O VALE ENCANTADO DO PARAÍBA Projeções estéticas do folclore do Vale do Paraíba escritas por Calixto de Inhamuns para o Grupo Piraquara de São José dos Campos - SP Atenção: Texto registrado e distribuído em caráter puramente de uso e leitura PESSOAL. Todos os direitos reservados aos detentores legais dos direitos da obra. Para a representação e comercialização legal da peça, entrar em contato com o autor. Este texto foi apresentado pelo elenco do Grupo Piraquara: Bruno Marinho, Chico Abelha, Diego Nery, Eduardo Rennó, Erik Thomás, Flavia Bonani, Gabriel Augusto, Janaína Rodrigues, Lili Alves, Lucilene Dias, Maria Antônia, Mary Ramos, Paulo Cortez, Regiane da Silveira, Romulo Scarinni e Samuel Sgarbi. Direção musical: Eduardo Rennó. Direção de danças e movimentos: Silvia Regina Nery Direção de atores e de cena: Carlos Rosa. Cenários e figurinos: Pitiu Bonfim. Direção geral: Calixto de Inhamuns. Músicos: Denilson de Paula, Eduardo Rennó, Eliomar Landin e Samuel Isgarbi As músicas do espetáculo, conforme notas de rodapé, são de autoria de Calixto de Inhamuns, Eduardo Rennó e de domínio público 2 Abertura – Onde se dá início ao espetáculo; ou, os atores cantam, dançam, falam do grupo Piraquara e sobre o que eles vão fazer para o público. Apaga-se da luz da plateia. Ouve-se rufar de uma caixa e o som de uma viola. Sobe a luz geral, entram os músicos e logo em seguida entram todos os atores que cantam e dançam. TODOS: (Cantam.) Amigos nos dê licença Pro Piraquara entrar Aqui na sua presença Vamos cantar e dançar O folclore e a tradição Histórias do nosso povo O novo louva o velho E o velho guia o novo E nem tudo está escrito Mais na tradição oral E quem escuta acredita Fala de igual pra igual. E para todos os presentes Aqui iremos mostrar As imagens e os sons Da cultura popular Do Vale do Paraíba Do rio e seus segredos Margem abaixo e arriba Com alegrias e medos. Os mistérios do banhado Toda a nossa tradição De tudo fazemos arte Para a nossa diversão E o Piraquara Vai cantar de vai dançar Bota fogo, minha gente 3 Faz o povo arrepiar No couro e na vara A sanfona tá chorando A viola repicando Viva o povo Piraquara.1 Um ator, João Gogó, falando em cima do som da sua caixa, se adianta e fala com todos. Cena 01 – De onde tudo veio; ou, como tudo ficou misturado. JOÃO GOGÓ: E vamos que vamos, minha gente, que hoje, aqui, vai pegar fogo. Vamos contar histórias, dançar, cantar e falar sobre a nossa cultura popular e o nosso folclore. Tem música e dança que vieram de outras terras, mas tem aquelas que nasceram no Brasil. Arpeja a viola violeiro! (Entra a viola.) Isso é a catira, minha gente! Vamos lá! E bate mão! (Todos batem.) E bate o pé! (Todos batem.) E viva a catira, minha gente! TODOS: Viva! JOÃO GOGÓ: A Catira que nasceu das danças dos índios e que, diz a lenda, foi adaptada pelos Jesuítas que colocaram a viola portuguesa pra catequisar os próprios índios. Mas além da viola portuguesa têm os tambores que vieram da África! (Toque de tambor.) Puxa aí, minha branca! ISOLDA: (Canta.) Tava dormindo cangoma me chamou Tava dormindo cangoma me chamou Disse levanta povo cativeiro já acabou Entra os tambores do jongo e todos cantam. TODOS: (Cantam.) Disse levanta povo cativeiro já acabou 1 Música composta por Calixto de Inhamuns e Eduardo Rennó especialmente para o espetáculo. 4 Disse levanta povo cativeiro já acabou2 JOÃO GOGÓ: Esses são os tambores do jongo, os tambores da diversão dos negros! Mas tem também os tambores guerreiros da Capoeira e os tambores da umbanda e do candomblé que são os tambores da devoção! E tem as danças e as músicas que nasceram da mistura dos negros e dos europeus... Que nasceu da devoção de um povo misturado e que mistura credos e tradições. (Entram os tambores e o repique.) Que entre os devotos de São Benedito. TODOS: (Cantam.) E foi no tombo das águas E pelas ondas do mar Meu Senhor São Benedito Acabamos de chegar JOÃO GOGÓ: E tem os devotos de São Gonçalo, o protetor dos violeiros e das solteironas... São Gonçalo de Amarante que trouxe os seus cantos e danças de Portugal! Veio de Portugal, mas se misturou nesse Brasil misturado. Todas as mulheres velhas e solteiras não percam as esperanças que São Gonçalo, o santo casamenteiro, tá aqui pra ajudar! Entram a viola e a sanfona. As solteironas dão vivas a São Gonçalo e cantam. SOLTEIRONAS: (Cantam.) São Gonçalo do Amarante Que não e de brincadeira Sempre arruma casamento Pra toda velha solteira.3 Uma jovem, Nina, se revolta. NINA: Para com isso! Para com isso. (Todos param. Para as mocinhas, enquanto voltam a viola e a sanfona.) E nós? MOCINHAS: 2 Domínio público. 