Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 O ABUSO SEXUAL E A CRIANÇA: O CASO JOÃO E MARIA Paula Wernecke Ribeiro Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira Universidade Presbiteriana Mackenzie Resumo: O abuso sexual infantil é uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução. É freqüentemente praticado sem o uso da força física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta a sua comprovação. O abuso pode variar de atos que envolvem o contato sexual, com ou sem penetração, até exibicionismo e voyeurismo. Ele se mantém com a cumplicidade silenciosa dos envolvidos: o silêncio da vítima, cuja palavra é confiscada pelo agressor através de ameaças, o silêncio dos parentes não agressores que fecham os olhos e se omitem de qualquer atitude de proteção à vítima ou denúncia do agressor. É um problema que envolve questões legais de proteção à criança e punição do agressor e terapêuticas de atenção à saúde física e mental da criança, tendo em vista as conseqüências psicológicas decorrentes da situação de abuso. Este artigo trata de relato de experiência de um atendimento, em Plantão Psicológico, de uma criança de nove anos, vítima de abuso sexual intrafamiliar, encaminhada para uma Delegacia de Defesa da Mulher após denúncia de suspeita de abuso feita através da escola onde a criança estuda. O acusado é o padrasto da criança. A criança foi ouvida na escola, o conselho tutelar foi acionado após a identificação do abuso, a criança foi abrigada provisoriamente. Palavras-chave: psicológico. violência; abuso sexual infantil; plantão Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira THE SEXUAL ABUSE AND THE CHILD: THE CASE JOÃO AND MARIA Abstract: The infantile sexual abuse is a form of violence that involves to able, coercion and/or seduction. Frequently it is practised without the use of the physical force and it does not leave visible marks, what it makes it difficult its evidence. The abuse can vary of acts that involve the sexual contact, with or without penetration, unt il exhibitionism and voyeurism. It remains itself with the quiet complicity of the involved ones: the silence of the victim, whose word is confiscated by the aggressor through threats, the silence of the not aggressive relatives that close the eyes and if omit of any attitude of protection of the victim or denunciation of the aggressor. It is a problem that involves legal questions of protection to the child and therapeutic punishment of the aggressor and of attention to the physical and mental health of the child, in view of the psychological consequences of the abuse situation. This article deals with experience story of an attendance, in Psychological on duty, to a child of nine years, victim of intrafamiliar sexual abuse, directed for a Police Station of Defense of the Woman, after denounces of suspicion of abuse made through the school where the child studies. The defendant is stepfather of the child. The child was heard by the school, the tutor advice was called after the identification of the abuse, the child was sent to a provisory shelter. Keywords: violence; infantile sexual abuse; psychological on duty. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 20 O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria Introdução O abuso sexual infantil é uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução: A Organização Mundial de Saúde (OMS) descreve a violência sexual como envolvendo maus-tratos e, no caso de crianças, implicando que ela seja vítima de uma pessoa ma is velha com a finalidade de satisfação sexual. Implica a noção de poder ou de argúcia embutidos no abuso da confiança e da lealdade, o que denota uma intenção e premeditação do (s) agressor (es) e também a vontade do adulto que sobrepuja a da criança, estabelecendo uma relação de poder, por meio da sutileza da ação coercitiva. O agressor normalmente tenta aproximar-se da criança pela sedução, com o objetivo de conquistar-lhe a confiança, envolvendo-a em uma relação muito próxima e erotizada com o intuito de concretizar o contato genital. As ameaças estão presentes, somando forças à sedução, a fim de subjugar a vítima” (AMENDOLA, 2004, p.111-2). O abuso sexual é