Conselho Deontológico
Parecer 21/P/2009
Pedido de parecer da direcção da informação da RTP sobre
os critérios de avaliação do pluralismo político-partidário definidos pela ERC
1. Preâmbulo
Na sequência de vários pareceres sobre o incumprimento dos critérios da Entidade Reguladora
para a Comunicação Social (ERC), a direcção de informação da RTP questionou o Conselho
Deontológico do Sindicato dos Jornalistas sobre a compatibilidade entre o Código Deontológico e a
exigência de uma cobertura dos acontecimentos político-partidários de acordo com quotas,
definidas pelo regulador, tendo por base resultados eleitorais e não critérios jornalísticos.
2. Razões do pedido e parecer da direcção de informação da RTP
No pedido de parecer, o director de informação da RTP, José Alberto Carvalho, afirma que não
concorda nem pode aplicar o modelo da ERC para avaliação do Pluralismo Político-Partidário na
RTP, adiantando que as recomendações têm por «efeito uma pressão ainda maior sobre a liberdade
editorial» do canal público de televisão.
O director de informação da RTP considera que a obrigatoriedade de os jornalistas daquela
estação de televisão produzirem notícias sobre cada partido, de acordo com as percentagens
definidas pela ERC, impõe à redacção um jornalismo político elaborado segundo quotas que têm a
ver com a sua representatividade na Assembleia da República e põe em causa o próprio conceito de
«notícia» e de liberdade editorial. José Alberto Carvalho salienta que o modelo que serviu de
inspiração à definição das respectivas quotas teve por base o modelo do Conselho Superior do
Audiovisual, em França, que este ano os reviu, no sentido de uma maior simplificação, «por ter
concluído que ele era complexo e limitava a liberdade dos jornalistas», sublinhando não conhecer
nenhum país em que, para avaliar o pluralismo político, se «apliquem regras de análise de notícias
com base nos resultados eleitorais obtidos previamente!». O queixoso, que desenvolve a sua
argumentação num texto anexo que serviu de base para a resposta formal fornecida à ERC, salienta
a extraordinária importância da regulação, acrescentado que apenas discorda da «atribuição de
quotas de notícias mediante resultados eleitorais prévios». Segundo refere, este critério
representaria uma perversão de um método inicial de monitorização do pluralismo políticopartidário apresentado à RTP em 2007. O princípio então definido era o de que as notícias de
âmbito político deveriam reflectir uma proporção tendencial de cinquenta por cento para o governo
e para a maioria parlamentar, 48 por cento para os restantes partidos da oposição e dois por cento
para as forças partidárias sem representação parlamentar. Este critério terá merecido o acordo da
direcção de informação da RTP, então presidida por Luís Marinho e onde José Alberto Carvalho
participava na qualidade de director-adjunto. O que o actual director de informação vem contestar é
o facto de a ERC ter decidido decompor a fórmula inicial aplicando «uma malha mais fina» de que
a RTP só terá tomado conhecimento aquando da divulgação das conclusões do primeiro relatório
sobre o pluralismo político-partidário, de Março de 2008. De acordo com essa nova fórmula, o
espaço noticioso atribuído ao Governo e à maioria parlamentar manteve-se nos 50 por cento, mas os
48 por cento destinados globalmente à oposição parlamentar passaram a ser distribuídos em 27,67
por cento para o PSD, 7,25 por cento para o PCP/PEV, 7,24 por cento para o CDS/PP e 6,35 por
cento para o BE.
Segundo a direcção de informação da RTP, este mecanismo dá lugar a um jornalismo
contabilístico, do tipo «Excel», em que as notícias são determinadas não por critérios noticiosos,
mas pelas quotas que decorrem dos resultados eleitorais. Refere a este propósito José Alberto
Carvalho:
«O acto jornalístico não é entendido enquanto tal, mas sim como meio para os partidos políticos
exporem as suas ideias! O que está em causa não é, neste modelo, o “valor notícia” mas sim o “tempo de
antena”».
A aplicação deste modelo levou a que a ERC instasse várias vezes a RTP a cumprir o pluralismo
político tendo por base as quotas previamente definidas, tendo sido a direcção de informação
chamada a justificar tal situação perante a XII Comissão da Assembleia da República, a última vez
das quais protestativamente, por iniciativa do PSD. A bancada social-democrata queria saber a
razão pela qual o PSD só aparecia em 17 por cento das notícias, quando deveria ter 27 por cento.
