A PRODUÇÃO DE TEXTOS NA ESCOLA
Jauranice Rodrigues CAVACANTI
NEAD/PUC/METROCAMP/UNICAMP
1. Um discurso e uma prática
Desde a década de 80, os documentos que tratam do ensino da língua
portuguesa adotam uma concepção teórica que concebe a linguagem como fenômeno
heterogêneo, dialógico (BAKHTIN, 1995). Adotar esse ponto de vista significa eleger a
interação, a linguagem em uso como aquilo a ensinar, e não mais regras gramaticais. O
final dos anos 90 trouxe outro documento, os Parâmetros, retomando as idéias expostas
nas Propostas Curriculares: "o objetivo é o ensino da língua em uso". Infelizmente, o
dia-a-dia da/na escola mostra que ainda há uma distância muito grande entre o discurso
presente nesses documentos e a prática.
Como esta é ditada, muitas vezes, pelo livro didático, basta dar uma olhada em
uma das tantas coleções que existem no mercado e ver como a “tradição” fala mais alto.
Há aqueles que, na tentativa de inovar, dedicam um capítulo à lingüística textual,
apresentando as noções de coesão e coerência, e outro à questão das variações. Não
costumam ir além. O que há, de forma maciça, é o estudo da gramática, com exercícios
que em nada lembram os sugeridos nos Parâmetros. Sem querer cair no risco das
generalizações, os alunos continuam tendo aulas de gramática e não de língua.
Como a escrita é realidade artificial dentro do contexto escolar, criam-se
imagens sobre ela, sobre o texto escrito. Para escrever, seria necessário a “inspiração”,
privilégio de poucos, os escritores, literatos. O que deveria ser concebido como fruto de
um trabalho, é visto como o resultado de um momento mágico que daria conta do
desafio de preencher a página em branco.
Este texto procura descrever uma tentativa de aproximar o discurso presente
nas propostas do ensino da língua portuguesa do dia-a-dia de um grupo de alunos do
Ensino Médio. Para isso, apresento um projeto que envolveu alunos de uma escola
particular de Santos** e uma ONG, o Aprendiz, que se dedica a "repensar as práticas
educacionais". Seu presidente, o jornalista Gilberto Dimeinstein, também escritor de
livros paradidáticos, propôs que se escolhesse um grupo de jovens que, saindo da escola
e conhecendo a cidade onde moravam, Santos, reescrevesse seu livro Cidadão de Papel.
A experiência já tinha sido feita em Curitiba; Santos era a segunda cidade a realizar o
projeto.
O grupo foi formado em agosto de 1999 e terminou o trabalho em dezembro
de 2000. Era composto de dez alunos, que se dispuseram a reunir-se fora do horário das
aulas, para as saídas, as discussões e a produção dos textos. A idéia de escrever um
livro, e depois produzir reportagens para o jornal da cidade, entusiasmou os alunos, mas
também os preocupou. Não queriam escrever um livro chato, aos moldes dos que
circulam na escola, queriam textos que "não cansassem o leitor".
2. Um projeto de dizer
É comum ouvirmos observações dos professores sobre como as redações
corrigidas são parecidas: falam as mesmas coisas, apresentam os mesmos argumentos,
os mesmos "erros". Parecem todas reduzidas a uma única voz, a do sujeito-aluno. De
fato, se tomadas como dados, sustentariam facilmente a tese da homogeneização, da
repetição. Mas, não haveria espaço para a subjetivação, para o não-apagamento? O
desejo dos alunos de "não escrever um texto chato" aponta para a questão da autoria,
para a noção de sujeito agente, um sujeito que pode encontrar um lugar para significar,
o que não é o mesmo que conceber esse sujeito como fonte ou capaz de controlar os
sentidos, mas como se "completando e se construindo nas suas falas e nas falas dos
outros (GERALDI, 1998:19).