freqüentemente praticado sem o uso da força física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta a sua comprovação. É um problema que envolve questões legais de proteção à criança e punição do agressor e terapêuticas de atenção à saúde física e mental da criança, tendo em vista as conseqüências psicológicas decorrentes da situação de abuso. Este artigo trata de relato de experiência de um atendimento, em Plantão Psicológico, a uma criança de nove anos, vítima de abuso sexual intrafamiliar, encaminhada para uma Delegacia de Defesa da Mulher, localizada na zona leste da cidade de São Paulo, após denúncia de suspeita de abuso feita por meio da escola em que a criança estuda. O acusado é padrasto da criança, o que configura este caso como equivalente ao de incesto, já que para a psicanálise o importante não é a relação biológica da filiação, mas seu laço simbólico. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 21 Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira Discussão Maria1 tem nove anos, é filha de um caso amoroso que a mãe teve no passado. Maria não conhece e nem sabe quem é seu pai. Sua mãe, que chamarei de Ana, vive maritalmente com João há cerca de oito anos. Dessa relação nasceram dois filhos, irmãos de Maria. A menina chama João de pai, é o único pai que conheceu e que a criou desde pequena. A casa onde moram é própria, de João. Ele é o único que sustenta a família financeiramente, pois Ana parou de trabalhar para cuidar das crianças a pedido dele. Certo dia, na escola onde Maria estuda, a coordenadora pedagógica notou que ela estava com um cheiro forte de esperma e que na roupa dela havia manchas brancas; não comentou nada com a criança, mas chamou a mãe para conversar e tentar esclarecer o que estaria acontecendo. A mãe foi à escola, a coordenadora disse o que havia percebido e pediu para que a mãe tomasse providências, caso contrrário iria ao conselho tutelar. Diante do fato, Ana chorou, disse que o padrasto “usara a filha ” (SIC) e que ingeria álcool e tomava medicamentos controlados. Na mesma data a mãe disse que pegou o padrasto sem roupa, esperando Maria chegar. Disse ainda à coordenadora que não teve coragem de denunciá-lo, pois tinha muito medo dele a matar ou a seus filhos, pois ele “é muito violento e já me agrediu algumas vezes, geralmente quando esta bêbado, e também eu não teria aonde morar com as crianças”(SIC). Maria estava decaindo nos estudos, apresentava falta de atenção, não tinha vontade de fazer as atividades, ficava muito sozinha, isolada dos colegas, o que incentivou mais ainda que a coordenadora chamasse Maria para conversar. Em função do relato de Maria e a falta de atitude da mãe em denunciar os fatos, a escola procurou a Delegacia da Mulher. 1 Todos os nomes foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 22 O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria A pedido da delegada titular, fui até a escola onde Maria se encontrava, fomos para uma sala e comecei a conversar com ela, primeiro sobre outras coisas como o que ela mais gostava de fazer, se ela gostava da escola, com o objetivo de quebrar o gelo e formar algum vínculo. Maria perguntou-me algumas vezes se eu trabalhava na escola e porque eu estava lá; respondi a ela que não trabalhava na escola, mas que estava lá para tentar ajudá-la se ela deixasse e quisesse. Perguntei o que ela mais gostava de fazer, e contou-me que era desenhar, então, entreguei a ela papel sul fite e lápis de cor e solicitei um desenho livre para que ela pudesse se expressar como quisesse. Em seu desenho havia ela própria, sua irmã, seu irmão e sua mãe, atentei para o detalhe da mãe estar desenhada com os olhos pintados de preto, como se estivessem fechados, não vendo o que estava acontecendo com sua filha. O pai não apareceu no desenho. Enquanto Maria pintava o desenho, íamos conversando até que chegamos ao seu relacionamento com seu padrasto que ela chama de pai. Maria contou que lembra que a primeira vez que ele mexeu com ela, aos quatro anos: “ele tirava minha roupa e esfregava o pingolin dele na minha bunda e na prexeca, até sair um liquido branco fedido do pingolin dele” (SIC). João aproveitava quando a mãe saia ou quando estava dormindo, então ia até o quarto de Maria, ficava “se esfregando nela” (SIC), sem penetrações e quando acabava de ejacular, limpava a ela e a si mesmo com um lençol e saia de perto dela. Depois de algum tempo fazendo isso, João começou a “subir em cima dela” (SIC), mas Maria relata que acha que ele nunca colocou “lá dentro” (SIC), porque doía muito quando ele tentava e ele parava, dizendo que quando ela crescesse só iria poder namorar com ele. Depois a ameaçava dizendo que se contasse algo para mãe iria bater nela até matar e depois mataria a mãe. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 23 Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira Maria diz que não sabe quantas vezes aconteceu isso, porque “perdeu a conta” (SIC). Relata também, que há mais de um ano a mãe viu João sobre ela no beliche e brigou com a menina: “falou que não era para eu ficar me exibindo para ele... aí eu chorei” (SIC). Algumas vezes gritou para a mãe ouvir e falar para ele parar, mas Maria diz que acha que ela não ouvia porque tem o sono profundo e “nunca acordou quando chamei” (SIC). Diz: “Nunca cont ei para mais ninguém, porque ele dizia que ninguém ia acreditar em mim e se acreditassem me matava a paulada” (SIC). Maria contava que o padrasto já havia batido nela diversas vezes e, nesta hora, levantou-se da cadeira e mostrou algumas marcas, cicatrizes e hematomas recentes. Maria havia acabado o desenho, ficou quieta por alguns instantes, e antes que eu falasse algo, ela disse: “Sabe, tudo que estou te contando é verdade!” (SIC). Falei que acreditava nela e em tudo que estava contando e reforcei que estava ali para tentar ajudála, então ela continuou: “É, mas minha mãe viu e não acreditou e ainda brigou comigo, mas um dia vou ser polícia e aí eu vou matar todos os homens do mundo, menos meu irmãozinho (...) Ontem mesmo, ele foi no meu quarto, passou a mão no meu corpo e na minha bunda. Contei para minha mãe, ela disse que ia denunciar, mas não fez. Ela também tem medo dele, mas agora acho que ela vai me mandar para casa da minha avó” (SIC). Perguntei a ela o que ela sente pelo padrasto e ela respondeu rapidamente: “Eu odeio ele, queria que ele fosse preso ou que morresse” (SIC). Diante das afirmações de Maria perguntei a ela se ela gostaria de denunciar o pai e ela disse que sim, mas que é criança e não pode fazê-lo sem a mãe. Expliquei a ela que poderia sim, se quisesse e que a partir de então, a polícia poderia impedir que acontecesse isso de novo e não deixaria que o padrasto cumprisse suas ameaças. Expliquei que na delegacia iriam acreditar nela, desde que ela sempre Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 24 O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria contasse a verdade. Maria disse que tinha medo de ir a polícia. Afirmei que as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) possuem um atendimento diferente das outras delegacias. Reiterei que acreditava em tudo que ela dizia e que outras pessoas também iriam acreditar e tentar ajudá-la, que bastava ela querer. Mesmo assim, Maria alegou que tinha medo. Perguntei-lhe que se eu fosse junto até a delegacia se ela iria, Maria concordou, fomos até a delegacia, com a coordenadora e a diretora da escola como representantes legais da menina. Ao chegarmos à DDM, ficou encantada com a quantidade de brinquedos que havia em minha sala (no plantão psicológico da delegacia, existem vários brinquedos na sala da psicologia, para os atendimentos). Maria disse que não tinha brinquedos, só um ursinho que “já está bem velhinho” (SIC). Mostrei a ela algumas bonecas e disse que poderia escolher uma para brincar, ela escolheu uma que a delegacia deu a ela de presente. Maria deu a boneca o nome de Renatinha. Após o registro da ocorrência, Maria foi levada ao Hospital Pérola Byngton, para exame de corpo delito. Acionamos o Conselho Tutelar que encaminhou a menina a um abrigo, até o encerramento e conclusão do inquérito. Ainda não sabemos se o juiz dará à mãe a guarda da menina novamente, devido à sua negligência; por algum tempo, Maria permanecerá no abrigo. Alguns dias depois, Maria voltou à delegacia para ser ouvida no Inquérito Policial. Passou em minha sala e disse: “você cumpriu o que prometeu, eu não apanhei e ainda brinquei a noite toda, consegui até dormir direito” (SIC). (Maria havia me dito que tinha pesadelos com o padrasto). Veio carregando sua boneca e disse que dali em diante, tudo que ela fizesse, perguntaria à Renatinha: “A Renatinha tá com sono hoje, ontem ela estava brava, mas brinquei bastante com ela e ela ficou bem calminha, ela come junto comigo, sabia?” (SIC). Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 25 Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira Maria, naquele dia, não perguntou sobre a mãe nem a mim, nem aos outros funcionários da delegacia. Disse ainda que o lugar em que ela estava é bem legal, bem mais legal que na sua casa: “lá tem TV, posso brincar bastante, tenho que estudar também, mas isso é bom pra mim, né? E lá todo mundo é muito legal comigo e tenho uma cama só para mim e durmo até de manhã, eu e a Renatinha” (SIC). Foi decretada a prisão temporária de João e em seguida a preventiva; ficou preso durante algumas semanas e depois veio a falecer na prisão. O papel do Estagiário de Psicologia Jurídica na Delegacia da Mulher é o Plantão Psicológico, voltado, num primeiro momento, para um “acolhimento” da situação emergencial, para depois, fazer os encaminhamentos necessários. Quando existem casos como este, que envolve uma criança, a Delegacia imediatamente entrará em contato com o Conselho Tutelar, e este, por sua vez, fará um acompanhamento. Infelizmente não pudemos continuar o atendimento de Maria na Delegacia, porque nesse local o estagiário apenas realiza plantão psicológico, com três ou quatro sessões no máximo, e acredito que isso é delicado para a própria criança, pois ela estabelece um vínculo inicial, que logo tem que ser quebrado. Maria está tendo acompanhamento psicológico no abrigo onde está. Meu vínculo com Maria aconteceu rapidamente, ela confiou em mim, o que não era esperado, pela própria dificuldade que a criança viveu em sua família. Apesar do contato restrito com a criança, é possível ao estagiário refletir sobre os dados, no sentido de compreender as vivências da criança. Acredito que consegui um bom vínculo com Maria, o que facilitou a nossa relação e fez com que ela contasse tudo o que aconteceu. Ela passou muitos anos sem contar a ninguém o que ocorria, pois o padrasto a ameaçava na tentativa de mantê-la sob seu domínio em silêncio. Segundo Sá e Nogueira (2001), o Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 26 O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria abusador tem a intenção de atingir um contato sexualizado com a criança a partir de uma relação de sedução, intimidade e imposição, sendo o abuso sexual um problema de abuso psicológico e de poder, assim como João fazia com Maria, impondo a ela que usasse seus genitais muito antes da maturação biológica e psíquica. “A criança sofre estimulações impostas para gerar prazer ao outro, havendo intensa tensão e excitação que seu próprio corpo e psiquismo não encontram maturidade para integrar e descarregar” (SÁ; NOGUEIRA, 2001, p. 55). João mantinha situações de abuso com Maria, coagindo-a, ameaçando-a e seduzindo-a. Disse que quando Maria crescesse poderia namorar somente com ele e com mais ninguém e que fazia isso com ela, “porque ela não era filha de verdade, lhe dizia que com as irmãs dela nunca faria nada porque eram filhas legítimas, mas ela não, podendo ser sua namorada” (SIC). A mãe sabia que isto estava acontecendo, certa vez pegou o padrasto sem roupa em cima da menina no beliche. A mãe gritou e pediu para ele sair, mas nada foi feito a respeito e na manhã seguinte era como se não tivesse acontecido nada. A mãe se esquivava da situação. Afirmava ter medo dele, segundo relatou em seu inquérito, medo de não ter para onde ir com seus filhos, não denunciou João, nem tomou nenhuma providência para ajudar a filha, nem ao menos chegou a conversar com Maria a respeito do que poderia estar acontecendo. Em seu relato, a mãe de Maria disse que o padrasto “usava Maria”. A mãe ao se calar foi negligente com a situação de Maria, contribuindo para perpetuar a situação abusiva. As mães mantêm uma relação silenciosa e de cumplicidade com seus parceiros, sustentando um comportamento de conivência ou omissão