PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL
SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS
III ENCONTRO DE ESTUDOS
DESAFIOS PARA A ATIVIDADE DE
INTELIGÊNCIA NO SÉCULO XXI
Brasília
Setembro - 2004
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente: Luiz Inácio Lula da Silva
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL
Ministro: Jorge Armando Felix
SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS
Secretário: José Alberto Cunha Couto
Edição: Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais
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A presente publicação expressa a opinião dos autores dos textos e não reflete
necessariamente a posição do Gabinete de Segurança Institucional.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
E56 Encontro de Estudos: Desafios para a Atividade de Inteligência no
Século XXI (Brasília : 3. : 2004 ). III Encontro de Estudos: Desafios
para a Atividade de Inteligência no Século XXI. Brasília: Gabinete de
Segurança Institucional; Secretaria de Acompanhamento e Estudos
Institucionais, 2004.
153 p.
I. Inteligência. II. Inteligência - controle. III. Agência Brasileira de
Inteligência. IV. Segurança Nacional - Brasil. V. Democracia.
CDD - 327.12
Sumário
I
Inteligência e Interesses Nacionais ................................................. 05
Armando Amorim Ferreira Vidigal
II
A Importância da Inteligência no Processo Decisório ................. 51
Jorge da Silva Bessa
III
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil ....................... 73
Alexandre Martchenko
IV
Síntese do III Encontro de Estudos ................................................... 99
INTELIGÊNCIA E INTERESSES NACIONAIS
Armando Amorim Ferreira Vidigal
Vice-Almirante (Reformado), membro do Centro
de Estudos Estratégicos e Políticos da Escola de
Guerra Naval e do Núcleo de Estudos Estratégicos
da UNICAMP.
Inteligência e Interesses Nacionais
As relações internacionais e a competitividade entre as nações são importantes na definição das áreas de atuação da Inteligência. Este é o ponto de partida, portanto, para o nosso estudo.
O fim da Segunda Guerra Mundial (2ª GM) e logo o início da Guerra Fria marcam a predominância de uma perspectiva
nas relações internacionais, dita realista, que veio substituir a
perspectiva liberal vigente até o início da 2ª GM, que herdara do
projeto iluminista a fé quase absoluta na razão humana, elemento
essencial para as transformações que imaginavam indispensáveis
na área social. 1
A teoria realista pressupõe o caráter permanentemente
anárquico do sistema internacional, com os Estados condenados
a uma condição de insegurança constante pela falta de qualquer
autoridade ou poder coercitivo capaz de obrigá-los ao cumprimento de certas regras de convivência como, por exemplo, a que
torna ilegítimo o uso da força para a solução dos conflitos interEstados. O fracasso da Liga das Nações em impedir a eclosão da
2ª GM – apesar do Pacto Brian-Kellog, que condenava a guerra
como instrumento da política, ter sido assinado por quase todos os
países que se envolveriam no conflito – contribuiu para reforçar
a teoria realista em detrimento da liberal.
Os princípios realistas influenciaram os estudos de segurança porque, num ambiente de tanta insegurança, os Estados
procurariam, pelo menos, se proteger das ameaças percebidas,
reais e imaginárias, mas, muitas vezes, iriam além, procurando
aumentar a sua influência e poder no sistema internacional.
As considerações que se seguem sobre as vertentes tradicional, abrangente e crítica baseiam-se no trabalho
A Contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional, de Grace Tanno.
1
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
A vertente tradicional, na área da segurança internacional,
incorpora as premissas teóricas realistas, restringindo seus estudos
praticamente às questões militares e mantendo o Estado como o
objeto básico da análise.
As limitações óbvias desta vertente levaram ao surgimento
da vertente abrangente (do inglês widener) que, embora mantendo
o Estado no papel central do sistema – ela ainda é estadocêntrica
–, sustenta que a análise deve incorporar não só as ameaças militares, como as oriundas das áreas política, econômica, ambiental
e societal. Esta é a posição da Escola de Copenhague, surgida em
1985, da qual o grande arquiteto é Barry Buzan. A crítica de Buzan
deixa clara a posição da Escola: “Estados eram vistos como presos
a uma luta de poder, e a segurança era facilmente vista como uma
derivada do poder, especialmente do poder militar”. 2
Como, para Buzan, a “força” do Estado é diretamente proporcional ao seu nível de coesão político-social – a qualidade da
dinâmica entre esses elementos determina a condição do Estado
forte ou Estado fraco – foi possível à Escola analisar a influência
das variáveis domésticas na conformação dos ambientes internacionais de segurança; acontecimentos a nível doméstico ajudariam
a explicar mudanças no sistema internacional.
A principal crítica à Escola de Copenhague veio da vertente crítica, associada à Escola de Frankfurt, que considera que
as pesquisas de segurança devem colaborar para o permanente
desenvolvimento da espécie humana e, em conseqüência, outros
valores devem ser priorizados, além da segurança, como a liber-
2
Citado em A Contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional, op.cit.
Inteligência e Interesses Nacionais
dade e a fraternidade. A segurança pessoal seria mais importante
do que a do Estado. Esta vertente tem uma forte tendência liberal
e internacionalista.
Qualquer que seja a visão adotada para os princípios que
regem as relações internacionais – a tradicionalista, a abrangente
ou a crítica – o papel da Inteligência é a avaliação das ameaças à
segurança, embora o significado deste termo comporte diferentes
interpretações, e ao desenvolvimento nacionais. Acreditamos
que a visão da Escola de Copenhague, temperada em parte pelas
críticas da Escola de Frankfurt, é um bom ponto de partida para a
definição das áreas de atuação da Inteligência.
Assim sendo, a área de atuação da Inteligência é quase ilimitada, tanto no campo interno como no externo, sendo necessária
delimitá-la em função de diversas variáveis: as ameaças percebidas,
o nível de coesão social existente, o grau de presença internacional
pretendido, os recursos disponíveis para a área e muitas outras.
A atuação dos órgãos de Inteligência no campo interno é
absolutamente imprescindível, e independe do regime de governo,
autoritário ou democrático. Os movimentos sociais, de qualquer
tendência, mas especialmente os que atuam muitas vezes em descompasso com a lei, devem ser acompanhados pelos serviços de
Inteligência de modo a permitir a ação preventiva do Estado. O fato
de que o Estado autoritário possa usar o seu Serviço de Inteligência
para perseguir grupos políticos que se opõem aos interesses de
governo, não deve coibir a ação do Estado Democrático de Direito
de agir sempre que pessoas ou grupos atuem contra os interesses
do Estado, identificados pelo estatuto legal. Movimentos sociais,
por mais legítimos que sejam, não podem fugir a esta regra.
No Brasil, cabe à Política Nacional de Inteligência estabelecer os parâmetros de atuação dos órgãos de Inteligência.
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Quando da instituição do Sistema Brasileiro de Inteligência
(Sisbin) e da criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin),
em 1999 3, ficou claro que o Sistema Brasileiro de Inteligência está
fundamentado na vertente abrangente, mas tendo levado em conta
a vertente crítica: as atividades da Agência devem estar “voltadas
para a defesa do Estado Democrático de Direito, da sociedade, da
eficácia do poder público e da soberania nacional”. 4 Não é apenas
o Estado o objeto de preocupação do serviço mas, também, a sociedade. É digno de registro que as atividades da Agência devem
estar voltadas para “a defesa da eficácia do poder público”, o
que parece uma preocupação específica com a corrupção dentro
do sistema público, já que o papel da Inteligência não deve ser
a avaliação da competência administrativa de qualquer órgão do
Governo.
Há um outro ângulo que deve ser explorado para a definição
das áreas de atuação dos serviços de Inteligência.
É incontestável que o mundo está mais interligado. A eficiência na movimentação de bens e produtos e a transmissão eletrônica de informações e de dinheiro criaram um ambiente propício
à proliferação de atividades transnacionais – legais ou ilegais.
O crime organizado, em especial o tráfico de drogas e o
contrabando de armas, as atividades financeiras ilegais, entre as
quais a lavagem de dinheiro, são objetos da preocupação dos governos e representam um desafio para os Serviços de Inteligência
de qualquer país. Incontestavelmente, um eficaz Serviço de Inte-
Lei n° 9.883, de 07 de dezembro de 1999. O Sisbin foi regulamentado, inicialmente, pelo Decreto n°
4.376, de 13 de setembro de 2002, e depois pelo Decreto nº 4.872, de 06 de novembro de 2003.
4
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), www.abin.gov.br.
3
10
Inteligência e Interesses Nacionais
ligência, capaz de prover as informações necessárias, é a melhor
arma para o combate ao crime organizado.
Depois dos ataques terroristas ao World Trade Center e ao
Pentágono um outro problema veio se somar ao do crime organizado: o terrorismo. Embora o Brasil não seja um alvo preferencial
do terrorismo internacional, tem a responsabilidade de proteger em
seu território os bens e os nacionais dos demais países, bem como
de impedir que propriedade nacional – embarcações, aeronaves,
contêineres, etc – possam ser usados como veículos para ataque
ao território dos países-alvo. Também neste caso, as informações
são absolutamente indispensáveis, sendo, sem sombra de dúvida,
o meio mais eficaz de combate ao terrorismo quando associadas
às medidas políticas corretas.
Sendo esses crimes transnacionais, a comunidade internacional tem procurado – por meio de acordos bi ou multinacionais
– estabelecer regras comuns para o trato dessas questões. Estão
nessa categoria os acordos para o combate ao tráfico de drogas,
à lavagem de dinheiro, à pirataria (no que diz respeito ao direito
de patentes e direitos autorais), etc. Com relação ao terrorismo,
algumas medidas têm sido tomadas coletivamente ou, de forma
individual, por um Estado que se sinta particularmente ameaçado.
Assim, em dezembro de 2002, a Organização Marítima Internacional (IMO), por pressão dos EUA e outros países, adotou
emendas à Convenção Marítima Internacional para Salvaguarda
da Vida Humana no Mar – Convenção Solas – que, inter alia,
introduziram o Código Internacional para a Proteção de Navios e
Facilidades Portuárias (Código ISPS), com o propósito de proteger
embarcações, portos e terminais de ataques terroristas e, concomitantemente, impedir que as embarcações e suas cargas possam
11
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
servir de veículo para atos terroristas. O Código está em vigor
desde 1° de julho de 2004. 5
De forma unilateral, os EUA criaram a Lei do Bioterrorismo,
que obriga todos os exportadores de alimentos para aquele país, sejam
destinados ao uso humano ou animal, a identificar todas as partes intervenientes no processo de produção e comercialização do produto.
Ainda nos EUA, foi criada a Iniciativa para a Proteção de Contêineres
(CSI) que implica a realização de um acordo bilateral entre os EUA e
qualquer outro país, para permitir que um contêiner, uma vez fiscalizado
por americanos no porto de origem, tenha liberação mais fácil e mais
rápida no porto americano de destino.
A atuação em conjunto dos Serviços de Inteligência de países
envolvidos no combate ao crime organizado ou ao terrorismo é essencial
para o sucesso dessas ações. É importante, porém, que na relação entre
países de poderes nacionais muito díspares, a cooperação não se faça
em termos da subordinação do mais fraco, com o comprometimento de
sua soberania.
A transnacionalização do crime organizado e do terrorismo cria
um outro problema: o relacionamento entre os órgãos voltados para o
5
Como em português – aliás, em quase todas as línguas latinas – só existe uma palavra para traduzir security e safety – segurança – por decisão unânime do Grupo de Trabalho instituído pela Autoridade Marítima
para a aplicação do Código Isps aos navios, o security foi traduzido por proteção para que, a bordo dos
navios, não fosse confundido com a segurança. Por exemplo, a bordo, desde a instituição do Código ISM
– para gerenciamento da segurança nos navios – existe o oficial de segurança do navio (safety); o novo
código Isps exige a criação de um oficial de security que, para que não fosse confundido com o de safety,
passa a ser o oficial de proteção do navio. Entretanto, o Grupo de Trabalho instituído para a aplicação do
Código Isps aos portos e terminais, por não ter o mesmo problema, está usando a palavra “segurança” para
traduzir o safety, o que vai trazer alguns problemas futuros na inevitável interface entre navios e portos. A
padronização parece indispensável e ela deveria ser feita padronizando-se, no caso da aplicação do Código
Isps, a tradução de security por proteção. A ressalva é feita porque, em outras situações, já há expressões
padronizadas – como é o caso de Segurança Nacional que traduz o National Security – que dificilmente
serão modificadas.