Para que isso aconteça no espaço escola, para que o aluno seja locutor efetivo
de seu texto, e não mero repetidor do já dito, é preciso conceber o processo de produção
de textos como uma relação interlocutiva (GERALDI, 1995). Para este autor, ninguém
se assume como locutor, desejo dos alunos, a não ser numa relação interlocutiva, numa
situação em que se tenha o que dizer, para quem dizer, razões para dizer e se escolham
estratégias para o dizer. Os alunos tinham as razões para dizer, interlocutores definidos
(jovens como eles). As pesquisas, e principalmente as saídas da escola, a descoberta da
cidade e de suas "personagens", deram o que dizer. A escolha das estratégias atendeu ao
querer dizer (BAKHTIN, 1997) que tinham, muitas vezes, um projeto de denúncia, e do
leitor que queriam atingir.
A seguir apresento algumas operações discursivas presentes nos textos
produzidos. Considero essas operações como lugares onde o sujeito se mostra, onde se
constitui.
3. As estratégias de dizer
O querer dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de
um gênero do discurso (Bakhtin, 1997: 301).
Depois de iniciado o livro, os alunos foram convidados a publicar parte do que
escreviam no jornal da cidade. O discurso jornalístico passou a fazer parte do processo
de produção dos textos. A imagem que tinham do texto jornalístico era a do sensocomum: linguagem objetiva, neutra, predominância da função referencial da linguagem.
Embora os textos que mandavam para o jornal fossem assinados, o que permitiria a
interpretação, havia uma forma de dizer a respeitar, caso contrário o texto não seria
legitimado, não seria um “texto de verdade”. De jornalistas ouviram duas sugestões:
escrever aos moldes do texto padrão, com lead no primeiro parágrafo, ou entrevistas do
tipo pingue-pongue. Esse modo de dizer não atendeu ao projeto de dizer dos alunos.
Optaram, na maioria dos casos, por uma narrativa de cunho argumentativo, com foco
narrativo em primeira pessoa, na qual o narrador coloca como protagonista o
“personagem” descoberto nas ruas da cidade. É o que aparece no trecho abaixo:
(1) Em Santos existem muitos órfãos da AIDS. Muitas histórias
tristes, difíceis de contar. A de Oswaldinho é uma delas. Lembro
da primeira vez que o vimos, o rosto miúdo, as pernas cheias de
bolhas e feridas. Foi logo falando de sua vida. Difícil acreditar que
alguém, uma criança, pudesse carregar tanto sofrimento. “Via meu
pai injetando no banheiro de casa. Tenho o vírus da AIDS, sou
tuberculoso”, dizia sem rancor, com uma simplicidade que
assustava e doía.***
O trecho apresenta dois planos enunciativos que se misturam: o do enunciado,
o relato; e o plano da enunciação, a narração explicitada o narrador “prepara” o leitor
para a cena/história, fazendo um comentário sobre ela). O plano do comentário
possibilita uma adesão máxima do locutor ao enunciado (KOCH, 2001) e uma
aproximação maior com o leitor, pois dele é cobrada uma (re)ação, um envolvimento, o
efeito de sentido pretendido.
(2) No dia 8 de maio de 2000 três homens tocaram a campainha
de uma casa no bairro do Macuco, em Santos. Cena comum, de
todo dia. A casa parecia ser só mais uma residência de família.
Uma mulher veio atender. Perguntaram se ali funcionava alguma
casa de encontros. A mulher negou, mas não pôde impedir que
entrassem. Eram policiais atendendo uma denúncia anônima. Lá
dentro, três jovens aguardavam seus “clientes”. A maquiagem não
escondia os traços infantis, os olhares assustados.
O trecho acima, ao contrário do anterior, não traz o narrador em primeira
pessoa, não apresenta embreantes, mas é perpassado por comentários e avaliações de
um narrador “intruso”, que apresenta a cena. Podemos flagrar essa intromissão no uso
de adjetivos axiológicos – cena comum, traços infantis, olhares assustados, que
apontam/ direcionam leituras, constroem sentido(s). O uso das aspas em clientes indica
que a palavra pertence a outro discurso, é atribuída a um outro espaço enunciativo cuja
responsabilidade o locutor não assume (MAINGUENEAU, 1993), espaço/discurso do
qual o locutor (as jovens-personagens?) se distancia.