Em contraposição, a direcção de informação pergunta se a «RTP deixou de noticiar alguma posição
relevante do PSD», salientando o facto de o critério definido pela ERC colocar o serviço público de
televisão sob a responsabilidade de preencher quotas, mesmo quando a actividade políticopartidária não o justifica ou a agenda dos seus líderes não o permite.
A direcção de informação da RTP reivindica o direito a ser julgada pelo jornalismo que pratica e
não sobre os preconceitos que jornalistas e políticos mantêm sobre o serviço público, tendo por base
as interferências do poder político na informação do serviço público de televisão, verificadas no
passado.
José Alberto Carvalho questiona ainda o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas se
não existirá um conflito entre o modelo de avaliação do pluralismo político-partidário definido pela
ERC e o código de auto-regulação dos jornalistas, nomeadamente nos seus pontos 1, 3, 5 e 8,
quando se refere:
1.O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os
factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção
entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.
3.O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de
limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as
ofensas a estes direitos.
5.O jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e actos profissionais,
assim como promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas. O
jornalista deve também recusar actos que violentem a sua consciência.
8.O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça,
credos, nacionalidade ou sexo.
3. Análise
3.1. Sobre o sistema de avaliação do pluralismo político-partidário
O actual modelo de avaliação do pluralismo político-partidário no serviço público de televisão
decorre, segundo a ERC, do previsto nos seus Estatutos, nos arts. 7.º, al. d), 8.º, al. e) e 24.º, n.º 3,
al. i), referentes aos objectivos, atribuições e competências. Aí se refere, respectivamente1, que a
ERC deve:
– «Garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo
princípio do pluralismo e pela linha editorial de cada órgão de comunicação social».
– «Assegurar que a informação fornecida pelos prestadores de serviços de natureza editorial se
pauta por critérios de exigência e rigor jornalísticos, efectivando a responsabilidade editorial
perante o público em geral dos que se encontram sujeitos à sua jurisdição, caso se mostrem violados
os princípios e regras legais aplicáveis».
– «Verificar o cumprimento, por parte dos operadores de rádio e de televisão, dos fins genéricos e
específicos das respectivas actividades, bem como das obrigações fixadas nas respectivas licenças
ou autorizações, sem prejuízo das competências cometidas por lei ao ICP-ANACOM».
O Conselho Deontológico consultou várias entidades reguladoras europeias, no sentido de aferir
da prática das regras de monitorização do pluralismo político-partidário. Entre essas consultas,
dedicou particular atenção ao Conselho Superior do Audiovisual, de França, que, segundo a
direcção de informação da RTP, inspirou a metodologia da ERC. Sobre as razões das alterações, em
Julho do ano passado, da metodologia do CSA nada encontrámos que fizesse referência à alegada
limitação «à liberdade editorial dos jornalistas». O que no essencial esteve em causa foi um
ajustamento do modelo às especificidades do sistema político presidencial francês. Para o caso que
nos interessa, verifica-se, contudo, que o modelo de avaliação do pluralismo político do CSA é bem
mais flexível que o princípio definido pela ERC. De uma forma genérica, dir-se-ia que enquanto
este último define coberturas informativas e de programação mais ou menos equivalentes a
representação parlamentar, o sistema francês limita-se a definir que o tempo de intervenção das
personalidades políticas pertencendo à oposição parlamentar não pode ser inferior à metade do
tempo resultante da acumulação das intervenções das pessoas ligadas ao poder. No princípio
definido a 8 de Janeiro de 2000, e agora alterado (21 de Julho de 2009), dizia-se mesmo que tal
princípio deveria ser respeitado «salvo excepção justificada pela actualidade»2. O respeito destes
1
Segundo o entendimento do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, expresso na
deliberação 2/PLU-TV/2008, (Relatório intercalar de avaliação do pluralismo político-partidário na informação diária e
não diária do serviço público de televisão).
2
Veja-se, por exemplo, o Rapport Annuel 2008, nomeadamente na parte referente ao pluralismo político-partidário
(URL: http://www.csa.fr/rapport2008/donnees/rapport/III_suivi.htm#7).
princípios não obsta a que, no entanto, o CSA faça uma monitorização detalhada da cobertura
noticiosa dedicada a cada partido3.
