissertação, uma tese.
10. ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 180.
291
Sobre como codificar os dados obtidos em uma pesquisa social, ver ABRAMO, Perseu. Pesquisa em ciências
sociais. In: HIRANO, Sedi (Org.). Pesquisa social: projeto e planejamento. São Paulo: T.A Queiroz, 1979, p.
54-55.
98
Aos critérios formais foi atribuído um código numérico a fim de facilitar a
sistematização das informações e proporcionar economia na manipulação dos dados. Assim,
os números 1 e 2 serviram, respectivamente, para assinalar decisões em controle concentrado
e difuso de constitucionalidade; 3 e 4, se as partes foram pessoas físicas ou jurídicas; os
códigos 5 e 6 serviram para classificar as demandas em cível ou criminal; e, por fim, a
presença ou ausência de amicus curiae receberam, nessa ordem, os números 7 e 8.
A ponderação do material obtido assumirá a forma quantitativa e
qualitativa292, isto é, serão analisadas algumas questões de índole estatística, bem como a
natureza do conjunto das decisões oriundas do Supremo Tribunal Federal, interpretando-a
com o modelo teórico de juiz de Marcelo Neves.
4.1 Critérios formais da pesquisa
A liberdade de expressão, catalogada como direito fundamental na
Constituição Federal de 1988, não prescinde do estudo de certos aspectos formais
relacionados ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do tema.
A análise quantitativa da pesquisa partirá da investigação de alguns aspectos
de natureza formal sobre o material de trabalho relacionado com os meios processuais de
acesso ao Supremo Tribunal Federal, as partes envolvidas no litígio, a natureza jurídica da
tutela pleiteada, os direitos que em maior número se apresentam em conflito com a liberdade
de expressão e a participação social nas decisões.
4.1.1 Os meios processuais de acesso à jurisdição constitucional
A primeira questão de relevância é verificar a prevalência dos modelos de
controle de constitucionalidade desempenhados pelo Tribunal na análise da liberdade de
292
MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Claudia Sevilha. Manual de metodologia da pesquisa no direito. 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 110.
99
expressão, ou seja, torna-se relevante investigar se o STF analisa os casos postos à apreciação
majoritariamente em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade.293
Do total de 19 (dezenove) julgados analisados, verificou-se que o STF se
debruçou sobre o tema da liberdade de expressão ou de imprensa em 14 (quatorze)
oportunidades em sede de controle difuso de constitucionalidade, incluindo-se habeas corpus,
Recurso Extraordinário, Ação Originária, Reclamação, Inquérito e Agravo Regimental em
Recurso Extraordinário.
Em
termos
proporcionais,
tem-se
que
o
controle
difuso
de
constitucionalidade foi o meio de acesso dominante à jurisdição constitucional para o tema da
liberdade de expressão, tendo atingido a proporção de pouco mais de 73% (setenta e três por
cento).
A constatação de que número significativo de decisões do Supremo
Tribunal Federal foi proferido em sede de controle difuso não pode levar à conclusão de que
seus efeitos interessam apenas às partes do litígio. A tendência expansiva emprestada às
decisões do Tribunal ao longo dos anos importou na diminuição prática dos efeitos dos
julgados, tanto no controle de constitucionalidade difuso, quanto concentrado.
De fato, após do encerramento do julgamento da Reclamação (Rcl)
4335/AC, em 20 de março de 2014, a Corte conferiu eficácia geral e vinculante para a decisão
tomada no HC 82.959/SP, em que se declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art.
2º da Lei nº 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos, que vedava o direito à progressão de
regime prisional aos condenados por crimes hediondos, sem que ao Senado Federal fosse
conferida a prerrogativa de suspender a execução, total ou parcial, do dispositivo legal.
Assim, a clássica divisão dos efeitos das decisões proferidas no controle de
constitucionalidade, em que o modelo concentrado importaria em efeitos erga omnes e o
difuso em efeitos inter partes, perdeu relevância por conta da “objetivação” dos
pronunciamentos, tanto em sede de controle concentrado, quanto em controle difuso.
4.1.2 As partes nas ações
293
Foram consideradas na categoria de controle difuso de constitucionalidade as decisões tomadas em
Reclamação (Rcl) e Ação Originária (AO), por não terem como escopo a impugnação de lei ou ato normativo
federal.
100
No tocante aos atores processuais responsáveis por provocar a Corte
Suprema, constatou-se que 11 (onze) casos (57%)294 tiveram como insurgentes pessoas
jurídicas de direito público de qualquer dos três níveis da Federação, empresas privadas,
associações de classe, o Ministério Público Federal e a Procuradoria Geral da República,
catalogadas sob a rubrica de “pessoas jurídicas” para diferenciar do restante dos processos
analisados, cujos proponentes foram pessoas físicas.
As empresas jornalísticas e respectivas associações de classe estiveram no
polo ativo de 4 (quatro) dos 11 (onze) casos analisados, sendo que em um deles aturam em
conjunto com o Ministério Público Federal295; dois julgados contaram com a participação das
associações profissionais dos músicos296; outros dois foram protagonizados por partidos
políticos297; o Ministério Público Federal atuou em dois processos, sendo que um deles teve a
participação de empresa de associação de classe jornalística298; e, por fim, duas ações
constitucionais foram propostas pela Procuradoria Geral da República.299
4.1.3 A natureza da tutela jurisdicional pleiteada
A perquirição sobre a natureza da tutela jurisdicional pleiteada revelou
equilíbrio entre as demandas de índole cíveis e criminais. Os números mostram que dos 19
(dezenove) julgados destrinchados, 10 (dez) se referem a matérias cíveis que vão desde
pedido de indenização por dano moral em face de publicação jornalística, passam pela análise
da isonomia no processo eleitoral, continuam pela necessidade de diploma para exercer a
profissão de jornalista, e terminam no aprofundamento do conteúdo jurídico da liberdade de
imprensa.
De outro lado, no tocante aos 09 (nove) casos criminais, proliferam pedidos
de concessão de ordem de habeas corpus e inquéritos para averiguar a ocorrência de crime
contra os direitos da personalidade (honra). Optou-se, ademais, por incluir na categoria de
294
A proporção correta é de 57,89%.
Editora O Dia S/A (RE 348.827/RJ), Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo - SERTESP
(RE 511.961/SP, em conjunto com o MPF), o periódico O Estado de S.Paulo S/A (Rcl 9428/SP) e a Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT (ADI 4451MC/DF).
296
Ordem dos Músicos de Santa Catarina (RE 414.426/SC) e o Conselho Regional da Ordem dos Músicos de
Santa Catarina (RE 555.320 AgR/SC).
297
ADI 3741/DF e ADPF 130/DF.
298
Inq. 2154/DF e RE 511.961/SP, este interposto simultaneamente com o Sindicato das Empresas de Rádio e
Televisão de São Paulo – SERTESP.
299
ADPF 187/DF e ADI 4274/DF.
295
101
casos criminais a ADPF 187/DF e a ADI 4274/DF que discutiram o tema da
descriminalização das drogas, posto que o motivo determinante para ingresso das demandas
pela Procuradoria-Geral da República foi a tipificação penal da conduta das pessoas que
participaram das chamadas “Marcha da Maconha”.
4.1.4 Os direitos em conflito com a liberdade de expressão
Levantamento estatístico relacionado à natureza do direito fundamental em
conflito com a liberdade de expressão e pensamento demonstrou que, no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, os direitos da personalidade da pessoa humana, entendidos estes na divisão
clássica da honra, intimidade, imagem e vida privada, apareceram como os principais
adversários ao livre exercício da expressão.
Do total de 19 (dezenove) julgados apreciados, constatou-se que os direitos
da personalidade estavam em conflito com a liberdade de expressão ou de imprensa em 09
(nove) casos, totalizando a proporção aproximada de 47% (quarenta e sete por cento).300
São os seguintes os casos em que o tribunal verificou a existência de colisão
entre a liberdade de expressão e de imprensa e os direitos da personalidade: HC 82.424/RS,
Inq 2154/DF, Inq 2297/DF, HC 109.676/RJ, RE 348.827/RJ, ADPF 130/DF, Rcl 9428/DF, AI
675.276 AgR/RJ e AO 1390/PB.
Nos outros 10 (dez) julgados o Supremo Tribunal Federal considerou que a
liberdade de expressão conflita com outros direitos constitucionais.
Dessa forma, o direito coletivo ao pudor público aparece como objeto de
análise no HC 83.996/RJ, o prestígio das Forças Armadas brasileiras nos HC‟s 95.348/PE e
106.808/RN, a isonomia do processo eleitoral foi tema de debates na ADI 3741/DF e na ADI
4451-MC/DF, o poder de polícia do Estado conflita com a liberdade de expressão nos RE‟s
511.961/SP e 414.426/SC e no RE 555.320 AgR/SC, e, por fim, a ordem pública foi tida
como limitadora da liberdade de expressão e de imprensa na ADPF 187/DF e na ADI
4274/DF.
300
A proporção correta é de 47,36%.
102
4.1.5 A presença de amicus curiae
A presença de terceiros interessados na condição de amicus curiae ou de
assistente de uma das partes não é fato de destaque na temática da liberdade de expressão.
Com efeito, em apenas 31% (trinta e um por cento)301 dos casos houve a intervenção de
terceiro nos autos, o que representa a quantia total de apenas seis julgados, sendo que em um
deles a intervenção se deu na figura da assistência simples.
O amicus curiae esteve presente no HC 82.424/RS, ADPF 130/DF, ADPF
187/DF, ADI 4274/DF e ADI 4451-MC/DF, e o assistente simples somente no RE
511.961/SP.
A intervenção do amicus curiae nos processos sujeitos a julgamento da
Corte Constitucional não é questão secundária. Consoante afirmado pelo Ministro Celso de
Mello nos autos da ADPF 187/DF, a presença dessa figura processual tem dois objetivos
essenciais: em primeiro lugar, pluralizar o debate constitucional, permitindo que a Corte tome
contato com todos os elementos informativos possíveis e necessários à solução da lide; em
segundo lugar, visa o amicus curiae a superar o déficit de legitimidade democrática das
decisões emanadas do controle abstrato de constitucionalidade, uma vez que amplia o controle
social dos julgamentos proferidos pelo Tribunal e permite a participação de entidades que
efetivamente representam os interesses gerais da sociedade.302
Conferindo destaque ao amicus curiae, o Tribunal admite que o terceiro
recorra da decisão monocrática que indeferiu seu pedido de ingresso no processo de controle
abstrato, apresente memoriais, faça sustenta oral, solicite a realização de exames periciais
sobre o objeto da controvérsia e requeira a designação de audiências públicas para a oitiva de
especialistas na matéria.303
A relevância destacada à figura do amicus curiae contrasta com a posição
adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 82.424/RS. Neste caso, em que
o Tribunal por maioria denegou o pedido de habeas corpus do paciente, condenado pelo
crime de racismo por ter escrito, publicado, reeditado e exposto à venda livros com conteúdo
antissemita, foi amplamente citado pelos ministros que não concederam o habeas corpus o
301
A proporção correta é de 31,57%.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Celso de Mello. p. 06-08 (acórdão não publicado).
303
Ibid., p. 12.
302
103
teor de pareceres dos juristas Celso Lafer e Miguel Reale Júnior “encomendados” diretamente
pelo então presidente, o ministro Maurício Corrêa, e apresentados na forma de memoriais.
Tal participação de amicus curiae em sede de controle difuso de
constitucionalidade (habeas corpus) sem prévia comunicação às partes e aos demais
integrantes do Tribunal, mereceu comentário do relator original, ministro Moreira Alves, de
que a juntada aos autos dos pareceres foi postura individual do ministro Maurício Corrêa e
derivado de um convite, estando os pareceristas a atuar, na prática, como assistentes de
acusação.304
O convite declinado pelo ministro Maurício Corrêa para que os juristas
ocupassem a posição de “amigos da corte” sem a observância dos requisitos legais possui
relevância por dois motivos principais.
O primeiro é que a intervenção de terceiros possui previsão legal somente
para ações em sede de controle abstrato de constitucionalidade na Lei nº 9.868, de 10 de
novembro de 1999, para a Ação Direta de Inconstitucionalidade305 e a Ação Declaratória de
Constitucionalidade306, e na Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, para a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental.307
O segundo motivo é que a intervenção do amicus curiae pressupõe ampla
publicidade às partes e principalmente aos demais ministros da Corte. Isso porque as razões
apresentadas pelo interveniente poderão servir como fundamento para a decisão do caso
concreto em benefício de uma das partes, porém sem que ao prejudicado seja conferida
304
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424- 2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
original min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 594. DJU 19.03.2004. Ver ementa no
anexo A.
305
“Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. [...] § 2 o
O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho
irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou
entidades. [...] Art. 9o [...] § 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou
de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais,
designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência
pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.”
306
“Art. 18. Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação declaratória de constitucionalidade.
[...] Art. 20. [...] § 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória
insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar
perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública,
ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.”
307
“Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela
prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1 o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos
processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos
para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas
com experiência e autoridade na matéria. § 2 o Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e
juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo.”
104
oportunidade de produzir material para contrapor os pareceres constantes nos autos, em clara
ofensa a paridade de armas.
A remição aos trabalhos teóricos dos amici curiae foi prática amplamente
adotada pelos ministros no julgamento do HC 82.424/RS. Com exceção dos ministros
Sepúlveda Pertence e Cezar Peluso, os demais integrantes que denegaram a ordem de habeas
corpus ao paciente apoiaram-se, em maior ou menor extensão, nos pareceres dos juristas
trazidos aos autos, inclusive citando textualmente trechos das peças.
Utilizaram os argumentos dos intervenientes para fundamentar suas
decisões os ministros Maurício Corrêa308, Celso de Mello309, Gilmar Mendes310, Carlos
Velloso311 , Nelson Jobim312e Ellen Gracie313, sendo certo que os ministros Moreira Alves,
Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio votaram pela concessão da ordem de habeas corpus.
Merecem destaques quanto a esse ponto os votos dos ministros Maurício
Corrêa e Nelson Jobim, o primeiro por fazer constantes remições aos pareceres de Celso Lafer
e Miguel Reale Júnior, e o segundo por citar excerto extremamente longo da peça de Lafer
que ocupou nada menos do que oito páginas consecutivas, além das citações em outros
trechos do voto.
Tal fato comprova a extrema influência exercida pelo amicus curiae no
Tribunal, comprometendo, por outro lado, o procedimento adotado pela Corte no HC
82.424/RS, especialmente no tocante à falta de transparência e isonomia do julgamento.
4.2 Critérios materiais da pesquisa
No âmbito da análise qualitativa, os dados angariados na pesquisa permitem
dividi-la materialmente em quatro tópicos, todos relacionados com os subsídios teóricos
expostos nas seções anteriores: a teoria utilizada pelo Tribunal para restringir o direito
fundamental à liberdade de expressão e o método utilizado para solucionar a controvérsia, o
papel desempenhado pelo Estado na promoção da liberdade de expressão, o modo de
308
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424- 2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. P. 597 passim. DJU 19.03.2004.
309
Ibid., p. 626, entre outras.
310
Ibid., p. 647-649.
311
Ibid., p. 687.
312
Ibid., p. 739 e 741-749.
313
Ibid., p. 755.
105
funcionamento da restrição ao direito fundamental, e, por fim, a análise de adequação das
decisões do Supremo Tribunal Federal ao modelo teórico de juiz proposto por Marcelo Neves.
4.2.1 Teoria da restrição do direito à liberdade de expressão e o método de solução do
conflito
Foi visto que duas teorias se destacam no estudo da dogmática da restrição
dos direitos fundamentais: a teoria externa e a teoria interna.314
Ambas rejeitam a ideia de direitos absolutos e têm posições distintas acerca
do direito e sua limitação. Enquanto a teoria externa concebe os direitos fundamentais de
forma a priori ampla e adota o princípio da proporcionalidade como técnica adequada para
solucionar a colisão dos direitos fundamentais, a teoria interna rejeita a tese de que há colisão
e concebe o direito com determinado conteúdo predefinido e encontrado com a exclusão de
antemão de certos atos, fatos e posições jurídicas do âmbito de proteção do direito
fundamental. Utiliza os artifícios dos limites imanentes e da concepção institucional dos
direitos fundamentais como métodos para alcançar o direito definitivo.
A análise detida do acervo de julgados obtidos no Supremo Tribunal Federal
demonstra que a teoria interna é amplamente utilizada para restringir o direito à liberdade de
expressão e pensamento.
Entretanto, não existe por parte do Tribunal coerência metodológica na
adoção da teoria interna. Ora a Corte lança mão da teoria de forma implícita, entendendo que
os limites à liberdade de expressão foram previamente traçados pela própria Constituição; ora
combina a teoria interna com o princípio da proporcionalidade sem mencionar os três
subprincípios; em certos casos, ainda, alguns ministros chegam a conferir, em atenção à
situação concreta, caráter absoluto a determinados direitos constitucionais, algo vedado tanto
pela teoria interna quanto externa.
A principal estratégia argumentativa do Supremo Tribunal Federal no
âmbito da teoria interna é excluir fato, ação, estado ou posição jurídica do suporte fático da
norma de direito fundamental.
314
Ver 3.2.
106
Diversos acórdãos que recorreram a esse artifício podem ser citados. No HC
83.996/RJ, o diretor de teatro Gerald Thomas, ao término da apresentação de uma peça, foi
vaiado pela plateia e reagiu fazendo gestos obscenos que simulavam a masturbação
masculina, mostrando também as nádegas ao público presente no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro.
Acusado do crime de ultraje ao pudor público, o diretor teve a ordem de
habeas corpus concedida para trancar a ação penal por vislumbrar o Tribunal ausência da
intenção de ofender a moral pública.
A Corte entendeu que a análise da manifestação do acusado deve estar
adstrita ao contexto social em que proferida a fim de verificar até que ponto merece proteção
constitucional, ainda mais contra a repressão do Direito Penal. O Tribunal afirmou que
existem outros meios, às vezes mais eficientes, de repressão ao ato do paciente, como, por
exemplo, a crítica, e que em um Estado Democrático de Direito a liberdade é a regra geral e
deve ser respeitada, até mesmo pelo legislador.315
Virgílio Afonso da Silva, analisando o “caso Gerald Thomas”, concluiu que
o Supremo Tribunal Federal recorreu à teoria interna da restrição dos direitos fundamentais
para solucionar a questão, pois optou por excluir a conduta do diretor de teatro do âmbito de
incidência da regra penal e considerá-la como mero exercício da liberdade de expressão.