Um outro lugar que mostra a ação do sujeito, seu trabalho com/sobre a
linguagem, são as epígrafes. Os alunos, muitas vezes, iniciam os textos com citações de
outros textos, textos conhecidos pelo interlocutor, em uma intertextualidade explícita de
semelhanças (KOCH, 2000:49). O texto incorpora o intertextexto seguindo sua
orientação argumentativa e apóia-se nele para construir os sentidos, a argumentação. As
epígrafes funcionam, assim, como um argumento de autoridade, pois trazem uma voz
legitimada pelo leitor – jovem como eles, apontam caminhos de leitura. É o que pode
ser visto no fragmento abaixo:
(3) Do que adiantam? Emendas, constituições, Se o teto da escola
caiu Se a parede da escola sumiu Sem dente o professor sorriu
(Herbert Viana)
A escola, uma escola municipal da cidade, estava sendo
reformada: janelas sendo consertadas, paredes pintadas. Difícil
mantê-las limpas: sempre as pichações, a sujeira. Quando o
pessoal da reforma se retirou, era uma tarde de domingo, eles
chegaram.
(4) Já era quase noite quando tocamos a campainha. A rua sem
movimento, no centro da cidade. Uma criança veio atender, sem
graça, se escondendo. Vimos um corredor escuro, comprido, o
assoalho de madeira (...).
Pediu que a seguíssemos, mora na parte do fundo. Outras portas,
outras famílias. A dela está aberta, fala pra gente entrar, pede
desculpas. O tempo todo, envergonhada, pede desculpas: “Não
reparem a bagunça, são as crianças”. São quatro filhas, quatro
meninas mais ela e o marido. Vivendo num espaço mínimo, um
quarto. Sem banheiro, sem janela – só um buraco na parede. Uma
mesa, uma cama e um beliche. Pede pra gente sentar, mas não tem
onde. Ficamos de pé, olhando aquela mulher que aceitou nos
receber, que conversa com a gente educada, que procura nos
ajudar. Como uma pessoa pode viver nessas condições?
O trecho acima apresenta o que WEIRINCH (apud KOCH, 2001) chama de
metáfora temporal: o emprego de um tempo do mundo comentado (o presente) no
interior do mundo narrado – fala pra gente entrar, pede desculpas. O uso de um tempo
no lugar de outro significa, como aponta KOCH, maior engajamento, atenção,
relevância. No caso do texto, o momento de maior tensão, a entrada no espaço
diminuto, a fala da mulher (anônima), desculpando-se. Há uma tentativa de aproximar o
relato, de trazê-lo para o aqui/agora da enunciação, uma tentativa de neutralizar
longe/perto. O enunciado final, que traz o dêitico essas no lugar de aquelas, acentua o
efeito de sentido de proximidade:. o espaço do narrado surge como o da enunciação, o
longe é trazido para perto (FIORIN, 1996).
(5) A Baixada Santista é a região do estado de São Paulo onde há
o maior número de “erros de atuação policial”. Expressão que
esconde muita coisa: dor, revolta, perplexidade. Esconde a
palavra morte. (...) Eram três adolescentes. Um deles, Thiago,
estava voltando de um baile de carnaval. Era manhã de uma
quarta-feira de cinzas. Encontrou os outros dois por acaso (eles
não estavam no baile) nas barraquinhas do Itararé. Foi quando
chegou a blazer, um oficial e três soldados. Desceram sem querer
conversa. Para quê? Disseram depois que investigavam o roubo
de um relógio. Três jovens reunidos àquela hora, só podiam ser
eles. Já foram batendo, pessoas que estavam no lugar viram, os
garotos tentando se desviar dos socos de raiva. Raiva de estar
trabalhando numa quarta-feira de cinzas? Do salário? De quem
podia estar só conversando, se divertindo? Raiva, muita raiva. A
perua ficou com as marcas dos socos não-acertados, ficou com o
sangue dos garotos.
O trecho acima é perpassado por diferentes vozes, é polifônico. Podemos
apreender essas vozes observando dois fenômenos: a ironia e o discurso relatado. A
ironia traz para o interior do enunciado uma voz diferente da do locutor. Este assume as
palavras, mas não o ponto de vista que elas representam (MAINGUENEAU, 1993).