Segundo a ERC, na ausência de uma cultura de avaliação sistemática da programação televisiva,
nomeadamente em matéria de pluralismo político da informação, procurou-se definir, desde 2006,
princípios que permitissem avaliar o pluralismo político-partidário. Isto é, de acordo com os seus
pressupostos, que fornecesse «um critério que se pudesse considerar objectivo, mas não puramente
aritmético ou mecânico; que fosse conhecido e transparente; que possibilitasse ao serviço público
de televisão uma gestão adequada da informação político-partidária e das actividades do Governo
sem o colocar num colete-de-forças (que iria ao arrepio ou até colidiria de frente com a sua
autonomia editorial e a própria actividade jornalística); que fugisse à análise casuística; e que
permitisse uma avaliação de desempenho, ela mesma sujeita a escrutínio público»4.
Os critérios de análise do pluralismo político-partidário são estabelecidos em função dos valores
de referência calculados a partir da representatividade obtida por cada partido político nas eleições
legislativas de 2005. Para evitar valores excessivamente elevados do governo e do(s) partido(s) da
maioria em detrimento de partidos com menor representatividade, a entidade reguladora optou por
atribuir valores de referência equitativos ao poder e à oposição.
Esta solução atribuiu um valor de referência de cinquenta por cento ao Governo e ao PS e os
restantes cinquenta por cento foram distribuídos pelo PSD (27,67%), CDU (7,25%), CDS/PP
(6,96%), BE (6,11%), cabendo aos partidos não representados na Assembleia da República dois por
cento, de acordo com os resultados eleitorais saídos das eleições legislativas de 2005.
Apesar de alguma contestação gerada em torno desta metodologia, no Relatório de 2008, Azeredo
Lopes, presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social,
considerava «gratificante verificar a forma como o modelo de avaliação português tem sido
acolhido» ao nível europeu, «ao ponto de o regulador italiano (AGCOM), um dos mais importantes
reguladores europeus do audiovisual», ter decidido também aplicá-lo5. Para Azeredo Lopes, é
errada a percepção de que o modelo de avaliação proposto pela ERC, está confinado a uma
concepção “pobre” de pluralismo. Como escreve:
«Na verdade, como sempre foi dito (e posto em prática), a avaliação do pluralismo político-partidário
versava apenas sobre uma das dimensões do pluralismo, não, evidentemente, sobre todas. E os dados
3
Conforme se pode ver em http://www.csa.fr/actualite/decisions/decisions_detail.php?id=128919 .
Entidade Reguladora Para a Comunicação Social, Pluralismo Político-Partidário na RTP em 2007 – Informação
diária e não diária, Lisboa, ERC, 2008, p. 8.
5
Azeredo LOPES, «Apresentação», in Pluralismo Político-Partidário na RTP em 2008 – Informação diária e não
diária, Lisboa, ERC, 2009. Disponível em http://www.erc.pt/documentos/RPP-1.pdf .
4
resultantes dessa avaliação podiam e deviam ser completados com aqueles que, em cada ano, constam do
Relatório de Regulação»6.
A ERC tem sido nesta matéria criticada pelos pressupostos em que assenta a própria ideia de
pluralismo político-partidário. A título de exemplo, Pedro Magalhães, conhecido investigador do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, questiona a forma como é aferido o
pluralismo político-partidário, quando afirma:
«E porquê as últimas eleições, e não a média de várias eleições? E por que não os resultados de
sondagens actuais? E se o que está em causa é a "expressão e o confronto das diversas correntes de
opinião", por que não dar peso igual a cada partido? E porquê pensar apenas nos partidos, e não em
associações, grupos de interesse, minorias étnicas e religiosas, orientações sexuais, géneros, idade ou outra
coisa qualquer susceptível de estar relacionada com diferentes preferências e opiniões? Espero que se
perceba que estas perguntas são retóricas e que não defendo qualquer um dos métodos anteriores. Elas têm
como mero objectivo demonstrar como o exercício é puramente arbitrário e como é simplista a
interpretação adoptada pela ERC do conceito de "pluralismo político"»7.
Mais à frente, Pedro Magalhães sugere que, não sendo fácil definir com rigor o que significa
pluralismo, rigor e imparcialidade da informação, «a transformação dos noticiários e da informação
não-diária em "tempos de antena" partidários impostos com critérios simplistas e arbitrários não é
certamente a resposta»8.