diante do acontecimento. De acordo com Goldfeder (2001), geralmente estas mães também foram abusadas na infância, mas neste caso não posso afirmar isto, por não conhecer o histórico da mãe. Como Ana não Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 27 Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira tomou nenhuma atitude, a menina sentia-se cada vez mais sozinha e acuada. E não denunciava, segundo ela, porque achava que não podia por ser criança, quando expliquei que ela poderia acabar com esta situação denunciando (já havia um pequeno vinculo de confiança entre nós duas), ela resolveu denunciar. A criança recua em suas palavras de denúncia se não se vê apoiada emocionalmente pelo adulto e isso pode se passar do mesmo modo pelas causas que a fizeram manter o segredo (GABEL, 1997). Além disso, o medo e a desconfiança eram maiores, porque nem ao menos sua mãe que seria a figura de apoio, confiança e referência agiu em seu favor. Maria percebia isso e expressou em seu desenho: desenhou a mãe com os olhos pintados de preto. A mãe ao fechar os olhos para o que estava acontecendo, aumentou o sofrimento da menina e, com isso, diminui as possibilidades dela sair desta situação. A confiança, o amor e o vínculo com um adulto permitem a ela encontrar forças para lidar com as situações difíceis. Como Ana não fez nada e certa vez até brigou com Maria, dizendo que ficava exibindo-se para João, Maria sentia-se cada vez mais culpada, achando que realmente ela é que estava errada e não o padrasto. Somente quando se sentiu apoiada emocionalmente pela professora, pela escola e pelo atendimento comigo, é que resolveu, enfim, denunciá-lo e poder ser acolhida como vítima e não culpada pela situação. Segundo Prado (2004), a criança recua em suas palavras de denúncia se não se vê apoiada emocionalmente, pois sofreu intensas ameaças empregadas pelo abusador na tentativa de mantê-la sob o domínio do silêncio. Maria passou por uma situação de comoção. A relação sexual antes do tempo pode causar danos psicológicos, pois biológica e psicologicamente ela não está preparada para integrar as experiências genitais, abrindo o caminho para a constituição de um trauma. Resta à criança responder esta demanda com intenso sofrimento psíquico que pode envolver importantes conseqüências ao Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 28 O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria longo do curso de seu desenvolvimento (GABEL, 1997). Algumas vezes, os pais utilizam o poder que lhes conferem esses papéis para fins de dominação e exploração, para satisfazer seus desejos pessoais. Tais atos são acompanhados de cenas de sedução e carinho que mascaram a violência e o abuso. Estes comportamentos deixavam Maria confusa entre papéis e funções, ela oscila entre calar ou denunciar os atos praticados por alguém que deveria lhe proporcionar cuidado e proteção. E, neste caso, não pode ter o cuidado e proteção nem do padrasto, nem da mãe. O padrasto abusador impõe o seu desejo e trai a confiança de Maria, que sempre o considerou como pai, aproveita-se da sua vulnerabilidade e imaturidade. Garante o silêncio da menina muitas vezes, com promessas, sedução, ou mesmo ameaças e se beneficia da “cegueira da mãe”. Também se impõe medo a sua esposa, ameaçando-a caso o denunciasse. Podemos dizer que Maria viveu uma situação potencialmente traumática e conflituosa, onde se misturam sentimentos de medo, raiva, prazer, culpa e desamparo. A criança, neste caso, pode sentir raiva da mãe por não protegê-la e ter medo de contar o que acontece pelo receio de que não acreditem nela ou a considerem culpada (como a mãe afirmou em seu inquérito). A mãe também vive uma situação de muita confusão e ambigüidade. No início nega os indícios, recusa-se a aceitar a realidade do ato do marido, depois diz que achava que ele “usava a filha” (SIC). Apresenta sentimentos de rivalidade e hostilidade com relação à filha, culpando-a pela sedução (certa vez, deu uma bronca na menina, dizendo para que não ficasse se exibindo para o pai). Esta reação da mãe pode ser uma possível forma de suportar o impacto da violência e da frustração diante da ameaça de destruir a família, pois levar adiante a denúncia, exigir a punição do marido, esbarra em fatores econômicos e sociais. Principalmente neste caso, em que o abusador é o único que sustenta financeiramente a família. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 29 Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira No inquérito, Ana cita, entre outros argumentos, que não denunciou, pois não teria para onde ir, onde morar, com seus outros filhos, embora também fale que queria “pegar no flagra” (SIC). Maria relutou em denunciar o padrasto, pois se sentia ao mesmo tempo culpada e ameaçada, correndo o risco de ser desacreditada, insultada, punida ou acusada de destruir a família. A “cegueira” e o desmentido materno (o fingir que nada aconteceu) são agravantes com relação às conseqüências psicológicas para a criança que sofre o abuso. Maria conseguiu ficar livre da situação de abuso e começar a tentar ser criança, brincar e estudar, mas a situação traumática foi velada por muitos anos permanece, resta agora dar assistência para que ela possa elaborar esta situação da melhor forma possível. Conclusão Assim como aconteceu com Maria, muitas crianças são vítimas de abuso por muito tempo e muitas delas crescem sem conseguir revelar ou cessar esta situação. Com freqüência, os casos de abuso sexual, envolvem situações-limite que implicam em risco elevado às integridades física e psíquica da criança. O abuso sexual, quando descobert o, exige obrigatoriamente uma intervenção em dois diferentes âmbitos sociais: o legal e o da saúde, que devem acontecer concomitantemente e em constante interação. Assim, a equipe que estiver envolvida com a assistência à saúde deve criar instrumentos de comunicação que garantam a segurança da criança. Se o profissional que está envolvido no caso assumir uma postura de julgamento frente ao paciente, pode estar impedindo que se instaure um vínculo de confiança necessário para o tratamento. Além do que, se não puder abster-se de seus valores e preconceitos, estará impedido de perceber as particularidades de cada caso. Acredito que o governo deveria propor medidas profiláticas nas escolas, pois muitas vezes, o professor é quem tem mais contato com Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 30 O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria a criança e percebe mudanças em seu comportamento quando algo não está bem. Nos casos em que a escola percebe algum aluno em situação de risco, a equipe deveria criar estratégias para incentivar a busca de uma ajuda legal. Mas essa é uma atitude delicada, que poderá ser ineficiente legalmente, de início, pois a família poderá negar as acusações. Contudo, continuar o tratamento com um acompanhamento jurídico, em situações de alto risco pode ser eficiente, pelo menos, para evitar que a situação de violência se repita. O tratamento adequado pode reduzir o risco de a criança desenvolver sérios problemas no futuro, mas acredito que a prevenção ainda continua sendo a melhor atitude. O abuso sexual em crianças é um fato real em nossa sociedade e é mais comum do que muita gente pensa e, por ser um problema legal e terapêutico, requer, por parte de todos os profissionais envolvidos, o conhecimento dos aspectos psicológicos, criminais e de proteção à criança. Referências Bibliográficas GABEL, M. Crianças Vítimas de abuso sexual. Summus, 1997. São Paulo: GOLDFEDER, M. F. F. A Relação esquecida: A mãe nos bastidores do abuso sexual entre pai e filha. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n. 138, p. 16-23, abr. 2001. PRADO, M. do C. C. de A. (org). O Mosaico da Violência, A Perversão Na Vida Cotidiana. São Paulo: Vetor, 2004. SÁ, M. L. B. P.; NOGUEIRA, S. E. Atendimento Psicológico a crianças vítimas de abuso sexual: alguns impasses e desafios. Catálogo de publicações da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ, Rio de Janeiro, 2001. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 31 Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira Contato Paula Wernecke Ribeiro 10o.L Av. Diógenes Ribeiro de Lima, 2000, bl 3 apto 12 Alto de Pinheiros São Paulo-SP E-mail: [email protected] Tramitação Recebido em: maio de 2006 Aceito em: agosto de 2006 Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32 32