Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2005, 6(1): 19-32
O ABUSO SEXUAL E A CRIANÇA: O CASO JOÃO E MARIA
Paula Wernecke Ribeiro
Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Resumo: O abuso sexual infantil é uma forma de violência que
envolve poder, coação e/ou sedução. É freqüentemente praticado
sem o uso da força física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta a
sua comprovação. O abuso pode variar de atos que envolvem o
contato sexual, com ou sem penetração, até exibicionismo e
voyeurismo. Ele se mantém com a cumplicidade silenciosa dos
envolvidos: o silêncio da vítima, cuja palavra é confiscada pelo
agressor através de ameaças, o silêncio dos parentes não agressores
que fecham os olhos e se omitem de qualquer atitude de proteção à
vítima ou denúncia do agressor. É um problema que envolve
questões legais de proteção à criança e punição do agressor e
terapêuticas de atenção à saúde física e mental da criança, tendo em
vista as conseqüências psicológicas decorrentes da situação de
abuso. Este artigo trata de relato de experiência de um atendimento,
em Plantão Psicológico, de uma criança de nove anos, vítima de
abuso sexual intrafamiliar, encaminhada para uma Delegacia de
Defesa da Mulher após denúncia de suspeita de abuso feita através
da escola onde a criança estuda. O acusado é o padrasto da criança.
A criança foi ouvida na escola, o conselho tutelar foi acionado após a
identificação do abuso, a criança foi abrigada provisoriamente.
Palavras-chave:
psicológico.
violência;
abuso
sexual
infantil;
plantão
Paula Wernecke Ribeiro , Profa. Dra. Vânia Conselheiro Sequeira
THE SEXUAL ABUSE AND THE CHILD:
THE CASE JOÃO AND MARIA
Abstract: The infantile sexual abuse is a form of violence that
involves to able, coercion and/or seduction. Frequently it is practised
without the use of the physical force and it does not leave visible
marks, what it makes it difficult its evidence. The abuse can vary of
acts that involve the sexual contact, with or without penetration, unt il
exhibitionism and voyeurism.
It remains itself with the quiet
complicity of the involved ones: the silence of the victim, whose word
is confiscated by the aggressor through threats, the silence of the not
aggressive relatives that close the eyes and if omit of any attitude of
protection of the victim or denunciation of the aggressor.
It is a
problem that involves legal questions of protection to the child and
therapeutic punishment of the aggressor and of attention to the
physical and mental health of the child, in view of the psychological
consequences
of
the
abuse
situation. This
article
deals
with
experience story of an attendance, in Psychological on duty, to a child
of nine years, victim of intrafamiliar sexual abuse, directed for a
Police Station of Defense of the Woman, after denounces of suspicion
of abuse made through the school where the child studies.
The
defendant is stepfather of the child. The child was heard by the
school, the tutor advice was called after the identification of the
abuse, the child was sent to a provisory shelter.
Keywords: violence; infantile sexual abuse; psychological on duty.
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O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria
Introdução
O abuso sexual infantil é uma forma de violência que envolve
poder, coação e/ou sedução:
A Organização Mundial de Saúde (OMS) descreve a violência
sexual como envolvendo maus-tratos e, no caso de crianças,
implicando que ela seja vítima de uma pessoa ma is velha
com a finalidade de satisfação sexual. Implica a noção de
poder ou de argúcia embutidos no abuso da confiança e da
lealdade, o que denota uma intenção e premeditação do (s)
agressor (es) e também a vontade do adulto que sobrepuja
a da criança, estabelecendo uma relação de poder, por meio
da sutileza da ação coercitiva. O agressor normalmente
tenta aproximar-se da criança pela sedução, com o objetivo
de conquistar-lhe a confiança, envolvendo-a em uma relação
muito próxima e erotizada com o intuito de concretizar o
contato genital. As ameaças estão presentes, somando
forças à sedução, a fim de subjugar a vítima” (AMENDOLA,
2004, p.111-2).
O abuso sexual é freqüentemente praticado sem o uso da força
física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta a sua comprovação.