Para Pedro Magalhães esta solução poderá ter até efeitos negativos sobre a qualidade dos
conteúdos noticiosos, tornando-os anódinos e indiferenciados, acrescentando que «“equilíbrio" e
"neutralidade" não são a mesma coisa – e são certamente menos importantes – que rigor e
objectividade».
Por seu lado, Serra Pereira, responsável pelo gabinete jurídico do Sindicato dos Jornalistas,
alertou, a propósito da polémica em torno da aprovação do último Estatuto dos Jornalistas, para os
problemas decorrentes da domesticação dos profissionais da informação e a sua transformação em
pés de microfone, reduzidos a produtores de conteúdos acríticos9. Esta tendência foi claramente
sinalizada pelo estudo da Universidade do Minho sobre Os Media em Portugal nos Primeiros Cinco
6
Idem.
Pedro MAGALHÃES: «O pluralismo político-partidário, segundo a ERC», Público, 7 de Outubro, 2008, também
disponível em URL: http://outrasmargens.blogspot.com/2008/10/o-pluralismo-poltico-partidrio-segundo.html
8
Idem.
9
H. Serra PEREIRA, «O estatuto profissional do jornalista e a liberdade de informação», Conferência proferira no
Encontro sobre o Estatuto Jurídico do Jornalista, Universidade Lusófona, 9 de Maio de 2008, in URL:
www.jornalistas.online.pt/getfile.asp?tb=FICHEIROS&id=384 .
7
Anos do Século XXI, nomeadamente pelo trabalho de Joaquim Fidalgo, acerca das transformações
verificadas no plano profissional dos jornalistas.
A definição do pluralismo político-partidário, nos termos em que o faz a ERC, merece várias
críticas. Em primeiro lugar, parece iludir o facto de a natureza do espaço público, mesmo o
referente às questões político-partidárias, ser profundamente imprevisível e flexível e, por isso, não
pode nem deve ser encerrado em quotas ou em direitos adquiridos, à semelhança do que acontece,
por exemplo, no hemiciclo da Assembleia da República. Com efeito, não se pode confundir os
espaços próprios de discussão política, que resultam directamente da representação popular em
eleições, com o espaço dedicado ao debate e formação da opinião pública.
Em segundo lugar, encerrar a discussão político-partidária num sistema de quotas contém em si
perigos maiores de extravasamento para outros domínios da vida social, dada a transversalidade das
questões político-partidárias. Isso mesmo parece estar patente no Parecer da XII Comissão da
Assembleia da República, sobre o Relatório de Regulação e Relatório de Actividades e Contas da
ERC, relativos ao ano 2006, onde, no seu ponto 9, se refere explicitamente:
«Mas, do nosso ponto de vista, o pluralismo não pode ser avaliado, apenas, pelo que sucede na área da
informação. Bem mais pérfido e subliminar é o condicionamento que é feito através dos conteúdos ditos de
entretenimento. Daí que a ERC não deverá alhear-se do que se passa na comummente designada área da
programação televisiva e será de estimular o alargamento da monitorização de conteúdos também a este
domínio»10.
Este argumento parece-nos ser um sintoma dos perigos que decorrem da ideia de que tudo o que
na vida pode ser tocado pela política deve ser partidarizado e, por consequência, dentro desta
acepção, susceptível de ser submetido a um regime de representatividade por quotas.
Em terceiro lugar, não se vê que alguma redacção esteja em condições de compatibilizar os
critérios estatísticos da ERC com a conjuntura e as circunstâncias da própria vida político-partidária
(nomeadamente, as suas estratégias comunicativas públicas, as crises internas e de liderança, o
envolvimento de líderes políticos em escândalos públicos, etc.), de modo a conseguir reflectir de
uma forma que não seja casuística, as quotas definidas pelo regulador. Nem se crê que isso seja
desejável, uma vez que prejudicaria a própria dinâmica do espaço público político-partidário,
levando, eventualmente, a ouvir-se quem pouco ou nada tem a dizer sobre o assunto e encerrando os
10
Agostinho BRANQUINHO, Parecer – Relatório de Regulação e Relatório de Actividades e Contas da Entidade
Reguladora Para a Comunicação relativos ao ano de 2006, Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da
República, Dezembro de 2007, p. 41.
que surgem com novas ideias e novos protagonismos em limites estritos, sem lhes dar a
oportunidade para expor convenientemente ou defender os seus pontos de vista nos media.