Segundo o autor, o Tribunal poderia ter argumentado, caso quisesse utilizar
a teoria externa, que apesar de a conduta ser obscena e estar incluída no suporte legal, a regra
não seria aplicável em respeito ao princípio da liberdade de expressão.316
Semelhante ratio decidendi pode ser encontrada nos Inq‟s. 2154/DF e
2297/DF317, nos quais a Corte considerou não ter havido caracterização de crimes contra a
honra porque certas manifestações hão de ser temperadas com o contexto em que veiculadas,
além do que o agente público deve se acostumar com a liberdade de expressão, sujeitando-se
a críticas e opiniões contrárias em decorrência do exercício da profissão.318
315
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 83.996-7 Rio de janeiro. Segunda Turma. Rel. min.
Gilmar Mendes. p. 350. DJU 26.08.2005. Ver ementa no anexo C.
316
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrição e eficácia. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 54.
317
Ver ementa no anexo F.
318
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 2154 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Marco
Aurélio. p. 108. DJU 17.12.2004. Ver ementa no anexo D.
107
Aos três julgados acima analisados, podem-se acrescentar outros nos quais
se recorreu a fundamentos similares. É o caso do HC 109.676/RJ, em que a Corte afirmou que
“a liberdade de expressão não pode ser anteparo para práticas ilícitas de ofensa à honra
subjetiva”.319 Assim como nos HC‟s 106.808/RN320 e 95.348/PE, sendo que, neste último,
ficou consignado que a liberdade de expressão é direito fundamental inerente à condição
humana e, assim, os artigos do Código Penal (lei ordinária) não podem ser interpretados,
embora semanticamente possível, em sentido que afronte o direito fundamental em questão.321
Caso extremamente importante na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal sobre o tema da liberdade de expressão e revestido, segundo alguns ministros que
participaram do julgamento, de relevância histórica, é o HC 82.424/RS, conhecido como
“caso Ellwanger”322.
Este caso é relevante porque decidido com base na teoria interna dos
direitos fundamentais, porém em sentido oposto aos anteriormente citados, já que o Tribunal
optou por denegar a ordem de habeas corpus e manter a condenação imposta pelo tribunal
local.
A posição prevalecente entre a maioria formada na ocasião foi a de que os
limites para a liberdade de expressão estão previamente definidos na própria Constituição
Federal, devendo este direito ser exercido em respeito aos direitos da imagem, honra e
privacidade. Esta leitura pode ser extraída do artigo 220 que remete ao artigo 5º, X, todos do
Texto Maior, reconhecendo haver uma restrição intrínseca à liberdade de expressão.
O ministro Maurício Corrêa é explicito nesse sentido ao afirmar em seu voto
que:
Malgrado não seja fundamento do writ, penso também não ocorrer na hipótese
qualquer violação ao principio constitucional que assegura a liberdade de expressão
e pensamento [...]. Como sabido, tais garantias, como de resto as demais, não são
incondicionais, razão pela qual devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites traçados pela própria Constituição Federal [...]. Atos
discriminatórios de qualquer natureza ficaram expressamente vedados, com alentado
relevo para a questão racial, o que impõe certos temperamentos quando possível
319
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 109.676 Rio de Janeiro. Primeira Turma. Rel. min. Luiz
Fux. p. 02. DJU 11.06.2013. Ver ementa no anexo R.
320
Ver ementa no anexo Q.
321
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 95.348 Pernambuco. Segunda Turma. Rel. min. Cezar
Peluso. p. 658. DJU 02.02.2010. Ver ementa no anexo J.
322
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 619. DJU 19.03.2004.
108
contrapor-se uma norma fundamental a outra [...]. A aparente colisão de direitos
essenciais encontra, nesse caso, solução no próprio texto constitucional. 323
Embora o ministro tenha usado o principal postulado da teoria interna para
fundamentar seu voto, em seguida expressamente optou pela técnica da ponderação de bens e
valores para concluir que os direitos da personalidade são hierarquicamente superiores à
liberdade de expressão, pois aqueles se relacionam com os direitos humanos, especificamente
a dignidade humana, o tratamento igualitário, a cidadania e a vida.324
A ideia que parece repousar no entendimento do ministro Maurício Corrêa é
a de que a liberdade de expressão é desvinculada da noção de direitos humanos, não
merecendo tutela jurisdicional quando em confronto com os direitos da personalidade.325
O apelo à teoria interna da restrição aos direitos fundamentais é
compartilhado por quase todos os julgadores que denegaram o habeas.
O ministro Celso de Mello chegou a afirmar que, embora a igualdade e a
dignidade sejam restrições externas ao direito à liberdade de expressão, a Constituição não
fornece garantia aos chamados discursos odiosos, promotores da discriminação e
preconceito.326
Contraditoriamente, o ministro Celso de Mello argumentou que a liberdade
de expressão sofre restrições externas, dando a entender que aceita o suporte fático amplo
para o direito. Na sequência, porém, concluiu que os limites para o direito fundamental já
estão previstos antecipadamente na própria Constituição Federal, retirando certos atos do
âmbito de proteção da liberdade de expressão, o que evidentemente é incoerente com a tese
das restrições externas.
Semelhante posicionamento foi adotado na ADPF 130/DF. O ministro
aduziu que os direitos da personalidade representam limitações externas ao direito de
livremente expressar-se. Em seguida argumentou que a incitação ao ódio público contra
323
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 584. DJU 19.03.2004 (grifos do
autor).
324
Ibid., p. 585.
325
Analisando julgados oriundos dos principais tribunais do Brasil e do Superior Tribunal de Justiça, Cláudio
Chequer observa que há uma tendência do Poder Judiciário brasileiro de conferir primazia aos direitos da
personalidade quando em confronto com a liberdade de expressão, especialmente nas situações em que se
reclama proteção judicial a posteriori, ou seja, após a manifestação do pensamento ou a publicação da notícia,
embora se recorra frequentemente à técnica da ponderação de bens. Ver CHEQUER, Cláudio. A liberdade de
expressão como direito fundamental preferencial prima facie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 203-219.
326
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 631. DJU 19.03.2004.
109
pessoa ou grupo social não está amparada pela liberdade de expressão, ou seja, ele excluiu, de
antemão, condutas do suporte fático do direito fundamental, a exemplo do que havia feito no
“caso Ellwanger”.327
Da mesma forma, na ADPF 187/DF assevera que a liberdade de expressão
não é direito absoluto, pois não pode ser usada para discriminar minorias ou incitar o ódio,
retirando condutas do âmbito de proteção do direito fundamental, e cita, em abono a sua tese,
o artigo 13, parágrafo 5º do Pacto de San Jose da Costa Rica328, dispositivo que também
exclui antecipadamente matérias da proteção da liberdade de expressão.329
O ministro Dias Toffoli parece comungar da mesma opinião. No julgamento
da AO 1390/PB, por ele relatada, decidiu-se que acusações dirigidas a pessoas públicas não
estão imunes à responsabilização cível ou criminal. No caso o réu da ação acusou o autor,
presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Estado da Paraíba, de participar de esquema
objetivando fraudar eleições, sem comprovar a veracidade das alegações.
Na solução do caso, o ministro aduziu que a liberdade de expressão não é
direito absoluto e está limitada pelos direitos da personalidade, extraindo o raciocínio da
Constituição Federal. Manteve a condenação cível do réu utilizando-se de argumentos da
teoria interna, posto que não fez menção ao princípio da proporcionalidade (aos três
subprincípios) nem a outro argumento qualquer, senão de natureza processual, como ausência
de provas das alegações.330
Fato interessante da jurisprudência da Corte é que o apelo ao cerne da teoria
interna da restrição aos direitos fundamentais (exclusão de condutas a priori do suporte
fático) no embate entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade não ocorre
somente nas hipóteses em que o Tribunal favorece os direitos à honra, à imagem e à
privacidade.
No AI 675.276 AgR/RJ recorreu-se à teoria interna para flexibilizar a
proteção aos direitos da personalidade, no caso concreto a honra. Para concluir que pessoas
327
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 149 e 159. DJU 06.11.2009.
328
“Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão. [...] 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da
guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação,
à hostilidade, ao crime ou à violência.”
329
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Celso de Mello. p. 48 (acórdão não publicado).
330
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Originária 1390 Paraíba. Tribunal Pleno. Rel. min. Dias Toffoli.
p. 27. DJU 30.08.2011. Ver ementa no anexo M.
110
públicas ou que desempenham atividades de interesse coletivo possuem âmbito menor de
proteção dos direitos da personalidade, podendo sofrer críticas ácidas da imprensa, a Corte se
viu obrigada a excluir do raio de proteção do direito da personalidade a opinião emitida por
intermédio da imprensa.331
O que se verifica é que a estratégia de retirar fatos e condutas do suporte
fático dos direitos fundamentais não acontece somente para restringir a liberdade de
expressão, mas é utilizada quando a restrição se dá sobre os direitos da personalidade, donde é
possível concluir que se trata de uma conduta disseminada no âmbito da Corte.
A constatação de que predomina na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal o uso da teoria interna como modelo de restrição ao direito fundamental da liberdade
de expressão não permite afirmar que a ponderação e a proporcionalidade são técnicas
ignoradas pelos ministros.
Ao contrário, em vários casos analisados é possível verificar que se recorre
frequentemente à ponderação de bens e ao princípio da proporcionalidade nas situações em
que os ministros rechaçaram a existência de colisão de direitos fundamentais ou quando
conferiram primazia a determinado direito fundamental.
No “caso Ellwanger”, conforme assinalado, o ministro Maurício Corrêa
inaugurou a divergência ao adotar a teoria interna da restrição aos direitos fundamentais
sustentando que a liberdade de expressão deve ser exercida com observância dos limites
traçados pela Constituição Federal.
No mesmo sentido seguiu o ministro Celso de Mello, em voto que se apoia
quase que exclusivamente no princípio da dignidade da pessoa humana. Ele, diferentemente
do ministro Maurício Corrêa, é explicito ao afirmar que não há colisão de direitos no caso,
contudo assevera que a igualdade e a dignidade são restrições externas à liberdade de
expressão, que de antemão não abarca o discurso odioso.
De forma contraditória, mais adiante o ministro Celso de Mello admite um
aparente conflito de direitos e alude ao critério da ponderação de bens e valores como método
apto a solucionar o caso, porém sem detalhar como se daria sua aplicação. O magistrado se
limita a recorrer a argumentação consequencialista de que os atos praticados pelo paciente
331
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Agravo de Instrumento 675.276 Rio de Janeiro. Segunda
Turma. Rel. min. Celso de Mello. p. 308. DJU 14.04.2011. Ver ementa no anexo K.
111
instauram tratamentos discriminatórios fundados em ódio racial contra minorias, sem
apresentar dado para corroborar a afirmação.332
No mesmo “caso Ellwanger”, o ministro Gilmar Mendes utilizou
argumentos parcialmente diferentes, porém chegou à mesma conclusão. Aceita a tese de que
os limites à liberdade de expressão são inerentes à Constituição Federal, no entanto enxerga
colisão entre os direitos fundamentais em tela que deve ser resolvida mediante o uso do
princípio da proporcionalidade.333
O ministro fez referência às três máximas do princípio da proporcionalidade
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) e esmiuçou com bastante
clareza o modo de solução da controvérsia para concluir pela não concessão da ordem de
habeas corpus.
Para o ministro Gilmar Mendes a condenação do paciente foi adequada para
atingir o fim almejado da salvaguarda de uma sociedade pluralista e tolerante. A necessidade
também estaria presente, na visão do ministro, porque não existiriam meios menos gravosos e
igualmente eficazes do que a aplicação da pena criminal. Por fim, a proporção entre o objetivo
perseguido e o ônus imposto à liberdade de expressão estaria satisfeito em virtude da
disposição do texto constitucional de excepcionar da proteção da liberdade de expressão os
discursos de intolerância racial. 334
Para reforçar a afirmação de que há incoerência metodológica entre os
votos, o ministro Marco Aurélio adota fundamentação semelhante a Gilmar Mendes para
reconhecer a existência da colisão entre a liberdade de expressão e a dignidade humana,
compartilhando a tese de que a solução do caso se dá pelo princípio da proporcionalidade.
Marco Aurélio, a exemplo de Gilmar Mendes, mencionou expressamente os subprincípios da
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, contudo alcançou resultado
diametralmente oposto ao conceder o habeas.
Embora o ministro entenda ser a medida inadequada para atingir o fim
proposto pela decisão de segundo grau de acabar com a discriminação contra o povo judeu,
fato que prescindiria da análise dos demais subprincípios, ele prossegue na analisa dos demais
332
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 630-633. DJU 19.03.2004.
Compartilharam dos mesmos fundamentos os ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie e Nelson Jobim.
333
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 656-658. DJU 19.03.2004.
334
Ibid., p. 669-670.
112
subprincípios e conclui que o correto uso do princípio da proporcionalidade absolve o
acusado, acrescentando, da mesma forma que o ministro Celso de Mello, porém em sentido
diverso, argumento consequencialista de que a restrição da liberdade de expressão não pode
ser pautada por simples alegação de discriminação sem respaldo empírico. 335
Em perspectiva similar no que diz respeito à incoerência metodológica,
pode-se citar o julgamento da ADPF 130/DF, que resultou na revogação da denominada Lei
de Imprensa (Lei nº 5.250/1967).
O cerne da discussão foi a compatibilidade da Lei de Imprensa com a
Constituição Federal. A Corte entendeu, por maioria, que a lei não foi recepcionada pela nova
ordem constitucional por infringir os dispositivos asseguradores da liberdade de expressão.
O relator do processo, ministro Carlos Britto, aduziu que a Constituição
Federal estabeleceu dois grandes blocos normativos: de um lado, os direitos relativos às
liberdades de pensamento, criação, expressão e informação, constantes nos incisos IV, IX,
XIII e XIV do artigo 5º, o artigo 220, caput, e parágrafo 1º, e de outro, os direitos da
personalidade, retratados nos incisos V e X do artigo 5º.
Segundo Carlos Britto, a Carta Política procedeu antecipadamente ao
legislador a uma ponderação ou sopesamento de valores em benefício das liberdades de
expressão e pensamento nos casos em que estas forem exercidas por intermédio da imprensa.
Para ele, esta circunstância consagrou o direito de imprensa como direitos superiores
(sobredireitos) se comparados a outros, sobretudo aos direitos da personalidade.336
A estratégia argumentativa do ministro para justificar a primazia das
liberdades de expressão e de imprensa foi aproximá-las ao princípio da dignidade da pessoa
humana a fim de evitar uma costumeira dissociação entre eles, postura normalmente adotada
por aqueles que restringem em demasia a liberdade de expressão.
Para o ministro Carlos Britto, como a liberdade de imprensa promove o
desenvolvimento social e a democracia, possuindo com esta uma relação de mútua
dependência ou retroalimentação, a liberdade de expressão, em última análise, se reveste de
importância para toda a coletividade e para cada indivíduo na medida em que é responsável
pela efetivação de outros direitos fundamentais.
335
Ibid., p. 884-888 e 895-901.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 50. DJU 06.11.2009. Ver ementa no anexo G.
336
113
Daqui já se vai desprendendo a intelecção do quanto a imprensa livre contribui para
a concretização dos mais excelsos princípios constitucionais. A começar pelos
mencionados princípios da "soberania" (inciso I do art. 1º) e da "cidadania" (inciso
II do mesmo art. 1º), entendida a soberania como exclusiva qualidade do eleitorsoberano, e a cidadania como apanágio do cidadão, claro, mas do cidadão no velho e
sempre atual sentido grego: aquele habitante da cidade que se interessa por tudo
que é de todos; isto é, cidadania como o direito de conhecer e acompanhar de
perto as coisas do Poder, os assuntos da pólis. Organicamente. Militantemente.
Saltando aos olhos que tais direitos serão tanto melhor exercidos quanto mais
denso e atualizado for o acervo de informações que se possa obter por conduto
da imprensa (contribuição que a INTERNET em muito robustece, faça-se o
registro).337e
Mais adiante, acrescenta que:
É precisamente isto: no último dispositivo transcrito [artigo 220, caput] a
Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa,
porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de
pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em
seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que
tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela
própria, Constituição. Requinte de proteção que bem espelha a proposição de que a
imprensa é o espaço institucional que melhor se disponibiliza para o uso articulado
do pensamento e do sentimento humanos como fatores de defesa e promoção do
indivíduo, tanto quanto da organização do Estado e da sociedade. Plus protecional
que ainda se explica pela anterior consideração de que é pelos mais altos e largos
portais da imprensa que a democracia vê os seus mais excelsos conteúdos descerem
dos colmos olímpicos da pura abstratividade para penetrar fundo na carne do real.
Dando-se que a recíproca é verdadeira: quanto mais a democracia é servida pela
imprensa, mais a imprensa é servida pela democracia. 338
A referência de que os limites da liberdade de expressão estão previamente
inscritos na Constituição Federal é demonstrativo de que o pressuposto adotado no voto do
ministro Carlos Britto é o da teoria interna da restrição aos direitos fundamentais, eis que não
considera a restrição como categoria externa ao direito.
Coerente com a tese da supremacia do bloco normativo da liberdade de
expressão, o ministro Carlos Britto sustenta que inexiste colisão de direitos fundamentais. Na
visão do ministro, não se deve considerar os direitos em jogo como mandamentos de
otimização a serem satisfeitos na maior medida possível dependendo das situações fáticas e
jurídicas de cada caso. A precedência constitucional se impõe a toda e qualquer situação
concreta, tanto na relação Estado-cidadão quanto cidadão-cidadão.
337
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 37. DJU 06.11.2009 (grifos do autor).
338
Ibid., p. 43-44 (grifos do autor).
114
Nas palavras do ministro Carlos Britto:
[...] o segundo parêntese é para nos possibilitar dizer que essa hierarquia axiológica,
essa primazia político-filosófica das liberdades de pensamento e de expressão lato
sensu afasta sua categorização conceitual como "normas-princípio" (categorização
tão bem exposta pelo jurista alemão Robert Alexy e pelo norte-americano Ronald
Dworkin). É que nenhuma dessas liberdades se nos apresenta como "mandado de
otimização", pois não se cuida de realizá-las "na maior medida possível diante das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes" [...] . Tais possibilidades não contam,
simplesmente, porque a precedência constitucional é daquelas que se impõe em
toda e qualquer situação concreta. Assim na esfera de atuação do Estado quanto
dos indivíduos. Logo, valendo terminantemente para todas as situações da vida em
concreto, pouco importando a natureza pública ou privada da relação entre partes,
ambas as franquias constitucionais encarnam uma tipologia normativa bem mais
próxima do conceito de "normas-regra"; isto em consideração ao fato de que,
temporalmente, e com o timbre da invariabilidade, preferem à aplicação de outras
regras constitucionais sobre direitos de personalidade. Não para invalidar estes
últimos, mas para sonegar-lhes a nota da imediata produção dos efeitos a que se
preordenam, sempre que confrontados com as liberdades de manifestação do
pensamento e de expressão lato sensu. Mormente se tais liberdades se dão na esfera
339
de atuação dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social.