3 Domínio público (Cantam.) São Gonçalo do Amarante, 5 Casamenteiro das velhas, Porque não casar as moças? Que mal lhes fizeram elas?4 JOÃO GOGÓ: Calma, meninas, que sou solteiro e depois namoro com todas! (As meninas desprezam, mas ele continua sem perder o ritmo e a alegria.) E viva as matrizes da nossa nação, da nossa raça! As matrizes que nos deram comida, histórias, costumes e a alegria do canto e da dança! Viva as raças que geraram nossa cultura: a negra, a branca e a dos nossos índios! Todos gritam e dão vivas. Um menino, Akira, levanta o dedo pra falar e ninguém percebe. Nina que percebeu grita. NINA: Para com isso! Para com isso! (Todos param.) Cês não tão vendo? O Akira quer falar. (Todos olham pro menino que fica intimidado. Nina dá uma bronca.) Fala, Akira! AKIRA: O meu vô e minha avó, por parte de pai, vieram do Japão, tem um monte de coisa japonesa na cultura! (Ele não fala mais nada. Tempo.) TODOS: Fala Akira! AKIRA: Quase todo mundo come soja. JOÃO GOGÓ: Tá certo! E viva a soja, viva casa coberta com palha de arroz e viva o Japão! Todos gritam “vivas”. Uma atriz se adianta. D. CELESTE: Pera um pouquinho, gente! Tem mais mistura nessa mistura toda! Sou árabe! Tem também o quibe, a esfiha, a profissão do mascate... BRANCA: (Cortando.) Tem também a batata, o chope, a cerveja, as salsichas e as danças do alemães. VARAPAU: Tem a Espanha, tchê! Tem a bombacha, o churrasco, e o 4 Domínio público. 6 fandango! JOÃO GOGÓ: É isso, aí! Viva o quibe, a esfiha e a profissão do mascate dos árabes! (Todos gritam vivas.) E viva a batata, o chope e o chucrute dos alemães! (Todos gritam vivas.) Viva o churrasco, viva o fandango e viva a guitarra que vieram da Espanha! (Todos gritam vivas.) Viva os pastel de vento dos chineses! Todos gritam “vivas” e começam a citar nomes de raças. Americanos, Ingleses, Italianos. O narrador levanta os braços e todos se calam. NARRADOR: Calma, minha gente, calma! O Brasil é como coração de mãe, cabe todo mundo! (Para o público.) No nosso país habitam comidas, histórias, costumes, danças e cantos de muitos lugares. Tudo junto e misturado. Afinal de contas o que é o Folclore? É uma ciência que estuda a cultura espontânea da gente do campo e das cidades... As maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, sem influência direta do oficial e do erudito. NINA: Para com isso, para! Oficial, erudito? Passa batido aí, professor! Tô interessada é nesse santo aí, o tal São Gonçalo que casa as pessoas. PEDRO: Nina, eu ensino procê a dança do São Gonçalo. NINA: Cê não, Pedro, num quero... TICA: (Cortando.) Viu, Pedro bobão, ela num gosta de você. NINA: Num gosto mesmo... Quero que o Tonho me ensine essa dança. TONHO: Eu não, Nina, nem sei dançar. NINA: Mas eu sei... (Vai atrás dele.) Vem cá que ensino você, Tonho! TONHO: (Fugindo.) Deixa de profanidade, Nina, São Gonçalo é santo! 7 NINA: Eu sei que é Santo... Eu até fiz promessa pra ele casar a gente. TICA: Ih, Nina, milagre grande assim ele num faz! NINA: Num vai fazê pra você! Sei que você tá até fazendo promessas pra casar com o Pedro! Mas São Gonçalo num gosta de gente branquela como você! TICA: Sou branquela, mas sou querida por São Gonçalo e, graças a ele, vou casar com o Pedro. NINA: Cê vai casá com ela, Pedro? PEDRO: Eu? Eu... Eu... TICA: Não liga pra essa boba, Pedro! NINA: Boba é você, branquela! TICA: Branquela é sua mãe! As duas partem pra ignorância e são seguras pelo povo. D. CELESTE: (Batendo palmas e intervindo.) Vamos parar as duas! Vamos parar! (As duas param.) Cê precisa dar um jeito nessa sua namorada, Tonho. TONHO: A Nina num é minha namorada, dona Celeste. Ela é uma destrambelhada! D. CELESTE: Tonho, não tem festa que não tenha um espinho na garganta. Destrambelho, num é problema! No nosso folclore tem simpatia pra curar mulher destrambelhada. PEDRO: (Interessado.) Tem mesmo, Dona Celeste? D. CELESTE: Claro que tem, Pedro. Cê risca o chão com um giz, se for asfalto, ou pau, se for terra, fazendo uma linha de cem metros de comprimento. Faz a mulher caminhar por cima da linha três vezes, indo e voltando, indo e voltando. Faz três vezes por semana que a mulher destrambelhada vai ficar organizada de corpo e alma. 8 PEDRO: E cura? TICA: Se não cura, pelo menos vai entrar em forma, né, Pedro bobão! NINA: Magrela! TICA: Bestona! NARRADOR: Calma, meninas, sem brigar! Calma. (Para o público.) São Gonçalo na cultura popular tem este lado profano, mas, também, para o nosso povo é devoção e fé! Ele era um padre que fazia milagres em Portugal, mas, aqui, no Brasil, o povo não se contentou só com os milagres e o transformou em santo violeiro! (Ouvem-se acordes de uma viola. Muda o clima. Entram os devotos como em uma procissão trazendo dois São Gonçalo e Nossa Senhora Aparecida.) Agora ele é o protetor dos violeiros, dos necessitados e, claro, das solteironas. Ele é querido e festejado em todo Brasil com rezas, danças