Em quarto lugar, considera-se ainda que o modelo de avaliação proposto pela ERC é acrítico ao
próprio facto, constatado nos seus relatórios anuais, de os temas públicos políticos serem já
dominados, de forma avassaladora, pelos partidos e os governos, deixando um espaço marginal para
as fontes exteriores ao próprio campo político.
Finalmente, os critérios de avaliação do pluralismo político-partidário são completamente cegos
aos valores de noticiabilidade jornalística, iludindo a ideia de que a subjectividade destes últimos
pode ser ultrapassada com o recurso à objectividade estatística tendo por referência as quotas
eleitorais, onde as direcções de informação estão “obrigadas” a manter uma estrita contabilidade,
ausente de qualquer critério jornalístico.
O que se acaba de dizer, e que tem particular incidência nas questões da cobertura noticiosa, não
exclui que, em matéria de programação de conteúdos político-partidários – esses menos sujeitos às
vicissitudes e espontaneidade dos acontecimentos quotidianos – a representação política não deva
ser objecto de uma ponderação, sem que isso signifique necessariamente reduzir a sua expressão às
percentagens ditadas pela ERC, com base nos resultados eleitorais.
Considera-se, no entanto, que não se deve negligenciar os dados estatísticos dos estudos da ERC
bem como a sua função escrutinadora. Porém, os seus limites não permitem transformá-los numa
norma para se aferir sobre a independência do serviço público ou o cumprimento do pluralismo
político-partidário. Fazê-lo significa, em última instância, perverter os objectivos do regulador,
transformando os critérios da avaliação naquilo que ela não quer ser: «num colete-de-forças» que
poderia colidir de frente com a (…) autonomia editorial da [RTP] e a própria actividade jornalística.
Nesse contexto, não deixaria de ser aconselhável que a ERC integrasse na sua avaliação do
pluralismo político-partidário outros aspectos de análise mais qualitativos (integrando entrevistas a
jornalistas, a audição do Conselho de Redacção, intervenções do provedor, etc.), confrontando-os
com as conclusões do seu estudo, nomeadamente quanto à existência de condicionamentos
efectivos e autonomia dos jornalistas que impeçam uma informação de acordo com as exigências de
rigor, isenção e pluralismo do serviço público.
3.2. O parecer da ERC face ao Código Deontológico dos jornalistas
3.2.1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade.
Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção
entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.
Sobre a compatibilidade existente entre os pontos do Código Deontológico, evocados pela
direcção de informação da RTP, e o respeito pelas as recomendações da ERC considera-se que, a
propósito do seu ponto 1, nada impede que o jornalista – mesmo fazendo notícias com o objectivo
de preencher quotas de representatividade político-partidária, cumprindo a agenda que lhe foi
distribuída pelas hierarquias – não o faça no estrito respeito dos deveres deontológicos do
jornalismo. Outra questão é saber até que ponto o dever de o jornalista «relatar os factos com rigor e
exactidão e interpretá-los com honestidade» não se deverá também aplicar aos critérios de selecção
das notícias. Esta é de facto uma das matérias que frequentemente a discussão sobre a
“objectividade” dos jornalistas deixa de fora e que também o ponto 1 do Código Deontológico dos
jornalistas portugueses não responde.
No entanto, os critérios de selecção noticiosa talvez possam ser analisados, com mais propriedade,
no contexto das questões relacionadas com a liberdade, autonomia e responsabilidade dos
jornalistas no exercício da sua profissão, mais consentâneas com os pontos 3 e 5 do Código
Deontológico.
3.2.2. O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as
tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista
divulgar as ofensas a estes direitos.
Sobre a questão de se saber se, à luz do ponto 3 do Código Deontológico, os pareceres sobre o
incumprimento da televisão pública dos critérios definidos pela ERC sobre o pluralismo políticopartidário podem configurar uma tentativa do regulador de condicionar a liberdade de expressão dos
jornalistas, deve-se sublinhar que as recomendações do regulador não são vinculativas, pelo que não
deve ser entendida como uma restrição efectiva da liberdade de informação. Com isto não se
pretende iludir o carácter institucional e a repercussão que as críticas do regulador têm
publicamente, nomeadamente nos próprios partidos com representação na Assembleia da
República, levando-os inclusivamente a utilizar esses pareceres nas suas estratégias políticas. Este
contexto institucional e político justifica o facto de os jornalistas sentirem que estão perante «uma
tentativa» de condicionar a sua liberdade e autonomia profissional. No entanto, este aspecto não
deixa de se inserir no quadro da discussão pública e do jogo democrático dos quais os jornalistas
não estão arredados, devendo, sempre que necessário, participar neles criticamente, denunciando as
diferentes formas de condicionamento da sua liberdade e autonomia, como prevê o Código
Deontológico. Com efeito, os jornalistas não devem escudar-se em critérios profissionais para se
eximirem ao escrutínio público e ao dever de prestar contas sobre as suas opções noticiosas. A
prestação de contas públicas deve ser entendida como uma forma de levar mais longe o próprio
conceito de serviço público e de responsabilidade profissional.