Esse distanciamento é marcado por diferentes índices, que o leitor deve “decifrar”. No
trecho acima as aspas colocadas na expressão erros de atuação policial apontam uma
dissociação entre duas vozes: a do locutor, que enuncia a expressão (E1) e a da
instituição policial, a voz eufêmica que recobre/camufla a força negativa da agressão
(E2). O locutor assume as palavras, mas não o ponto de vista de E2, que refuta/contesta.
Essa contestação aparece explicitada nos enunciados seguintes: “esconde a palavra
morte”.
O trecho não reproduz diretamente a voz das personagens envolvidas na cena,
mas traz essas vozes integradas à voz do locutor. Há uma ocorrência do discurso
indireto, disseram que investigavam o roubo de um relógio, e ocorrências do discurso
indireto livre. Este, ao contrário do DI, não traz marcas (como o verbo dicendi ou o
‘que’) de que uma outra voz é posta em cena, há uma “mistura perfeita de duas vozes:
não se pode dizer exatamente que palavras pertencem ao enunciador citado e que
palavras pertencem ao enunciador citante” (MAINGUENEAU, 2000: 153).
Os enunciados em negrito apresentam a mistura da voz do locutor com a das
personagens do relato: os policiais, o adolescente Thiago. O enunciado três jovens
reunidos àquela hora, só podiam ser eles, traz o argumento que justificaria a abordagem
dos garotos, a voz do senso comum – jovens “bons” não ficam até tarde nas ruas, uma
resposta à pergunta lançada (pelo locutor? por Thiago?) anteriormente (por que não
conversaram?). As outras perguntas lançadas misturam a voz do locutor à dos agredidos
veiculando um efeito de sentido de surpresa/revolta. O uso do DIL possibilita mostrar as
diferentes perspectivas dos participantes da cena, desliza de uma para outra. Ao trazer a
voz do outro, incluindo a dos policiais acusados, o locutor não se coloca como aquele
que sabe/tem a verdade dos fatos, já que ele não estava presente, mas o que parece
aderir ao ponto de vista dos jovens, inocentes que foram assassinados (e oferece essa
“proposta de compreensão” para o leitor).
4. Considerações finais
Os trechos apresentados foram produzidos por alunos em uma situação que
fugiu ao rotineiro da sala de aula. Os alunos saíam da escola, escreviam reportagens,
escreviam um livro – tornaram-se autores, assumiram-se como locutores. A análise
procurou apontar lugares onde esse sujeito se mostra: um sujeito que pode trabalhar
com/sobre a língua para construir seu dizer, para ser agente desse dizer.
RESUMO: Este texto descreve/analisa um projeto desenvolvido com alunos
do Ensino Médio (de 1999 a 2001) que objetivava a produção de um livro e de
reportagens para o jornal da cidade, Santos. No início os alunos tiveram dificuldades em
produzir textos que fugissem dos que normalmente circulam no contexto escolar –
redações para a escola e não textos na escola (GERALDI, 1995). Traziam uma
concepção de escrita tradicional, escrever bem seria ter domínio da norma padrão:
escrever “sem erros”. Viram-se em uma situação não-artificial, os textos seriam
publicados/lidos, tinham uma razão para dizer, mas não sabiam como escrever de
forma a não serem escritores de um “livro chato” como os que conheciam, os livros
didáticos. Externaram o desejo da autoria, o desejo de encontrar um lugar para
significar, ser agentes (GERALDI, 1998). Mas pode o aluno ser sujeito e não apenas
ocupar a posição de reconhecimento/reprodução de sentidos? A análise procura
apreender pontos de emergência desse sujeito-aluno.
PALAVRAS-CHAVE: sujeito, estilo escolar, trabalho lingüístico; autoria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, ed. Hucitec, 1995.
___________. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
CAVALCANTI, Jauranice Rodrigues (org.) Vozes de Santos. Santos, ed. UNISANTA,
2000.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo, Ática, 1996.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
_____________________. Discurso e sujeito. In: Linguagem e ensino: exercícios de
militância e divulgação. Campinas, Mercado de Letras, 1998.
KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo, Cortez, 2000.
_____________. A inter-ação pela linguagem. São Paulo, Contexto, 2001.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas, Pontes,
1993.
________________. Análise de textos de comunicação. São Paulo, Cortez, 2001.
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