12
Inteligência e Interesses Nacionais
serviço de inteligência e os órgãos responsáveis pela repressão ao crime,
órgãos que exercem o direito de polícia. As áreas de interesse dessas duas
comunidades sobrepõem-se crescentemente: como o crime organizado e
o terrorismo constituem-se em ameaças à segurança nacional são, cada
vez mais, objeto de interesse dos Serviços de Inteligência. O problema
surge porque as duas comunidades têm regras e objetivos diferentes, bem
como dispõem de fontes de informação e usam métodos diferenciados e,
ainda, têm padrões diferentes de avaliação das informações que coletam.
Em geral, as Agências de Inteligência buscam informações para os formuladores da política do país enquanto os investigadores dos órgãos policiais procuram informações que permitam a montagem de um processo
judicial que leve ao julgamento e punição dos culpados. A Comunidade
de Inteligência colhe enorme quantidade de informações com base num
conjunto complexo de necessidades e exigências estabelecidas pelos
formuladores de políticas e estas informações, freqüentemente, são procuradas simplesmente para esclarecer um assunto e não, necessariamente,
como etapa inicial de uma ação; diferentemente da Inteligência colhida
pelos órgãos de repressão ao crime, muitos dados obtidos pelos Serviços
de Inteligência são de confiabilidade questionável e não são destinados
ao conhecimento público – a informação coletada é revista e avaliada
por analistas que definirão a sua acuracidade e confiabilidade.6
Esta interferência entre os órgãos de Inteligência e os órgãos de
repressão ao crime têm sido crescente nos EUA, envolvendo a Central
Intelligency Agency (CIA) e o Federal Bureau of Investigation (FBI),
e o critério para evitar as dificuldades criadas é dar prioridade para coordenação ao órgão voltado para o exterior sempre que o foco da ação
6
“IC-21: The Intelligence Community in the 21st Century, part XIII, Intelligence and Law Enforcement.
13
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
está fora do país e, pelo contrário, se o foco estiver no próprio país, a
coordenação ficará por conta dos órgãos aos quais compete à repressão
ao crime.
O combate ao crime organizado, ainda quando restrito ao território nacional, pode trazer problemas entre as agências de Inteligência
e os órgãos policiais, pelas mesmas razões já apontadas em relação ao
crime transnacional. Impõe-se aqui uma clara definição das respectivas
responsabilidades e das formas de cooperação entre as duas comunidades. No Brasil, eventuais problemas poderiam ocorrer entre a Abin e a
Polícia Federal.
O Sistema Democrático e a Inteligência
Ao fim do ciclo dos governos militares no Brasil, uma parte da
sociedade, a mais atuante na oposição durante aquele período, fez uma
associação indevida entre a existência de um Serviço de Inteligência
e o autoritarismo: alguns por ignorância, outros por má fé ou sob a
influência de uma ideologia, repudiaram os Serviços de Inteligência
como incompatíveis com o sistema democrático de governo.
A meu ver, houve – e em setores restritos ainda há – uma certa
confusão entre o papel dos serviços de Inteligência e o dos serviços
de repressão aos ilícitos identificados. Na seção anterior mostramos
as características diferentes das duas comunidades.
Para qualquer governo, é essencial a posse de informações que
lhe permitam, no campo interno, identificar a existência de problemas
que possam vir perturbar a ordem pública, a paz social ou prejudicar
a economia, e, no campo externo, identificar as ameaças que possam
se contrapor aos interesses nacionais.
14
Inteligência e Interesses Nacionais
Cabe ainda ao governo se proteger contra os serviços de
Inteligência estrangeiros – não apenas governamentais – não só no
que se refere a assuntos militares mas, também, em relação à matéria
não-militar, como, por exemplo, segredos industriais: a Contra-Inteligência. O Brasil vem resistindo a um tipo de inspeção da Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA) – ou assim insinuam certos
elementos da mídia internacional – não por se rebelar contra as disposições do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), mas para
proteger o segredo industrial das suas centrífugas que podem vir a ser
um importante fator na entrada do País no rico mercado internacional de urânio enriquecido (a razão, entretanto, pode ser unicamente
política, isto é, forçar a adesão do Brasil ao Protocolo do TNP, mais
exigente em termos de visitas do que o Tratado).
Os EUA – indubitavelmente de uma enorme tradição democrática – dedicam anualmente no orçamento US$ 40 bilhões para as
Agências de Inteligência, o que demonstra a importância que atribuem
a esse serviço.7
Num estudo de 1996, feito pelos membros do Comitê Permanente do Congresso dos Estados Unidos sobre Inteligência, a importância dos serviços de Inteligência, mesmo após o fim das tensões
geradas pela Guerra Fria, é destacada:
“Os Estados Unidos continuam a precisar de uma
Comunidade de Inteligência (IC) forte, altamente
eficaz e crescentemente flexível. Esta necessidade
não diminuiu com o fim da Guerra Fria. Na verdade,
7
“9/11 Panel Is Said To Urge New Post for Intelligence”, Philip Shenon.
15
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
a atual situação internacional é, de muitas maneiras,
mais complexa e mais difícil de lidar do que era durante a relativamente estável bipolaridade da Guerra
Fria. Portanto, embora julguemos a nossa segurança
nacional menos ameaçada, as exigências de inteligência persistem. O foco da nossa segurança nacional
mudou, mas a missão da comunidade de inteligência
não: prover, na hora certa, informações confiáveis
aos formuladores civis e militares de políticas; apoiar
as operações militares e outras – inclusive ações
encobertas – conforme determinado por pessoal legalmente competente para isso”. [trad. nossa]8
Esta colocação foi feita bem antes dos atentados de 11 de setembro de 2001 e, embora defina as preocupações de uma superpotência, ela
é válida para qualquer país, em qualquer época, ainda que, em alguns
casos, com menor ênfase no campo externo. Para um país como o Brasil,
que procura assumir uma posição de relevo no campo externo, cresce a
importância de Sistemas de Inteligência e de Contra-Inteligência eficazes.
Apesar das considerações feitas sobre o Estado democrático e os
Serviços de Inteligência, não julgamos que o emprego da Inteligência não
comporte riscos, principalmente quando o Estado democrático enfrenta
sistemas totalitários – no passado recente o fascismo e o comunismo – ou
“IC-21: The Intelligence Community in the 21st Century.
The CIA and the Cult of Intelligence, Victor Marchetti & John D. Marks, Introdução de Marchetti. Este
é o primeiro livro que levou os EUA a apelarem à Justiça a fim de levá-lo à censura pela CIA antes de sua
publicação. Todas as partes que, depois de longa batalha judicial, foram vetadas, foram deixadas em branco
no texto.
8
9
16
Inteligência e Interesses Nacionais
está engajado numa luta de morte contra algo como o terrorismo, não
relacionado especificamente a um determinado Estado nacional. Entre
os perigos, há o de imitar os métodos do inimigo e, portanto, colocar em
risco a própria democracia que se está pretendendo defender.9
A discussão sobre o Estado Democrático e os Serviços de Inteligência leva, naturalmente, à questão das relações entre a Ética e a
Inteligência.
Num governo democrático é extremamente importante assegurar
a manutenção de um padrão ético pelos órgãos de Inteligência. Esta é,
indiscutivelmente, uma questão difícil mas inarredável numa discussão
pública.
O primeiro debate que se faz necessário diz respeito às relações
entre o governo e os órgãos de Inteligência, estes totalmente dependentes daquele. Serem independentes na dependência – no sentido de que
os serviços de Inteligência devem estar voltados para os interesses do
Estado e não necessariamente do governo – eis o grande desafio.
O uso pelo governo dos Serviços de Inteligência para investigar
e perseguir desafetos políticos, como parte de uma luta pelo poder, é
inaceitável sob o ponto de vista ético. Sendo o objetivo dos Serviços
de Inteligência a segurança nacional e o bem público, o seu emprego
para a manutenção do poder não se justifica, por não se coadunar com
o sistema democrático de governo. O caso Watergate, que acabou por
levar o Presidente Nixon à renúncia, é um exemplo recente do uso da
Inteligência com propósitos político-partidários.
O espectro das possibilidades de ingerência indevida do governo
sobre a Comunidade de Informações é, porém, ainda mais amplo. As
justificativas dos EUA para irem à guerra contra o Iraque, e as do Reino
Unido para apoiá-los, basearam-se em informações que atribuíam ao
Iraque a posse de armas químicas e biológicas e o desenvolvimento ace17
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
lerado de armas nucleares, bem como ligações estreitas com o terrorismo
internacional – especificamente a Al Qaeda – responsável pelos atentados
contra os EUA. Posteriormente, todas essas informações mostraramse infundadas, não se encontrando as armas de destruição em massa e
comprovando-se a inexistência de qualquer ligação de Saddam Hussein
com Osama Bin Laden.
O relatório apresentado pelo ex-chefe do grupo de inspeção americano relativo a armas de destruição em massa no Iraque, David A. Kay,
da CIA, critica os Serviços de Inteligência pelos erros cometidos.10
Uma pergunta, porém, se impõe: erro grosseiro dos sistemas
de inteligência ou uma gigantesca fraude dos governos americano e
britânico para justificar uma agressão militar cuja verdadeira causa era
o petróleo?
A Comissão do Congresso americano que investigou as causas do
11 de setembro de 2001, constituída por democratas e republicanos em
igual número, encontrou “profundas falhas institucionais” que criaram as
condições para o ataque terrorista, mas como foram encontradas falhas
tanto durante o Governo Clinton como o Governo de W. Bush, não foram
apontados os responsáveis, o que, especialmente num ano eleitoral, foi
conveniente para os dois partidos. Com isso, deixaram de ser apurados
os erros, esses de exclusiva responsabilidade de Bush, que levaram os
EUA à guerra contra o Iraque.11
Nem todos concordaram que as agências americanas e britânicas
tenham sido incompetentes a ponto de alimentar a Casa Branca e Downing
Street com tantas e reiteradas informações falsas. Acusar os órgãos de In-
“Ex-Inspector Says C.I.A. Missed Disarray in Iraq Arms Program”, James Risen e, Ex-Arms Monitor
Urges an Inquiry on Iraqui Threat, Richard W. Stevenson e Tom Shanker.
11
“Choque, mas não surpresa”, O Globo.
10
18
Inteligência e Interesses Nacionais
teligência é muito conveniente aos interesses eleitorais de Bush e de Blair
que alegam terem agido de boa fé, não tendo motivos para desconfiar dos
dados que lhes foram apresentados. A atribuição da responsabilidade a subordinados protegidos pelo anonimato é altamente conveniente, mas não é
totalmente convincente.
Alguns importantes jornalistas americanos, como Paul Krugman
e Nicholas D. Kristof, acusam o Governo Bush de manipular informações
sobre as armas de destruição em massa do Iraque, encomendando relatórios
– a acusação é feita também contra Blair – que dessem apoio à decisão já
tomada de atacar o Iraque.12
Fontes dos Serviços de Inteligência dos EUA acusaram o vicepresidente Dick Cheney e seus assessores de terem feito várias visitas à
CIA para questionar os analistas sobre o programa de armas do Iraque,
constrangendo-os quando os relatórios não concordavam com os pontos de
vista oficiais. Antigos Agentes da Inteligência declararam ter sido continuamente pressionados, não só por Cheney, mas também por Paul Wolfowitz,
Subsecretário de Defesa, e George J. Tenet, Diretor da CIA, para produzirem
relatórios que ajudassem o governo a mostrar a necessidade urgente de um
ataque preemptivo ao Iraque.13
Parece difícil negar que tanto o Governo americano quanto o britânico pressionaram seus órgãos de Inteligência nesse sentido ou, pelo menos,
distorceram os relatórios, interpretando-os de acordo com suas conveniências: “A filosofia central do trabalho de inteligência – a de que deve ser
resguardado de considerações políticas – foi profundamente ferida”. 14
“O procedimento padrão do governo Bush” e “Negação e Fraude”, de Paul Krugman, e “Pentágono torna
submissas agências de inteligência”, Nicholas D. Kristof.