É um problema que envolve questões legais de proteção à criança e
punição do agressor e terapêuticas de atenção à saúde física e
mental da criança, tendo em vista as conseqüências psicológicas
decorrentes da situação de abuso.
Este artigo trata de relato de experiência de um atendimento,
em Plantão Psicológico, a uma criança de nove anos, vítima de abuso
sexual intrafamiliar, encaminhada para uma Delegacia de Defesa da
Mulher, localizada na zona leste da cidade de São Paulo, após
denúncia de suspeita de abuso feita por meio da escola em que a
criança estuda. O acusado é padrasto da criança, o que configura
este caso como equivalente ao de incesto, já que para a psicanálise o
importante não é a relação biológica da filiação, mas seu laço
simbólico.
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Discussão
Maria1 tem nove anos, é filha de um caso amoroso que a mãe
teve no passado. Maria não conhece e nem sabe quem é seu pai. Sua
mãe, que chamarei de Ana, vive maritalmente com João há cerca de
oito anos. Dessa relação nasceram dois filhos, irmãos de Maria. A
menina chama João de pai, é o único pai que conheceu e que a criou
desde pequena. A casa onde moram é própria, de João. Ele é o único
que sustenta a família financeiramente, pois Ana parou de trabalhar
para cuidar das crianças a pedido dele.
Certo dia, na escola onde Maria estuda, a coordenadora
pedagógica notou que ela estava com um cheiro forte de esperma e
que na roupa dela havia manchas brancas; não comentou nada com
a criança, mas chamou a mãe para conversar e tentar esclarecer o
que estaria acontecendo.
A mãe foi à escola, a coordenadora disse o que havia percebido
e pediu para que a mãe tomasse providências, caso contrrário iria ao
conselho tutelar. Diante do fato, Ana chorou, disse que o padrasto
“usara a filha ” (SIC) e que ingeria álcool e tomava medicamentos
controlados. Na mesma data a mãe disse que pegou o padrasto sem
roupa, esperando Maria chegar. Disse ainda à coordenadora que não
teve coragem de denunciá-lo, pois tinha muito medo dele a matar ou
a seus filhos, pois ele “é muito violento e já me agrediu algumas
vezes, geralmente quando esta bêbado, e também eu não teria
aonde morar com as crianças”(SIC).
Maria estava decaindo nos estudos, apresentava falta de
atenção, não tinha vontade de fazer as atividades, ficava muito
sozinha, isolada dos colegas, o que incentivou mais ainda que a
coordenadora chamasse Maria para conversar. Em função do relato
de Maria e a falta de atitude da mãe em denunciar os fatos, a escola
procurou a Delegacia da Mulher.
1
Todos os nomes foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos.
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O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria
A pedido da delegada titular, fui até a escola onde Maria se
encontrava, fomos para uma sala e comecei a conversar com ela,
primeiro sobre outras coisas como o que ela mais gostava de fazer,
se ela gostava da escola, com o objetivo de quebrar o gelo e formar
algum vínculo.
Maria perguntou-me algumas vezes se eu trabalhava na escola
e porque eu estava lá; respondi a ela que não trabalhava na escola,
mas que estava lá para tentar ajudá-la se ela deixasse e quisesse.
Perguntei o que ela mais gostava de fazer, e contou-me que era
desenhar, então, entreguei a ela papel sul fite e lápis de cor e solicitei
um desenho livre para que ela pudesse se expressar como quisesse.
Em seu desenho havia ela própria, sua irmã, seu irmão e sua mãe,
atentei para o detalhe da mãe estar desenhada com os olhos pintados
de preto, como se estivessem fechados, não vendo o que estava
acontecendo com sua filha. O pai não apareceu no desenho.
Enquanto Maria pintava o desenho, íamos conversando até que
chegamos ao seu relacionamento com seu padrasto que ela chama de
pai.
Maria contou que lembra que a primeira vez que ele mexeu
com ela, aos quatro anos: “ele tirava minha roupa e esfregava o
pingolin dele na minha bunda e na prexeca, até sair um liquido
branco fedido do pingolin dele” (SIC).