3.2.3. O jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e actos
profissionais, assim como promover a pronta rectificação das informações que se revelem
inexactas ou falsas. O jornalista deve também recusar actos que violentem a sua consciência.
O ponto 5 do Código Deontológico consagra a responsabilidade dos jornalistas e a sua autonomia
profissional, concedendo-lhe o direito de recusar actos que violentem a sua consciência. A
responsabilidade e autonomia dos jornalistas previstas pelo Código Deontológico remetem-nos para
um conjunto de princípios que decorrem das liberdades internas atribuídas legal e
constitucionalmente pelo legislador aos profissionais da informação, como forma de limitar o poder
editorial detido pela entidade proprietária de comunicação social. Segundo Serra Pereira, são disso
expressão o reconhecimento da liberdade de criação e expressão dos jornalistas, com a consequente
responsabilidade individual e colectiva de garantir uma informação plural, verdadeira e socialmente
relevante; do direito de intervenção na orientação editorial dos respectivos órgãos de informação,
salvo se estes tiverem natureza doutrinária ou confessional; do direito de elegerem conselhos de
redacção; da garantia de independência; do direito ao sigilo profissional; e do direito de acesso às
fontes de informação11.
À luz destes princípios, considera-se que os critérios definidos pela ERC para a determinação do
pluralismo político-partidário implicam uma verdadeira limitação da responsabilidade e autonomia
profissional dos jornalistas, impondo-lhes critérios que são, efectivamente, estranhos à profissão.
De resto, não se percebe como a ERC consegue compatibilizar os pressupostos da sua avaliação
com o conteúdo de outras deliberações como a 1-I/2006 onde se refere explicitamente:
«O escrutínio público e participado, essencial a uma ordem democrática, e a cargo da liberdade de
expressão e de informação (art.º 37.º, CRP) e da liberdade de imprensa (art.º 38.º, CRP), requer que os
órgãos de comunicação social e os jornalistas prossigam a sua actividade sem constrangimentos de
qualquer espécie ou fundamento, a não ser aqueles que resultem de certos limites legais.
A matéria da independência, garantia das liberdades de comunicação, é, nessa medida, uma questão
essencial, mas delicada. Só um jornalismo livre, pluralista e exercido de forma autónoma e isenta contribui
para a construção de uma sociedade democrática e para o respeito e cumprimento do direito dos cidadãos à
informação. Um jornalismo na dependência de interesses, políticos ou económicos, resulta na eliminação
11
H. Serra PEREIRA, «O estatuto profissional do jornalista e a liberdade de informação», op. cit.
do pluralismo cultural, na ausência de possibilidade de expressão e confronto das várias correntes de
pensamento e na anulação da autonomia individual no processo de formação de opiniões e ideias»12.
Porém, os jornalistas, em particular os do serviço público, devem ser os primeiros a reconhecer
que a autonomia, a responsabilidade e o profissionalismo na selecção e tratamento dos
acontecimentos noticiosos são princípios que encerram uma grande margem de subjectividade,
relativamente, por exemplo, ao que acontece em profissões como a medicina e a advocacia.
Os jornalistas não devem escudar-se na autonomia como estratégia retórica para fechar o
exercício do jornalismo à crítica e ao escrutínio público. No caso em análise, uma vez que os
objectivos de assegurar o pluralismo e o rigor da informação são objectivos que devem ser
prosseguidos e são desejados quer pelo regulador quer pela auto-regulação, considera-se que a
ERC, a direcção de informação bem como os jornalistas, através dos seus organismos
representativos, deveriam acordar entre si critérios que permitissem aferir com maior rigor a
avaliação do pluralismo político-partidário.
3.2.4. O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça,
credos, nacionalidade ou sexo.