13
“As visitas de Cheney à CIA”, Walter Pincus e Dana Priest.
14
Kristof, op.cit.
12
19
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
A legislação brasileira estabelece que os conhecimentos adquiridos pelos Serviços de Inteligência, em momento algum, poderão
ter utilização de caráter pessoal ou em favor de grupos, diversa de
seu fim específico.15
Há outros aspectos da ética que devem ser discutidos.
O primeiro deles diz respeito às operações encobertas dos Serviços de Inteligência. Um ex-funcionário da CIA que trabalhou na Agência
por 14 anos, Victor Marchetti, pergunta:
Deveria a CIA funcionar da maneira inicialmente
proposta – como uma agência coordenadora responsável pela coleta, avaliação e preparo das informações
oriundas do estrangeiro para o uso dos formuladores
de políticas governamentais – ou deverá ser permitido que ela funcione, como tem feito durante anos
– como um braço operacional, um instrumento da
Presidência e de um punhado de homens poderosos,
totalmente independente do acompanhamento público, cuja principal finalidade é interferir nos assuntos
domésticos de outros países (e talvez do nosso) por
meio de agentes infiltrados, propaganda, intervenções
paramilitares encobertas e de uma quantidade de
outros truques sujos?16
15
16
Para o autor, essas operações clandestinas ilegais e antiéticas, que
Agência Brasileira de Inteligência, op. cit.
Marchetti & Marks, op. cit., p. 11-2.
20
Inteligência e Interesses Nacionais
são realizadas a pretexto das necessidades da Inteligência e justificadas
pelos governos de forma dúbia, são questionáveis, tanto em termos
morais como de benefícios práticos para a nação.17 Marchetti e Marks
concluem: “... no longo prazo, a não interferência e a correção de atitudes
irão aumentar a posição e o prestígio internacional...”18
Sem dúvida, este é um aspecto ético de grande complexidade,
que põe em dúvida uma parte substancial das tarefas da Inteligência.
Segurança e Ética são conceitos conciliáveis? Talvez o velho ditado britânico de que “o serviço secreto é um jogo sujo demais para ser executado
por outra pessoa que não um gentleman”, embora não respondendo à
pergunta, exponha o dilema.
A interferência de um Estado nos negócios domésticos de outro
– para conseguir controlar ou influenciar o governo desse país, muitas
vezes contra a vontade majoritária da sociedade – é, inegavelmente,
condenável sob o ponto de vista da Ética, mas dificilmente um país, que
vê nessa interferência um benefício substancial para si, deixará de atuar
nesse sentido. Mormente se é poderoso.
O caso dos EUA é esclarecedor: o papel que eles se auto-impuseram de árbitros das mudanças sociais, econômicas e políticas dos
países emergentes da Ásia, África e América Latina os têm levado a usar
quaisquer métodos clandestinos que tenham à sua disposição.19
A respeito diz o já citado Marchetti:
[A CIA] engaja-se em espionagem e contra-espionagem, em propagando e desinformação (a circu-
Ibidem, p. 11.
Ibidem, p. 373.
19
Ibidem, p. 4.
17
18
21
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
lação deliberada de falsa informação), em guerra
psicológica e atividades paramilitares. Ela penetra e
manipula instituições privadas e crias as suas próprias
organizações (chamadas“proprietaries”) quando
necessário. Recruta agentes e mercenários; suborna
e chantageia servidores estrangeiros para executarem
as suas tarefas mais detestáveis.
Faz qualquer coisa que seja necessária para atingir
seus objetivos, sem qualquer consideração ética ou
das conseqüências morais de suas ações. Como o
braço secreto da política externa americana, a mais
poderosa arma da CIA é a intervenção encoberta nos
negócios internos dos países que o governo dos EUA
deseja controlar ou influenciar.[trad. nossa]20
Hoje, sob a justificativa do combate ao terrorismo as ações encobertas ganharam novo ímpeto, o que sugere, especialmente para os
países emergentes, a importância de um eficaz serviço de Contra-Inteligência.
Um outro desses aspectos envolvendo a Ética, diz respeito à
coleta de informações. Uma distinção deve ser imediatamente feita: a
coleta no campo interno e no campo externo.
No que concerne ao campo interno, julgo que a Ética implica o
estrito cumprimento da legislação nacional pertinente. Impõe-se total
observância dos direitos civis e dos direitos humanos: escuta telefônica,
Ibidem, p. 5. Proprietaries, de proprietary corporation, são instituições ostensivamente privadas e negócios que são de fato financiados e controlados pela CIA (p. 534).
20
22
Inteligência e Interesses Nacionais
quebra de sigilos bancário, fiscal e postal, por exemplo, só poderão ser
feitas com autorização judicial e os resultados, enquanto inconclusivos,
não poderão ser divulgados; interrogatórios deverão ser conduzidos
sem violência física ou mental – acredito que seguir o estabelecido na
Convenção de Genebra para prisioneiros de guerra é um parâmetro útil
para qualquer situação.
No caso brasileiro, a legislação existente é categórica a respeito,
especificando que as Atividades de Inteligência serão desenvolvidas, no
que se refere aos limites de sua extensão e ao uso de técnicas e meios
sigilosos, com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais,
fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses
e a segurança do Estado.
A infiltração de agentes em organizações ou grupos que devem
ser acompanhados – aqui há a sobreposição de interesses entre a Comunidade de Inteligência e a de repressão ao ilícito penal – e o agenciamento
de informantes, que prestam serviço em troca de recompensa financeira
ou de outra natureza, são procedimentos valiosos que não podem ser
ignorados pela Inteligência, passíveis ainda de um tratamento ético.
A atuação de agentes fora do país exige outro tipo de considerações. Aqui só trataremos do que diz respeito à busca de informações e
não de agentes encarregados de sabotagem, assassinato seletivo e outros
atos agressivos, entre os quais, matéria já aqui tratada, a interferência
nos negócios domésticos de outro país, com o objetivo de influenciar
ou controlar o seu governo, embora esses tipos de operações venham
crescendo, principalmente as mais violentas.
Além de Israel, os EUA vêm empregando assassinato e sabotagem: a criação pela CIA do Grupo de Operações Especiais (SOG),
constituído por mercenários contratados para o assassinato de terroristas,
para a destruição de instalações militares, inclusive nucleares, e outras
atividades não-convencionais, comprova a difusão do método. A prova
23
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
de que o Grupo está ativo é a morte em uma emboscada, nas cercanias
de Shkin, no Afeganistão, de dois veteranos das forças especiais americanas, engajados, na qualidade de mercenários, numa operação do SOG
não especificada; recentemente, Bush renovou a autorização presidencial
para ações desse gênero.21 Também a China demonstra uma preocupação
grande com este tipo de operação. Eles identificam três tipos de operações
de guerra: as operações militares de combate (as operações de guerra
convencional), as operações militares de não-combate (o equivalente
aproximado das “operações militares que não-guerra” dos americanos
e ao “emprego político do poder militar” brasileiro) e as operações nãomilitares de não-combate, algo como assassinato, sabotagem e outras
ações, como ação de hackers, etc.22
Todo o pessoal diplomático, em geral, procura obter informações
do interesse do seu país de forma ostensiva, através da leitura de jornais
e revistas, da conversação com pessoas bem informadas e, em alguns
casos, solicitando as informações a membros do governo do país – é um
procedimento comum aos adidos militares quando as informações não
são sigilosas.
James Risen, op. cit., Stevenson & Shanker, op. cit. e Modern modes of assassination, Daniel Schorr.
Em 1976, o Presidente Ford assinou uma ordem executiva dizendo que, ninguém trabalhando para os EUA
“engajar-se-á ou conspirará em assassinato”, em decorrência de uma investigação do Senado que apontou
a ocorrência de seis tentativas de assassinato de Fidel Castro e a existência de planos em diversos estágios
para o assassinato de líderes de esquerda em países do Terceiro Mundo: Lumumba, no Congo; Duvalier, no
Haiti; Sukarno, na Indonésia e Trujillo, na República Dominicana, entre outros.
Ao longo dos anos, a proibição foi sofrendo “interpretações” como a de que líderes envolvidos em ações
de terrorismo não estariam incluídos na proibição: Reagan autorizou o bombardeio da residência de Kadafi,
em 1986, e Bush (pai) o bombardeio do palácio de Saddam, em 1991. Em 1998, Clinton, após um fracassado ataque com mísseis a um campo no Afeganistão contra Osama Bin-Laden, autorizou o uso de “força
letal” contra a Al-Qaeda. O atual presidente Bush apresentou à CIA uma lista de cerca de duas dúzias de
terroristas aos quais não se aplicará a proibição de assassinato. Em novembro de 2002, mísseis Hellfire,
lançados por um avião teledirigido Predator, mataram um líder da Al-Qaeda quando ele estava dirigindo
numa faixa de deserto no Iêmen. Cinco outros pessoas no carro foram mortas, talvez inocentes.
22
Unrestricted Warfare, Qiao Liang & Wang Xiangsui
21
24
Inteligência e Interesses Nacionais
O tenente-general Reinhard Gehlen, um dos primeiros tecnocratas
da informação, que serviu a Hindenburg, a Hitler, à CIA e, finalmente,
durante 26 anos, à República Federal da Alemanha como chefe do Serviço de Informações anti-soviéticas, dizia com muita propriedade:
Um Chefe de Órgão de Informações deve fazer tudo
ao seu alcance para desfazer a heresia de que o serviço
secreto só deve se ocupar de fontes secretas e não
dar atenção ao material ostensivo, que se encontra
livremente à disposição em jornais e livros por todo
o mundo.23
Também Marchetti destaca a importância das informações coletadas através de canais diplomáticos e fontes ostensivas, como jornais
e revistas.24
O agente encoberto, que na literatura policial aparece com o “espião”, que usa a ação sigilosa para a obtenção de informações, procurando
vencer as dificuldades criadas pela contra-inteligência local, representa
um dos aspectos das relações internacionais que pouco tem a ver com
a Ética, embora suas ações não envolvam – nas nossas considerações
restritas apenas à busca de informações – sabotagem, assassinato ou interferência nos negócios domésticos de outro país. A ilegalidade de suas
operações – segundo o ponto de vista dos espionados – necessariamente
não fere os direitos civis ou os direitos humanos das pessoas envolvidas,
embora possa envolver suborno e corrupção. Talvez a evolução tecnoló-
23
24
“O Serviço Secreto”, Reinhard Gehlen, p. 68-69.
Marchetti & Marks, op. cit. p. 9.
25
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
gica possa contribuir para a eliminação dos procedimentos menos éticos
da Inteligência.
Sobre essas operações, os comentários de Marchetti e Marks são
pertinentes:
Em tal operação encoberta mas não-paramilitar, o
agente tende a manter as suas mãos limpas de sangue, e os seus crimes são do tipo do colarinho branco
– conspiração, suborno, corrupção. Seu fracasso ou
sua exposição são, em geral, punidos apenas com
a sua expulsão do país onde ele está operando. Em
última análise, ele está meramente engajado num jogo
de cavalheiros. O agente envolvido em ações paramilitares, pelo contrário, é um gângster que trabalha
com a força, o terror, a violência, ... [trad. nossa]25
No mundo de alta tecnologia atual, o agente secreto tem à sua
disposição equipamentos de grande sofisticação que facilitam o cumprimento de suas tarefas: micro-câmeras, aparelhos de escuta de alta
sensibilidade, sistemas de comunicação ultrapotentes, etc.
Diz Gehlen:
Os progressos científicos nos campos da eletrônica,
cibernética e automação tornam necessários novos
meios para se obter informações; mas, também, dão
ao inimigo novos meios para guardar seus segredos.