e cantos. Os santos, trazidos pelos donos da casa, D. Marta e Bento, com Nossa Senhora Aparecida no meio, trazida por Carmela, noiva de Bento, são colocados na frente do palco e voltados para o público. Formam-se duas filas com os violeiros na frente que são os primeiros a cumprimentar São Gonçalo. Cena 02 – A dança de São Gonçalo; ou, a devoção por um santo amado pelo povo. TODOS: (Cantam.) São Gonçalo do Amarante O meu santo protetor Protegei todos os devotos, ai, ai Que cantam em seu louvor, ai, ai Em nome de Deus começo Padre, Filho, Espírito Santo Este é o primeiro verso, ai, ai Que neste altar eu canto 9 Quero me benzer primeiro Livrando da zombaria Quero me benzer primeiro Livrando da zombaria São Gonçalo está pedindo (2x) Que venha de dois em dois (2x) Ai, meu São Gonçalo Aí, meu senhor Deus Bendito louvado seja Louvado e em bom lugar Vamos tomar a benção Da imagem que ali está Ai, meu São Gonçalo Ai, meu senhor Deus Eu pedi a São Gonçalo Que tirasse a nossa dor Eu pedi quando nasci Ser o meu procurador Ai, meu São Gonçalo Aí, meu senhor Deus Os anjos estão cantando Vamos nós cantar também Lá no céu e aqui na terra Para todo sempre, amém Aí, meu São Gonçalo Ai, meu senhor Deus Esta é a última vota (2x) Que esta noite aqui eu canto (2x) Ai, meu São Gonçalo Ai, meu senhor Deus Meu senhor dono da casa (2x) Vós me queira desculpar (2x) Ai, meu São Gonçalo Ai, meu senhor Deus 10 Eu preciso ir embora (2x) Minha hora já chegou Ai, meu São Gonçalo Ai, meu senhor Deus5 Na hora de sair, os mesmos que trouxeram os santos saem com eles, cai a geral e fica um foco nos músicos que continuam tocando. Logo a seguir, de cada lado do palco, entram Nina e Tica cada uma carregando um São Gonçalo e se postando nas laterais. Sai o foco dos músicos e ficam focos nas duas que conversam com os seus santos. Cena 03 – A crença em um santo salvador; ou, os pedidos por favores e as ameaças veladas. NINA: São Gonçalinho... TICA: São Gonçalinho... AS DUAS: Atende meu pedido, por favor... Eu quero casar, São Gonçalinho! Sei que o senhor é bom, atende todas as solteironas, mas eu não sou e prefiro não ficar solteirona pro senhor me atender, né? Atende agora! NINA: Quero casar com o Tonho! TICA: Quero casar com o Pedro! AS DUAS: “Casai-me, casai-me / São Gonçalinho, / Que hei de rezar-vos, / Amigo santinho.” Eu rezo duas novenas, canto dez músicas sacra e coloco flores durante dois anos pro senhor! Mas me casa e num casa aquela bisca da Nina / Tica! Ouviu, meu santinho querido? Olha se o senhor não me casar, faço com o senhor a simpatia do machado, que a Dona Celeste me ensinou: “Dentro de um ano, meu santo / Me arruma uma marido e tanto / ou parto sua cabecinha / com o fio de uma machadinha!” Ouviu, São Gonçalinho. Ou o senhor me casa e deixa essa branquela / lam- 5 Domínio público. 11 bisgóia solteira ou a machadinha come! (Vai saindo.) Tá ouvindo, santinho querido, a machadinha come! Saem e, atrás de um biombo, coberto com um pano translúcido, um homem, Bento, espanca uma mulher, D. Marta. O público vê as sombras do que está acontecendo projetadas no pano translúcido e escutam “ais” e “nãos” de D. Marta. Entram as crianças correndo. Cena 04 – A lenda do Corpo Seco; ou, o homem que bate na mãe por causa de mistura. CRIANÇAS: (Falam todas ao mesmo tempo para o público e apontam o biombo.) Olhem o Corpo Seco! Olhem o Corpo Seco! Olhem! BENTO: Toma, velha, toma! D. MARTA: Não, por favor, não! CRIANÇAS: (Falando para o público, todas juntas.) O Corpo Seco tá batendo na mãe! (Elas ficam assistindo e rezando durante o espancamento.) D. MARTA: Ai, ai, ai! BENTO: Isso é pra você aprender, sua velha! D. MARTA: Não me bata, meu filho, por favor, não me bata! BENTO: Não falei que não queria frango como mistura? Que preferia porco! Não falei, sua velha! (Esbofeteia a mãe.) MIÚDA: Meu Deus! É por causa de mistura! O Corpo Seco tá batendo na coitada da sua mãe por causa de mistura! AKIRA: Eu também não gosto de frango e nem por isso bato na minha mãe. BENTO: (Dá mais uns bofetes.) Tome! E vá comprar umas costelinhas, velha preguiçosa! (Sai arrastando a mãe pelos cabelos.) 