João aproveitava quando a mãe saia ou quando estava
dormindo, então ia até o quarto de Maria, ficava “se esfregando nela”
(SIC), sem penetrações e quando acabava de ejacular, limpava a ela
e a si mesmo com um lençol e saia de perto dela. Depois de algum
tempo fazendo isso, João começou a “subir em cima dela” (SIC), mas
Maria relata que acha que ele nunca colocou “lá dentro” (SIC),
porque doía muito quando ele tentava e ele parava, dizendo que
quando ela crescesse só iria poder namorar com ele. Depois a
ameaçava dizendo que se contasse algo para mãe iria bater nela até
matar e depois mataria a mãe.
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Maria diz que não sabe quantas vezes aconteceu isso, porque
“perdeu a conta” (SIC). Relata também, que há mais de um ano a
mãe viu João sobre ela no beliche e brigou com a menina: “falou que
não era para eu ficar me exibindo para ele... aí eu chorei” (SIC).
Algumas vezes gritou para a mãe ouvir e falar para ele parar,
mas Maria diz que acha que ela não ouvia porque tem o sono
profundo e “nunca acordou quando chamei” (SIC). Diz: “Nunca cont ei
para mais ninguém, porque ele dizia que ninguém ia acreditar em
mim e se acreditassem me matava a paulada” (SIC). Maria contava
que o padrasto já havia batido nela diversas vezes e, nesta hora,
levantou-se da cadeira e mostrou algumas marcas, cicatrizes e
hematomas recentes.
Maria havia acabado o desenho, ficou quieta por alguns
instantes, e antes que eu falasse algo, ela disse: “Sabe, tudo que
estou te contando é verdade!” (SIC). Falei que acreditava nela e em
tudo que estava contando e reforcei que estava ali para tentar ajudála, então ela continuou: “É, mas minha mãe viu e não acreditou e
ainda brigou comigo, mas um dia vou ser polícia e aí eu vou matar
todos os homens do mundo, menos meu irmãozinho (...) Ontem
mesmo, ele foi no meu quarto, passou a mão no meu corpo e na
minha bunda. Contei para minha mãe, ela disse que ia denunciar,
mas não fez. Ela também tem medo dele, mas agora acho que ela vai
me mandar para casa da minha avó” (SIC).
Perguntei a ela o que ela sente pelo padrasto e ela respondeu
rapidamente: “Eu odeio ele, queria que ele fosse preso ou que
morresse” (SIC).
Diante das afirmações de Maria perguntei a ela se ela gostaria
de denunciar o pai e ela disse que sim, mas que é criança e não pode
fazê-lo sem a mãe. Expliquei a ela que poderia sim, se quisesse e que
a partir de então, a polícia poderia impedir que acontecesse isso de
novo e não deixaria que o padrasto cumprisse suas ameaças.
Expliquei que na delegacia iriam acreditar nela, desde que ela sempre
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O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria
contasse a verdade. Maria disse que tinha medo de ir a polícia.
Afirmei que as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) possuem um
atendimento diferente das outras delegacias. Reiterei que acreditava
em tudo que ela dizia e que outras pessoas também iriam acreditar e
tentar ajudá-la, que bastava ela querer. Mesmo assim, Maria alegou
que tinha medo. Perguntei-lhe que se eu fosse junto até a delegacia
se ela iria, Maria concordou, fomos até a delegacia, com a
coordenadora e a diretora da escola como representantes legais da
menina.
Ao chegarmos à DDM, ficou encantada com a quantidade de
brinquedos que havia em minha sala (no plantão psicológico da
delegacia, existem vários brinquedos na sala da psicologia, para os
atendimentos). Maria disse que não tinha brinquedos, só um ursinho
que “já está bem velhinho” (SIC). Mostrei a ela algumas bonecas e
disse que poderia escolher uma para brincar, ela escolheu uma que a
delegacia deu a ela de presente. Maria deu a boneca o nome de
Renatinha.
Após o registro da ocorrência, Maria foi levada ao Hospital
Pérola Byngton, para exame de corpo delito. Acionamos o Conselho
Tutelar que encaminhou a menina a um abrigo, até o encerramento e
conclusão do inquérito. Ainda não sabemos se o juiz dará à mãe a
guarda da menina novamente, devido à sua negligência; por algum
tempo, Maria permanecerá no abrigo.