25
Marchetti & Marks, op. cit., p. 108-9
26
Inteligência e Interesses Nacionais
Um verdadeiro arsenal de aparelhagem sofisticada
tem sido acrescentado aos instrumentos convencionais do passado. Há necessidade de se dedicar uma
atenção especial aos novos métodos científicos de
busca de informes.26
Há, ainda, uma outra conseqüência do desenvolvimento tecnológico que não pode ser esquecida: o agente encoberto vai sendo
paulatinamente substituído pelo emprego da alta tecnologia – satélites
espiões, sistemas de interceptação e escuta de comunicações, localização
a laser, etc. No já citado relatório de David Kay, a CIA é severamente
criticada por ter se tornado excessivamente dependente desses meios, bem
como de espiões estrangeiros, que agem por dinheiro ou por convicção
político-ideológica, pouco confiáveis quando comparados aos agentes
nacionais.27
A história de espionagem na 2ª GM comprova a pouca confiabilidade de espiões estrangeiros – eu diria, de qualquer espião – devido à
sua duplicidade, em geral servindo aos dois lados. Parece uma característica inerente à própria natureza do serviço: a clandestinidade encoraja
a amoralidade profissional e daí à duplicidade é um passo apenas.
Na vida real, contudo, infelizmente as coisas não são nem tão
simples nem tão claras no que concerne à Ética. A legislação, por boa que
pareça, está sujeita a inúmeras interpretações ou, se não houver rigoroso
controle, pode simplesmente ser ignorada. Se Bush e Blair, no caso do
Iraque, mesmo tendo forçado justificativas falsas, agiram não por inte-
26
27
Gehlen, op.cit., p. 177
Risen, op. cit., e Stevenson & Shanker, op. cit.
27
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
resses pessoais, mas pelo que consideravam o legítimo interesse de seus
países, o seu procedimento poderia ser justificável? Estaria o interesse
nacional acima da Ética? É possível dar um tratamento ético às ações
encobertas? Quando o valor da informação é muito grande – pode, por
exemplo, salvar milhares de vidas, talvez inocentes – o interrogador tem
o direito de abusar física ou mentalmente do interrogado, ou, em nome
dos direitos humanos, respeitar o interrogado arriscando muitas vidas
inocentes?
São questões aparentemente difíceis. Cabe aqui uma reflexão de
Hannah Arendt:
Somos talvez a primeira geração a adquirir plena
consciência das conseqüências fatais de um modo de
pensar que nos força a admitir que todos os meios,
desde que sejam eficazes, são permissíveis e justificados quando se pretende alcançar alguma coisa que
se definiu como um fim.28
A atual política de Ariel Sharon para enfrentar o terrorismo
palestino – o uso de “assassinatos seletivos” dos líderes terroristas, as
punições impostas aos parentes dos homens-bomba, a construção do
muro para separar os dois povos invadindo terra palestina, etc – tem se
mostrado, até o momento que escrevo estas linhas, eficaz na redução dos
atentados terroristas.29 A questão ética, porém, persiste.
“A Condição Humana”, Hannah Arendt.
No final de agosto, dois ataques terroristas destruíram dois ônibus em Israel, com a morte de dezesseis
pessoas. O Hamas responsabilizou-se pelos atentados. Como seria de esperar, a estratégia de Sharon não é a
adequada para dar uma solução definitiva ao problema. Só uma paz justa dará fim ao terrorismo palestino.
28
29
28
Inteligência e Interesses Nacionais
A tão decantada afirmação de que “os fins justificam os meios”
serve hoje, como sempre, para justificar as maiores violências contra o
homem. As ideologias redentoras têm sido responsáveis pelos piores
crimes contra a humanidade: as guerras religiosas do passado, o fascismo,
o nacional-socialismo alemão, o comunismo e, agora, o terrorismo e o
antiterrorismo.
A possibilidade de estarmos em erro é, talvez, um antídoto, o
melhor, contra a violência.
O problema talvez esteja ligado às características do Serviço:
Profundamente incorporada à mentalidade clandestina está a crença de que a ética humana e as leis sociais
não têm nada a ver com as operações clandestinas
ou com os homens que as executam. A profissão
da inteligência, devido ao seu arrogante objetivo ‘a
segurança nacional’, está livre de todas as restrições
morais. Não há necessidade de enfrentar tecnicalidades legais ou julgamentos quanto ao certo e ao errado.
Os fatores determinantes nas operações secretas são
totalmente pragmáticos: o trabalho precisa ser feito?
Pode ser feito? Pode ser mantido em segredo (ou é
plausível o seu desmentido)? [trad. nossa]30
Os exemplos recentes, envolvendo um dos países cuja tradição
liberal é indiscutível – os Estados Unidos da América – não são animadores.
30
Marchetti & Marks, op. cit., p. 249
29
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Logo após os atentados de 11 de setembro, numa clara tentativa de
dar uma resposta rápida à sociedade, os EUA prenderam 762 suspeitos de envolvimento com o terrorismo, muitos dos quais presos porque apresentavam
alguma irregularidade em relação às leis de imigração. Esses presos, segundo
o Inspetor Geral do Ministério da Justiça, foram submetidos a “um padrão
de abusos físicos e verbais” – tais como a manutenção das celas iluminadas
noite e dia durante meses, transferências com algemas e grilhões, ausência
de qualquer acusação formal, negativa de acesso a advogados, etc – numa
clara violação dos seus direitos.31 Não havia nenhuma evidência contra a
maioria desses presos: eles, simplesmente, estavam irregulares no país. Tanto
isso é verdade que, posteriormente, foram apenas deportados.
Também nas prisões do Afeganistão, há claras violações dos direitos dos presos: num centro secreto de interrogatórios que a CIA montou na
base aérea de Bagram, ao norte de Cabul, dois afegãos presos morreram de
“traumatismo craniano causado por força bruta”; um outro preso foi morto
numa pequena prisão do exército nas imediações de Asadabad, província
de Konar, na região leste do país.32
Com relação ao Iraque, a situação é ainda pior.
Uma série de fotografias veio a público, evidenciando abusos contra
presos na prisão de Abu Ghraib. A comissão de investigações de alto nível do
Exército dos EUA, estabelecida para apurar os abusos, concluiu que membros
da Inteligência militar tiveram um papel importante, estando envolvidos em,
pelo menos, 44 casos de abusos entre julho de 2003 e fevereiro de 2004.33
Muitos desses abusos foram cometidos durante interrogatórios
“EUA admitem que guerra ao terror maltratou presos”, Philip Shenon, e “Relatório aponta abusos nos
EUA”, ibid.
32
“EUA investigam a morte de afegãos”, José Meirelles Passos.
33
Abuses at Prison Tied to Officers in Intelligence, Eric Schmitt.
31
30
Inteligência e Interesses Nacionais
e tinham o propósito de arrancar informações dos prisioneiros; com relação a outros abusos praticados, nem essa desculpa pôde ser alegada:
tratava-se apenas de puro sadismo.
O relatório do Exército veio confirmar o de um painel independente, chefiado por James R. Schlesinger, ex-Secretário de Defesa, no
que diz respeito à responsabilidade pelos abusos: esta não foi apenas dos
que efetivamente os cometeram mas de toda a cadeia de comando, do
Golfo Pérsico até os altos escalões de comando em Washington. Para o
senador republicano, da Carolina do Sul, membro do Comitê das Forças
Armadas no Senado, Lindsey Graham:
“Quando esses relatórios são vistos em conjunto, há uma clara
mensagem de que o sistema falhou de forma generalizada”.34
Também o relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha
(ICRC) sobre o tratamento, pelas Forças da Coalizão, dos prisioneiros
de guerra no Iraque, e outras pessoas protegidas pela Convenção de
Genebra, é taxativo:
De acordo com as alegações colhidas pelo ICRC,
maus tratos durante interrogatório não eram sistemáticos, exceto no caso de pessoas presas em conexão
com suspeita de crimes contra a segurança ou que se
supunha terem valor para a ‘inteligência’. Nesses casos, pessoas privadas de sua liberdade sob supervisão
da Inteligência Militar ficaram sob grande ameaça de
serem submetidas a uma variedade de tratamentos
duros, que iam desde insultos a ameaças, tanto de
34
Ibidem.
31
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
coerção física como psicológica, e a humilhações,
que, em alguns casos, eram equivalentes à tortura,
a fim de forçar à cooperação com os seus interrogadores. [trad. nossa]35
O mais grave problema da violação dos direitos humanos diz
respeito aos presos na base americana de Guantánamo, em território
cubano. Submetidos a condições desumanas desde o fim da campanha
contra o Afeganistão, isolados completamente do mundo exterior,
submetidos a maus tratos, privados de qualquer assistência jurídica e
sem qualquer acusação formal, esses presos têm recorrido, cada vez
com maior freqüência, ao suicídio.36
O governo dos EUA não os reconhece como prisioneiros de
guerra e, como não são cidadãos americanos e estão presos fora do
território dos EUA, alega-se que eles não têm diretos constitucionais:
“A qualificação dos elementos da ‘Milícia Talibã’, levados para a
Base de Guantánamo, como ‘combatentes ilegais’ (nem terroristas,
nem criminosos e nem prisioneiros de guerra) visou a evadir-se às
normas da Convenção de Genebra”.37
O Profissional de Inteligência
Pelo que até agora foi dito, não há um Profissional de Inteligência, mas uma série de qualificações indispensáveis para o Serviço
Report of the International Committee of the Red Cross (Icrc).
Guantánamo: desespero e desejos de morte, Carlotta Gall e Neil Lewis.
37
O Ataque ao Iraque no Contexto do Pós-Modernismo Militar, Marcos Henrique Camilo Côrtes.
35
36
32
Inteligência e Interesses Nacionais
de Inteligência, que terão de ser atendidas por diferentes profissionais,
com características e formações diversificadas.
Sem dúvida, o analista de informações é o que exige a maior
gama de conhecimentos para o exercício de sua tarefa. Conhecimentos
de ciência política, sociologia, psicologia, história, etc – em síntese,
uma sólida cultura geral – parecem requisitos indispensáveis. É necessário aliar uma grande capacidade de leitura à reflexão. O analista, na
grande maioria das vezes, não é formado pelos Órgãos de Inteligência;
ele é recrutado já com as qualificações essenciais, só necessitando ser
orientado paras as peculiaridades do Serviço de Inteligência e sobre
os parâmetros estabelecidos pela Política Nacional de Inteligência.
Para o mestre Gehlen:
O conhecimento não cai do céu como um maná.
Ele é recomposto, peça por peça, a partir de um
grande número de fatos individuais, que têm de ser
reunidos e relacionados mutuamente, com base em
sólido conhecimento geral e absoluta percepção da
própria situação e da de outros aliados, bem como
da dos inimigos reais e em potencial.38
O trabalho de análise é um processo contínuo ao longo do tempo
e sistemático para garantir que todas as informações tenham sido consideradas:
A ausência de um processo de análise contínuo e
sistemático, que trabalhe em conjunto com todas
38
Gehlen, op. cit., p. 26
33
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
as fontes de informes, pode conduzir a que alguns
itens possam ser grosseiramente superestimados e
outros completamente ignorados.39
Tendo em vista a amplitude e diversidade das matérias do
interesse da Segurança Nacional, conforme já apontado, seria altamente recomendável, no meu entender, que as análises de informações fossem da responsabilidade de um grupo multidisciplinar, com
especialistas nas áreas política, econômica, societal, ambiental e
militar.
Já a coleta de informações exige outro tipo de habilidades que,
em boa parte, dependem da forma como a informação vai ser buscada:
no exterior, ou no próprio país, através do exame de documentos, de
entrevistas pessoais, por infiltração nos órgãos ou grupos a serem
investigados, através de informantes, do interrogatório de presos, de
maneira ostensiva ou encoberta, etc. A definição das qualificações
dos coletores de informações será dada em função das necessidades
identificadas. Cursos específicos – que incluirão inclusive técnicas
relativas aos métodos que serão utilizados pelos coletores e prática de
equipamentos disponíveis para a coleta de informações – são indispensáveis. É importante que os selecionados conheçam os parâmetros
éticos fixados pela agência para a sua atuação.