12 AKIRA: Ele vai matar a mãe! Ele vai matar a mãe! BIA: Coitada! CRIANÇAS: (Gritando todas ao mesmo tempo.) Socorro! Socorro! Socorro. Começa a entrar gente. Dona Celeste é uma das primeiras. D. CELESTE: Que berreiro é esse? Cês num tem casa? Precisa ficar gritando igual bezerro desmamado na frente da casa dos outros? MIÚDA: Mas tô gritando na frente da minha casa, mãe! D. CELESTE: Num importa onde cê tá gritando, Miúda, quero saber que gritaria é essa? AKIRA: A gente viu o Bento, o filho da Dona Marta, batendo nela por causa de mistura. TINA: Com certeza o Bento é o corpo seco! Todo mundo desconfia disso na cidade! CARMELA: O Bento é meu namorado, Tina! Ele num é o Corpo Seco! VARAPAU: Pode num ser, Carmela, mas tem o dito popular: “Quem bate na mãe fica com a mão seca”. E quem faz isso, vira também um corpo seco. O corpo fica seco por que é rejeitado por Deus, pelo diabo, é expulso pela terra que foi enterrado e sai por aí, com o corpo apodrecido, assustando os outros. PEDRO: Meu tio já viu... Tá correndo até hoje! Deve tá chegando ao fim do mundo, lá no Bairro Satélite. TICA: Que história mais esquisita, gente! Aí, meu Deus, me proteja do Bento! CARMELA: Que protege do Bento, Tica! O Corpo Seco tá morto e foi enterrado e rejeitado pela própria terra, o Bento, o meu namorado nunca morreu, tá vivinho! 13 NINA: A gente acha que tá vivinho, mas quem sabe? MIÚDA: É, pode tá vivinho, mas amanhã pode tá sequinho... A gente viu ele batendo na dona Marta. AKIRA: Bateu e muito... E por causa de mistura! BIA: Coitada da D. Marta! D. CELESTE: Cala boca, suas pestinhas! (Para Carmela.) Num liga não, Carmela, esse povo babaquara só fala bestagem, crendices. TONHO: É, gente, o Bento num é o Corpo Seco, mesmo batendo na mãe... O Corpo Seco vive, há mais de 40 anos, numa gruta, na localidade de Pedra Branca, lá em Taubaté. JOÃO GOGÓ: Não! Ele é de Paraibuna! Morreu faz 100 anos, mas como não deixava ninguém em paz depois de morto, o padre expulsou pro Morro do Corpo Seco. Dizem que ele tá até hoje por lá... Parece uma jabuticaba chupada e fica assustando quem passa por lá. D. CELESTE: O Corpo Seco não mora nem em Taubaté e nem em Paraibuna! Se ele existe mesmo dizem que vive escondido atrás da aparência de um homem normal. E sabe aonde? Aqui, em São José dos Campos! TODOS: São José dos Campos? D. CELESTE: E eu... Olha lá não tenho certeza, mas acho que sei quem é. ISOLDA: Aí, meu Deus, fala quem é? D. CELESTE: Como num tenho prova... Eu... TODOS: Fala, Dona Celeste! D. CELESTE: Que Deus me perdoe se estiver enganada, mas pelo jeito de andar, pelo enrugado da pele seca da cara (Ou quaisquer outras caraterísticas.) deve ser o Fulano! 14 TODOS: O Fulano? NINA: É... Ele tem um jeito esquisito. MIÚDA: Olha lá, Dona Marta tá chegando. Todos ficam em silêncio e entra dona Marta com um pacote na mão. Tem uns esparadrapos na cara, um olho roxo e um braço enfaixado. D. CELESTE: Tudo bem com a senhora, Dona Marta? DONA MARTA: Tudo bem, dona Celeste, graças a Deus! Fui comprar uma costelinha de porco pro Bento. Ele adora costelinha de porco. D. CELESTE: É... Gosta... E gosta, desgraçadamente, de outras coisas. Entra Bento. BENTO: E aí, velha? Comprou meu lombo de porco? DONA MARTA: Cê falou que queria costelinha de porco, Bento! BENTO: Que costelinha de porco, velha imprestável! (Pega a mãe pelo braço enfaixado e esta geme de dor.) Tu não sabe que odeio osso? Odeio osso e pele! CARMELA: Bento, num faz assim com sua mãe, amor! BENTO: Num se mete, Carmela, num se mete! Senão depois de dar um trato nessa imprestável, dou um jeito em você! Sai arrastando a mãe. Todos saem atrás, xingando, reclamando. Fica o narrador que se adianta e começa a falar. Os músicos entram. NARRADOR: Essa é uma das muitas lendas das que vivem no coração e na mente do povo piraquara. No Vale do Paraíba, como em outras regiões, principalmente no Sudeste, existem muitas versões para a história do Corpo Seco. Mas não só de histórias de assombração e de tristezas vive esse povo. Têm suas danças, músicas, e uma das mais alegres é o Jongo. (Toque baixo dos tambores.) O Jongo é característico da Região Sudeste, principalmente, dos lu15 gares onde existiam grandes fazendas cafeeiras. Os negros se reuniam para cantar e combinar, através dos versos, aventuras que levavam para a liberdade. Toques de um tambor, o cangoma. Alguém puxa um ponto de jongo e todos entram para cumprimentar os tambores e cantar. Cena 05 – O Jongo, ou os tambores da diversão. PUXADOR: TODOS: (Canta.) Terreiro é grande dá licença pra jongá Quando escuto o candongueiro Sinto o corpo arrepiar E lá iê, E lá iá E la iê, E lá iá La la iê lala iê La la iê lala iá6 Todos repetem algumas vezes o ponto e dançam. Alguém grita “machado!”, todos param e ele puxa. PUXADOR: Saravá jongueiro velho Que veio pra ensinar Que Deus dê proteção pra jongueiro novo Pro jongo não se acabar TODOS: Pro jongo não se acabar Pro jongo não se acabar Que Deus dê a proteção pra jongueiro novo Pro jongo não se acabar7 Todos repetem algumas vezes o ponto e dançam. Alguém grita “machado!”, todos param e ele puxa. PUXADOR: 6 Domínio público. 7 Domínio público. Ô, mãe África, vem lembrar meu cativeiro Ô, mãe África, vem lembrar meu cativeiro 16 Olha só o meu tambú (o meu tambú) Como chora o candongueiro (ai, candongueiro) De tanto soluçar, soluçar, soluçar Vai molhar o meu terreiro. 