Alguns dias depois, Maria voltou à delegacia para ser ouvida no
Inquérito Policial. Passou em minha sala e disse: “você cumpriu o que
prometeu, eu não apanhei e ainda brinquei a noite toda, consegui até
dormir direito” (SIC). (Maria havia me dito que tinha pesadelos com o
padrasto). Veio carregando sua boneca e disse que dali em diante,
tudo que ela fizesse, perguntaria à Renatinha: “A Renatinha tá com
sono hoje, ontem ela estava brava, mas brinquei bastante com ela e
ela ficou bem calminha, ela come junto comigo, sabia?” (SIC).
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Maria, naquele dia, não perguntou sobre a mãe nem a mim,
nem aos outros funcionários da delegacia. Disse ainda que o lugar em
que ela estava é bem legal, bem mais legal que na sua casa: “lá tem
TV, posso brincar bastante, tenho que estudar também, mas isso é
bom pra mim, né? E lá todo mundo é muito legal comigo e tenho
uma cama só para mim e durmo até de manhã, eu e a Renatinha”
(SIC).
Foi decretada a prisão temporária de João e em seguida a
preventiva; ficou preso durante algumas semanas e depois veio a
falecer na prisão.
O papel do Estagiário de Psicologia Jurídica na Delegacia da
Mulher é o Plantão Psicológico, voltado, num primeiro momento, para
um “acolhimento” da situação emergencial, para depois, fazer os
encaminhamentos necessários. Quando existem casos como este,
que envolve uma criança, a Delegacia imediatamente entrará em
contato com o Conselho Tutelar, e este, por sua vez, fará um
acompanhamento.
Infelizmente
não
pudemos
continuar
o
atendimento de Maria na Delegacia, porque nesse local o estagiário
apenas realiza plantão psicológico, com três ou quatro sessões no
máximo, e acredito que isso é delicado para a própria criança, pois
ela estabelece um vínculo inicial, que logo tem que ser quebrado.
Maria está tendo acompanhamento psicológico no abrigo onde está.
Meu vínculo com Maria aconteceu rapidamente, ela confiou em mim,
o que não era esperado, pela própria dificuldade que a criança viveu
em sua família.
Apesar do contato restrito com a criança, é possível ao
estagiário refletir sobre os dados, no sentido de compreender as
vivências da criança. Acredito que consegui um bom vínculo com
Maria, o que facilitou a nossa relação e fez com que ela contasse tudo
o que aconteceu. Ela passou muitos anos sem contar a ninguém o
que ocorria, pois o padrasto a ameaçava na tentativa de mantê-la
sob seu domínio em silêncio. Segundo Sá e Nogueira (2001), o
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O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria
abusador tem a intenção de atingir um contato sexualizado com a
criança a partir de uma relação de sedução, intimidade e imposição,
sendo o abuso sexual um problema de abuso psicológico e de poder,
assim como João fazia com Maria, impondo a ela que usasse seus
genitais muito antes da maturação biológica e psíquica. “A criança
sofre estimulações impostas para gerar prazer ao outro, havendo
intensa tensão e excitação que seu próprio corpo e psiquismo não
encontram maturidade para integrar e descarregar” (SÁ; NOGUEIRA,
2001, p. 55).
João mantinha situações de abuso com Maria, coagindo-a,
ameaçando-a e seduzindo-a. Disse que quando Maria crescesse
poderia namorar somente com ele e com mais ninguém e que fazia
isso com ela, “porque ela não era filha de verdade, lhe dizia que com
as irmãs dela nunca faria nada porque eram filhas legítimas, mas ela
não, podendo ser sua namorada” (SIC).
A mãe sabia que isto estava acontecendo, certa vez pegou o
padrasto sem roupa em cima da menina no beliche. A mãe gritou e
pediu para ele sair, mas nada foi feito a respeito e na manhã seguinte
era como se não tivesse acontecido nada. A mãe se esquivava da
situação. Afirmava ter medo dele, segundo relatou em seu inquérito,
medo de não ter para onde ir com seus filhos, não denunciou João,
nem tomou nenhuma providência para ajudar a filha, nem ao menos
chegou a conversar com Maria a respeito do que poderia estar
acontecendo. Em seu relato, a mãe de Maria disse que o padrasto
“usava Maria”.