Além de analistas e coletores de informações, outros elementos
são necessários numa Agência de Inteligência: técnicos em criptografia, em sistemas de comunicação e computação, etc.
Técnicos em propaganda e desinformação são, comumente,
39
Ibidem, p. 67
34
Inteligência e Interesses Nacionais
usados nas Agências de Inteligência, e necessitam de qualificação
especial para esse tipo de atividade: jornalistas e publicitários têm
os conhecimentos básicos para essa função mas necessitam de cursos
específicos para atuarem na área de Inteligência.
A respeito do assunto, cabe aqui dizer que as sociedades nãodemocráticas são mais sujeitas à ação da propaganda e desinformação:
Tendo como alvo uma sociedade fechada, o simples fato de ser prover informações e notícias que
o governo quer manter fora do conhecimento de
seu povo pode ter um efeito significativo. Se, além
disso, alguma desinformação puder ser inserida,
tanto melhor. Os ouvintes, vendo que muito do que
estão ouvindo é verdadeiro, tendem a acreditar que
tudo que lhes é dito é correto. [trad. nossa]40
Deve-se observar, porém, que a difusão de notícias falsas oferece risco para o próprio Serviço, pois outras agências podem tomar
as notícias por verdadeiras e basear suas análises nelas.41
Um dos pontos de maior relevância para o Serviço de Inteligência é a existência de um sistema eficaz para organizar, armazenar,
transmitir e fazer uso das informações colhidas.
A correta avaliação de uma situação, fator essencial para a tomada de decisão, depende disso: “Um dos elementos essenciais para a
40
41
Marchetti & Marks, op. cit., p. 159
Ibidem, p. 160
35
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
tomada de decisões é o fornecimento rápido, imediato e consciencioso
de informações sobre a situação... A correta avaliação de uma situação
só pode ser baseada num fluxo rápido e seguro de informações”.42
Se uma informação não pode ser rapidamente recuperada ela
é absolutamente inútil e, em geral, o volume de informações necessárias torna esta uma tarefa de grande complexidade. Para Gehlen, o
acúmulo em grande escala de uma infinidade de minúsculos detalhes
– que em si mesmos nada tem de importante ou valioso – pode produzir
inestimáveis e vibrantes dividendos em termos de informações, uma
vez que tenham passado pelo crivo de profissionais experimentados,
capazes de compor um todo bastante significativo das miríades de
peças, como num quebra-cabeça.43
É fora de dúvida, porém, que o excesso de informações, pode
ser prejudicial por entupir o sistema, tornando difícil para os analistas
separar o que é realmente importante e produzir material suficientemente maturado para os formuladores de políticas. Uma superabundância de informações coletadas resulta num excesso de informes
acabados, muitos, de pouco uso para a formulação de políticas; acaba
por existir demasiado número de informes, sobre demasiado número
de assuntos, de tal forma que as pessoas a quem eles se dirigem são
incapazes de usá-los convenientemente.44
Esta conclusão, apontada num dos inúmeros relatórios apresentados por comissões nomeadas nos EUA para procurar melhorar
a eficiência dos Serviços de Inteligência (de 1967), foi corroborada
por outra comissão (de 1970):
Gehlen, op. cit., p. 121.
Gehlen, um gênio da informação, Charles Whitting, p. 80.
44
Marchetti & Marks, op. cit., p. 96 e 209.
42
43
36
Inteligência e Interesses Nacionais
Acredito que o Pentágono sofre de um excesso de
inteligência. Ele não pode usar o que tem porque
demasiado foi coletado. Quase seria melhor que
eles não tivessem esses dados porque é difícil
determinar o que é importante.45
A informática é um poderoso instrumento para o estabelecimento de um eficiente sistema de arquivo. Embora em todas as Áreas
da Inteligência a confiança seja requisito indispensável, o controle e
arquivo das informações exige não só pessoal altamente qualificado
mas de absoluta confiança do encarregado da agência.
A Contra-Inteligência, embora deva fazer parte da cultura de
todos os que trabalham no Serviço de Inteligência, requer que o pessoal específico da atividade tenha uma boa experiência pregressa na
Área de Inteligência. Agentes que tenham atuado por tempo razoável
em Ações de Inteligência e tenham demonstrado sua aptidão nas funções, são os mais adequados para o trabalho de Contra-Inteligência,
em especial no que diz respeito à proteção da própria agência, de
seus métodos de trabalho e de seu pessoal. No campo mais amplo
– que envolve determinadas instalações industriais, áreas onde se
desenvolvem certas atividades que não se querem conhecidas ou que
envolvem conhecimentos sensíveis, etc, cuja proteção normal está
a cargo das pessoas públicas ou privadas que as operam – caberá
à Contra-Inteligência instruir os seus operadores para que adotem
procedimentos corretos de proteção.
No Brasil, a Abin desenvolveu o Programa Nacional de Pro-
45
Ibidem, p. 100.
37
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
teção ao Conhecimento (PNPC) onde procura sensibilizar segmentos
da sociedade brasileira sobre as ameaças ao desenvolvimento e à
segurança nacionais, representadas pelas ações de espionagem em
alvos econômicos, industriais e científico-tecnológicos.46 Sendo necessária uma mudança cultural radical nos hábitos nacionais, o êxito
de tal programa só pode ser visualizado a longo prazo se a Agência
persistir nos seus esforços tanto no setor público como no privado.
O recrutamento de analistas, agentes e técnicos não pode seguir
as regras normais do setor público. Há que se estabelecer critérios
específicos, que mantenham a discrição indispensável nesses casos.
É ainda Gehlen que ensina:
Um Serviço de Inteligência nem sempre pode ser
dirigido da mesma maneira adotada para outras
agências governamentais. Estas exercem uma
função puramente administrativa e uma Agência
de Informações tem a função vital de obter e avaliar informações; os aspectos administrativos e
financeiros da Agência são de menor importância.
É nesse particular que um Órgão de Informações
difere dos outros setores do executivo, para os
quais as funções administrativas e reguladoras
são as mais importantes... É preferível administrar
um Órgão de Informações por especialistas de
Informações com experiência do Serviço Público,
do que por funcionários comuns, com tendência a
46
“A Agência Brasileira de Inteligência”, op. cit.
38
Inteligência e Interesses Nacionais
tolher, por motivos administrativos, as operações
de Informações.47
Ressalta assim a importância de controles interno e externo para
o Serviço de Informações. Há, evidentemente, que casar essa necessidade de controle com a necessidade de discrição e esta é uma questão
difícil. De acordo com a lei que criou a Abin, no Brasil o controle e
fiscalização internos, no âmbito do próprio Executivo, são feitos por
dois órgãos – a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional,
que supervisiona a execução da Política Nacional de Inteligência, e
a Secretaria de Controle Interno da Presidência da República (Ciset),
que inspeciona a aplicação das verbas orçamentárias – e os externos,
a cargo do Poder Legislativo, são exercidos pelo Tribunal de Contas,
no que concerne à gestão de recursos orçamentários, e pela Comissão
Mista do Congresso Nacional, com respeito à execução da Política
Nacional de Inteligência.48
Um dos controles, tanto interno como externo, tem a ver com
a aplicação das verbas, e o outro, também interno e externo, tem a ver
com o enquadramento das ações da Abin às disposições da Política
Nacional de Inteligência.
Neste ponto cabe uma outra observação de Gehlen:
O dinheiro posto à disposição de uma Agência de
Informações deve ser destinado a produzir frutos
e não para o custeio de uma estrutura gigantesca
47
48
Gehlen, op. cit., p. 165
“A Agência Brasileira de Inteligência”, op. cit.
39
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
e dispendiosa. Se isso se der, haverá o risco desse
órgão tender a obedecer a Lei de Parkinson, tornando-se um fim em si mesmo.49
Os controles, porém, não podem tirar a necessária flexibilidade
da Agência:
É de fundamental importância preservar a flexibilidade com que uma Agência de Informações pode
aplicar seus meios técnicos e financeiros, de modo
a poder colocar imediatamente em atividade suas
decisões operacionais.50
Além dos analistas, coletores de informações e técnicos indispensáveis ao Serviço de Inteligência, há ainda que considerar o
pessoal administrativo necessário para que as atividades burocráticas
tenham o seu curso normal – secretárias, serviços de copa, etc. Este
pessoal, que não precisa ter conhecimentos especializados sobre Inteligência, pode ser recrutado no funcionalismo público, embora seja
essencial uma cuidadosa verificação da sua confiabilidade, através
da checagem de sua vida particular e de entrevista por pessoal para
isso credenciado e qualificado.
Além dos controles interno e externo, é absolutamente imprescindível que o Serviço de Inteligência tenha o seu autocontrole, isto
é, um sistema da própria Agência capaz de fiscalizar o seu funcio-
49
50
Gehlen, op. cit., p. 160
Ibidem, p. 165
40
Inteligência e Interesses Nacionais
namento administrativo bem como todos os seus integrantes, o que
Gehlen chamou de Segurança Orgânica, com a ênfase específica na
segurança:
A Segurança Orgânica é talvez a tarefa mais ingrata
de um Serviço de Informações. Se se pode dizer
dos serviços secretos em geral que eles trabalham
por trás de portas fechadas, não devendo esperar
o reconhecimento do público, isto é muito mais
verdadeiro no que diz respeito às suas seções para
a Segurança Orgânica. Como o goleiro no time de
futebol, esta seção leva toda a culpa quando ocorrem fracassos na segurança. E, paradoxalmente,
quando o serviço lavra um tento como esse, trata-se
mesmo como a admissão de uma derrota, pois fica
estabelecido que, até o momento de sua descoberta,
o elemento detectado pôde desenvolver, despercebidamente, sua traição... O bom funcionamento
de uma Seção de Segurança Orgânica acentuará a
eficiência do Órgão de Informações; sua influência
é sentida em toda a máquina; ela afeta o desenvolvimento posterior da estrutura da organização,
desempenhando um importante papel no bem-estar
e no recrutamento do pessoal interno.51
51
Ibidem, p. 231
41
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Legislação
Cabe ao governo dar uma clara definição do que espera do Serviço de
Inteligência nos campos interno e externo. Devido à abrangência da área de
atuação desse serviço, é preciso escolher criteriosamente os setores de maior
interesse para a segurança nacional e proteção da sociedade, selecionando
as ameaças mais significativas. A limitação de recursos – sempre se recebe
muito menos do que se quer – determinará o que é possível fazer, dentro das
prioridades estabelecidas pelos formuladores de políticas.
A existência de uma Política Nacional de Inteligência é, pois, fundamental mas é imperioso reconhecer que nenhuma legislação é, por si só,
suficiente, mormente nesta área delicada, para garantir a eficácia do Sistema
de Inteligência. A legislação, em geral, é redigida em termos que permitem
diversas interpretações ou pode ser simplesmente ignorada, em especial se os
sistemas de controle e fiscalização internos e externos e, ainda mais, o sistema
de autocontrole da Agência, não são eficazes.
É a qualidade dos homens que compõem o Serviço que mais importa,
sua lealdade ao país e ao sistema, sua independência em relação às pressões
políticas ou de qualquer natureza que não se coadunem com a finalidade precípua do Sistema.