A invocação do ponto 8 só é possível a partir de um entendimento amplo do conceito de credos,
não restritos à sua acepção religiosa, mas integrando as convicções ideológicas e políticopartidárias. Nesse sentido, José Alberto de Carvalho, ao invocar este ponto, parece questionar se a
definição de quotas para a cobertura jornalística de acontecimentos de cariz político-partidário não
representará uma discriminação negativa de outras correntes de opinião política que, por não terem
uma representação na Assembleia da República ou são silenciadas ou têm de ficar subjugadas aos
estritos limites das quotas da ERC. Este aspecto demonstra bem a razão das principais questões que
temos vindo a discutir até aqui. Em primeiro lugar, porque as quotas questionam a legitimidade de
se silenciar ou se encerrar as vozes minoritárias em limites previamente definidos e, eventualmente,
reduzindo-lhes a possibilidade de exposição das suas ideias no espaço público. Em segundo lugar,
porque, a julgar pelos relatórios da avaliação, os critérios jornalísticos remetem as expressões
político-partidárias não representadas no Parlamento para percentagens ainda inferiores àquelas que
lhes são atribuídas pelo regulador. Neste caso, poder-se-á dizer, as minorias não encontram
alternativa nem nos mecanismos de auto-regulação, nem tão-pouco nos ditames da regulação.
12
Deliberação 1-I/2006, sobre «A independência da RTP perante o poder político à luz do artigo de Eduardo Cintra
Torres, “Como se faz censura em Portugal” e das acusações de ingerência do Governo proferidas pelo Deputado
Agostinho Branquinho» p. 111.
4. Conclusões
1. O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas considera que o caso da avaliação do
pluralismo político-partidário ilustra bem os perigos que podem resultar da confusão entre
metodologias científicas e questões normativas, de natureza essencialmente política.
2. Por muito que a Entidade Reguladora da Comunicação Social se esforce em salientar o carácter
objectivo, público e transparente da avaliação, não tem como fugir aos critérios questionáveis sobre
os quais funda a ideia de pluralismo político-partidário, assente que está, grosso modo, na própria
ideia
de
representatividade
parlamentar,
aprofundando
ainda
mais
as
tendências
de
institucionalização da vida pública e burocratização do jornalismo contemporâneo.
3. Para além disso, o Conselho Deontológico reconhece ser dificilmente praticável uma cobertura
jornalística dos acontecimentos político-partidários com base em quotas definidas previamente pela
ERC para cada um dos partidos, sem perverter a autonomia e responsabilidade dos jornalistas na
selecção e tratamento da informação.
4. Os jornalistas têm o direito e, em alguns casos, o dever, de desobediência sempre que, em nome
das quotas, se vejam obrigados a «dar tempos de antena» ou inventar acontecimentos com vista a
respeitar regras de noticiabilidade, com base em critérios políticos, exteriores ao jornalismo.
5. Situações como as referidas no ponto anterior configuram uma intromissão nos critérios
profissionais de selecção, tratamento e divulgação da informação político-partidária, na autonomia
das redacções, configurando mesmo uma fraude do serviço prestado ao público.
6. A monitorização da ERC deve ser entendida na sua dimensão de análise e escrutínio da
cobertura noticiosa do serviço público, mas não pode transformar-se num valor normativo para a
cobertura informativa dos acontecimentos político-partidários.
7. A autonomia e responsabilidade dos jornalistas não deve eximi-los da prestação de contas sobre
a sua actividade, nomeadamente sobre os critérios de selecção e tratamento da informação. No caso
em apreço, sugere-se que a ERC, na sua avaliação do pluralismo político-partidário integre os
próprios critérios de noticiabilidade jornalística, procurando, nomeadamente, ouvir a direcção de
informação e os órgãos representativos dos jornalistas da RTP.
8. O Conselho Deontológico decidiu considerar que o cumprimento dos critérios de pluralismo
político-partidário, levanta problemas quanto aos pontos 3, 5 e 8 do Código Deontológico e são
contrários aos objectivos da própria monitorização enunciados pela ERC, embora eles nem sempre
encontrassem melhor solução em sede de auto-regulação dos jornalistas.
Relator: Carlos Camponez
Aprovado por unanimidade
Lisboa, 31 de Dezembro de 2009
Pelo Conselho Deontológico
do Sindicato dos Jornalistas
J. Carlos Camponez
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José Alberto Carvalho escreve que a Direcção de Informação não