A mãe ao se calar foi negligente com a situação de Maria,
contribuindo para perpetuar a situação abusiva. As mães mantêm
uma relação silenciosa e de cumplicidade com seus parceiros,
sustentando um comportamento de conivência ou omissão diante do
acontecimento. De acordo com Goldfeder (2001), geralmente estas
mães também foram abusadas na infância, mas neste caso não posso
afirmar isto, por não conhecer o histórico da mãe. Como Ana não
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tomou nenhuma atitude, a menina sentia-se cada vez mais sozinha e
acuada. E não denunciava, segundo ela, porque achava que não
podia por ser criança, quando expliquei que ela poderia acabar com
esta situação denunciando (já havia um pequeno vinculo de confiança
entre nós duas), ela resolveu denunciar. A criança recua em suas
palavras de denúncia se não se vê apoiada emocionalmente pelo
adulto e isso pode se passar do mesmo modo pelas causas que a
fizeram manter o segredo (GABEL, 1997).
Além disso, o medo e a desconfiança eram maiores, porque
nem ao menos sua mãe que seria a figura de apoio, confiança e
referência agiu em seu favor. Maria percebia isso e expressou em seu
desenho: desenhou a mãe com os olhos pintados de preto. A mãe ao
fechar os olhos para o que estava acontecendo, aumentou o
sofrimento da menina e, com isso, diminui as possibilidades dela sair
desta situação. A confiança, o amor e o vínculo com um adulto
permitem a ela encontrar forças para lidar com as situações difíceis.
Como Ana não fez nada e certa vez até brigou com Maria, dizendo
que ficava exibindo-se para João, Maria sentia-se cada vez mais
culpada, achando que realmente ela é que estava errada e não o
padrasto. Somente quando se sentiu apoiada emocionalmente pela
professora, pela escola e pelo atendimento comigo, é que resolveu,
enfim, denunciá-lo e poder ser acolhida como vítima e não culpada
pela situação. Segundo Prado (2004), a criança recua em suas
palavras de denúncia se não se vê apoiada emocionalmente, pois
sofreu intensas ameaças empregadas pelo abusador na tentativa de
mantê-la sob o domínio do silêncio.
Maria passou por uma situação de comoção. A relação sexual
antes do tempo pode causar danos psicológicos, pois biológica e
psicologicamente
ela
não
está
preparada
para
integrar
as
experiências genitais, abrindo o caminho para a constituição de um
trauma. Resta à criança responder esta demanda com intenso
sofrimento psíquico que pode envolver importantes conseqüências ao
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O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria
longo do curso de seu desenvolvimento (GABEL, 1997). Algumas
vezes, os pais utilizam o poder que lhes conferem esses papéis para
fins de dominação e exploração, para satisfazer seus desejos
pessoais. Tais atos são acompanhados de cenas de sedução e carinho
que mascaram a violência e o abuso. Estes comportamentos
deixavam Maria confusa entre papéis e funções, ela oscila entre calar
ou denunciar os atos praticados por alguém que deveria lhe
proporcionar cuidado e proteção. E, neste caso, não pode ter o
cuidado e proteção nem do padrasto, nem da mãe. O padrasto
abusador impõe o seu desejo e trai a confiança de Maria, que sempre
o considerou como pai, aproveita-se da sua vulnerabilidade e
imaturidade. Garante o silêncio da menina muitas vezes, com
promessas, sedução, ou mesmo ameaças e se beneficia da “cegueira
da mãe”. Também se impõe medo a sua esposa, ameaçando-a caso o
denunciasse.
Podemos dizer que Maria viveu uma situação potencialmente
traumática e conflituosa, onde se misturam sentimentos de medo,
raiva, prazer, culpa e desamparo. A criança, neste caso, pode sentir
raiva da mãe por não protegê-la e ter medo de contar o que acontece
pelo receio de que não acreditem nela ou a considerem culpada
(como a mãe afirmou em seu inquérito).