Alguns princípios devem servir de base para orientar a elaboração
da legislação pertinente e o comportamento de todo o pessoal do Serviço de
Inteligência. A relação que se segue não é exaustiva e deve ser encarada apenas
como um ponto de partida para uma discussão completa do problema:
● uma agência nacional de Inteligência única deve coordenar as ações de
inteligência interna, externa e militar;
● um serviço de Inteligência voltado para o campo interno é indispensável,
independentemente do sistema de governo, autocrático ou democrático;
42
Inteligência e Interesses Nacionais
● as ações da Inteligência no campo interno têm de se coadunar com as leis
do país, no que concerne à Ética, e isso é que faz a diferença entre um sistema
autoritário e um democrático;
● o produto final do Serviço de Inteligência deve ser balanceado em perspectiva, isto é, não pode ser tendencioso, e objetivo na sua apresentação. Em
nenhuma circunstância, a Inteligência deve sugerir uma linha de ação particular. A função da Inteligência, quando feita apropriadamente, é estritamente
informativa.52
● os Serviços de Inteligência devem servir aos interesses do Estado e não a
certas conveniências do governo e não podem ser usados para atender a interesses pessoais ou de grupos; ou, noutras palavras, “os sumários e as análises
do Serviço de Informações devem ser, estritamente, apartidárias e objetivos”53,
ou, ainda, “a independência de um Serviço de Informações ante interferências
político-partidárias deve ser salvaguardada por Lei”54;
● controles internos e externos, estes envolvendo o Legislativo, são imprescindíveis, além de um auto-controle do qual fará parte a Segurança Orgânica;
● “um Serviço de Informações tem necessidade de um mínimo de proteção
contra a curiosidade do público, se quiser cumprir convenientemente sua
missão”55; ou de forma ainda mais incisiva: “É princípio cardinal e imutável
que os Serviços de Informações devam gozar de toda a discrição, para que
possam levar a cabo suas missões. As exigências de segurança são uma razão
óbvia para essa orientação, e, além disso, seria ilusório esperar que tal tipo de
serviço pudesse ser supervisionado por funcionários civis leigos no assunto”56;
porque não há dúvida de que “se a organização do Serviço de Informações,
Marchetti e Marks, op. cit., p. 295
Gehlen, op. cit., p. 225
54
Ibidem, p. 230
55
Ibidem, p. 27
56
Ibidem, p. 213
52
53
43
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
for um segredo aberto a quem está do lado de fora, em pouco tempo o inimigo
chegará até dentro dela.”57;
● “por questão de Segurança, deve-se manter o número de elementos
operacionais em um nível mínimo, pois quanto menor a estrutura, mais
fácil será mantê-la sob vigilância e maior será a chance de detectar,
rapidamente, os ‘vazamentos’”;58
● a segurança do Sistema está na adoção do princípio de “compartimentos estanques” de forma que “nenhum membro de qualquer rede deve
conhecer alguém pertencente ao Serviço de Informações, que atue fora
de seu respectivo Órgão de Informações”;59 ou “por si só, as considerações de segurança exigem que a estrutura interna de um Serviço de
Informações possua tantos compartimentos estanques, que, em certas
ocasiões, problemas podem ser mantidos sob minuciosa observação por
dois órgãos diferentes. Estes, agem de maneira totalmente independente e
desconhecendo-se mutuamente, como interessados no mesmo problema,
para que se possa, dessa forma, fazer luz sobre possíveis erros;”60
● também o setor externo da organização de Informações, o que trabalha
no campo, deve ser organizado com grande número de células pequenas e não em poucas redes de grandes proporções: “as grandes redes se
ressentem da flexibilidade necessária. Quanto menores e mais versáteis
as agências, maior será a sua segurança;”61
● o uso de material ostensivo, que se encontra em livros, revistas e jornais, é uma fonte preciosa de informações;
● é fundamental a existência de um processo contínuo e sistemático
Ibidem, p. 228
Ibidem, p. 160
59
Ibidem, p. 177
60
Ibidem, p. 228
61
Ibidem, p. 228
57
58
44
Inteligência e Interesses Nacionais
que trabalhe com as informações recebidas de todas as fontes disponíveis;
● “a obtenção de informações exige sempre que ela seja orientada para
fins específicos;”62
● uma burocracia excessiva prejudica inevitavelmente o Serviço de
Inteligência;63
● é fundamental que haja estreita cooperação entre a Comunidade de
Inteligência e a Comunidade a quem cabe a repressão aos delitos; o
crime organizado, o terrorismo, etc, estão levando a uma sobreposição
dos interesses e responsabilidades dos dois serviços;
● a transnacionalidade do crime organizado, do terrorismo, de certos
problemas ambientais, etc, torna imperativo a cooperação entre os
órgãos de Inteligência dos países envolvidos numa operação conjunta;
essa cooperação não pode comprometer a soberania dos países envolvidos na operação;
● esta mesma transnacionalidade agrava a sobreposição das comunidades de Inteligência e de repressão de um mesmo país, quando envolvidas
numa operação envolvendo outros países, sendo necessário uma clara
definição do papel de cada uma nas diversas circunstâncias;
● “... os resultados de um esforço conjunto entre várias Agências de
Informações excederão de muito a soma dos esforços singulares dessas
Agências. Além disso, considerando uma troca regular de informações,
os fatos podem ser verificados duas ou mais vezes, as conclusões errôneas poderão ser evitadas e serem reduzidas a um mínimo as chances
de que o inimigo se infiltre numa determinada Agência”; 64
Ibidem, p. 121
Ibidem, p. 165
64
Ibidem, p. 209
62
63
45
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
● a coleta de informações no exterior por métodos não-ostensivos
deve ser usada de forma limitada, quando circunstâncias especiais o
exigirem, e, mesmo assim, devem se restringir a ações não-paramilitares;
● “as razões de Estado não permitem ao Chefe do Serviço de Informações e aos seus subordinados esperar apoio ou aprovação pública
para suas ações ... Todo Governo precisa contar com a oportunidade
de dissociar-se, publicamente, de incidentes em que os Serviços de
Informações excedam sua discrição”;65 (talvez Bush e Blair tenham
interpretado como “legítima” a atribuição da culpa aos seus Serviços
de Inteligência pelas ações que tomaram em relação ao Iraque);
● “a informação deve ser capaz de melhorar ou modificar as premissas sobre as quais o Governo baseia suas decisões; mas, jamais deve
ser utilizada como a única base para decisões, e sim, apenas como
uma fonte de ponderações especiais e novas, que podem , em certas
circunstâncias, ser suficientes para inclinar a balança decisória para
um ou outro lado;”66
● “os Governos devem dar aos Chefes de seus Serviços de Informações
inteira liberdade para organizar suas máquinas e realizar suas funções
da maneira que acharem mais conveniente”,67 o que implica inter alia
que eles tenham “toda liberdade para decidir sobre questões de pessoal, administrativas e organizacionais, necessárias para a eficiência
do serviço”;68 embora as diretrizes gerais para o Serviço de Informações venham do governo, “a direção especializada do Serviço, desse
Ibidem, p. 213
Ibidem, p. 225
67
Ibidem, p. 229
68
Ibidem, p. 230
65
66
46
Inteligência e Interesses Nacionais
momento em diante, deverá ser reconhecida como atribuição única e
exclusiva de seu Chefe.”69
● países subdesenvolvidos devem dar especial atenção à Contra-Inteligência porque “essas nações, subdesenvolvidas e muitas vezes corruptas,
parecem feitas por encomenda para as operações clandestinas” de outros
países; “seus governos são menos organizados e têm uma menor consciência de segurança; e há uma tendência para que nesses países haja
uma maior dispersão, real ou potencial, de poder entre partidos, regiões,
organizações e indivíduos que não estão no governo” e, portanto, “nas
freqüentes lutas pelo poder dentro desses governos, todas as facções são
gratas por assistência externa” de modo que “somas de dinheiro, relativamente pequenas, entregues diretamente a forças locais ou depositadas
(para os seus líderes) em contas em bancos suíços, podem ter um efeito
quase mágico em mudar lealdades políticas voláteis.”70
69
70
Ibidem, p. 237
Marchetti & Marks, op. cit., p. 26-7
47
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
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50
A IMPORTÂNCIA DA INTELIGÊNCIA NO
PROCESSO DECISÓRIO
Jorge da Silva Bessa
Ex-Oficial de Inteligência dos diferentes Órgãos de
Inteligência do Governo Federal, tendo atuado nas
áreas de Contra-espionagem, Contra-Terrorismo,
Crime Organizado, terminando por assumir as funções de Coordenador-Geral de Contra-Inteligência.
Atualmente é Diretor da empresa M&B – Inteligência
Competitiva Consultoria.
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
INTRODUÇÃO
O tema Inteligência é grandemente discutido e analisado nos países mais desenvolvidos, tanto nos meios acadêmicos como nos círculos
de defesa nacional ou segurança pública. Esta atividade é tão importante
que atravessa a História desde o Egito antigo até a atualidade, aparecendo
sempre, concomitantemente com o poderio militar, como um instrumento
fundamental de poder.
No Brasil – devido às deformações sofridas ao longo do regime
militar e à falta de estudos e discussões sérias sobre os seus reais objetivos – a Inteligência ficou marcada negativamente como uma atividade
policialesca, voltada para intrigas e perseguições de adversários políticos
do regime, e que colocava em um plano inferior os interesses do Estado
e da sociedade.
Mais recentemente, graças às discussões realizadas no Congresso
Nacional, em novembro de 2002, durante o Seminário “Atividades de
Inteligência no Brasil: Contribuições para a Soberania e a Democracia”
que visava à discussão da atividade de inteligência e do papel da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e em razão do surgimento e rápido
desenvolvimento da chamada “Inteligência Competitiva” ou “Business
Intelligence”, essa atividade começa a ser mais bem conhecida, apresentando-se como um importante instrumento à disposição do processo
de tomada de decisões.
Nos dois últimos anos, a partir dos atentados terroristas no World
Trade Center, no coração da nação mais poderosa do mundo, o termo
Inteligência voltou ao centro das discussões. Para alguns, os atentados
ocorreram por falhas nos órgãos de Inteligência; outros, ao contrário,
passaram a cobrar maiores poderes para a Inteligência norte-americana.
O debate estabeleceu-se em todos os jornais, revistas, círculos acadêmicos e governamentais, o que levou a uma reformulação da estrutura e do
53
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
desenvolvimento das atividades de Inteligência naquele país.
No Brasil, face ao crescimento das atividades das organizações
criminosas organizadas, que já desafiam a autoridade do próprio Estado
nos morros cariocas e nas periferias pobres de São Paulo, criando zonas
liberadas onde os agentes do Estado não conseguem entrar, já se começa a
ouvir aqui e ali, declarações favoráveis ao fortalecimento dessa atividade
nas polícias Militar e Federal de forma que elas consigam combater mais
eficientemente essa modalidade criminosa.
Isso já é muito bom, uma vez que até recentemente, as raras referências à atividade de Inteligência eram crivadas de muito desconhecimento e preconceitos por parte de quem as formulava. Diferentemente
dos Estados Unidos da América (EUA), onde dezenas de livros são
lançados anualmente e o papel da atividade de Inteligência é discutido
profundamente, os meios acadêmicos brasileiros não dispensam muito
interesse a esse tema, o que revela uma visão míope e acanhada, haja
vista a importância cada vez maior do Brasil no contexto internacional,
o que exige cada vez mais Inteligência de boa qualidade e discussões
maduras sobre o papel a ela reservado.
O objetivo deste trabalho é mostrar, de forma sintética, a importância da Atividade de Inteligência para o processo decisório no âmbito
dos governos, organizações e empresas, e a necessidade de que ela seja
melhor compreendida pelos diferentes segmentos da sociedade, particularmente àqueles que mantêm uma atitude de eterno preconceito e
desconfiança em relação a ela
A INTELIGÊNCIA: O QUE É, E PARA QUE SERVE
Nada é mais crucial no processo de tomada de decisões do que
54
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
as relações entre as informações e a política, ou, num sentido mais
amplo, entre o conhecimento e a ação. Em um mundo cada vez mais
globalizado, onde a mídia apresenta instantaneamente fatos importantes
que ocorrem em diferentes partes do planeta e onde somos inundados
por milhões de informações fornecidas pela Internet, cada vez mais os
decisores precisam de informações especiais, necessárias para a melhor
condução dos negócios públicos ou privados, e que possam fazer pender,
em seu favor, a balança dos eventos futuros. Essa informação especial
chama-se Inteligência.
Sherman Kent, professor da Universidade de Yale, em seu livro
“Inteligência Estratégica” (1967), aborda a Inteligência sob três diferentes
significados: um tipo especial de informação, uma atividade especial e
uma organização também especial. Veremos a seguir, com mais detalhes,
cada um deles.