É certo que, embora o voto do ministro tenha conduzido em parte a Corte ao
resultado conclusivo da não recepção da Lei de Imprensa, a premissa por ele fixada a respeito
da primazia de um bloco de direitos sobre outro não encontrou respaldo dos demais
integrantes do Tribunal.
Com as exceções do ministro Eros Grau, que se limitou a aderir
integralmente ao voto do relator, e do ministro Marco Aurélio, que julgou improcedente a
ADPF 130/DF por não enxergar incompatibilidade com a ordem constitucional vigente, os
demais componentes fizeram importantes ressalvas ao voto inicial, muitos deles incorrendo,
também, em alguns desvios técnicos.
Assim, em sentido oposto ao apontado pelo relator, o ministro Menezes
Direito entendeu que a Constituição Federal de 1988 dotou de especial garantia os direitos da
personalidade. O equilíbrio entre esses direitos e a liberdade de imprensa se dá por meio da
ponderação, o que inadmite a tese de precedência de um direito sobre o outro. Há uma colisão
de direitos fundamentais, cabendo ao intérprete adequá-los harmonicamente. E, de forma
aparentemente incoerente, afirma que a dignidade da pessoa humana prevalece sobre a
339
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 61-62. DJU 06.11.2009 (grifos do autor).
115
liberdade de expressão na permanente tensão constitucional existente entre os direitos da
personalidade e a liberdade de expressão.340
Em tom de certa forma concordante com o ministro Direito, o ministro
Gilmar Mendes crê num inexorável conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da
personalidade, uma verdadeira colisão de direitos fundamentais. No entanto, diz que a
Constituição Federal consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana como postulado
essencial da ordem constitucional o que, aparentemente, revela contradição com a afirmação
anterior acerca da colisão de direitos, já que não se fala em colisão de direitos quando há
precedência de um sobre o outro.341
De forma geral, é possível dizer que a maioria dos ministros se posicionou
no sentido de reconhecer a tensão entre a liberdade de expressão e os direitos da
personalidade, rechaçando a tese da primazia prévia de um bloco normativo, tal como
formulada pelo ministro Carlos Britto. Com essa perspectiva se posicionaram os ministros
Joaquim Barbosa, Cezar Peluso e Ellen Gracie.
Já o ministro Celso de Mello asseverou que os direitos da personalidade
representam limitações externas ao direito de livremente expressar-se, o que faz instaurar um
conflito permanente advindo do estado de colisão entre direitos fundamentais, reclamando
decisão casuística a respeito da preferência. O método a ser utilizado é a ponderação de bens e
valores constitucionais, embora em seu voto não haja detalhamento dos subcritérios do
princípio da proporcionalidade.342
Embora os argumentos desenvolvidos pelos ministros tenham partido de
premissas muitas vezes antagônicas entre si, é possível concluir que a teoria interna da
restrição aos direitos fundamentais foi dominante na Corte.
Verifica-se, contudo, no âmbito do Supremo Tribunal Federal forte
contradição entre dois importantes julgados. Se é certo que na ADPF 130/DF a teoria interna
da restrição dos direitos fundamentais serviu de retórica para rechaçar in totum legislação
infraconstitucional violadora da liberdade de expressão, no HC 82.424/RS, analisado acima, o
Tribunal manteve a condenação do paciente pelo cometimento de crime de opinião lançando
mão quase que exclusivamente dos mesmos pressupostos da teoria interna dos direitos
340
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 86-90. DJU 06.11.2009 (grifos do autor).
341
Ibid., p. 228-235.
342
Ibid., p. 149-175.
116
fundamentais, conferindo primazia aos direitos da personalidade, o que é, consoante
reiteradamente afirmado, incompatível com ambas as teorias, interna e externa.
O que se pretende sublinhar é o fato de em um caso o Tribunal utilizar o
expediente de retirar antecipadamente do âmbito de proteção do direito fundamental à
liberdade de expressão fatos, atos, estado e posições jurídicas como argumento para proteger
o direito em questão, e em outra oportunidade a mesma teoria interna servir retoricamente
para a condenação criminal por ter professado uma opinião, mesmo que odiosa, porque se
entendeu que os direitos da personalidade têm preferência.
Outros julgados da base de dados da pesquisa podem ser citados para
demonstrar a variação dos argumentos do Supremo Tribunal Federal. Na ADI 3741/DF, o
Plenário da Corte declarou inconstitucional lei restritiva à liberdade de expressão aplicando ao
caso o princípio da proporcionalidade. Afirmou-se que a lei era inadequada, desnecessária e
desproporcional ao objetivo almejado, qual seja, permitir que o cidadão forme sua convicção
de maneira mais ampla possível.
No entanto, o ministro relator, Ricardo Lewandowski, não especificou com
rigor
o
percurso
argumentativo
desenvolvido
para
chegar
à
conclusão
da
inconstitucionalidade da lei, tendo aludido expressamente a circunstância de estarem os
limites da liberdade de expressão dispostos na Constituição Federal, especificamente no artigo
220, parágrafo 1º.343
A limitação ao direito da liberdade de expressão foi tema no julgamento do
RE 511.961/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, em que se discutiu a
constitucionalidade da exigência de diploma universitário para o exercício da profissão de
jornalista.
O centro da discussão girou em torno do tema da reserva legal como
limitação de direito fundamental, já que havia o questionamento sobre a constitucionalidade
do artigo 4º, V, do Decreto-Lei nº 972/1969, que exigia o diploma, e a definição do conceito
de núcleo essencial de um direito fundamental, insuscetível de restrição.
A trajetória argumentativa não difere de maneira substancial da verificada
na maioria dos casos analisados, especialmente no tocante ao uso concomitante da teoria
interna da restrição dos direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade.
343
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3741 Distrito Federal. Tribunal
Pleno. Rel. min. Ricardo Lewandowski. p. 203-208. DJU 23.02.2007. Ver ementa no anexo E.
117
Para o ministro Gilmar Mendes há correlação entre o âmbito de proteção
dos direitos individuais de defesa e a restrição, pois quanto mais amplo for o âmbito de
proteção do direito fundamental maior serão as possibilidades de qualificar um ato de
restrição.
Segundo o relator, o âmbito de proteção pode sofrer restrição pela própria
Constituição Federal ou pela reserva legal. No entanto, cabe verificar, mediante a utilização
do princípio da proporcionalidade, a razoabilidade da intensidade da regulamentação do
direito fundamental a ponto de não atingir seu núcleo essencial, segundo o ministro o
exercício da profissão de jornalista.
Enfatiza que as restrições derivam da própria Constituição Federal (limites
imanentes), aceitando a ideia de que a legitimidade das limitações tem que ser analisada sob o
ângulo do princípio da proporcionalidade com o uso dos três subprincípios.
Nesse ponto, é possível encontrar o mesmo equívoco levado a efeito pelo
ministro Celso de Mello no “caso Ellwanger”, bem como de todos os ministros que negaram o
pedido de habeas corpus, pois restou afirmado que o núcleo essencial de um direito
fundamental e o princípio da proporcionalidade são coisas diferentes.
No dizer do ministro Gilmar Mendes:
Certamente, há, nessas hipóteses, uma esfera de livre expressão protegida pela
ordem constitucional contra qualquer intervenção estatal cujo objetivo principal seja
o controle sobre as qualificações profissionais para o exercício dessas atividades.
Por isso, não obstante o acerto de todas essas considerações, que explicitam uma
análise de proporcionalidade, o certo é que, mais do que isso, a questão aqui
verificada é de patente inconstitucionalidade, por violação direta ao art. 5o, inciso
XIII, da Constituição. Não se trata apenas de verificar a adequação de uma condição
restritiva para o exercício da profissão, mas de constatar que, num âmbito de livre
expressão, o estabelecimento de qualificações profissionais é terminantemente
proibido pela ordem constitucional, e a lei que assim proceder afronta diretamente o
art. 5o, inciso XIII, da Constituição.344
Em seguida, o ministro aduz que a liberdade de expressão não é direito
absoluto e sua restrição somente ocorre de forma excepcional, sempre reservadas para as
imperiosas necessidades de resguardos de outros valores constitucionais, como no caso dos
direitos da personalidade.
Conclui da seguinte maneira:
344
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min.
Gilmar Mendes. p. 758. DJU 13.11.2009. Ver ementa no anexo H.
118
Assim, no caso da profissão de jornalista, a interpretação do art. 5o, inciso XIII, em
conjunto com o art. 5o, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, leva à conclusão de que a
ordem constitucional apenas admite a definição legal das qualificações profissionais
na hipótese em que sejam elas estabelecidas para proteger, efetivar e reforçar o
exercício profissional das liberdades de expressão e de informação por parte dos
jornalistas. Fora desse quadro, há patente inconstitucionalidade da lei. É fácil
perceber, nessa linha de raciocínio, que a exigência de diploma de curso superior
para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento
profissional das liberdades de expressão e de informação – não está autorizada pela
ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira
supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística,
expressamente proibido pelo art. 220, § 1o, da Constituição. Portanto, em se
tratando de jornalismo, atividade umbilicalmente ligada às liberdades de expressão e
de informação, o Estado não está legitimado a estabelecer condicionamentos e
restrições quanto ao acesso à profissão e respectivo exercício profissional. 345
Embora o ministro Gilmar Mendes lance mão do princípio da
proporcionalidade para decidir sobre a compatibilidade constitucional da matéria legal, este
trecho deixa claro que houve apelo à teoria interna da restrição dos direitos fundamentais na
medida em que optou por retirar certas condutas do âmbito da alçada do legislador, que não
poderia sobre elas dispor diante da interdição promovida pela Constituição Federal.
De forma oposta ao defendido pelo ministro relator, porém coerente com a
posição assumida na ADPF 130/DF, ao concluir pela inconstitucionalidade da exigência de
diploma, o ministro Carlos Britto defende que a liberdade de imprensa é valor superior,
inigualável pela Constituição Federal a nenhum outro direito, pois protege bens jurídicos de
relevância maior, não havendo que se falar em aplicação do princípio da proporcionalidade,
eis que a ponderação foi feita previamente pela constituinte.346
A conclusão que é possível extrair dessa série de decisões é que o Supremo
Tribunal Federal não é guiado pelo rigor metodológico das técnicas de argumentação. Os
ministros costumam utilizar certas teorias para embasar seus votos lançando mão, muitas
vezes, de pressupostos equivocados, ou dois ministros utilizam a mesma técnica de decisão
para chegar a resultados antagônicos.
Exemplo
do
primeiro
caso
é
a
combinação
do
princípio
da
proporcionalidade com a teoria interna da restrição dos direitos fundamentais, como na ADPF
130/DF, ADI 3741/DF, entre outros, e o segundo é a utilização da proporcionalidade pelos
345
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min.
Gilmar Mendes. p. 760-761. DJU 13.11.2009.
346
Ibid., p. 807.
119
ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio no “caso Ellwanger” para, respectivamente,
condenar e absolver o paciente.
Não há comprometimento apenas da qualidade hermenêutico-argumentativa
das decisões do Supremo Tribunal Federal, mas principalmente dificuldade de realizar um
prognóstico seguro das balizas a serem usadas no julgamento de casos futuros.
4.2.2 O papel do Estado na promoção da liberdade de expressão: sistema predominante
Fundamentalmente, dois são os modos de encarar o papel a ser
desempenhado pelo Estado na promoção das liberdades de expressão e imprensa: exige-se
uma postura omissiva de não interferência no conteúdo da mensagem endereçada ao público,
primando pela capacidade de discernimento do cidadão; ou exige-se um ente oficial dotado da
capacidade de diversificar o debate público e detentor do poder para punir o emissor da
palavra, dependendo do que for veiculado.
O primeiro modelo possui primazia nos Estados Unidos da América e o
segundo, que reclama maior interferência do Estado, nos países da Europa.347
O objetivo desta subseção é averiguar para qual modelo pende a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isto é, se a Corte reprime a manifestação da
expressão em razão do conteúdo ou se há tolerância com os discursos verbalizados pelos
indivíduos ou pela imprensa.
O primeiro julgado que compõe o banco de dados da pesquisa é
significativo quanto a essa questão. É possível dizer que a maioria que compôs a Corte no
“caso Ellwanger” abonou a postura da forte intromissão no conteúdo da mensagem.
Para o relator do processo, ministro Maurício Corrêa, que abriu a
divergência e conduziu o Tribunal para o resultado final, é ilegal professar ideias e opiniões
classificadas de discriminatórias e que afrontam a dignidade de grupos sociais específicos, no
caso em apreço a teoria revisionista contra o povo judeu.
O ministro é explicito ao afirmar que:
347
Ver 3.3.
120
“a exegese constitucional [...] justifica a necessidade de coibir de forma veemente
atos dessa natureza, mesmo porque as teorias anti-semitas propagadas nos livros
editados pelo paciente disseminam ideias que, se executadas, constituirão risco para
a pacífica convivência dos judeus no País, dado que dissimulam a sua eliminação de
nosso convívio.”348
Com poucas variações de argumentação, os ministros que não concederam a
ordem de habeas corpus abraçaram a tese de que há necessidade de coibir determinados tipos
de discursos e ideias com o fim de evitar sua propagação para outros círculos sociais.
O ministro Cezar Peluso é enfático ao afirmar que a edição de livros com
reiteração nazista é crime porque importa no induzimento ao cometimento de racismo 349, no
que é secundado pelo ministro Carlos Velloso para quem a edição de livros hostis aos judeus
implica em conduta criminosa.350
Em sentido semelhante seguiram os ministros Celso de Mello351, Gilmar
Mendes352, Nelson Jobim353, Ellen Gracie354 e Sepúlveda Pertence355.
A tese vencida neste julgamento é formada pelos ministros Carlos Britto e
Marco Aurélio. Para eles é inadmissível a intromissão no conteúdo da mensagem para punir o
emissor, ainda mais quando se trata de repressão de natureza penal.
O ministro Carlos Britto aduziu que a Constituição Federal estabeleceu um
tripé comportamental de excludentes da abusividade da liberdade da palavra: a crença
religiosa, a convicção filosófica e a convicção política.356
O ministro entendeu que o paciente agiu dentro das excludentes da
abusividade. Para ele o acusado tentou produzir uma obra objetivamente convincente sobre os
rumos da Segunda Guerra Mundial, por meio da análise de farto material de pesquisa, como
documentos históricos, fotos, livros, revistas, jornais, entre outros.
O ministro Carlos Britto afirma que:
348
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 586. DJU 19.03.2004.
349
Ibid., p. 760.
350
Ibid., p. 687.
351
Ibid., p. 632 e ss.
352
Ibid., p. 657.
353
Ibid., p. 691 e ss.
354
Ibid., p. 750 e ss.
355
Ibid., p. 1009.
356
Ibid., p. 811.
121
Uma coisa é não gostar e até mesmo discordar do que se leu (como, de fato, não
gostei e ainda discordei, em boa parte). Outra, bem ao contrário, é desqualificar a
obra quanto à perspectiva revisionista do seu objeto e quanto à consistência da
metodologia empregada na sua elaboração (caso dos autos). É que os episódios e
personalidades que marcaram a Segura Grande Guerra comportam mais de uma
explicação e toda pessoa é livre para se posicionar nessa ou naquela direção. A
menos que, a pretexto de escrever um livro, em realidade passe a trilhar os aleivosos
caminhos do panfleto, da ridicularia ou da pasquinada. 357
Em síntese, o ministro concluiu que o valor constitucional do pluralismo
político e a proibição da perda de direitos por motivos de convicção política ou filosófica
impedem a criminalização do exercício de uma ideologia, assuma esta o matiz que for.358
O ministro Marco Aurélio, igualmente, assevera que as ideias odiosas
devem estar a salvo das restrições de conteúdo, posto que a limitação somente é válida com
relação a forma da expressão. A restrição da liberdade de expressão não pode pautar-se por
simples alegação de discriminação sem respaldo empírico, pois do contrário haveria margem
para puro decisionismos e arbitrariedades.359
É interessante observar como o conteúdo de uma opinião ou de um ato é
relevante na apreciação da controvérsia. No chamado “caso Gerald Thomas” (HC 83.996/RJ),
a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem de habeas corpus para
trancar ação penal em face do diretor de teatro por conta de manifestações ultrajantes do
pudor público.
O Tribunal argumentou, contraditoriamente ao que afirmado no “caso
Ellwanger”, e adotando, conforme assinalado, a teoria interna da restrição aos direitos
fundamentais, que a análise da manifestação deve estar adstrita ao contexto social em que
proferida, pois pode ser decisiva para a proteção constitucional. Disse, ademais, que existem
outros meios, às vezes mais eficientes, de repressão ao ato do paciente, como, por exemplo, a
crítica, e que em um Estado Democrático de Direito a liberdade é a regra geral e deve ser
respeitada.
Essa circunstância é relevante porque no “caso Ellwanger”, decidido pelo
Plenário poucos meses antes do “caso Gerald Thomas”, a minoria formada na Corte apelou
para a tese agora vencedora de que não havia riscos de discriminação efetiva para os judeus
com a edição e publicação de livros antissemitas tanto tempo após o fim da Segunda Guerra
357
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Tribunal Pleno. Rel.
originário min. Moreira Alves. Rel. para o acórdão min. Maurício Corrêa. p. 840. DJU 19.03.2004.
358
Ibid., p. 841.
359
Ibid., p. 882-888.
122
Mundial, além do que a crítica do público como elemento da excludente de antijuridicidade da
conduta não foi levada em consideração pelos ministros.
É nítido que a qualidade do grupo vitimado e o teor da manifestação foram
fatores determinantes para a condenação do paciente no HC 82.424/RS (judeus) e para a
absolvição do acusado no HC 83.996/RJ (pudor público). Semelhante fundamentação para
absolver o acusado pode ser vista nos Inq‟s 2154/DF e 2297/DF.
Importante aspecto para averiguar a consistência das decisões do Supremo
Tribunal Federal, e de cada um dos ministros em particular, é a mudança de opinião do
ministro Marco Aurélio na apreciação do HC 109.676/RJ.