A mãe também vive uma situação de muita confusão e
ambigüidade. No início nega os indícios, recusa-se a aceitar a
realidade do ato do marido, depois diz que achava que ele “usava a
filha” (SIC). Apresenta sentimentos de rivalidade e hostilidade com
relação à filha, culpando-a pela sedução (certa vez, deu uma bronca
na menina, dizendo para que não ficasse se exibindo para o pai).
Esta reação da mãe pode ser uma possível forma de suportar o
impacto da violência e da frustração diante da ameaça de destruir a
família, pois levar adiante a denúncia, exigir a punição do marido,
esbarra em fatores econômicos e sociais. Principalmente neste caso,
em que o abusador é o único que sustenta financeiramente a família.
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No inquérito, Ana cita, entre outros argumentos, que não denunciou,
pois não teria para onde ir, onde morar, com seus outros filhos,
embora também fale que queria “pegar no flagra” (SIC).
Maria relutou em denunciar o padrasto, pois se sentia ao
mesmo tempo culpada e ameaçada, correndo o risco de ser
desacreditada, insultada, punida ou acusada de destruir a família. A
“cegueira” e o desmentido materno (o fingir que nada aconteceu) são
agravantes com relação às conseqüências psicológicas para a criança
que sofre o abuso.
Maria conseguiu ficar livre da situação de abuso e começar a
tentar ser criança, brincar e estudar, mas a situação traumática foi
velada por muitos anos permanece, resta agora dar assistência para
que ela possa elaborar esta situação da melhor forma possível.
Conclusão
Assim como aconteceu com Maria, muitas crianças são vítimas
de abuso por muito tempo e muitas delas crescem sem conseguir
revelar ou cessar esta situação. Com freqüência, os casos de abuso
sexual, envolvem situações-limite que implicam em risco elevado às
integridades física e psíquica da criança. O abuso sexual, quando
descobert o,
exige
obrigatoriamente
uma
intervenção
em
dois
diferentes âmbitos sociais: o legal e o da saúde, que devem
acontecer concomitantemente e em constante interação. Assim, a
equipe que estiver envolvida com a assistência à saúde deve criar
instrumentos de comunicação que garantam a segurança da criança.
Se o profissional que está envolvido no caso assumir uma postura de
julgamento frente ao paciente, pode estar impedindo que se instaure
um vínculo de confiança necessário para o tratamento. Além do que,
se não puder abster-se de seus valores e preconceitos, estará
impedido de perceber as particularidades de cada caso.
Acredito que o governo deveria propor medidas profiláticas nas
escolas, pois muitas vezes, o professor é quem tem mais contato com
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O abuso sexual e a criança: o caso João e Maria
a criança e percebe mudanças em seu comportamento quando algo
não está bem. Nos casos em que a escola percebe algum aluno em
situação de risco, a equipe deveria criar estratégias para incentivar a
busca de uma ajuda legal. Mas essa é uma atitude delicada, que
poderá ser ineficiente legalmente, de início, pois a família poderá
negar as acusações. Contudo, continuar o tratamento com um
acompanhamento jurídico, em situações de alto risco pode ser
eficiente, pelo menos, para evitar que a situação de violência se
repita. O tratamento adequado pode reduzir o risco de a criança
desenvolver sérios problemas no futuro, mas acredito que a
prevenção ainda continua sendo a melhor atitude.
O abuso sexual em crianças é um fato real em nossa sociedade
e é mais comum do que muita gente pensa e, por ser um problema
legal e terapêutico, requer, por parte de todos os profissionais
envolvidos, o conhecimento dos aspectos psicológicos, criminais e de
proteção à criança.
Referências Bibliográficas
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Summus, 1997.
São
Paulo:
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PRADO, M. do C. C. de A. (org). O Mosaico da Violência, A
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vítimas de abuso sexual: alguns impasses e desafios. Catálogo de
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Rio de Janeiro, 2001.
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Contato
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Alto de Pinheiros
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E-mail: [email protected]
Tramitação
Recebido em: maio de 2006
Aceito em: agosto de 2006
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