Inteligência como Informação ou Conhecimento
Enquanto conhecimento, Kent define a Inteligência como “... os
conhecimentos que nosso Estado deve possuir em relação aos outros
Estados a fim de assegurar que nem sua causa, nem suas iniciativas falhem, devido ao fato de seus estadistas e soldados planejarem a agirem
na ignorância”. Entende ele ainda, que a “Inteligência é mais do que
um simples conhecimento. É o conhecimento adquirido, isto é, houve
intenção e esforço para obtê-lo”.
Já o professor Washington Platt, em seu livro “A produção de
Inteligência Estratégica” - clássico que inspirou o ensino na extinta
Escola Nacional de Informações (Esni), e em várias outras escolas de
Inteligência norte e sul-americanas - define Inteligência como “... um
termo específico e significativo, derivado de informação, informe, fato ou
55
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
dados que foi selecionado, avaliado, interpretado e finalmente expresso
de forma tal que evidencie sua importância para determinado problema
de política nacional corrente”. Quando se refere à Inteligência Estratégica, Platt define-a como “... o conhecimento referente às possibilidades,
vulnerabilidades e linhas de ação prováveis das nações estrangeiras”.
Já para o acadêmico Ariel Levite (1987) da Columbia University,
conforme citado em seu livro “Intelligence and Strategic Surprise”,
Inteligência é “... o tipo de conhecimento que os decisores políticos
devem ter para fazer frente às possíveis ameaças”.
Para Angelo Codevila - “Informing Statecraft Intelligence for a
New Century” (1992), a Inteligência é “... um instrumento de conflito.
É composta de palavras, números, imagens, sugestões, avaliações e
estímulos”.
Josias Carvalho, em seu livro “A Informação” (1963), define
informação (no sentido de Inteligência) como “o produto resultante do
processamento de informes e informações através de um processo de
elaboração mental”.
De acordo com Robert Steele, presidente da Open Source Solutions
e um dos maiores especialistas norte-americanos nessa matéria, Inteligência é “a informação trabalhada para dar suporte a uma decisão específica,
para uma pessoa específica, sobre um tema específico de um determinado
tempo e lugar”.
O almirante William Raborn, ex-diretor da CIA definia Inteligência como “a informação que foi cuidadosamente avaliada quanto à sua
exatidão e significado”.
A definição mais amplamente difundida pode ser encontrada no
“Dictionary of the United States Military Terms for Joint Usage”, segundo
o qual “Inteligência é o produto resultante da coleta, avaliação, análise,
integração, e interpretação de todas as informações disponíveis, relativas
56
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
a um ou mais aspectos de nações estrangeiras ou de áreas de operações
e que é imediata ou potencialmente importante para os planejadores”.
Para Abraham Shulsky, em seu livro “Guerra Silenciosa:
Comprensión del Mundo de la Inteligencia”, o termo se aplica a
certos tipos de informação, atividade, ou organização. Enquanto informação, a Inteligência é definida como “a informação importante
para a formulação e instrumentação governamental que permita melhorar seus interesses de segurança nacional e enfrentar as ameaças
e os interesses provenientes dos adversários potenciais”.
O Dicionário de Termos Político-Militares da Junta Interamericana de Defesa traduz a Inteligência como “informações ministeriais
integradas, que englobam os aspectos principais da política e segurança
nacionais”. Quanto à Inteligência Estratégica, assim está definida:
“conhecimento referente à capacidade e vulnerabilidades de nações
estrangeiras, e que é necessário aos planejadores para a estruturação
da defesa nacional adequada em tempo de paz, e forma a base para as
operações militares projetadas para tempos de guerra”.
O Dicionário Francês de Espionagem e Contra-Espionagem, de
autoria de Geoffroy d’Aumalé (1998), utiliza o termo “Renseignement”, o
equivalente de Intelligence, sempre no sentido de informações trabalhadas
que visam a atender as necessidades do processo decisório. O mesmo significado pode ser encontrado no Dicionário Britânico de Termos Militares.
De acordo com a doutrina brasileira de Inteligência, a atividade
de Inteligência é o exercício permanente de ações direcionadas para:
● A obtenção de dados e avaliação de situações que impliquem ameaças,
veladas ou dissimuladas, capazes de dificultar ou impedir a consecução
dos interesses estratégicos do Brasil;
● A obtenção de dados e a avaliação de situações que representem opor57
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
tunidades para a consecução dos interesses estratégicos do país;
● A identificação, avaliação e neutralização da espionagem promovida
por serviços de Inteligência estrangeiros;
● A identificação, avaliação e neutralização de ações adversas promovidas
por organismos ou pessoas, vinculados ou não a governos;
● A salvaguarda dos conhecimentos e dados que, no interesse da segurança do Estado e da sociedade, devam ser protegidos.
Passando agora para a aplicação da Inteligência ao mundo dos
negócios, a chamada Inteligência Competitiva, vejamos algumas definições:
Para Leonard Fuld, Inteligência Competitiva é “a informação
analisada sobre os concorrentes que tem implicação no processo de
tomada de decisão da empresa”.
Johnn Herring define Inteligência Competitiva como “... o
conhecimento do ambiente competitivo da organização e de seu macro-ambiente, aplicado a processos de tomada de decisão, nos níveis
estratégico e tático”.
Bevin Wigan, professor da Queensland University, da Austrália,
define a Inteligência Competitiva como produto e como processo. O processo envolve a “atividade mental voltada para estabelecer o significado
de fenômenos no mundo corporativo e suas repercussões”. O produto
decorrente desse processo é a Inteligência.
O professor Phillipe Baumard, da Université de Versailles Saint
Quentin, classifica a Inteligência Competitiva como l’Intelligence
Economique, que, para ele é “o esforço continuado de coleta, análise
e disseminação de informações.” De acordo com Carrol, M. (1997),
professora da mesma universidade “a essência da inteligência é coletar
dados e deles extrair informações úteis. No que se refere ao mundo dos
58
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
negócios, significa conhecer o mercado e conhecer os competidores”.
Para Arik Johnson (1998), consultor de Inteligência Competitiva
e diretor da Aurora WDC “a Inteligência Competitiva está relacionada
principalmente com as análises sobre o competidor, seus objetivos futuros, sua estratégia atual, e sua capacidade”.
Seria muito longa a lista de definições e de visões sobre Inteligência, seja ela competitiva, econômica, militar ou governamental. O que
interessa destacar, de todas essas definições, são os seguintes pontos:
● A maioria dos autores entende a Inteligência como um produto final,
um produto refinado, destinado ao assessoramento;
Fundamentalmente a Inteligência deve servir como suporte ao processo
decisório e ao planejamento estratégico;
● É baseada em uma metodologia de coleta e interpretação de dados e
informações;
● Destina-se a atender uma necessidade específica dos planejadores e
decisores;
● Deve ser pró-ativa;
● O esforço da Inteligência Competitiva vai ser o meio-ambiente empresarial, os competidores, suas potencialidades e fraquezas, as ameaças
que podem representar, etc.;
● É voltada para a decisão, para a ação;
● Deve avaliar a capacidade atual, a potencialidade futura, e intenções
de potências estrangeiras, exércitos ou competidores.
Inteligência como Atividade
Como atividade especial, deve-se entender que, em boa medida,
a Inteligência irá atuar em um ambiente onde o sigilo é uma arma fun59
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
damental por parte daqueles que não desejam que seus conhecimentos,
atividades ou ações sejam descobertos.
Em relação a isso se convencionou dizer que o que distingue a
atividade de Inteligência de outras atividades é exatamente a busca do
dado negado, o que exige o emprego de métodos e equipamentos especiais. Obviamente essa assertiva é válida apenas para a Inteligência governamental, pois, no ambiente coorporativo, a Inteligência Competitiva
preconiza a utilização de fontes abertas e desaconselha-se o emprego da
espionagem, ou de qualquer ação ilegal.
Assim sendo, pelo amplo espectro de sua atuação, a Inteligência
necessita de profissionais especialmente preparados, já que o adversário
irá se proteger por todos os meios através de Contra-Espionagem e outras
medidas de Contra-Inteligência.
Felizmente parece que a sociedade começa a entender a seriedade
e o alcance do trabalho desses profissionais, diferentemente da ignorância ou má-fé usada por alguns setores que procuram desacreditá-los, de
todas as formas, referindo-se a eles sob a denominação depreciativa de
“arapongas”, como se exercessem atividades ilegais, antidemocráticas
ou trapalhonas. Assim, em Seminário sobre a atividade de Inteligência
realizado no Congresso Nacional, referências elogiosas ao trabalho desses
profissionais foram feitas por vários palestrantes despidos de contaminações ideológicas, sendo as mais enfáticas as realizadas pelo Deputado
Aldo Rebelo, então presidente da Comissão de Relações Exteriores e
Defesa Nacional.
Por outro lado, infelizmente, à medida que a atividade vai se
firmando junto à sociedade, o termo vai sendo promiscuído por parte de
alguns órgãos que querem, a todo custo, dizer que fazem Inteligência.
Assim é comum se ouvir, nos noticiários da mídia, informações referentes a atividades de pura investigação policial que são anunciadas como
atividade de Inteligência.
60
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
Ao mesmo tempo, membros de outros setores que mais tradicionalmente trabalham com a Inteligência como o segmento militar, não
admitem que exista Inteligência fora da esfera de atuação do Estado.
Segundo essa linha de pensamento a atividade de Inteligência Competitiva é um modismo passageiro e não tem nada a ver com verdadeira
Inteligência que, segundo eles, é monopólio de Estado a exemplo do
monopólio do uso da força pelas organizações policiais.
A despeito do que pensam setores mais conservadores, o fato é que
essa atividade cada vez mais ganha adeptos no mundo corporativo como
instrumento fundamental para se vencer a guerra da competitividade na
Era da Informação e da Globalização, o que foi comprovado pela maciça presença de profissionais no 5º Workshop Brasileiro de Inteligência
Competitiva e Gestão do Conhecimento, realizado em Brasília, no final
de outubro de 2004. Sobre ela falaremos um pouco, mais adiante.
Inteligência como Organização
Finalmente, a Inteligência como organização aponta na direção de
uma aparente contradição das democracias: um órgão do Estado baseado
no segredo e cujo produto, embora reverta em favor da sociedade, não está
acessível a ela. Exatamente para evitar o perigo que representa uma organização de Inteligência sem o controle da sociedade é que são criadas as
Comissões de controle da atividade de Inteligência, geralmente exercidas
pelo parlamento, o que garante que o poder conferido pelas informações
não seja utilizado contra a sociedade ou contra a democracia.
Outra característica dessas organizações é que elas são conhecidas
mais pelas suas falhas, que são episódicas, do que pelos acertos. De nada
adianta décadas de bons serviços se ocorre um atentado como o do World
Trade Center, que foi entendido como falha das diferentes organizações
de Inteligência norte-americanas, embora os políticos não reconheçam
61
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
suas responsabilidades ao restringirem a ação dessas organizações, o
que lhes reduz a eficiência.
Longe vão os tempos de Sun Tzu, grande general chinês que entendia e utilizava perfeitamente a atividade de Inteligência, louvando seus
profissionais como a nata que toda a sociedade deveria ter e se orgulhar.
A sina de quase todas as organizações de Inteligência de Estados democráticos é a de sempre contar com a desconfiança da sociedade, embora
empregue os melhores esforços de seus profissionais para garantir as
liberdades democráticas, o desenvolvimento econômico e a paz social.
Por tudo que foi visto fica claro que as funções da Inteligência
contemplam uma ampla variedade de atividades governamentais ou
empresariais, relacionadas com a segurança e com as políticas desenvolvidas pelo governante, no primeiro caso, e com a necessidade de dispor
de vantagens competitivas, no segundo.
Assim, deve-se reconhecer a Inteligência como um produto acabado, cujo valor está na eficiente coleta de informações, na adequada e
profissional interpretação das mesmas, e sua rápida e eficaz difusão aos
decisores.
No que diz respeito ao processo decisório, seja no plano federal,
estadual, ou empresarial a Atividade de Inteligência tem por objetivo
subsidiar as decisões, alertando para a presença real ou potencial de
obstáculos à consecução ou manutenção dos objetivos do governo ou das
empresas. Neste sentido, a Inteligência tem um caráter preventivo.