8 Todos repetem algumas vezes o ponto e dançam. Alguém grita “machado!”, todos param e ele puxa. PUXADOR: Quando eu morrer não precisa me enterrar Quando eu morrer não precisa me enterrar Joga no Paraíba Deixa a agua me levar A carne o peixe come O osso deixa afundar Lê Lê Lê Lê Le le le le le le a Le le le le le le a9 Todos repetem algumas vezes o ponto e dançam. Alguém grita “machado!”, todos param e ele puxa. PUXADOR: Adeus cangoma adeus Adeus que eu já vou embora Eu vou meu cangoma fica Aqui até outra hora10 Todos repetem algumas vezes o ponto e depois vão passando pelos tambores, cumprimentam e vão ficando por perto. Entra o violeiro e o sanfoneiro Cena 06 – A lenda da noiva do banhado; ou, a história da mulher apaixonada que foi abandonada pelo noivo no altar. JOÃO GOGÓ: E aí, violeiro, gosta do jongo. VIOLEIRO: Gosto, João Gogó, mais gosto mais da música de viola. 8 Domínio público. 9 Domínio público. 10 Domínio público. 17 Os outros atores entram e ficam em volta dos tambores. VARAPAU: Eu acho a música de viola triste. Isso é herança dos portugueses... O fado também é triste. JOÃO GOGÓ: Espera ai, João Varapau, a Catira, que é uma musica de viola, nasceu com os índios. Tem também catira alegre e ela tá bem distante do fado. D. CELESTE: Grande coisa essa música desse povo besta! O pior é que foi só isso que ficou dos índios: essa música de bater o pé, nome de rua, comidas, remédios que curam até bicheira, chás e histórias de assombração... Saci Pererê, Caapora, Cobra Grande... Tudo pra meter medo na criançada. BIA; Eu não tenho medo, eu adoro história de assombração. Entra música. D. CELESTE: Então, Bia, juntou a fome com a vontade de comer! O que mais tem aqui no banhado é história de assombração. Esse povo piraquara, que é meio índio, adora uma assombraçãozinha! TODOS: (Cantam.) O coração dispara... Aí que medo, que medinho, que medão!... A minha avó contava história de assombração. E pro povo Piraquara... Aí que povo, que povão!... Que é muito babaquara Tudo é medo e diversão!11 Falado no ritmo da música. HOMEM: Olha o trem! O povo saúda e grita para o trem que se aproxima. 11 Música composta por Calixto de Inhamuns e Eduardo Rennó especialmente para o espetáculo. 18 CORO: (Em um canto do palco formando um trem e olhando para o lado contrário.) Café com pão, café com pão, manteiga não, café com pão, café com pão, manteiga não, café com pão... (Continuam falando ao fundo, baixo. Surge no lado oposto uma menina com um véu de noiva.) MULHER: Tem uma mulher na linha do trem! O POVO: Aí, meu Deus! HOMEM: Saí daí, menina! CORO: (Crescendo, partindo de um canto para o outro como se aumentasse a velocidade do trem. O povo continua gritando.) Café com pão, manteiga não, café com pão... A menina vestida de noiva vai de encontro ao trem e se choca violentamente com ele. TODOS: Não! Fecha uma roda em volta da menina. Falas misturadas, gritos. A roda abre, todos estão assustados. Falam quase ao mesmo tempo. MULHER: Ai, Jesus! Que horror! MENINA: Coitada. HOMEM: Ela enfrentou o trem! Ela queria morrer. MULHER 2: É coisa de amor! MULHER 3: Ela ia casar, gente! Ia casar! MULHER: O noivo se apaixonou por outra. HOMEM: Que triste a carta que ela deixou! Todos param. Uma viola toca. O narrador fala, para o público, em cima do som da viola que chora a noiva morta. NARRADOR: É... Coisas do amor!... Desgosto... Ela enfrentou o trem das 11 e meia... Um trem brancão, de aço... Como se fos19 se o metrô de hoje... Ficaram os pedaços da mulher pelos trilhos... O trem picou como se pica abóbora... Ontem podia ser uma festa. A noiva está feliz com as amigas. NINA: Aí, que inveja amiga! A noiva ameaça jogar o buquê. Todas as meninas ficam pedindo pra ela jogar na direção delas. Nina corta, brava. NINA: Para! Para. (Todas ficam quietas.) Num tem nada de jogar pra ninguém... Joga pra cima, quem pegar, casa! TICA: Que adianta você pegar, Nina? Cê nem noivo tem! NINA: Como num tenho? E o Tonho? TONHO: Num sou seu noivo não, Nina! Nem pega que não quero casar agora! PEDRO: Pode pegar, Nina, eu caso com você! TICA: Como você é besta, Pedro, ela quer casar com o Tonho! NINA: (Grudando Pedro pelo braço.) Tá vendo, João Bobão? Se você não quer, outros querem. TODOS: Ih, danou! Desocupa a moita, Tonho! NARRADOR: (Para os atores.) Por favor, meus amigos, por favor! Respeitem a dor da família! (Silêncio. Para o público.) Ontem a alegria de uma noiva... Hoje, a dor, o silêncio... (Os atores cantam uma música triste e velam o corpo da noiva.) O noivo, depois de tanto tempo de espera, de preparo, se apaixonou por outra... Coisas do coração... Pra nova namorada a alegria, outro tempo de espera, de preparo... Para essa o desgosto, o fim trágico. Uma menina, Miúda, entra, corta e muda o clima. MIÚDA: Eu? Passar a noite perto da linha do trem? Nunca! Tenho medo da noiva! 