Dez anos após o julgamento do “caso Ellwanger”, o Supremo Tribunal
Federal, agora por sua Segunda Turma, se viu diante de discurso do ódio. Tratou-se do caso
de indivíduo que publicou na internet mensagens ofensivas contra uma pessoa por ser judeu.
Processado criminalmente por cometimento de crime contra a honra, o Tribunal não concedeu
a ordem e utilizou, basicamente, as mesmas razões do HC 82.424/RS.
O curioso é que o ministro Marco Aurélio, que participou dos dois
julgamentos e formou a minoria no “caso Ellwanger”, simplesmente aderiu ao voto do relator,
ministro Luiz Fux, sem explicar os motivos que o levaram a mudar de opinião. É certo que a
mudança de posição de todo o Tribunal ou de um ministro em particular é normal e às vezes
até desejável, porém se exige que haja uma fundamentação clara das razões que levam um
integrante a assumir posição contrária, sob pena de a Corte comprometer a segurança jurídica
e a previsibilidade de suas decisões.
O tema da constitucionalidade da interferência do conteúdo da mensagem
foi objeto de intenso debate no julgamento da ADPF 130/DF. A relação umbilical que a
imprensa possui com a democracia traz como consequência, na visão do ministro relator
Carlos Britto, o fato de a liberdade de expressão proteger qualquer tipo de palavra, até mesmo
aquelas que chocam e ofendem uns e outros (“quem quer que seja pode dizer o que quer que
seja”).360
Ademais, como visto anteriormente, para o ministro Carlos Britto os direitos
dos incisos IV e IX do artigo 5º são tidos como sobredireitos (superiores direitos) que se
exercidos pela imprensa recebem sobretutela da Constituição Federal no capítulo “Da
360
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. Rel. p. 51. DJU 06.11.2009.
123
Comunicação Social”. Assim, o ministro enxerga um “núcleo duro” da liberdade de imprensa
que está imune à atividade regulatória legislativa.
Esse “núcleo duro” é formado basicamente pelas coordenadas de tempo e de
conteúdo da manifestação do pensamento e da criação lato sensu quando veiculada por órgão
de comunicação social, sendo que apenas questões laterais podem ser regulamentadas.
Talvez com maior precisão hermenêutica: a liberdade de informação jornalística,
para se revestir do pleno desembaraço que lhe assegura a Constituição, há de
implicar interdição à lei quanto a duas nucleares dimensões: primeira, o tempo de
início e de duração do seu exercício; segunda, sua extensão ou tamanho do seu
conteúdo. Coordenadas de tempo e de conteúdo que exprimem o que vimos
chamando de "núcleo duro" ou essência mesma da liberdade de imprensa. Seu
epicentro. Restando claro que, se o Estado puder interferir nesse compactado núcleo,
estará marcando limites ou erguendo diques para o fluir de uma liberdade que a
nossa Lei Maior somente concebeu em termos absolutos; ou seja, sem a mínima
possibilidade de apriorístico represamento ou contenção. [...] Um segundo
desdobramento hermenêutico ainda se desprende dessa mesma interdição legislativa
quanto à medula mesma da liberdade de informação jornalística: a de que, no tema,
há uma necessária linha direta entre a Imprensa e a sociedade civil. Se se prefere,
vigora em nosso ordenamento constitucional uma forma de interação
imprensa/sociedade civil que não passa, não pode passar pela mediação do Estado.
Interação que pré-exclui, portanto, a figura do Estado-ponte em matéria nuclear ou
axialmente de imprensa. Tudo sob a ideia-força de que à imprensa incumbe
controlar o Estado, e não o contrário.361
A ideia de que as liberdades de expressão e de imprensa possuem um
“núcleo duro” a salvo de interferência estatal aparece na ADI 4451-MC/DF e no RE
511.961/SP. O primeiro cuida de caso em que se discutiu a constitucionalidade da proibição
legal da publicação de sátiras jornalísticas a políticos durante o processo eleitoral e o segundo
da exigência de diploma para a profissão de jornalista.
Para o ministro Carlos Britto na ADI 4451-MC/DF a ligação que há entre a
liberdade de imprensa e democracia impede à lei ordinária restringir previamente o conteúdo
da manifestação jornalística. Britto reiterou seu entendimento de que há um “núcleo duro” do
direito à liberdade de imprensa ao argumentar que esta não é uma bolha normativa, não é uma
fórmula prescritiva oca, estando o jornalista autorizado a emitir juízos críticos e mesmo em
tom áspero a qualquer pessoa, especialmente agente público.362
361
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 55-56. DJU 06.11.2009.
362
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade
4451 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 07. DJU 24.08.2012.
124
Em tom semelhante, no RE 511.961/SP o ministro Carlos Britto reforça que
apenas as matérias lateralmente de imprensa (indenização após a publicação e o direito de
resposta) podem ser objeto de lei, mas não as nuclearmente de imprensa, que estariam fora do
alcance do legislador, posto serem irrestringíveis.363
Esta assunção de haver um conjunto de atividades fora do alcance do
legislador dividiu as opiniões do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130/DF. O ministro
Ricardo Lewandowski, por exemplo, se mostrou contrário à regulação legislativa dos temas
do direito de resposta e da indenização por danos materiais e morais diante do universo amplo
que a comunicação possui364, ao passo que o ministro Joaquim Barbosa admite a
regulamentação na matéria por entende que o Estado nem sempre é inimigo da liberdade de
expressão, principalmente nos casos em que grupos minoritários estigmatizados não têm
acesso ao ambiente público de debate365, no que foi seguido pelos ministros Cezar Peluso,
Ellen Gracie e Carmen Lúcia.
O ministro Celso de Mello menciona em seu voto na ADPF 130/DF que é
contrário a interferência do Estado no conteúdo da mensagem emitida, pois o direito de
imprensa seria constituído pelo direito de informar, de buscar informação, de opinar e o
direito de criticar. Contudo, no já citado “caso Ellwanger”, o ministro criminalizou as
condutas da publicação e edição de livros com ideias discriminatórias, promovendo uma
verdadeira afetação no cerne da opinião do escritor.
A argumentação vacilante do ministro Celso de Mello permite concluir,
embora de forma precária já que falta clareza de sua parte, é que a difusão de uma ideia e de
notícia recebe proteção constitucional ampla se veiculadas pelos órgãos de comunicação
social.
Em sentido contrário, na hipótese de a manifestação partir de qualquer
cidadão, por intermédio da internet ou não, a tolerância para o conteúdo do que exposto ao
público seria menor, sujeitando o agente emissor à responsabilização.
A postura assumida pelas autoridades públicas com relação ao conteúdo da
expressão ganhou especial atenção nas discussões da ADPF 187/DF e da ADI 4274/DF,
363
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min.
Gilmar Mendes. p. 807. DJU 17.06.2009.
364
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 103. DJU 06.11.2009.
365
Ibid., p. 110.
125
ambas relacionadas com a constitucionalidade da realização da denominada “marcha da
maconha”.
Para o Supremo Tribunal Federal, adotando as razões do voto do relator,
ministro Celso de Mello na ADPF 187/DF, o direito de reunião é qualificado como
instrumental à liberdade de expressão, pois propicia a troca de ideias e a superveniência de
debates públicos sobre temas de interesse coletivo.
Como consequência, o Estado não pode imiscuir-se no conteúdo e no tipo
da deliberação pública e deve viabilizar a ocorrência da reunião. O Estado não pode
embaraçar o direito de reunião e de expressão apoiando-se em fundamentos que revelem
oposição governamental ao conteúdo político, doutrinário ou ideológico do movimento, ou
ainda, invocando restrições fundadas em mero juízo de oportunidade, de conveniência ou de
utilidade.
As minorias podem desfrutar desse direito fundamental, sendo irrelevantes
quaisquer resistências que a coletividade venha a opor às opiniões veiculadas, ainda que
desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou impopulares. O pensamento
“há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre”, como que não
aceitando restrições.366
O ministro Celso de Mello chega a afirmar que a Constituição Federal
revelou hostilidade extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o
legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de ideias e de pensamento,
não podendo o Estado impedir sua difusão. Contraditoriamente ao quanto alegado em outras
oportunidades, especialmente no “caso Ellwanger” e na APDF 130/DF, o ministro afirma
categoricamente que a liberdade de pensamento tem posição de “hegemonia essencial” no
sistema constitucional.367
Com relação a ADPF 187/DF, é interessante mencionar que os ministros
Luiz Fux e Marco Aurélio partem de premissas semelhantes para acompanhar o voto do
relator, chamando atenção para um aspecto até então ignorado pelo Supremo Tribunal Federal
que é enxergar o exercício do direito à liberdade de expressão como realização da
autossatisfação individual, estreitando a ligação que há entre esse direito fundamental e a
dignidade humana.
366
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Celso de Mello. p. 19-22 e 44 (acórdão não publicado).
367
Ibid., p. 45 (acórdão não publicado).
126
O ministro Carlos Britto asseverou que:
Também em contexto reflexivo desta natureza foi que deixei assentado no
julgamento da ADPF 187: nenhuma lei, seja ela civil ou penal, pode se blindar
contra a discussão do seu próprio conteúdo. Nem mesmo a Constituição está a
salvo da ampla e livre discussão dos seus defeitos e das suas virtudes. Impedir o
questionamento de qualquer lei equivale a negar a licitude da discussão de qualquer
tema. Quando o certo é reconhecer que tudo é franqueado ao ser humano no uso da
sua liberdade de pensamento, de expressão e de informação. 368
Não obstante os votos acima darem a impressão de que a Corte é unânime a
respeito da impossibilidade de restrição do conteúdo da expressão, é certo que há divergência
no âmbito do Tribunal quanto ao papel do Estado.
Mesmo aqueles ministros que promovem uma estreita ligação entre o direito
à liberdade de expressão e o regime democrático em certa medida parecem aceitar a
constitucionalidade de penalização civil ou penal do emissor, a depender do discurso por ele
professado, a exemplo do que se viu no “caso Ellwanger” e na discussão na ADI 4274/DF.
4.2.3 O modo de funcionamento da restrição à liberdade de expressão
A conjugação da ideia de que não há direitos fundamentais absolutos com a
vedação da censura impõe ao Supremo Tribunal Federal a difícil tarefa de fixar critérios sobre
a constitucionalidade da dinâmica da restrição à liberdade de expressão.
Nesta seção pretende-se investigar se predomina no Tribunal um método
que limita a divulgação da palavra nos moldes da doutrina da restrição prévia ou da
responsabilização ex post facto.369
Os casos que compuseram o universo amostral da pesquisa não apontaram
discussão envolvendo a imposição de censura por órgãos administrativos estatais a empresas
jornalísticas ou a indivíduos, e apenas um julgado tratou de impugnação de decisão judicial
que interditou a veiculação de matéria jornalística por periódico de circulação nacional, a Rcl
9428/DF.
368
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4272 Distrito Federal. Tribunal
Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 10. DJU 02.05.2012 (grifos do autor).
369
Ver 3.4.
127
A decisão tomada na ADPF 130/DF, conforme dito ao longo do trabalho,
resultou na revogação da Lei de Imprensa por incompatibilidade material com a Constituição
Federal de 1988.
O relator do processo foi o ministro Carlos Britto e ele iniciou o voto
fazendo uma diferenciação dicotômica do conceito de imprensa. Uma de natureza objetiva, na
qual a imprensa é conceituada como um plexo de atividade com a finalidade de multiplicar
condutas e plasmar caracteres humanos. Seria, pela importância sócio-cultural, uma
instituição-ideia ou ideia-força.
A segunda tem caráter subjetivo e vê a imprensa constituída por um
conjunto de órgãos, veículos, empresas, meios, enfim, juridicamente personalizados. É, sob
esse ângulo, uma instituição-entidade.
Tanto em um sentido como em outro, a comunicação social é o traço
distintivo da imprensa e as funções opinativa, investigativa e informativa da imprensa faz dela
um patrimônio imaterial que corresponde ao mais elevado estado de evolução político-cultural
de um povo, circunstancia que reclama especial proteção constitucional.370
O ministro Carlos Brito fundamenta seu voto aduzindo que a total liberdade
desfrutada pela imprensa na Constituição Federal, explicitada com a proibição da censura
prévia, traz uma permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa e da
sociedade.
Dizendo de outro modo, sustenta o ministro que o único regime jurídico
restritivo da liberdade de imprensa admissível seria a autorregulação, pois o povo possuiria
autonomia suficiente, diante de uma imprensa livre, de servir como filtro ou peneira da
informação que a ele é destinada.371
O ministro Carlos Britto afirma que a relação íntima da imprensa com a
democracia traz como consequência o fato de a liberdade de imprensa ser mais importante do
que as liberdades de pensamento e de expressão, até porque essas duas últimas somente
ganham corpo no momento em que praticadas por meio da imprensa.
Este pressuposto permite ao ministro assinalar que a exceção trazida pela
parte final do caput do artigo 220 da Constituição Federal, no sentido de que a própria
370
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 22-23. DJU 06.11.2009.
371
Ibid., p. 33-34.
128
Constituição delimita as restrições para a manifestação do pensamento, da expressão e da
informação, se refere somente à vedação do anonimato, ao direito de resposta, ao direito a
indenização por dano moral e material à imagem, intimidade, vida privada e honra das
pessoas, ao livre exercício da profissão, atendidas as exigências legais, e ao direito de
resguardo da fonte.372
Disso resulta uma importante conclusão de que existe uma relação de
precedência cronológica entre o exercício da liberdade de imprensa e a possibilidade de
restrição, que não pode ser a priori, pois o regime constitucional admite apenas o direito de
resposta e a indenização por práticas abusivas como verdadeiros limites à imprensa.373
Atento com o efeito silenciador do discurso provocado pelos altos valores
das indenizações impostas às empresas jornalísticas, o ministro afirma que a condenação
indenização na órbita cível deve ser proporcional ao agravo e não pode assumir as vestes da
extravagância por conta da real possibilidade de inibir a liberdade de imprensa e fechar
pequenos jornais.
A indenização deve ser imposta independente se o ofendido for pessoa
privada ou pública, sendo que no caso de agente público a reparação civil tem que ser módica,
bem como não basta fundamentar a condenação no fato de a ofensa ter sido praticada pela
imprensa. No âmbito penal, por sua vez, é inadmissível a imposição legislativa de penalidade
maior para jornalista, pois a Constituição Federal priorizou a plenitude da comunicação.374
Tomando como premissa as teses expostas na ADPF 130/DF e analisadas
nas seções precedentes de que a liberdade de expressão e de imprensa são sobredireitos e a
última possui um “núcleo duro” de matérias a salvo da intervenção legislativa, afirma
peremptoriamente que:
Essa interdição ao poder legislativo do Estado significa, então, que nem mesmo o
Direito-lei tem a força de interferir na oportunidade/duração de exercício, tanto
quanto no cerne material da liberdade de informação jornalística
(conteúdo/extensão). Noutro dizer, liberdade que têm suas coordenadas temporais e
materiais exclusivamente ao dispor do seu individualizado titular em cada caso
concreto. Assumindo ele, óbvio, as consequências civis e penais que são próprias
das pessoas ou agentes comuns. Além de não poder se opor a eventual direito de
resposta. Direito que se manifesta como ação de replicar, ora para o efeito de
simples retificação da matéria publicada, ora para o fim de centrado contradiscurso
por parte daquele que se vê ofendido em sua subjetividade, ou, então,
372
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 44. DJU 06.11.2009.
373
Ibid., p. 46-47.
374
Ibid., p. 48-50.
129
insultuosamente desqualificado enquanto pensador, cientista, criador, ou simples
observador da cena existencial. [...] Do que aflora a nítida compreensão de que os
bens jurídicos em confronto são daqueles que, em parte, se caracterizam por uma
recíproca excludência no tempo. A opção que se apresentou ao Poder Constituinte
de 1987/1988 foi do tipo radical, no sentido de que não era possível, no tema, servir
ao mesmo tempo a dois senhores. Donde a precedência que se conferiu ao
pensamento e à expressão, resolvendo-se tudo o mais em direito de resposta, ações
de indenização e desencadeamento da chamada persecutio criminis, quando for o
caso.375
O ministro Carlos Britto sumariza suas ideias da seguinte maneira:
É hora de uma primeira conclusão deste voto e ela reside na proposição de que a
Constituição brasileira se posiciona diante de bens jurídicos de personalidade para,
de imediato, cravar uma primazia ou precedência: a das liberdades de pensamento e
de expressão lato sensu (que ainda abarca todas as modalidades de criação e de
acesso à informação, esta última em sua tríplice compostura, conforme
reiteradamente explicitado). Liberdades que não podem arredar pé ou sofrer
antecipado controle nem mesmo por força do Direito-lei, compreensivo este das
próprias emendas à Constituição, frise-se. Mais ainda, liberdades reformadamente
protegidas se exercitadas como atividade profissional ou habitualmente jornalística e
como atuação de qualquer dos órgãos de comunicação social ou de Imprensa. Isto de
modo conciliado: I - contemporaneamente, com a proibição do anonimato, o sigilo
da fonte e o livre exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão; II - a
posteriori, com o direito de resposta e a reparação pecuniária por eventuais danos à
honra e à imagem de terceiros. Sem prejuízo do uso de ação penal também
ocasionalmente cabível, nunca, porém, em situação de rigor mais forte do que o
prevalecente para os indivíduos em geral.376
Considerando que o único regime constitucionalmente admissível para o
momento da restrição é posterior à divulgação da informação e sendo este tema pertencente
ao “núcleo duro” da liberdade de imprensa, concluiu o ministro Carlos Britto que uma lei de
imprensa que dispusesse sobre o assunto seria ilegítima.
A parte dispositiva do voto do ministro Carlos Britto foi aceita pela maioria
da Corte, com exceção do ministro Marco Aurélio, que julgou a ação improcedente,
consoante já sublinhado. Sucede que a argumentação utilizada pelo relator, especialmente o
conceito de “núcleo duro” e limitação a posteriori da liberdade de imprensa, não recebeu
apoio dos demais integrantes do Supremo Tribunal Federal.
375
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 Distrito
Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 58-59. DJU 06.11.2009.
376
Ibid., p. 58 (grifos do autor).
130
Com efeito, a maioria do Tribunal admitiu a possibilidade de edição de lei
para regular itens específicos do tema da liberdade de imprensa, tais como direito de resposta,
indenização civil e penal para proteger a honra, vida privada e intimidade, e restrição da
atividade da empresa para compelir a uma pluralização da cobertura jornalística com o intuito
de trazer para o debate público diferentes pontos de vista de assunto de interesse coletivo.