20 D. CELESTE: Que medo, menina? Isso é invenção desse povo Piraquara! MIÚDA: O Zé viu, mãe! D. CELESTE: Filha, deixa de ser boba! É tudo mentira. JOÃO GOGÓ: É não, dona! Ela apareceu pra muita gente do bairro... Muitas pessoas viram. D. CELESTE: É bestagem desse povo besta! Lenda, folclore! JOÃO GOGÓ: Não dona, existe... Toda noite ela aparece... (Aparece a noiva, ao fundo.) É tão tristinha... Mas não precisa ter medo não, pessoal! Ela não faz mal pra ninguém, só quer chorar a sua dor. Entra o som da viola e todos batem as mãos e os pés, dançado a catira, em homenagem a noiva. Os músicos encobrem a noiva. Cena 07: A catira da noiva do banhado; ou, a triste sina da mulher apaixonada que foi abandonada pelo noivo no altar. Os atores formam duas filas e dançam enquanto os músicos cantam. MÚSICOS: (Cantam.) Rio abaixo, rio acima Agora quero contar A história duma menina Com o seu triste penar. O noivo com outra fugiu Na hora de se casar O ingrato ela feriu Com seu cruel desprezar. Dor igual nunca se viu O que a infeliz sentiu, Diante do santo altar. Com os olhos feito água A Deus ela perguntou 21 Ó pai pra que tanta mágoa Pra quem tanto a vida amou Grande tristeza bateu E o desespero também E jurou porque sofreu Nunca mais ser de ninguém Cumpriu o que prometeu Com a roupa do himeneu, Morreu embaixo de um trem. Hoje a alma da coitada Vaga só, pedindo ajuda Pois vive aprisionada Sem que ninguém lhe acuda Os viventes fogem dela Pois a todos causa medo E ninguém ajuda ela Que tem um grande segredo É prisioneira a donzela E a sua triste cela é... A aliança no dedo.12 Todos batem palmas, sapateiam e, ao terminar, e aplaudem os violeiros incentivados por João Gogó. Cena 08 – O noivo abandonado, ou, o noivo que nunca foi e, por medo da má fama, resolve ser. JOÃO GOGÓ: E viva os violeiros, gente! TODOS: Viva! JOÃO GOGÓ: E viva todos nós! 12 Música composta por Calixto de Inhamuns e Eduardo Rennó especialmente para o espetáculo. 22 TODOS: Viva! JOÃO GOGÓ: E viva o novo casal: o Pedro e a Nina! (Os dois que estavam afastados correm e se dão os braços.) E quem ficou lambendo os beiços? TODOS: O Tonho! TONHO: Eu não! Cês tão com troça! Eu nunca namorei a Nina! TICA: Namorou sim, Tonho! Na festa de São João do ano passado. NINA: E a gente se encontrou depois... Ele até me beijou! PEDRO: Num quero que ninguém mais beije você, Nina! NINA: Então me dá um beijo, Pedro! (Pedro dá um beijo na bochecha de Nina.) Assim, não Pedro! (Ela gruda Pedro, alguns ficam na frente.) TODOS: Nossa! Desentupiu a pia! NINA: (Saindo do meio da roda, esbaforida.) Eu gosto de ocê, Tonho, mas cê me trata mal... Não acarinha... Vou ficar com Pedro que me trata bem e gosta de mim. D. CELESTE: É isso mesmo, minha filha! Já diz um dito antigo: “melhor asno que me carregue, que cavalo que me derrube”. BIA: Conta outra história de assombração, D. Celeste! D. CELESTE: Que história de assombração, Bia? Isso é coisa desse povo babaquara! MIÚDA: Conta, mãe, eu gostei da história do namorado da Carmela... A do Corpo Seco! CARMELA: Meu namorado se chama Bento, Miúda! Não chama Corpo Seco! BENTO: Cês ficam inventando que eu judio da minha, mãe... São todos uns mentirosos. 23 D. MARTA: O Bento me trata muito bem, Miúda! BENTO: Alguém perguntou alguma coisa pra você, velha? D. CELESTE: Isso é jeito de falar com a mãe, moleque? Você vai mesmo virar o corpo seco e viver escondido no Túnel, Bento, se não tomar jeito. MIÚDA: Conta a história do túnel, mãe! BIA: Num quero história de túnel! Quero história de assombração. D. CELESTE: A história do túnel tem assombragens, Bia. Conta aí, João Varapau! JOÃO VARAPAU: Eu nem sei direito, dona Celeste. PEDRO: Sabe sim, meu sogro! E ele conta muito bem, gente! Conta aí, sogrão! TONHO: Que sogro, Pedro? Cê nem tá namorando a Nina. NINA: Eu tô livre... Posso namorar quem quiser. TICA: Vai engolir isso, Tonho? Se todo mundo sabe que você namorava a Nina e ela fica com o Pedro, vão chamar você de chifrudo. TONHO: Que chifrudo, Tica! Eu num... Dei uns beijinhos só. TICA: Isso é namoro, Tonho! TONHO: Tá bem, namoro com ocê, Nina, mas pra casar. (Decidido para Varapau.) Seu João Varapau, eu quero namorar a sua filha e quero casar com ela. VARAPAU: Não consinto! TODOS: Epa! VARAPAU: Não consinto que você case com a minha filha! De jeito nenhum, não consinto! TONHO: Mas porque seu João Varapau? 24 VARAPAU: Porque você não merece! Não merece! Você merece uma coisa melhor... Minha filha é terrível, vai desgraçar sua vida. TONHO: Mas mesmo assim eu quero, seu João Varapau... Eu quero casar com a Nina. PEDRO: Num aceita, Nina, eu gosto de você... Você vai sofrer e vou sofrer também, Nina! TONHO: Num faz graça pra minha noiva, Pedro, ou arrebento você. TICA: Eu cuido de você, Pedro. BENTO: Ih, Pedro, seu eu fosse você, entrava no túnel do banhado e saia nos quintos do inferno. CARMELA: Cê num precisa entrar no túnel, Bento, porque eu gosto de você e nunca vou deixar você! BENTO: Ninguém pediu sua opinião, Carmela... Só fale quando eu autorizar, ouviu? D. CELESTE: Ih! Esse vai pro túnel mesmo... Ô coisa ruím. MIÚDA: Conta a história do Túnel pra nós, mãe! D. CELESTE: Que túnel, Miúda, isso é bestagem desse povo piraquara! (Para Miúda.) Vai pra casa que não vou contar nada! Vai! Miúda sai. As crianças e o resto cercam Dona Celeste. BIA: Eu gosto de história de assombração! AKIRA: Eu quero ouvir a história do túnel! TODOS: (Ao mesmo tempo.) Conta pras crianças, D. Celeste! Conta! Que coisa chata, D. Celeste, conta pras crianças! D. CELESTE: Chega de histórias do banhado hoje! A história do túnel do banhado tem muita tristeza pra essas crianças. Chega! Todo mundo pra casa. 25 Sai. Todos saem atrás dela falando, reclamando e fica o narrador em cena. Cena 09 – O túnel do banhado, ou, São Benedito, protetor dos cozinheiros e dos negros. NARRADOR: Afinal, existiu, ou existe, esse túnel? Segundo falam, ele teria sido construído entre os séculos 19 e 20, começando no meio do barranco do banhado e saindo atrás do altar da igreja de São Benedito. Muitos afirmam que conhecem esse túnel, que já entraram nele. Tem várias versões, mas a mais falada é que ele foi construído pelos escravos para fugir dos açoites. E este túnel – olha que coincidência - dizem que vai terminar atrás do altar onde está São Benedito, o protetor dos cozinheiros e dos negros. E tem mais: a Igreja de São Benedito, o mais antigo templo de São José do Campos, foi construído pela Irmandade de São Benedito e foi sede da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, duas irmandades criadas por populares comuns que se organizavam para louvar o santo e a santa da sua devoção! É interrompido por uma menina, aos gritos. MENINA: Mãe, mãe, mãe! Entra a mãe. MÃE: Que foi, filha? O que aconteceu? MENINA: O feitor tá batendo no pai, mãe! Ele vai matar o pai! Enquanto elas falam, os atores que vão dançar o Moçambique entram já uniformizados e com seus bastões. MÃE: Ai, meu Deus do Céu! Vão matar o seu pai e depois vão matar a gente, filha! Eu falei pro seu pai esquecer essa coisa de liberdade, eu falei! (Os atores formam o túnel do banhado.) Foge, filha, foge! Entra no túnel e vai embora! (A menina hesita.) Foge, filha! Entra no túnel! 26 MENINA: Não, mãe, eu tenho medo! MÃE: O túnel acaba na igreja de São Benedito! Ele vai proteger você! (A menina hesita.) Eles vêm aí! Foge, filha, foge! (A menina entra no túnel. A mãe se ajoelha e reza.) Glorioso São Benedito, grande Confessor da fé, com toda confiança venho implorar a vossa valiosa proteção. Protegei minha filha e meu povo, São Benedito. Protegei, São Benedito, protegei. Entra música. A menina sai no fim do túnel portando uma bandeira de São Benedito. A mãe, como um mestre do moçambique, se ajoelha ao lado da bandeira e canta com a base sonora de todos os outros. Cena 10 – Louvando São Benedito; ou, o povo canta, dança em homenagem ao seu santo protetor. MESTRE: (Canta.) Ai, meu Rei, São Benedito, Oh, meu santo protetor Pra sempre seja louvado Nós cantamos em seu louvor. MESTRE: Glorioso São Benedito Ele é um santo de alegria TODOS: Ai, meu Deus, MESTRE Ele é o nosso guia TODOS: Aí, meu Deus, MESTRE: É o protetor da companhia TODOS: Aí, meu Deus. TODOS: (Cantam.) Esta dança é de santo Meus irmãos, vamos dançar Glorioso São Benedito Que nesta bandeira está Maneja , irmão, maneja 27 Vamos todos manejar É hora da despedida Dá vontade de chorar13 Repetem algumas vezes cantando e dançando. Depois, menos o narrador que fica observando, vão saindo ainda cantando e suas vozes vão sumindo nas coxias, os instrumentos continuam, ainda, por um tempo. O narrador fala em cima da música, ao fundo. NARRADOR: São Benedito, o protetor dos cozinheiros e do povo sofredor, tem admiradores em todo o Brasil. Este é o nosso país: a terra de um povo que procura, no seu imaginário coletivo, forças pra seguir em frente. E viver é crer, contar com as forças das suas crenças e lutar, no dia a dia, contra os que se opõe a um mundo melhor para todos. E, apesar de tudo, o povo continua sem nunca perder a fé e a sua alegria. Viva o povo brasileiro! Todos gritam, nas coxias: “Viva!” A música entra e todos entram cantando baixo apenas os dois primeiros versos da Música: “Antônio, Pedro e João”. Cena 11 – O casamento interrompido; ou, uma festa alegre onde a tristeza entra através de uma traição e de uma tragédia. TODOS: (Cantam.) Com a filha de João Antônio ia se casar Ficam repetindo esses versos iniciais, baixinho. JOÃO GOGÓ: Hoje é dia de festa, gente! Tem dois casamentos! Nina e Tonho e Carmela e Bento! Bento aquele coisa ruim, não convidou ninguém pro seu casamento, foi casar em outra freguesia! Mas mesmo assim: viva Bento e Carmela! (Todos gritam “vivas!”) Que Deus se apiede da boa Camela! Mas aqui vai ter festa, muita comida e bebida. Viva os comes e bebes! 