Nessa toada, o ministro Gilmar Mendes defende a possibilidade da
regulação legislativa na matéria diante do caráter objetivo-institucional (modelo alemão)377 da
liberdade de imprensa. Para ele, o direito de resposta e a proteção dos direitos da
personalidade são valores constitucionais que reclamam mediação legal.
Há, pois, na visão do ministro, uma reserva legal qualificada para restringir
a liberdade de expressão autorizada pela Constituição Federal e que permite a restrição prévia
caso a veiculação possa acarretar violação ao direito da personalidade.
O desacordo entre os fundamentos dos votos dos ministros que compuseram
a maioria foi fato marcante no julgamento da ADPF 130/DF. Isso porque a ementa do caso
não refletiu de maneira fiel a razão determinante da decisão do Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, é possível ler na ementa do julgado378 afirmações que não
fizeram parte da fundamentação da maioria do Tribunal, mas apenas do voto do relator.
Constou na ementa da arguição, por exemplo, a afirmação de que as
liberdades de manifestação do pensamento, de informação e de expressão artística, científica,
intelectual e comunicacional são bens superiores aos demais direitos constitucionais e a
ponderação de bens foi realizada previamente pela Constituição Federal, a qual estatuiu dois
blocos de constitucionalidade, o da imprensa e o da personalidade.
Sucede que, conforme visto acima, a consideração sobre a prevalência da
liberdade de expressão, a desnecessidade da ponderação e a existência de dois blocos de
direitos constitucionais, partiu única e exclusivamente do ministro relator, Carlos Britto, não
tendo tido aderência de nenhum integrante do Tribunal. Mesmo o ministro Eros Grau, que
pareceu seguir integralmente o relator, em outros casos, como na Rcl 9428/DF, emite opinião
contrária ao do ministro Carlos Britto.
377
378
Ver 3.3.
Ver ementa no anexo G.
131
Outro exemplo de desacerto entre os votos e o texto da ementa é assertiva
de que a limitação imposta pelo artigo 220 da Constituição Federal versa apenas sobre a
vedação do anonimato, do direito de resposta, direito a indenização por dano material ou
moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, ao livre exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão e direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação,
quando necessário ao exercício profissional.
Ademais, não faz parte da opinião dominante da Corte a afirmação de que
há uma lógica constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência
dos blocos de dispositivos constitucionais que assegura o gozo dos sobredireitos de
personalidade em que se traduz a “livre” e “plena” manifestação do pensamento, da criação e
da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas
ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também
densificadores da personalidade humana.
Como se não bastasse, o item 10.1 da ementa da ADPF 130/DF menciona
que o Tribunal entendeu constitucionalmente inadmissível a confecção de uma nova lei de
imprensa que regulamente o “núcleo duro” da liberdade de imprensa, por este ser
irregulamentável.
Ou seja, pela ementa seria possível concluir que no julgamento da ADPF
130/DF o Supremo Tribunal Federal decidiu, entre outras coisas, que as liberdades de
expressão e de imprensa são direitos superiores por constituírem bens da personalidade
humana, que não cabe ao Estado punir civil e/ou criminalmente o emissor de uma opinião,
independentemente de seu conteúdo, e que a dinâmica de restrição da liberdade de imprensa
abraça a teoria da restrição prévia, que inadmite interdição de notícia veiculada pelos órgãos
de comunicação social.
O Plenário do Tribunal será chamado a se manifestar sobre a gritante
incoerência havida entre a ementa e o teor dos votos da maioria dos ministros na ADPF
130/DF.
E isso se deu na Rcl 9428/DF, na qual o tema do momento da restrição da
liberdade de imprensa dominou as discussões no Plenário. No caso foi interposta Reclamação
Constitucional em face de uma decisão liminar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios (TJDF) que proibiu o jornal “O Estado de S. Paulo” de publicar matérias sobre a
132
existência de uma investigação que apurava o cometimento de crimes envolvendo, dentre
outras pessoas, o empresário e filho de ex-presidente da República, Sr. Fernando Sarney.
Apesar de a Rcl 9428/DF não ter sido conhecida pela maioria dos membros
por deficiência de requisito processual, é certo que os ministros adentraram na análise do
mérito e fizeram importantes considerações a respeito da ratio decidendi adotada na ADPF
130/DF.
A discussão sobre os motivos determinantes no julgamento da ADPF
130/DF veio à tona porque a causa de pedir da Reclamação era a preservação da autoridade da
decisão da Corte tomada na arguição, a qual, segundo o autor, teria fixado que é
inconstitucional a interdição prévia administrativa ou judicial da publicação de matérias
jornalísticas.
O relator da Rcl 9428/DF, ministro Cezar Peluso, para além de
considerações de ordem processual de não conhecimento da Reclamação, aduziu que somente
haveria desrespeito à autoridade do Tribunal caso a decisão do TJDF tivesse feito referência
aos dispositivos da Lei de Imprensa não recepcionada.
Fato extremamente interessante e que chama atenção no caso é que o
ministro Cezar Peluso comenta que os fundamentos determinantes da ADPF 130/DF não são
idênticos aos discutidos na Rcl 9428/DF, esses ligados a possibilidade de revelação de
informações colhidas por escuta telefônica em processo atingido pelo segredo de justiça, mas
sim meras opiniões pessoais dos ministros que não revelam unidade harmônica da Corte.
O ministro relator acrescenta que a teoria dos motivos determinantes
utilizada pelo Supremo Tribunal Federal é heterodoxa, resultando na ausência de uma posição
unívoca sobre qualquer tema no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade.
É que aqui, diferentemente do que sucede em outros sistemas constitucionais, não
há, de regra, tácita e concordância necessária entre os argumentos adotados pelos
Ministros, que, em essência, quando acordes, assentimos aos termos do capítulo
decisório ou parte dispositiva da sentença, mas já nem sempre sobre os fundamentos
que lhe subjazem. Não raro, e é coisa notória, colhem-se, ainda em casos de
unanimidade quanto à decisão em si, públicas e irredutíveis divergências entre os
fundamentos dos votos que a compõem, os quais não refletem, nem podem refletir,
sobretudo para fins de caracterização de paradigmas de controle, a verdadeira
opinion of the Court.379
379
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9428 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Cezar
Peluso. p. 197. DJU 25.06.2010.
133
O julgamento da Rcl 9428/DF se revestiu de verdadeira explicitação da real
fundamentação tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130/DF.
Nesse contexto, o ministro Gilmar Mendes reafirmou sua posição exposta
na ADPF 130/DF de que o Poder Judiciário pode impedir a publicação prévia de notícia, caso
estejam presentes hipóteses de violações de direitos da personalidade380, com a ressalva de
que, no caso RE 511.961/SP, aduziu que o abuso não pode ser evitado ou controlado por
qualquer tipo de medida estatal de índole preventiva, sujeitando-se a responsabilização civil e
penal.381
A ministra Carmen Lúcia e o ministro Ricardo Lewandowski, na esteira do
que enfatizado pelo ministro Carlos Britto, aduzem que a ADPF 130/DF fixou o entendimento
segundo o qual é inconstitucional o impedimento da divulgação da notícia pelo Judiciário382.
O ministro Celso de Mello votou de acordo com o ministro Carlos Britto.
Disse que a imprensa é livre para criticar e nesse ofício está isenta das limitações dos direitos
da personalidade. Asseverou que o Estado não possui poder algum sobre a palavra, sobre as
ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação
social.
Por conta disso, a autoridade judiciária não pode prescrever o que será
ortodoxo em política ou em outras matérias que envolvam temas de natureza filosófica ou
confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrições aos
meios de divulgação do pensamento.
O ministro é enfático ao afirmar que o poder geral de cautela dos juízes
transformou-se em inadmissível instrumento de censura estatal, com grave comprometimento
da liberdade de expressão. Para ele, o poder geral de cautela é, hoje, o novo nome da
censura.383
A importante questão do momento da restrição da liberdade de expressão
começou a ficar mais nítida com a apreciação da ADI 4451-MC/DF, referente a
380
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9428 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Cezar
Peluso. p. 232. DJU 25.06.2010.
381
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961 São Paulo. Tribunal Pleno. Rel. min.
Gilmar Mendes. p. 766. DJU 17.06.2009.
382
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9428 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Cezar
Peluso. p. 240 e 242. DJU 25.06.2010.
383
Ibid., p. 272.
134
constitucionalidade de lei que proibiu a veiculação de sátiras jornalísticas a políticos durante o
processo eleitoral.
O relator do caso, ministro Carlos Britto fez uma referência à ligação
existente entre a liberdade de imprensa e a democracia. Diz que não cabe à lei ordinária
restringir previamente o conteúdo da manifestação jornalística, estando, por isso, o
profissional sujeito a responsabilização somente a posteriori ou restringido pelo direito de
resposta, pois, caso contrário, seria censura prévia.384
Em seguida, a ministra Carmen Lúcia e o ministro Cezar Peluso não
aderiram aos fundamentos de Carlos Britto, porque entenderam que somente a
responsabilização posterior poderia afrontar o princípio da inafastabilidade da jurisdição, já
que ameaça de lesão aos direitos da personalidade ficariam sem resposta judicial, aderindo à
posição anterior do ministro Gilmar Mendes. No entanto, comungaram da parte dispositiva do
voto do ministro Carlos Britto e referendaram a cautelar.
Já o ministro DiasToffoli votou pela primeira vez sobre o momento da
restrição à liberdade de expressão, pois quando da apreciação da ADPF 130/DF e da Rcl
9428/DF, não ocupava a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Apesar de o ministro ter referendado a cautelar e permitido a sátira, fez uma
ligeira confusão quanto aos fundamentos adotados na ADPF130/DF, posto que o ministro
afirmou que a Corte havia estabelecido o direito à liberdade de expressão era direito absoluto,
posição adotada somente pelo ministro Carlos Britto e que, no entanto, constou na ementa.
Por fim, no bojo do julgamento da ADPF 187/DF e da ADI 4274/DF, os
ministros Celso de Mello, Carlos Britto e Marco Aurélio adotaram a posição de que no Estado
Democrático de Direito a restrição prévia ao pensamento assemelha-se à censura, seja a
ordem emitida por autoridade administrativa ou judicial.
A conclusão que se permite extrair, sem muita segurança diante das
inconsistências nos fundamentos dos votos na ADPF 130/DF, e, também, em razão de o único
caso que versou sobre a temática da dinâmica da restrição à liberdade de expressão não foi
admitido por falha processual, é que a maioria dos integrantes do Tribunal comungam da
doutrina da restrição prévia, inadmitindo interdição a priori da difusão da palavra ou escrito.
384
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade
4.451 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. min. Carlos Britto. p. 07. DJU 24.08.2012.
135
4.3 O modelo predominante de juiz no Supremo Tribunal Federal
A análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal permite verificar que,
apesar de ter havido prevalência do uso de princípios para solução da controvérsia, a Corte é
avessa à padronização dos fundamentos jurídicos de suas decisões.
Foram raros os casos decididos pela aplicação de regras jurídicas por meio
do processo formal lógico-dedutivo.
Mesmo naquelas situações em que a subsunção bastava para solucionar o
caso concreto, como, por exemplo, nos julgados de natureza criminal, em determinado
momento da argumentação os ministros enxergaram um estado de colisão de princípios que
reclamou outra modalidade de argumentação.
É
possível
asseverar
que
o
Supremo
Tribunal
Federal
agiu
preponderantemente nos moldes do juiz Hidra.
Decidiu a quase totalidade dos casos apreciados mediante o uso da retórica
principiológica, incorrendo, porém, em graves imprecisões ao não apresentar uma
metodologia coerente no trato do princípio da liberdade expressão.
Em várias passagens foi possível constatar a utilização aleatória da técnica
da ponderação de bens e do princípio da proporcionalidade, em conjunto com a teoria interna
da restrição dos direitos fundamentais.
O roteiro segue o mesmo caminho. Determinado ministro argumentou que a
liberdade de expressão possui seus limites traçados previamente pela Constituição Federal.
Não obstante, aplicava, em seguida, o princípio da proporcionalidade, sem qualquer menção
aos três subprincípios, para concluir que a conduta verificada no caso não se enquadrava nas
hipóteses de proteção constitucional.
A aproximação entre a teoria interna e o princípio da proporcionalidade
como método de decisão não é adequada porque a proporcionalidade pressupõe o estado de
colisão de direitos fundamentais que apresentam suporte fático amplo, permitindo a aplicação
dos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
136
A teoria interna, no entanto, tem como recursos argumentativos as
concepções dos limites imanentes e a teoria institucional dos direitos fundamentais que
partem de pressupostos contrários ao exigido pela proporcionalidade. A teoria interna exclui
de antemão fato, ato, conduta e posição do âmbito de proteção do direito fundamental, pois
para ela não existe o fenômeno da colisão de direitos, mas somente um direito com conteúdo
predefinido aguardando a revelação do intérprete.
Sendo assim, o uso do princípio da proporcionalidade não é recomendável
nesses casos diante do fato de ser impossível controlar os critérios utilizados pelo julgador
para retirar determinadas condutas do raio de aplicação da ponderação, dando azo a
dissimulações e arbitrariedades.
Situação grave foi encontrada nos votos dos ministros Gilmar Mendes e
Marco Aurélio no “caso Ellwanger”. De acordo com as fundamentações apresentadas, ambos
partiram da hipótese de colisão entre o direito fundamental à liberdade de expressão e os
direitos da personalidade, em particular a dignidade da pessoa humana.
Para os ministros, o conflito reclama solução por meio do princípio da
proporcionalidade. No entanto, após submeterem a intervenção às três etapas, chegaram a
resultado diametralmente oposto, o ministro Gilmar Mendes não concedeu a ordem e o
ministro Marco Aurélio trancou a ação penal.
Essa situação coloca em xeque a solidez das decisões tomadas pelo
Supremo Tribunal Federal, uma vez que não seria logicamente possível dois ministros
seguirem o mesmo percurso e chegarem a lugares diversos. A falta de critério metodológico
compromete seriamente a previsibilidade das decisões e afeta a segura jurídica.
De outro lado, alguns ministros utilizaram o artifício de considerar
determinado direito fundamental como absoluto, como se tal prática pudesse conferir maior
força persuasiva aos seus argumentos.
A esse expediente recorreram o ministro Carlos Britto com as liberdades de
expressão e de imprensa em mais de uma oportunidade, em especial na ADPF 130/DF, e, de
forma disseminada, os ministros que votaram pela não concessão da ordem de habeas corpus
no HC 82.424/RS (“caso Ellwanger”), sob o fundamento de que a dignidade da pessoa
humana prevalece incondicionalmente e desfruta da posição de um princípio metajurídico
insuscetível de restrição.
137
Nas oportunidades em que um ministro tentou uma argumentação diferente,
evitando o uso da ponderação e se ancorando em outra racionalidade, como pretende o juiz
Iolau, esbarrou na argumentação da precedência principiológica.
Cite-se como exemplo o ministro Carlos Britto na ADPF 130/DF, que
elevou as liberdades de expressão e de imprensa ao patamar de sobredireitos com ascendência
axiológica no ordenamento constitucional. O recurso a absolutização do direito vai de
encontro a postura do juiz Iolau, não auxiliando na redução do “efeito surpresa” da decisão e
contribuindo, em última análise, para a expansão imperialista de um subsistema sobre os
outros.
Outras vezes, também, deparou-se com situações de ministros que mudaram
de posição sem a explicitação dos motivos que levaram a isso.
Pode ser citado o caso do ministro Marco Aurélio, que concedeu a ordem no
HC 82.424/RS privilegiando a liberdade de expressão, porém, diante de caso semelhante no
HC 109.676/RJ, simplesmente se omitiu e contentou-se em aderir, sem maiores justificativas,
ao voto condenatório do relator.
O caso do ministro Celso de Mello também pode ser arrolado como
exemplo de inconstância argumentativa. Se de um lado é enfático em afirmar que as minorias
podem desfrutar do direito à liberdade de expressão, sendo irrelevante a resistência da
coletividade ao exercício desse direito, ainda que as opiniões sejam desagradáveis, chocantes
e impopulares (ADPF 130/DF, Rcl 9428/DF e AI 675.276 AgR/RJ), de outro criminaliza a
conduta de mera publicação de livro com base exclusivamente no conteúdo das ideias
veiculadas (HC 82.424/RS).
Situação emblemática de incoerência das decisões do Supremo Tribunal
Federal ocorreu na ADPF 130/DF, em que a ementa do caso não reflete a opinião majoritária
do Tribunal, mas sim a postura individual do relator.
E como se não bastasse essa idiossincrasia, os integrantes da Corte, ao
perceberem o ocorrido por ocasião da apreciação da Rcl 9428/DF, em especial o relator do
caso, ministro Cezar Peluso, não tomaram providência para corrigir o erro, limitando-se a
afirmar que no sistema constitucional brasileiro vigora uma heterodoxa teoria dos motivos
determinantes na qual a ementa do acórdão apenas reflete a opinião pessoal do relator e não a
do Tribunal.
138
Essa situação é tão grave que provocou um incomum equívoco de um dos
ministros do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. No voto proferido na ADI 4451MC/DF, o ministro argumentou que a Corte havia fixado na ADPF 130/DF a premissa de que
a liberdade de imprensa é um direito absoluto, fato que, conforme visto anteriormente, não é
verdadeiro, pois não houve aderência por parte dos demais integrantes, embora conste tal
assertiva na ementa do acórdão.
Em suma, o manejo indiscriminado da técnica da ponderação, muitas vezes
partindo de premissas teóricas equivocadas como a teoria interna, e uso metodologicamente
equivocado do principio da proporcionalidade, somados a tendência verificada de conferir
primazia a determinado direito fundamental como reforço argumentativo, assim como a
mudança de posição de ministros em diferentes julgados, permite concluir que o modelo
adotado pelo Supremo Tribunal Federal é de juiz Hidra, incoerente e pouco responsável com a
previsibilidade de suas manifestações.
139
Conclusão
A pesquisa procurou investigar a argumentação dispensada pelo Supremo
Tribunal Federal quando em jogo o princípio fundamental da liberdade de expressão. Fixou-se
o marco temporal a data de julgamento do histórico “caso Elwanger”, em setembro de 2003,
até o limite de 31 de dezembro de 2013.
Os resultados da pesquisa foram confrontados com o modelo de juiz
teorizado por Marcelo Neves. Partiu-se da hipótese de trabalho de que o Supremo Tribunal
Federal possui uma jurisprudência vacilante sobre o tema, não empregando argumentos
técnicos seguros para conferir a necessária previsibilidade às suas decisões.
Para atingir o objetivo proposto foi realizada uma análise da mudança do
fenômeno jurídico ao longo das últimas décadas que elevou a argumentação jurídica ao posto
de destaque na tarefa de conferir legitimidade às decisões judiciais.
O pano de fundo utilizado foi a mudança da organização político-estatal na
qual a proeminência era do Poder Legislativo (Estado Legislativo) e passou a ser exercida
pelo Poder Judiciário (Estado Constitucional), em decorrência da positivação de direitos e
garantias fundamentais no texto rígido da Constituição Federal.
A segunda seção do trabalho foi destinada a apresentar os conceitos de
regras e princípios de Marcelo Neves e a relação existente entre eles. Após, arrolou-se as
principais características das figuras dos juízes Hidra, Hércules e Iolau.
A seção seguinte teorizou acerca das razões pelas quais a doutrina entende
que a liberdade de expressão é um direito fundamental, apresentando as justificativas
instrumental e constitutiva.
As teorias sobre a possibilidade de restrição não foram negligenciadas,
optando-se por fracionar o tema nos tópicos das teorias interna e externa, o papel
desempenhado pelo Estado na conformação da liberdade de expressão e a dinâmica de
funcionamento da limitação do direito fundamental em questão, apresentando a doutrina das
restrições prévias e da responsabilização ex post facto.
140
O aporte teórico teve como missão fornecer subsídios para a análise do
vasto material jurisprudencial obtido no Supremo Tribunal Federal.
Com o material em mãos, procurou-se identificar em cada um dos julgados
a técnica argumentativa utilizada pelos ministros e pelo Tribunal na apreciação do tema da
liberdade de expressão a fim de concluir se havia um método próprio de decisão da Corte e,
em caso positivo, se o modelo de juiz de Marcelo Neves poderia ser aplicado.
Questões recorrentes do Tribunal foram levantadas, todas espelhadas na
parte teórica, quais sejam: a teoria da restrição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, a
interferência no conteúdo da expressão e o modo de funcionamento da limitação do direito
fundamental.
Conclui-se que o Supremo Tribunal Federal adota preferentemente a teoria
interna da restrição dos direitos fundamentais, mesmo que em certos casos isso se dê de forma
implícita, e com o uso conjunto com o principio da proporcionalidade.
Foi detectado, também, no âmbito da restrição do conteúdo da mensagem,
que a Corte tem uma leve tendência a seguir o que neste trabalho foi chamado de “modelo
europeu”, que aceita como legítima a responsabilização do emissor da palavra em razão do
conteúdo divulgado.
No tocante à dinâmica da restrição à liberdade de expressão, constatou-se
que o assunto relativo à interdição prévia da publicação de matéria jornalística foi discutido
apenas na Rcl 9428/DF, que, embora o mérito não tenha sido apreciado por falha processual,
revelou a posição de alguns ministros no sentido de abonarem a doutrina da restrição prévia,
não obstante, frise-se, não ser possível afirmar com segurança.
As inúmeras inconsistências e desvios metodológicos na argumentação dos
ministros trouxeram como conclusão que o Supremo Tribunal Federal adota o modelo teórico
de juiz Hidra, afeito a recursos argumentativos de natureza principiológica e sem se preocupar
com a previsibilidade e solidez de suas decisões.
Essa afirmação vem corroborada é corroborada de forma mais vigorosa a
partir da verificação da discrepância existente entre o teor da ementa da ADPF 130/DF e os
fundamentos adotados pela maioria na decisão, revelando que o procedimento adotado para os
pronunciamentos pecam pela obscuridade e falta de diálogo intersubjetivo, prejudicando uma
141
análise mais consistente na opinião da Corte institucionalmente considerada, e não apenas de
trechos isolados dos votos dos ministros.
142
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148
ANEXO A – HABEAS CORPUS 82.424-2 RIO GRANDE DO SUL
RELATOR ORIGINÁRIO: MIN. MOREIRA ALVES
RELATOR PARA O ACÓRDÃO: MINISTRO PRESIDENTE
PACIENTE: SIEGFRIED ELLWANGER
IMPETRANTES: WERNER CATALÍCIO JOÃO BECKER E OUTRA
COATOR: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMENTA: HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO.
RACISMO. CRIME
IMPRESCRITÍVEL.
CONCEITUAÇÃO.
ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e
discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela
Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e
imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).
2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça,
segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção
constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.
3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da
pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que
todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres
humanos. Na essência são todos iguais.
4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo
meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a
discriminação e o preconceito segregacionista.
5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os
arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta,
características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os
padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob
os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam
crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a
sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica
convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva
ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento
infraconstitucional e constitucional do País.
6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer
discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou
preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica,
inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a
xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.
7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade
e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei
memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos,
sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídicoconstitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal,
conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e
aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.
149
9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide
do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal
punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da
Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação
da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções
àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que
simbolizem a prática de racismo.
10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam
resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e
subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na
pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen
com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se
baseiam.
11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada
na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um
segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso.
12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos
judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o
acompanham.
13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites
morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência,
manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.
14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira
harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, §
2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito
à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda
de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.
15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem
encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança
sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente
respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se
apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que
permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável.
16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as
gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados
conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem.
Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
maioria de votos, indeferir o habeas-corpus.
Brasília, 17 de setembro de 2003.
MAURÍCIO CORREA – PRESIDENTE E RELATOR PARA O ACÓRDÃO
150
ANEXO B – RECURSO EXTRAORDINÁRIO 348.827 RIO DE JANEIRO
RELATOR: MIN. CARLOS VELLOSO
RECORRENTE: EDITORA O DIA S/A
ADVOGADOS: JOSEVAL SIRQUEIRA E OUTROS
ADVOGADO: WALMYR MATTOS
RECORRIDO: CARLOS ALBERTO DE OLIVEIRA
ADVOGADOS: FÁBIO AUGUSTO DE SOUZA BORGES E OUTROS
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. DANO MORAL: OFENSA PRATICADA PELA
IMPRENSA. DECADENCIA: LEI 5.250, de 09.02.67 – Lei de Imprensa – art. 56: NÃO
RECEPÇÃO PELA CF/88, art. 5º, V e X.
I – O art. 56 da Lei 5.250 – Lei de Imprensa – não foi recebido pela Constituição de 1988, art.
5º, V e X .
II – R.E. conhecido e improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal
Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas,
por unanimidade de votos, em conhecer o recurso e negar-lhe provimento. Ausente,
justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello.
Brasília, 1º de junho de 2014.
CARLOS VELLOSO – PRESIDENTE E RELATOR
151
ANEXO C – HABEAS CORPUS 83. 996-7 RIO DE JANEIRO
RELATOR ORIGINÁRIO: MIN. MOREIRA ALVES
RELATOR PARA O ACÓRDÃO: MIN. GILMAR MENDES
PACIENTE (S): GERALD THOMAS SIEVERS
IMPETRANTE (S): PAULO FREITAS RIBEIRO
COATOR (A/S) (ES): TURMA RECURSAL DO RIO DE JANEIRO
EMENTA: Habeas corpus. Ato obsceno (art. 233 do Código Penal). 3. Simulação de
masturbação e exibição das nádegas, após o término da peça teatral, em reação a vaias do
público. 3. Discussão sobre a caracterização da ofensa ao pudor público. Não se pode olvidar
o contexto em que se verificou o ato incriminado. O exame objetivo do caso concreto
demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão,
ainda que inadequada e deseducada. 4. A sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios
e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o
enquadramento penal. 5. Empate na decisão. Deferimento da ordem para trancara a ação
penal. Ressalva dos votos dos Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que defendiam que a
questão não pode ser resolvida na via estreita do habeas corpus.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Segunda Turma, sob a presidência do Senhor Ministro Celso de Mello, na conformidade
da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, deferir o pedido de habeas corpus (RISTF,
art. 150, par. 3º) e determinar, em consequência, a extinção do processo penal de
conhecimento, com o imediato trancamento da ação penal, em virtude de se haver registrado
empate na votação.
Brasília, 17 de agosto de 2004.
MINISTRO GILMAR MENDES – REDATOR P/ ACÓRDÃO
152
ANEXO D – INQUÉRITO 2154-7 DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
AUTOR (A/S)(ES): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
INDICIADO (A/S): JORGE DOS REIS PINHEIRO PASTOR OU PASTOR JORGE
ADVOGADO (A/S): ERIK FRANKLIN BEZERRA E OUTROS
DIFAMAÇAO – TIPICIDADE. A tipicidade do crime contra a honra que é a difamação há de
ser definida a partir do contexto em que veiculadas as expressões, cabendo afastá-la quando se
tem simples crítica à atuação de agente público, revelando-a fora das balizas próprias.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade, em rejeitar a denúncia, nos termos do voto do relator.
Brasília, 17 de dezembro de 2004.
MARCO AURÉLIO – RELATOR
153
ANEXO E – AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.741-2 DISTRITO
FEDERAL
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
REQUERENTE (S): PARTIDO SOCIAL CRISTÃO – PSC
ADVOGADO (A/S): VITOR NÓSSEIS
REQUERENTE (S): PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT
ADVOGADO (A/S): MARA HOFANS E OUTROS
ADVOGADO (A/S): IAN RODRIGUES DIAS
REQUERENTE (S): PARTIDO TRABALHISTA CRISTÃO – PTC
ADVOGADO (A/S): GUSTAVO DO VALE ROCHA E OUTRO
REQUERIDO (A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADVOGADO (A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
REQUERIDO (A/S): CONGRESSO NACIONAL
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 11.300/2006 (MINIREFORMA ELEITORAL). ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE
DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16). INOCORRÊNCIA. MERO APERFEIÇOAMENTO
DOS PROCEDIMENTOS ELEITORAIS. INEXISTÊNCIA DE ALTERAÇÃO DO
PROCESSO ELEITORAL. PROIBIÇÃO DE DIVULGAÇÃO DE PESQUISAS
ELEITORAIS QUINZE DIAS ANTES DO PLEITO. INCONSTITUCIONALIDADE.
GARANTIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO DIREITO À INFORMAÇÃO
LIVRE E PLURAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. PROCEDÊNCIA
PARCIAL DA AÇÃO DIRETA.
I - Inocorrência de rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos
respectivos candidatos no processo eleitoral.
II - Legislação que não introduz deformação de modo a afetar a normalidade das eleições.
III - Dispositivos que não constituem fator de perturbação do pleito.
IV - Inexistência de alteração motivada por propósito casuístico.
V - Inaplicabilidade do postulado da anterioridade da lei eleitoral.
VI - Direto à informação livre e plural como valor indissociável da idéia de democracia.
VII - Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do
art. 35-A da Lei introduzido pela Lei 11.300/2006 na Lei 9.504/1997.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Sessão Plenária, sob a Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie, na conformidade da
ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por decisão unânime, julgar a ação direta
procedente, em parte, para declarar inconstitucional o artigo 35-A, conforme a redação que
lhe deu a Lei nº 11.300, de 10 de maio d 2006, e improcedente no mais, nos termo do voto do
Relator. Votou a Presidente. Ausentes justificadamente, os Senhores Ministros Gilmar
Mendes e Cezar Peluso.
Brasília, 06 de setembro de 2006.
RICARDO LEWANDOWSKI – RELATOR
154
ANEXO F – INQUÉRITO 2.297-7 DISTRITO FEDERAL
RELATORA: MIN. CARMEN LÚCIA
QUERELANTE(S): YVES HUBLET
ADVOGADO (A/S): ELENICE PEREIRA CARLILLE
QUERELADO (A/S): JOSÉ ALDO REBELO FIGUEIREDO
QUERELADO (A/S): RENATA MOURA
EMENTA: INQUÉRITO. AÇÃO PENAL PRIVADA. QUEIXA-CRIME OFERECIDA
CONTRA DEPUTADO FEDERAL E JORNALISTA. PRETENSAS OFENSAS
PRATICADAS PELO PRIMEIRO QUERELADO E PUBLICADAS PELA SEGUNDA
QUERELADA EM MATÉRIA JORNALÍSTICA: CRIMES DE INJÚRIA E DIFAMAÇÃO
(ARTS. 21 E 22 DA LEI DE IMPRENSA).
1. As afirmações tidas como ofensivas pelo Querelante foram feitas no exercício do mandato
parlamentar, por ter o Querelado se manifestado na condição de Deputado Federal e de
Presidente da Câmara, não sendo possível desvincular aquelas afirmações do exercício da
ampla liberdade de expressão, típica da atividade parlamentar (art. 51 da Constituição da
República).
2. O art. 53 da Constituição da República dispõe que os Deputados são isentos de
enquadramento penal por suas opiniões, palavras e votos, ou seja, têm imunidade material no
exercício da função parlamentar.
3. Ausência de indício de animus difamandi ou injuriandi, não sendo possível desvincular a
citada publicação do exercício da liberdade de expressão, própria da atividade de
comunicação (art. 5º, inc. IX, da Constituição da República).
4. Não-ocorrência dos crimes imputados pelo Querelante. Queixa-crime rejeitada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Tribunal Pleno, sob a Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie, na conformidade da
ata de julgamento e das notas taquigráficas, à unanimidade, em rejeitar a queixa-crime, nos
termos do voto da Relatora. Ausentes justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim
Barbosa e Eros Grau.
Brasília, 20 de setembro de 2007.
CARMEN LÚCIA – RELATORA
155
ANEXO G – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL 130 DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO
ARGTE. (S): PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT
ADV. (A/S): MIRO TEIXEIRA E OUTRO (A/S)
ARGDO. (A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADV. (A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
ARGDO. (A/S): CONGRESSO NACIONAL
INTDO. (A/S): FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS PROFISSIONAIS –
FENAJ
ADV. (A/S): CLAUDISMAR ZUPIROLI E OUTRO (A/S)
INTDO. (A/S): ASSOCIAÇAO BRASILEIRA DE IMPRENSA – ABI
ADV. (A/S): THIAGO BOTTINO DO AMARAL
INTDO. (A/S): ARTIGO 19 BRASIL
ADV. (A/S): PANNUNZIO E OUTROS
EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
(ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL
DA “LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO SINÔNIMA DE
LIBERDADE DE IMPRENSA. A “PLENA” LIBERDADE DE IMPRENSA COMO
CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA.
A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU
SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE
INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E
COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE
IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E
MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO
PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE
INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E
COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS
PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE
CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO
DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO
DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA.
PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO
BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA
E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE
OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA.
PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES
PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS
PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE
LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E
MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE
LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE
PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA
NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À
VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU
OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E AUTÔNOMO FATOR DE
156
INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS
APENAS PERIFERICAMENTE DE IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO
SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº
5.250/1967 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA
DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI
DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. A ADPF, fórmula processual subsidiária do
controle concentrado de constitucionalidade, é via adequada à impugnação de norma préconstitucional. Situação de concreta ambiência jurisdicional timbrada por decisões
conflitantes. Atendimento das condições da ação.
2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO
DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E
DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À
PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A
Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome “Da
Comunicação Social” (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de
“atividades” ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa
de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela,
Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida
do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal
de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do
pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento
crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de
potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira
sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de
qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da
pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização.
3. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO
SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE
SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A
LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À
EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL.
TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO
CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL.
O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da
imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de
pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu
exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício
não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A
liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão
sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são
bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de
imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua
excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja,
antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural
forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como
157
eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão
constitucional “observado o disposto nesta Constituição” (parte final do art. 220) traduz a
incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como
consequência ou responsabilização pelo desfrute da “plena liberdade de informação
jornalística” (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa
pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário,
pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a
Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se
lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões,
debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação.
4. MECANISMO CONSTITUCIONAL DE CALIBRAÇÃO DE PRINCÍPIOS. O art. 220 é
de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação,
expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação
social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma
Constituição Federal: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta
(inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à
honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito
ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional
(inciso XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na
empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os
mencionados incisos do art. 5º). Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos
sobredireitos de personalidade em que se traduz a “livre” e “plena” manifestação do
pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de
tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda
que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de
momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos
fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou
restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo
cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a
forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei Fundamental do
Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e
opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de
resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de
resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para
inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa.
5.
PROPORCIONALIDADE
ENTRE
LIBERDADE
DE
IMPRENSA
E
RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Sem embargo, a
excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de
imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de
proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém e a indenização que lhe
caiba receber (quanto maior o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da
potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido. Nada tendo a ver com essa
equação a circunstância em si da veiculação do agravo por órgão de imprensa, porque, senão,
a liberdade de informação jornalística deixaria de ser um elemento de expansão e de robustez
da liberdade de pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator de contração e
de esqualidez dessa liberdade. Em se tratando de agente público, ainda que injustamente
ofendido em sua honra e imagem, subjaz à indenização uma imperiosa cláusula de
158
modicidade. Isto porque todo agente público está sob permanente vigília da cidadania. E
quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu
atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um comportamento antijurídico
francamente sindicável pelos cidadãos.
6. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E
DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde
ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu
reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do
papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua
dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da
democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a
liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos
considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de
um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente
democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos
contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente
proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição
do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do
chamado “poder social da imprensa”.
7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE.
A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO
PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento
crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente
útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício
concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a
qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as
autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o
interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou
judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de
opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e “real alternativa à versão oficial dos
fatos” ( Deputado Federal Miro Teixeira).
8. NÚCLEO DURO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO PARCIAL DE
LEGISLAR. A uma atividade que já era “livre” (incisos IV e IX do art. 5º), a Constituição
Federal acrescentou o qualificativo de “plena” (§ 1º do art. 220). Liberdade plena que,
repelente de qualquer censura prévia, diz respeito à essência mesma do jornalismo (o
chamado “núcleo duro” da atividade). Assim entendidas as coordenadas de tempo e de
conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu, sem o que
não se tem o desembaraçado trânsito das ideias e opiniões, tanto quanto da informação e da
criação. Interdição à lei quanto às matérias nuclearmente de imprensa, retratadas no tempo de
início e de duração do concreto exercício da liberdade, assim como de sua extensão ou
tamanho do seu conteúdo. Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988
prevê para o “estado de sítio” (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias
lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que
seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos
seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e
jornalistas. As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação
legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de
159
indenização, proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte (“quando necessário ao
exercício profissional”); responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e
espetáculos públicos; estabelecimento dos “meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que
contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços
que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (inciso II do § 3º do art. 220 da CF);
independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua
própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º); participação do capital estrangeiro nas
empresas de comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF); composição e funcionamento do
Conselho de Comunicação Social (art. 224 da Constituição). Regulações estatais que,
sobretudo incidindo no plano das consequências ou responsabilizações, repercutem sobre as
causas de ofensas pessoais para inibir o cometimento dos abusos de imprensa. Peculiar
fórmula constitucional de proteção de interesses privados em face de eventuais
descomedimentos da imprensa (justa preocupação do Ministro Gilmar Mendes), mas sem
prejuízo da ordem de precedência a esta conferida, segundo a lógica elementar de que não é
pelo temor do abuso que se vai coibir o uso. Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “a
censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da
face autoritária do poder público”.
9. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. É
da lógica encampada pela nossa Constituição de 1988 a autorregulação da imprensa como
mecanismo de permanente ajuste de limites da sua liberdade ao sentir-pensar da sociedade
civil. Os padrões de seletividade do próprio corpo social operam como antídoto que o tempo
não cessa de aprimorar contra os abusos e desvios jornalísticos. Do dever de irrestrito apego à
completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público decorre a permanente
conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa. Repita-se: não é jamais pelo
temor do abuso que se vai proibir o uso de uma liberdade de informação a que o próprio
Texto Magno do País apôs o rótulo de “plena” (§ 1 do art. 220).
10- NÃO RECEPÇÃO
CONSTITUCIONAL.
EM
BLOCO
DA
LEI
5.250
PELA
NOVA
ORDEM
10.1. Óbice lógico à confecção de uma lei de imprensa que se orne de compleição estatutária
ou orgânica. A própria Constituição, quando o quis, convocou o legislador de segundo escalão
para o aporte regratório da parte restante de seus dispositivos (art. 29, art. 93 e § 5º do art.
128). São irregulamentáveis os bens de personalidade que se põem como o próprio conteúdo
ou substrato da liberdade de informação jornalística, por se tratar de bens jurídicos que têm na
própria interdição da prévia interferência do Estado o seu modo natural, cabal e ininterrupto
de incidir. Vontade normativa que, em tema elementarmente de imprensa, surge e se exaure
no próprio texto da Lei Suprema.
10.2. Incompatibilidade material insuperável entre a Lei n° 5.250/67 e a Constituição de 1988.
Impossibilidade de conciliação que, sobre ser do tipo material ou de substância (vertical),
contamina toda a Lei de Imprensa: a) quanto ao seu entrelace de comandos, a serviço da
prestidigitadora lógica de que para cada regra geral afirmativa da liberdade é aberto um leque
de exceções que praticamente tudo desfaz; b) quanto ao seu inescondível efeito prático de ir
além de um simples projeto de governo para alcançar a realização de um projeto de poder,
este a se eternizar no tempo e a sufocar todo pensamento crítico no País.
160
10.3 São de todo imprestáveis as tentativas de conciliação hermenêutica da Lei 5.250/67 com
a Constituição, seja mediante expurgo puro e simples de destacados dispositivos da lei, seja
mediante o emprego dessa refinada técnica de controle de constitucionalidade que atende pelo
nome de “interpretação conforme a Constituição”. A técnica da interpretação conforme não
pode artificializar ou forçar a descontaminação da parte restante do diploma legal
interpretado, pena de descabido incursionamento do intérprete em legiferação por conta
própria. Inapartabilidade de conteúdo, de fins e de viés semântico (linhas e entrelinhas) do
texto interpretado. Caso-limite de interpretação necessariamente conglobante ou por
arrastamento teleológico, a pré-excluir do intérprete/aplicador do Direito qualquer
possibilidade da declaração de inconstitucionalidade apenas de determinados dispositivos da
lei sindicada, mas permanecendo incólume uma parte sobejante que já não tem significado
autônomo. Não se muda, a golpes de interpretação, nem a inextrincabilidade de comandos
nem as finalidades da norma interpretada. Impossibilidade de se preservar, após artificiosa
hermenêutica de depuração, a coerência ou o equilíbrio interno de uma lei (a Lei federal nº
5.250/67) que foi ideologicamente concebida e normativamente apetrechada para operar em
bloco ou como um todo pro indiviso.
11. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. Aplicam-se as normas da legislação comum,
notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de
Processo Penal às causas decorrentes das relações de imprensa. O direito de resposta, que se
manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte
daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado
no inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma, essa, “de eficácia plena e de
aplicabilidade imediata”, conforme classificação de José Afonso da Silva. “Norma de pronta
aplicação”, na linguagem de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária
conjunta.
12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como
não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº
5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal
em julgar procedente a ação, o que fazem nos termos do voto do Relator e por maioria de
votos, em sessão presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do
julgamento e das notas taquigráficas. Vencidos, em parte, o Ministro Joaquim Barbosa e a
Ministra Ellen Gracie, que a julgavam improcedentes quanto aos artigo 1º, par. 1º; artigo 2º,
caput; artigo 14; artigo 16, inciso I e artigos 20,21 e 22, todos da Lei nº 5.250, de 9.2.1967; o
Ministro Gilmar Mendes (Presidente), que a julgava improcedente quanto aos artigos 29 e 36,
e vencido integralmente o Ministro Marco Aurélio, que julgava improcedente a ADPF em
causa.
Brasília, 30 de abril de 2009.
CARLOS AYRES BRITTO – RELATOR
161
ANEXO H – RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO
RELATOR : MIN. GILMAR MENDES
REGTE.(S) : SINDICATO DAS EMPRESAS DE RÁDIO E
TELEVISÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO SERTESP
ADV.(A/S) : RONDON AKIO YAMADA E OUTRO(A/S)
RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
RECDO.(A/S) : UNIÃO
ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
RECDO.(A/S) : FENAJ- FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS
E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : JOÃO ROBERTO EGYDIO PIZA FONTES
EMENTA: JORNALISMO. EXIGÊNCIA DE DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR,
REGISTRADO PELO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, PARA O EXERCÍCIO DA
PROFISSÃO DE JORNALISTA. LIBERDADES DE PROFISSÃO, DE EXPRESSÃO E DE
INFORMAÇÃO. CONSTITUIÇÃO DE 1988 (ART. 5°, IX E XIII, E ART.
220, CAPUT E § 1°). NÃO RECEPÇÃO DO ART. 4°, INCISO V, DO DECRETOLEI
N° 972, DE 1969.
1. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. ART. 102, III, "A", DA CONSTITUIÇÃO.
REQUISITOS
PROCESSUAIS
INTRÍNSECOS
E
EXTRÍNSECOS
DE
ADMISSIBILIDADE. Os recursos extraordinários foram tempestivamente interpostos e
matéria constitucional que deles é objeto foi amplamente debatida nas instâncias inferiores.
Recebidos nesta Corte antes do marco temporal de 3 de maio de 2007 (AI-QO n° 664.567/RS,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence), os recursos extraordinários não se submetem ao regime da
repercussão geral.
2. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOSITURA DA
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. O Supremo Tribunal Federal possui sólida jurisprudência sobre o
cabimento da ação civil pública para proteção de interesses difusos e coletivos e a respectiva
legitimação do Ministério Público para utilizá-la, nos termos dos arts. 127, caput, e 129, III,
da Constituição Federal. No caso, a ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público
com o objetivo de proteger não apenas os interesses individuais
homogêneos dos profissionais do jornalismo que atuam sem diploma, mas também os direitos
fundamentais de toda a sociedade (interesses difusos) à plena liberdade de expressão e de
informação.
3. CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. A não-recepção do Decreto-Lei n° 972/1969
pela Constituição de 1988 constitui a causa de pedir da ação civil pública e não o seu pedido
principal, o que está plenamente de acordo com a jurisprudência desta Corte. A controvérsia
constitucional, portanto, constitui apenas questão prejudicial indispensável à solução do
litigio, e não seu pedido único e principal. Admissibilidade da utilização da ação civil pública
como instrumento de fiscalização incidental de constitucionalidade. Precedentes do STF.
4. ÂMBITO DE PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL (ART.
5°, INCISO XIII, DA CONSTITUIÇÃO). IDENTIFICAÇÃO DAS RESTRIÇÕES E
CONFORMAÇÕES LEGAIS CONSTITUCIONALMENTE PERMITIDAS. RESERVA
LEGAL QUALIFICADA. PROPORCIONALIDADE. A Constituição de 1988, ao assegurar a
liberdade profissional (art. 5o, XIII), segue um
modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais
prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o
exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na
162
formulação do art. 5o, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão
constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente,
das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício
das profissões. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Representação n.° 930, Redator
p/ o acórdão Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2-9-1977. A reserva legal estabelecida pelo art.
5o, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade profissional a
ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial.
5. JORNALISMO E LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO.
INTEPRETAÇÃO DO ART. 5o, INCISO XIII, EM CONJUNTO COM OS PRECEITOS DO
ART. 5°, INCISOS IV, IX, XIV, E DO ART. 220 DA CONSTITUIÇÃO. O jornalismo é uma
profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das liberdades de
expressão e de informação. O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e
da informação de forma contínua, profissional e remunerada. Os jornalistas são aquelas
pessoas que se dedicam
profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão. O jornalismo e a liberdade de
expressão, portanto, são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não
podem ser pensadas e tratadas de forma separada. Isso implica, logicamente, que a
interpretação do art. 5o, inciso XIII, da Constituição, na hipótese da profissão de jornalista, se
faça, impreterivelmente, em conjunto com os preceitos do art. 5o, incisos IV, IX, XIV, e do
RE 511.961/SP art. 220 da Constituição, que asseguram as liberdades de expressão, de
informação e de comunicação em geral.
6. DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR COMO EXIGÊNCIA PARA O EXERCÍCIO DA
PROFISSÃO DE JORNALISTA. RESTRIÇÃO INCONSTITUCIONAL ÀS LIBERDADES
DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. As liberdades de expressão e de informação e,
especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em
hipóteses excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses
constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à
imagem, à privacidade e à personalidade em geral. Precedente do STF: ADPF n° 130, Rel.
Min. Carlos Britto. A ordem constitucional apenas admite a definição legal das qualificações
profissionais na hipótese em que sejam elas estabelecidas para proteger, efetivar e reforçar o
exercício profissional das liberdades de expressão e de informação por parte dos jornalistas.
Fora desse quadro, há patente inconstitucionalidade da lei. A exigência de diploma de curso
superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua
essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não
está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma
verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício
da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1o, da Constituição.
7. PROFISSÃO DE JORNALISTA. ACESSO E EXERCÍCIO. CONTROLE ESTATAL
VEDADO PELA ORDEM CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL
QUANTO À CRIAÇÃO DE ORDENS OU CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO
PROFISSIONAL. No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal
quanto às qualificações profissionais. O art. 5o, incisos
IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e
exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na
liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao
fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de
expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5o, inciso IX, da Constituição. A
impossibilidade do estabelecimento de controles
estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma
ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O
163
exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades
de expressão e de informação. Jurisprudência do STF: Representação n.° 930, Redator p/ o
acórdão Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2-9-1977.
8. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.
POSIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985,
declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem
profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo
(caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de
novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência de diploma
universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola
o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, de 25 de fevereiro de 2009).
RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS CONHECIDOS E PROVIDOS.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
maioria de votos, conhecer e dar provimento aos recursos extraordinários, declarando a nãorecepção do artigo 4o, inciso V, do Decreto-lei n° 972/1969, nos termos do voto do relator.
Brasília, 17 de junho de 2009.
MINISTRO GILMAR MENDES
PRESIDENTE E RELATOR
164
ANEXO I – RECLAMAÇÃO 9.428 DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO
RECLTE (S): S. AO ESTADO DE S. PAULO
ADV. (E/S): MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA E OUTROS
RECLDO. (E/S): TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITÓRIOS
INTDO. (A/S): FERNANDO JOSÉ MACIEIRA SARNEY
ADV. (A/S): MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA E OUTRO
EMENTA: LIBERDADE DE IMPRENSA. Decisão liminar. Proibição de reprodução de
dados relativos ao autor de ação inibitória ajuizada contra empresa jornalística. Ato decisório
fundado na expressa invocação da inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade,
notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por
segredo de justiça. Contraste teórico entre liberdade de imprensa e os direitos previstos nos
arts. 5º, incs. X e XII, e 220, caput, da CF. Ofensa à autoridade do acórdão proferido na
ADPF nº 130, que deu por não recebida a Lei de Imprensa. Não ocorrência. Matéria não
decidida na ADPF. Processo de reclamação extinto, sem julgamento de mérito. Votos
vencidos. Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADPF nº 130, a decisão que,
proibindo a jornal a publicação de fatos relativos ao autor de ação inibitória, se fundou, de
maneira expressa, na inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente
o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro GILMAR MENDES, na conformidade da
ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em não conhecer do pedido,
julgado extinto sem julgamento do mérito, contra os votos dos Senhores Ministros CARLOS
BRITTO, CARMEN LÚCIA e CELSO DE MELLO. Votou o Presidente Ministro GILMAR
MENDES. Não votou o Senhor Ministro MARCO AURÉLIO por ter se ausentado
ocasionalmente. Ausente, licenciado, o Senhor Ministro JOAQUIM BARBOSA.
Brasília, 10 de dezembro de 2009.
MINISTRO CEZAR PELUSO
RELATOR
165
ANEXO J – HABEAS CORPUS 95.348 PERNAMBUCO
RELATOR: MIN. CESAR PELUSO
PACTE. (S): JOILSON FERNANDES DE GOUVEIA
IMPTE. (S): ALESSANDRO SAMARTIN DE GOUVEIA
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR
EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime militar. Incitamento e ofensas às Forças Armadas.
Denúncia. Peça que omite a descrição de comportamentos típicos. Inadmissibilidade.
Inépcia reconhecida. Habeas corpus concedido para trancar a ação penal. É inepta a
denúncia que não imputa fato típico ao acusado, ou não demonstra a lesividade da conduta.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do
Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso, na
conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em
conceder a ordem, para trancar a ação penal. Ausente, licenciado, neste julgamento, o Senhor
Ministro Celso de Mello.
Brasília, 02 de fevereiro de 2010.
MINISTRO CEZAR PELUSO
RELATOR
166
ANEXO K – AG. REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 675.276 RIO DE JANEIRO
RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
AGTE. (S): RICARDO TERRA TEIXEIRA
ADV. (A/S): JOSÉ MAURO COUTO DE ASSIS FILHO
AGDO. (A/S): JOSÉ CARLOS AMARAL KFOURI
ADV. (A/S): MÁRCIO MARÇAL FERNANDES SOUZA E OUTROS
E M E N T A: LIBERDADE DE EXPRESSÃO - DIREITO DE CRÍTICA PRERROGATIVA POLÍTICO-JURÍDICA DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL –
ENTREVISTA JORNALÍSTICA NA QUAL SE VEICULA OPINIÃO EM TOM DE
CRÍTICA – DENÚNCIA DE IRREGULARIDADES NO MUNDO ESPORTIVO CIRCUNSTÂNCIA QUE EXCLUI O INTUITO DE OFENDER - AS EXCLUDENTES
ANÍMICAS COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO DO “ANIMUS INJURIANDI
VEL DIFFAMANDI” - AUSÊNCIA DE ILICITUDE NO COMPORTAMENTO DO
PROFISSIONAL DE IMPRENSA - INOCORRÊNCIA DE ABUSO DA LIBERDADE DE
MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO - CARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DO
REGULAR EXERCÍCIO DA LIBERDADE CONSTITUCIONAL DE EXPRESSÃO - A
QUESTÃO DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO (E DO
DIREITO DE CRÍTICA NELA FUNDADO) EM FACE DE FIGURAS PÚBLICAS OU
NOTÓRIAS – JURISPRUDÊNCIA – DOUTRINA – SUBSISTÊNCIA, NO CASO, DA
DECLARAÇÃO DE IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO INDENIZATÓRIA – “AGRAVO
REGIMENTAL” IMPROVIDO.
- A liberdade de expressão – que não traduz concessão do Estado, mas, ao
contrário, representa direito fundamental dos cidadãos – é condição inerente e indispensável
à caracterização e à preservação de sociedades livres, organizadas sob a égide dos princípios
estruturadores do regime democrático. O Poder Judiciário, por isso mesmo, não pode ser
utilizado como instrumento de injusta restrição a essa importantíssima franquia individual
cuja legitimidade resulta da própria declaração constitucional de direitos.
- A liberdade de manifestação do pensamento traduz prerrogativa políticojurídica que representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em
que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade, por tal razão, inclusive a autoridade
judiciária, pode prescrever (ou impor), segundo suas próprias convicções, o que será
ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica,
ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique
restrição aos meios de divulgação do pensamento.
- O exercício regular do direito de crítica, que configura direta emanação da
liberdade constitucional de manifestação do pensamento, ainda que exteriorizado em
entrevista jornalística, não importando o conteúdo ácido das opiniões nela externadas, não
se reduz à dimensão do abuso da liberdade de expressão, qualificando-se, ao contrário,
como verdadeira excludente anímica, que atua, em tal contexto, como fator de
descaracterização do intuito doloso de ofender. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
Jurisprudência comparada (Corte Européia de Direitos Humanos e Tribunal Constitucional
Espanhol).
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal
Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello (RISTF,
167
art. 37, II), na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do
Relator. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, e, justificadamente, o
Senhor Ministro Eros Grau.
Brasília, 22 de junho de 2010.
MINISTRO CELSO DE MELLO
RELATOR
168
ANEXO L – REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE 4.451 DISTRITO FEDERAL
RELATOR :MIN. AYRES BRITTO
REQTE.(S) :ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E
TELEVISÃO - ABERT
ADV.(A/S) :GUSTAVO BINENBOJM E OUTRO(A/S)
REQDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA
REQDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL
ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
INTDO.(A/S) :PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA - PDT
EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. INCISOS II E III DO ART. 45 DA LEI
9.504/1997.
1. Situação de extrema urgência, demandante de providência imediata, autoriza a concessão
da liminar “sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato
normativo impugnado” (§ 3º do art. 10 da Lei 9.868/1999), até mesmo pelo relator,
monocraticamente, ad referendum do Plenário. 2. Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus
órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e
jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei
dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de
tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu.
Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura
prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de
imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse
conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da
Constituição Federal: liberdade de “manifestação do pensamento”, liberdade de “criação”,
liberdade de “expressão”, liberdade de “informação”. Liberdades constitutivas de verdadeiros
bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da
nossa Constituição intitula de “Fundamentais”: a) “livre manifestação do pensamento” (inciso
IV); b) “livre [...] expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”
(inciso IX); c) ”acesso a informação” (inciso XIV). 3. Pelo seu reconhecido condão de
vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a imprensa mantém
com a democracia a mais entranhada relação de interdependência ou retroalimentação. A
presente ordem constitucional brasileira autoriza a formulação do juízo de que o caminho
mais curto entre a verdade sobre a conduta dos detentores do Poder e o conhecimento do
público em geral é a liberdade de imprensa. A traduzir, então, a ideia-força de que abrir mão
da liberdade de imprensa é renunciar ao conhecimento geral das coisas do Poder, seja ele
político, econômico, militar ou religioso. 4. A Magna Carta Republicana destinou à imprensa
o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade.