13 Domínio público. 28 Todos gritam “viva!” e depois ficam congelados, menos Pedro e Nina. PEDRO: Eu gosto de ocê, Nina, não faz isso. Casa comigo. Tonho não gosta de ocê! Congelam. Tonho fala. TONHO: (Em outro canto.) Nina, a gente se casando, cê num sai mais de casa! Ouviu? Acabou brincadeira, acabou festa, acabou tudo! Tica descongela e fala com Tonho. TICA: Num fala assim, agora, Tonho! Casa antes e – depois! – você doma a megera! Carca a espora nela! Cê casando com ela, Tonho, eu fico com o Pedro. Os dois se congelam e Nina fala. NINA: D. Celeste tem razão! “Melhor um asno que me carregue que um cavalo que me derrube!” (Para Pedro.) Eu aceito casar com você, Pedro, vamos fugir! Os dois saem. Todos descongelam e cantam. TODOS: (Cantam.) Com a Filha de João Antônio ia Se Casar Mas Pedro Fugiu Com a Noiva Na Hora De Ir Pro Altar14 MIÚDA: Pera aí, gente, pera aí! (Todos param.) Isso é uma festa pra São João ou uma festa pra homem chifrudo? TODOS: Isso é folclore, Miúda! Entra Nina e Pedro. NINA: Gente, gente, ai meu Deus, uma tragédia! Uma tragédia! D. CELESTE: Que foi, Nina? NINA: Na hora do casamento, lá na outra freguesia, o Bento ma- 14 Domínio público. 29 tou a mãe por causa do terno que tava amassado, deixou a Carmela esperando no altar e fugiu com outra que deve ser a filha do cão. Carmela, desesperada, se jogou contra o trem! TODOS: Coitada! Não é possível! Maldito! O Bento vai virar o corpo seco. Coitada. A luz cai e atrás do pano translucido do biombo aparece a sombra da noiva do banhado com o seu braço estendido. Todos ficam parados, olhando. Uma voz corta o clima. Nina está com uma figura na mão. NINA: Olha a figura da noiva do banhado! É da Dona Lili, a grande figureira do Vale! TICA: Quem vai comprar as figuras de Tonho, o chifrudo da festa de São João? JOÃO VARAPAU: Tem também as figuras do casamento de Pedro e Nina. Todos cercam os vendedores falando que “eu quero”, “quanto custa”, “quero a figura do corno”, etc. O narrador se adianta. NARRADOR: Isso é a Cultura Popular: causos, músicas, danças, festas, teatro, literatura... O nosso folclore... Tudo aquilo que o povo, sem influências do erudito e da ciência, cria, produz, usa e participa de forma ativa. E as figureiras, a quem homenageamos agora, representam uma das mais importantes manifestações da cultura popular do Vale do Paraíba. (Música de viola. Um biombo, como se fosse um cortineiro, se abre e aparece ao fundo, iluminada por um foco, uma figureira terminando um presépio. É um presépio maior que os que são criados pelas figureiras, porém, mais leve e resistente.) D. Lili, umas das grandes figureiras do Vale, constrói presépios lindos que embelezam todos os anos as festas natalinas da casa de muita gente. Os atores pegam o presépio e o erguem acima das suas cabeças. Luzes se acendem no seu interior e o iluminam. A luz geral começa a cair lentamente e fica apenas a contraluz azul. Os atores cantam e carregam o pre30 sépio até a frente do palco. Depois, os segundos da fila pegam o presépio e voltam até o fundo do palco, mas sempre com o presépio voltado para o público. Quando eles retornam para frente do palco são acompanhados por três bonecos imensos representando os três reis magos. O presépio é colocado no centro palco e fica cercado pelos três reis magos e pelos atores que cantam o final da música. Cena final – Onde se homenageia as figureiras; ou, o nascimento de Jesus é louvado por todos. TODOS: (Cantam.) Ai vinte e cinco de dezembro ai larai Ai vinte e cinco de dezembro ai larai Lara larai Da meia noite pro dia ai larai La larai Da meia noite pro dia ai larai Ai que nasceu o Deus menino ai larai Ai que nasceu o Deus menino ai larai Lara larai Ele é filho de Maria ai larai La larai Ele é filho de Maria la larai Ai Ele nasceu em Belém ai larai Ai Ele nasceu em Belém ai larai Lara larai Dentro de uma estrebaria ai larai La larai Dentro de uma estrebaria la larai Ai os três Reis foram guiados ai larai Ai os três Reis foram guiados ai larai La larai Por uma Estrela da Guia ai larai Lara larai 31 Por uma Estrela da Guia la larai15 A luz geral vai voltando, os atores terminam de cantar, BO, fica só a viola tocando. Volta a luz geral e os atores cumprimentam a plateia. FIM São Paulo, 13 de outubro de 2012. Calixto de Inhamuns Rua Frei Henrique de Coimbra, 12 05043-040 – SÃO PAULO - SP Telefone: (11) 5083-8877 E-mail: [email protected] 15 Domínio público. 32