A imprensa como a mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à
explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como
garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Os
jornalistas, a seu turno, como o mais desanuviado olhar sobre o nosso
cotidiano existencial e os recônditos do Poder, enquanto profissionais do comentário crítico.
Pensamento crítico que é parte integrante da informação plena e fidedigna. Como é parte do
estilo de fazer imprensa que se convencionou chamar de humorismo (tema central destes
autos). A previsível utilidade social do labor jornalístico a compensar, de muito, eventuais
excessos desse ou daquele escrito, dessa ou daquela charge ou caricatura, desse ou daquele
programa. 5. Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação
169
ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de “imprensa”,
sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da
plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o
exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de
expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico,
irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado.
Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de
resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. A crítica jornalística em geral,
pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de
censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de
opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das
coisas, conforme decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130. Decisão a
que se pode agregar a ideia de que a locução “humor jornalístico” enlaça pensamento crítico,
informação e criação artística. 6. A liberdade de imprensa assim abrangentemente livre não é
de sofrer constrições em período eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e
circunstâncias. Tanto em período não-eleitoral, portanto, quanto em período de eleições
gerais. Se podem as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e
veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, précandidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no período eleitoral. Processo
eleitoral não é estado de sítio (art. 139 da CF), única fase ou momento de vida coletiva que,
pela sua excepcional gravidade, a Constituição toma como fato gerador de “restrições à
inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações
e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei” (inciso III do art. 139).
7. O próprio texto constitucional trata de modo diferenciado a mídia escrita e a mídia sonora
ou de sons e imagens. O rádio e a televisão, por constituírem serviços públicos,
dependentes de “outorga” do Estado e prestados mediante a utilização de um bem
público (espectro de radiofrequências), têm um dever que não se estende à mídia escrita:
o dever da imparcialidade ou da equidistância perante os candidatos. Imparcialidade,
porém, que não significa ausência de opinião ou de crítica jornalística. Equidistância
que apenas veda às emissoras de rádio e televisão encamparem, ou então repudiarem,
essa ou aquela candidatura a cargo político-eletivo. 8. Suspensão de eficácia do inciso II
do art. 45 da Lei 9.504/1997 e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo, incluídos
pela Lei 12.034/2009. Os dispositivos legais não se voltam, propriamente, para aquilo que o
TSE vê como imperativo de imparcialidade das emissoras de rádio e televisão. Visa a coibir
um estilo peculiar de fazer imprensa: aquele que se utiliza da trucagem, da montagem ou de
outros recursos de áudio e vídeo como técnicas de expressão da crítica jornalística, em
especial os programas humorísticos. 9. Suspensão de eficácia da expressão “ou difundir
opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou
representantes”, contida no inciso III do art. 45 da Lei 9.504/1997. Apenas se estará diante
de uma conduta vedada quando a crítica ou matéria jornalísticas venham a descambar
para a propaganda política, passando nitidamente a favorecer uma das partes na
disputa eleitoral. Hipótese a ser avaliada em cada caso concreto. 10. Medida cautelar
concedida para suspender a eficácia do inciso II e da parte final do inciso III, ambos do art. 45
da Lei 9.504/1997, bem como, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal
em referendar a liminar, o que fazem por maioria de votos, suspendendo as normas do inciso
II e da segunda parte do inciso III, ambos do artigo 45, bem como, por arrastamento, dos §§
4º e 5º do mesmo artigo da Lei federal nº 9.504, de 30/9/97, contra os votos dos Senhores
170
Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que, nos termos do pedido
sucessivo da inicial, deferiam a liminar, declarando a inconstitucionalidade parcial das normas
impugnadas mediante interpretação conforme. Tudo em sessão presidida pelo Ministro Cezar
Peluso, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas. Votou o Presidente.
Brasília, 02 de setembro de 2010.
171
ANEXO M – AÇÃO ORIGINÁRIA 1.390 PARAÍBA
RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI
AUTOR (A/S) (E/S): JOSÉ MARTINHO LISBOA
ADV. (A/S): IRAPUAN SOBRAL FILHO E OUTROS
AUTOR (A/S) (E/S): JOSÉ TARGINO MARANHÃO
ADV. (A/S): ALUÍSIO LUNDGREN CORRÊA RÉGIS E OUTROS
RÉU (E/S): OS MESMOS
Ação originária. Fatos incontroversos. Dispensável a instrução probatória. Liberdade de
expressão limitada pelos direitos à honra, à intimidade e à imagem, cuja violação gera
dano moral. Pessoas públicas. Sujeição a críticas no desempenho das funções. Limites.
Fixação do dano moral. Grau de reprovabilidade da conduta. Fixação dos honorários.
Art. 20, § 3º, do CPC.
1. É dispensável a audiência de instrução quando os fatos são incontroversos, uma vez que
esses independem de prova (art. 334, III, do CPC).
2. Embora seja livre a manifestação do pensamento, tal direito não é absoluto. Ao contrário,
encontra limites em outros direitos também essenciais para a concretização da dignidade da
pessoa humana: a honra, a intimidade, a privacidade e o direito à imagem.
3. As pessoas públicas estão sujeitas a críticas no desempenho de suas funções. Todavia, essas
não podem ser infundadas e devem observar determinados limites. Se as acusações destinadas
são graves e não são apresentadas provas de sua veracidade, configurado está o dano moral.
4. A fixação do quantum indenizatório deve observar o grau de reprovabilidade da conduta.
5. A conduta do réu, embora reprovável, destinou-se a pessoa pública, que está sujeita a
críticas relacionadas com a sua função, o que atenua o grau de reprovabilidade da conduta.
6. A extensão do dano é média, pois apesar de haver publicações das acusações feitas pelo
réu, foi igualmente publicada, e com destaque (capa do jornal), matéria que inocenta o autor,
o que minimizou o impacto das ofensas perante a sociedade.
7. O quantum fixado pela sentença (R$ 6.000,00) é razoável e adequado.
8. O valor dos honorários, de 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação, está em
conformidade com os critérios estabelecidos pelo art. 20, § 3º, do CPC.
9. O valor dos honorários fixados na reconvenção também é adequado, representando a
totalidade do valor dado à causa.
10. Agravo retido e apelações não providos.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em sessão plenária, sob a presidência do Sr. Ministro Ayres Britto, na conformidade da ata de
julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao
recurso de agravo retido, interposto pelo demandado, bem como às apelações propostas pelo
autor e pelo réu, mantendo integralmente a sentença, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 12 de maio de 2011.
MIN. DIAS TOFFOLI
RELATOR
172
ANEXO N – Recurso Extraordinário 414.426 Santa Catarina
RELATOR :MIN. ELLEN GRACIE
RECTE.(S) :ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL – CONSELHO REGIONAL DE
SANTA CATARINA
ADV.(A/S) :AVANI SERAFIM DE SANTANA E OUTRO(A/S)
RECDO.(A/S) :MARCO AURÉLIO DE OLIVEIRA SANTOS OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) :RAFAEL VICENTE ROGLIO DE OLIVEIRA
DIREITO CONSTITUCIONAL. EXERCÍCIO PROFISSIONAL E LIBERDADE DE
EXPRESSÃO. EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO EM CONSELHO PROFISSIONAL.
EXCEPCIONALIDADE. ARTS. 5º, IX E XIII DA CONSTITUIÇÃO.
Nem todos os ofícios e profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições
legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na
atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional. A
atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística
protegida pela garantia da liberdade de expressão.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso, na conformidade da
ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento
ao recurso extraordinário, nos termo do voto da relatora.
Brasília, 1º de agosto de 2011.
173
ANEXO O – Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 555.320 Santa Catarina
RELATOR :MIN. LUIZ FUX
AGTE.(S) :CONSELHO REGIONAL DA ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL DO
ESTADO DE SANTA CATARINA
ADV.(A/S) :AVANI SERAFIM DE SANTANA E OUTRO(A/S)
AGDO.(/S) :LUCIANO STIMAMIGLIO
ADV.(A/S) :LARAINE NUNES DE SOUZA
Emente: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSELHO
PROFISSIONAL. ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL. EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO
PARA EFEITO DE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ARTÍSTICA. INCOMPATIBILIDADE
COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. LIBERDADES CONSTITUCIONAIS DE
EXPRESSÃO ARTÍSTICA (ARTIGO 5º, IX, DA CF) E DE OFÍCIO OU PROFISSÃO
(ARTIGO 5º, XIII, DA CF). JURISPRUDÊNCIA ASSENTADA PELO PLENÁRIO DESTA
SUPREMA CORTE NO RE N. 414.426.
1. A atividade de músico não está condicionada a inscrição na Ordem dos Músicos do
Brasil e, consequentemente, inexige a comprovação de quitação da respectiva
anuidade, sob pena de afronta ao livre exercício da profissão e à garantia da liberdade
de expressão (artigo 5º, IX e XIII, da Constituição Federal). Precedentes: RE n.
414.426, Plenário, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe 12.8.11; RE n. 600.497,
Relatora a Ministra Carmen Lúcia, DJe 28.09.11; RE 509.409, Relator o Ministro
Celso de Mello, DJe 08.09.11; RE 652.771, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski,
DJe 02.09.11; RE 510.126, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe 08.09.11; RE
510.527, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe 15.08.11; RE 547.888, Relator o
Ministro Gilmar Mendes, DJe 24.08.11; RE 504.425, Relatora a Ministra Ellen
Gracie, DJe 10.08.11, dentre outros.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do
Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Senhora Ministra Carmen Lúcia, na
conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em
negar provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termo do voto do
Relator.
Brasília, 18 de outubro de 2011.
174
ANEXO P – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.274 DISTRITO
FEDERAL
RELATOR :MIN. AYRES BRITTO
REQTE.(S) :PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA
INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
INTDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL
AM. CURIAE. :ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS SOCIAIS
DO USO DE PSICOATIVOS - ABESUP
ADV.(A/S) :MAURO MACHADO CHAIBEN E OUTRO(A/S)
EMENTA: ACÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE
“INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO” DO § 2º DO ART. 33 DA LEI Nº
11.343/2006, CRIMINALIZADOR DAS CONDUTAS DE “INDUZIR, INSTIGAR OU
AUXILIAR ALGUÉM AO USO INDEVIDO DE DROGA”.
1.
Cabível o pedido de “interpretação conforme à Constituição” de preceito legal
portador de mais de um sentido, dando-se que ao menos um deles é contrário à Constituição
Federal.
2.
A utilização do § 3º do art. 33 da Lei 11.343/2006 como fundamento para a proibição
judicial de eventos públicos de defesa da legalização ou da descriminalização do uso de
entorpecentes ofende o direito fundamental de reunião, expressamente outorgado pelo inciso
XVI do art. 5º da Carta Magna. Regular exercício das liberdades constitucionais de
manifestação de pensamento e expressão, em sentido lato, além do direito de acesso à
informação (incisos IV, IX e XIV do art. 5º da Constituição Republicana, respectivamente).
3.
Nenhuma lei, seja ela civil ou penal, pode blindar-se contra a discussão do seu próprio
conteúdo. Nem mesmo a Constituição está a salvo da ampla, livre e aberta discussão dos seus
defeitos e das suas virtudes, desde que sejam obedecidas as condicionantes ao direito
constitucional de reunião, tal como a prévia comunicação às autoridades competentes.
4.
Impossibilidade de restrição ao direito fundamental de reunião Supremo Tribunal
Federal que não se contenha nas duas situações excepcionais que a própria Constituição
prevê: o estado de defesa e o estado de sítio (art. 136, § 1º, inciso I, alínea “a”, e art. 139,
inciso IV).
5.
Ação direta julgada procedente para dar ao § 2º do art. 33 da Lei 11.343/2006
“interpretação conforme à Constituição” e dele excluir qualquer significado que enseje a
proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do
uso de drogas ou de qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico,
ou então viciado, das suas faculdades psicofísicas.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal
em julgar procedente a ação direta para dar ao § 2º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006
interpretação conforme à Constituição, para dele excluir qualquer significado que enseje a
proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do
175
uso de drogas ou de qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico,
ou então viciado, das suas faculdades psico-físicas. Tudo nos termos do voto do Relator e por
unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da
ata do julgamento e das notas taquigráficas. Votou o Presidente. Impedido o Ministro Dias
Toffoli.
Brasília, 23 de novembro de 2011.
MINISTRO AYRES BRITTO - RELATOR
176
ANEXO Q – HABEAS CORPUS 106.808 RIO GRANDE DO NORTE
RELATOR :MIN. GILMAR MENDES
PACTE.(S) :ANDERSON ROGERIO BORGES DOS SANTOS
IMPTE.(S) :KÁTIA MARIA LOBO NUNES
COATOR(A/S)(ES) :SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR
Habeas corpus. 2. Crime militar. Paciente denunciado porque teria praticado o delito de
incitamento (art. 155 do CPM) e de publicação ou crítica indevida (art. 166 do CPM). 3.
Indeferido o pedido de extensão da ordem concedida pelo STF ao corréu no HC 95348, em
razão de as situações fáticas não se confundirem. 4. Em que pese à extensa peça
acusatória, com vários denunciados, no que diz respeito ao paciente, houve individualização
da conduta acoimada criminosa. 4. As condutas narradas na denúncia não se subsumem ao
tipo penal do art. 155 do COM porque em nenhum momento houve incitação ao
descumprimento de ordem de superior hierárquico. 5. As condutas e episódios descritos na
inicial acusatória também não se subsumem ao art. 166 do CPM, que tipifica o delito de
publicação ou crítica indevida. 6. O direito à plena liberdade de associação (art. 5º, XVII, da
CF) está intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteção da dignidade da
pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da liberdade de expressão. 7. Uma
associação que deva pedir licença para criticar situações de arbitrariedades terá sua atuação
completamente esvaziada. 8. O juízo de tipicidade não se esgota na análise de adequação ao
tipo penal, pois exige a averiguação do alcance proibitivo da norma, não considerada
isoladamente. A Constituição Federal é peça fundamental à análise da adequação típica. 8.
Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal,
em Segunda Turma, sob a presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, na
conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,
conceder a ordem, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 9 de abril de 2013.
Ministro GILMAR MENDES
Relator
Documento assinado digitalmente
177
ANEXO R - HABEAS CORPUS 109.676 RIO DE JANEIRO
RELATOR :MIN. LUIZ FUX
PACTE.(S) :VITAL DA CRUZ MENDES CURTO
IMPTE.(S) :EDUARDO BANKS DOS SANTOS PINHEIRO
COATOR(A/S)(ES) :SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. DIREITO
CONSTITUCIONAL. CRIME DE INJÚRIA QUALIFICADA. ALEGAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE DA PENA PREVISTA NO TIPO, POR OFENSA AO
PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE, E PRETENSÃO DE VER ESTABELECIDO
PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOVO PARÂMETRO PARA A SANÇÃO.
CRIAÇÃO DE TERCEIRA LEI. IMPOSSIBILIDADE. SUPOSTA ATIPICIDADE DA
CONDUTA E PLEITO DE
DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO PARA INJÚRIA SIMPLES. REVOLVIMENTO DE
MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA NA VIA DO WRIT. IMPOSSIBILIDADE. HABEAS
CORPUS DENEGADO.
1. A Lei nº 9.459/97 acrescentou o § 3º ao artigo 140 do Código Penal, dispondo sobre o tipo
qualificado de injúria, que tem como escopo a proteção do indivíduo contra a exposição a
ofensas ou humilhações, pois não seria possível acolher a liberdade que fira direito alheio,
mormente a honra subjetiva.
2. O legislador ordinário atentou para a necessidade de assegurar a prevalência dos princípios
da igualdade, da inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas para, considerados os
limites da liberdade de expressão, coibir qualquer manifestação preconceituosa e
discriminatória que atinja valores da sociedade brasileira, como o da harmonia interracial,
com repúdio ao discurso de ódio.
3. O writ veicula a arguição de inconstitucionalidade do § 3º do artigo 140 do Código Penal,
que disciplina o crime de injúria qualificada, sob o argumento de que a sanção penal nele
prevista – pena de um a três anos de reclusão – afronta o princípio da proporcionalidade,
assentando-se a sugestão de ser estabelecida para o tipo sanção penal não superior a um ano
de reclusão, considerando-se a distinção entre injúria qualificada
e a prática de racismo a que se refere o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal.
3.1 – O impetrante alega inconstitucional a criminalização da conduta, porém sem demonstrar
a inadequação ou a excessiva proibição do direito de liberdade de expressão e manifestação
de pensamento em face da garantia de proteção à honra e de repulsa à prática de atos
discriminatórios.
4. A pretensão de ser alterada por meio de provimento desta Corte a sanção penal prevista em
lei para o tipo de injúria qualificada implicaria a formação de uma terceira lei, o que, via de
regra, é vedado ao Judiciário. Precedentes: RE nº 196.590/AL, relator Ministro Moreira
Alves, DJ de 14.11.96; ADI 1822/DF, relator Ministro Moreira Alves, DJ de 10.12.99; AI
(Agr) 360.461/MG, relator Ministro Celso de Mello, DJe de 06.12.2005; RE (Agr)
493.234/RS, relator Ricardo Lewandowski, julgado em 27 de
novembro de 2007.
5. O pleito de reconhecimento da atipicidade ou de desclassificação da conduta, do tipo de
injúria qualificada para o de injúria simples, igualmente não pode ser acolhido, por implicar
revolvimento de matéria fático-probatória, não admissível na via do writ.
178
6. In casu, o paciente foi condenado à pena de um ano e quatro meses de reclusão, substituída
por uma pena restritiva de direito consistente em prestação de serviço à comunidade, e à
prestação pecuniária de 16 (dezesseis) cestas básicas, de valor não inferior a R$ 100,00 (cem
reais), em virtude de infração do disposto no artigo 140, § 3º, do Código Penal, a saber,
injúria qualificada pelo preconceito.
7. Ordem de habeas corpus denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do
Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Luiz Fux, na conformidade
da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em rejeitar a questão de
ordem formulada pelo Senhor Ministro Marco Aurélio no sentido de submissão do feito ao
Plenário, e, por unanimidade de votos, em denegar a ordem
de habeas corpus, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 11 de junho de 2013.
LUIZ FUX – Relator
Documento assinado digitalmente
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