O mais importante papel da Inteligência, em última análise, é de
proporcionar conhecimentos antecipados e suprir as necessidades do seu
usuário. Assim, o planejamento e a direção da Atividade de Inteligência
envolve a administração de todos os esforços visando identificar os dados
e informações necessárias ao decisor. Esse processo pode ser iniciado
por solicitação direta da autoridade decisória – Presidente da República,
62
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
Ministros, Governadores, ou Secretários de Governo, etc. Em muitos
casos, tais solicitações já foram institucionalizadas por meios dos “Planos
de Inteligência”, em que cada um dos diversos órgãos do governo fixará
suas necessidades próprias de Inteligência, de modo que seus dirigentes
possam tomar decisões sobre planos e programas.
Uma preocupação constante da sociedade em relação à Atividade
de Inteligência diz respeito a possíveis desvios que possam ocorrer e
que venham a colidir com a democracia. Em relação a isso, a autoridade
decisória deve se pautar pelo respeito ao arcabouço jurídico existente, de
forma que essas atividades se desenvolvam em um contexto de legalidade
e em obediência irrestrita aos parâmetros de um Estado Democrático de
Direito.
A Inteligência, além de ser apartidária, deve ter por princípios a
neutralidade e o claro respeito às leis. O mandato estipulando as atribuições da atividade deve ser aprovado pelo povo, por meio dos seus
representantes no Legislativo, de forma a assegurar equilíbrio entre sigilo
e transparência, oferecendo-se àqueles o papel fiscalizador.
Para o século XXI as preocupações da Inteligência também devem
ser estar além daquelas tradicionalmente ligadas à segurança nacional,
incluindo temas como o aprofundamento da democracia, o desenvolvimento econômico sustentável e a justiça social. As políticas de segurança
devem englobar uma ampla e complexa gama de questões, que abordem
as vulnerabilidades da sociedade, buscando a promoção de um ambiente
estável e no qual todos possam gozar dos frutos da civilização e de uma
existência próspera.
Um moderno conceito de segurança deve abranger os setores
econômico, ambiental, tecnológico, social, político e militar. Um completo entendimento de cada um desses setores só pode ser obtido se os
correlacionarmos uns com os outros, uma vez que as tentativas de tratar
segurança isoladamente podem levar a sérias distorções.
63
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Para evitar isso, a Lei nº 9.883/99 de criação da Abin estipula que
“os órgãos e entidades da Administração Pública Federal que, direta ou
indiretamente, possam produzir conhecimentos de interesse das atividades de Inteligência, em especial aqueles responsáveis pela defesa externa,
segurança interna e relações exteriores, constituirão o Sistema Brasileiro
de Inteligência, na forma de ato do Presidente da República”.
O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é o responsável pelo
processo de obtenção, análise e disseminação da informação necessária
ao processo decisório do Poder Executivo, bem como pela salvaguarda
da informação contra o acesso de pessoas ou órgãos não autorizados,
podendo as Unidades da Federação compor o referido Sistema através
de convênios e ajustes específicos.
As prioridades para um Sistema de Inteligência de países do porte
do Brasil deveriam ser:
● Determinação das Ameaças Externas – inclui a determinação das
possíveis ameaças imediatas de fronteiras ou regionais, incluindo os
fatores militares, políticos, econômicos e psico-sociais. Atualmente
avultam de importância as ameaças representadas pelo terrorismo e pelas
organizações criminosas transnacionais. Além disso, deve ser prioridade
a análise do desenvolvimento político, econômico e militar dos países
do Cone Sul.
● Determinação das Ameaças Internas – o modelo de Inteligência
brasileiro concentra em uma só organização a responsabilidade pelos
campos interno e externo. Cumpre ressaltar que a determinação das
ameaças internas é um ponto altamente sensível, haja vista a experiência recente do Sistema Nacional de Informações (SNI). No entanto,
parece cristalino que na determinação dessas ameaças deva se levar em
conta as atividades de pessoas, grupos, organizações e movimentos que
64
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
atuem contrariamente aos dispositivos constitucionais e contra o Estado
Democrático de Direito.
● Determinação das Oportunidades – é uma área geralmente negligenciada pela Inteligência. No entanto, a história mostra que os países que
crescem e se desenvolvem são aqueles que adotam políticas estratégicas
ativas, e não reativas, buscando as oportunidades e a liderança. Assim,
é de grande importância para os decisores a obtenção de informações
sobre como melhorar suas posições econômica, política ou militar,
quando for o caso.
● Inteligência Circunstancial – existem situações que não se enquadram
nas categorias de ameaças ou oportunidades mas que são importantíssimas para o processo decisório e para a governabilidade, de forma que
a ação governamental lhes retire o potencial de conflito ou de ameaça.
Nesta categoria podemos alinhar os conflitos de terra, questões indígenas,
ambientais, infra-estruturais, ineficácia dos órgãos públicos, atividade de
organizações criminosas locais e transnacionais, narcotráfico, espionagem
econômica e tecnológica, biopirataria, problemas raciais, movimentos
separatistas, conflitos entre estados-membros, etc. Enfim, esta categoria
compreende todos os óbices reais ou potenciais ao pleno atingimento das
políticas nacionais de desenvolvimento e paz interna.
Finalmente, creio que em um contexto onde as demandas são
grandes e os recursos são limitados, o funcionamento harmônico e
eficaz de uma Comunidade de Inteligência e o êxito dessa atividade
será decorrência da definição clara dos papéis, missões e prioridades de
cada um dos membros dessa comunidade. Um planejamento realista e
cooperativo será o eixo central para o sucesso.
Assim, é grande a responsabilidade daqueles que possuem a
incumbência de proporcionar o bem-estar político, social e econômico
65
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
a seus jurisdicionados, em um mundo que sofre céleres e profundas
transformações. Em conseqüência, os decisores, em todos os níveis da
estrutura político-administrativa, necessitam de informações de boa qualidade, que lhes permitam conhecer os fatores econômicos, ambientais,
tecnológicos, sociais, políticos, militares, capacidades, possibilidades,
limitações e vulnerabilidades, naquilo que possam comprometer ou
favorecer as políticas de governo delineadas.
A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E INTELIGÊNCIA COMPETITIVA
O grande crescimento que a chamada Inteligência Competitiva
vem obtendo, no Brasil, nos últimos anos, exige que façamos uma pequena referência a ela, neste trabalho, de forma que aumente a compreensão
da sociedade sobre a sua origem e desenvolvimento no País, particularmente depois da criação da Associação Brasileira dos Profissionais de
Inteligência Competitiva (Abaic).
Em 1980, o escritor Alvin Tofler, em seu livro A Terceira Onda,
anunciou o advento da chamada “Era da Informação”, também conhecida
como “Sociedade da Informação”, e “Economia da Informação”, em
substituição ao paradigma vigente na Segunda Revolução Industrial.
Esse novo paradigma afeta a vida de todas as sociedades, influenciando os aspectos políticos, culturais, sociais e econômicos, sendo,
portanto, da maior importância que os planejadores estratégicos dos
governos, das empresas e de outras organizações compreendam bem os
seus significados e conseqüências, visando obter os melhores proveitos
para seus negócios e, em última análise, para seus países.
A Era da Informação é decorrência dos avanços tecnológicos em
micro-eletrônica, telecomunicações, biotecnologia, novos materiais e
energias alternativas, bem como do processo de globalização da econo66
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
mia. Sua principal característica é o uso intensivo da informação pelo
cidadão comum, bem como a compreensão de que a informação passa
a se constituir em uma vantagem competitiva para o trabalhador, para a
empresa e para a nação, no plano da concorrência global.
Nessa nova sociedade, a expectativa é que a divisão internacional
passe a contemplar países ricos e países pobres em informação. As nações mais desenvolvidas, entendendo que a informação se constitui em
um bem intangível e um recurso fundamental, passam a desenvolver a
infra-estrutura necessária para tornar suas sociedades intensivas no uso da
informação, de forma a obter o sucesso econômico através do incentivo
à habilidade das pessoas em explorar as tecnologias da informação e do
acesso rápido e fácil às informações.
A partir daí passam a surgir novos conceitos, como operário
do conhecimento (Knowledge Worker); organizações voltadas para o
aprendizado (Learning Organizations) e nações inteligentes (Intelligent
Nations).
O conhecimento passa a ter uma função de importância decisiva
para o processo decisório e para o planejamento estratégico, surgindo daí
o termo “actionable knowledge” – ou conhecimento para a ação - o que
não é nenhuma novidade para os militares e planejadores estratégicos.
Relatórios da Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) dão conta que os setores intensivos em conhecimento
são responsáveis por cerca de metade do PIB dos países ricos. As vagas
para os chamados “trabalhadores do conhecimento” se constituíram
em 80% dos novos empregos. Somente nos Estados Unidos, 90% dos
empregos gerados nos últimos 20 anos foram no setor de serviços do
conhecimento; em contraste, nos setores industrial e agrícola, mais de 6
milhões de empregos foram perdidos e a expectativa é que esse número
continue aumentando.
67
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
A expansão da Internet, permitindo acesso rápido e fácil às informações, produz o fenômeno da hiper-informação, ou seja, um excesso de
informações disponibilizadas para o acesso de qualquer pessoa, gerando
a necessidade da formação de profissionais capazes de coletar, analisar e
agregar valor às informações, transformando-as em um produto acabado
– tradicionalmente chamado de Inteligência – e de fundamental importância para o processo de tomada de decisão.
Surge assim a Inteligência Competitiva, em franco crescimento no
Brasil, que faz uso intensivo das chamadas fontes abertas – informações
publicamente disponibilizadas – em contraposição ao modelo vigorante
nas agências estatais de Inteligência que valoriza prioritariamente as
informações de fontes secretas.
A utilização de fontes abertas tem a vantagem de evitar os custos
econômicos e políticos decorrentes da espionagem política ou econômica, além de permitir que as informações nelas baseadas possam ser mais
amplamente difundidas, diferentemente de quando se utilizam fontes
secretas, que restringem a difusão do conhecimento.
Assim, a Inteligência deixa de ser uma questão relativa à penetração de segredos e passa a ser uma questão de como capturar, de forma
rápida, legal e barata, todas as informações necessárias à decisão, seja
no âmbito das empresas ou do governo. Se no passado o secretismo e a
restrição ao conhecimento representavam vantagem, no novo padrão a
abertura e a flexibilidade passam a ser a nova regra do jogo.
Também, o papel do Analista de Inteligência é afetado, pois o seu
valor estará relacionado à sua capacidade em coletar e trabalhar informações abertas, integrando-as e desvelando-lhes o significado oculto.
Ao invés de habilidades técnicas ou de coragem para realizar ações
clandestinas, o novo analista deve apenas entender como o conhecimento
circula em uma sociedade aberta; sua grande arma passa a ser o domínio
de diversos idiomas.
68
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
Ao mesmo tempo em que a Era da Informação oferece oportunidades fantásticas, principalmente para as nações mais pobres através da
democratização da informação, ela faz surgir uma ameaça à privacidade
do cidadão e à segurança do Estado e da sociedade, ameaça essa representada pela Information Warfare – a InfoWar (Guerra da Informação),
onde o poder do conhecimento e da informação fazem sombra ao poder
militar tradicional.
A InfoWar está disponível para qualquer um que seja possuidor de
um computador e tenha um objetivo definido, criminoso ou não, conhecidos como hackers, crackers ou informations warriors (guerreiros da
informação). O computador pode se transformar em uma arma altamente
ofensiva, que utiliza artifícios variados como munição (vírus - Cavalo
de Tróia, bomba-relógio, etc.).
Nessa guerra os alvos podem estar divididos nos seguintes níveis:
Pessoal – uma vez que os nossos dados pessoais se encontram
distribuídos em centenas de computadores ou bancos de dados – públicos
ou privados – com pouco ou nenhum controle e sujeitos à modificação
criminosa, liberação não autorizada ou mesmo destruição.
Corporativo – onde a espionagem eletrônica se torna um instrumento útil na condução dos negócios através do ataque aos sistemas
de informação das empresas concorrentes, e também para a sabotagem
eletrônica.
Global - no pensamento de segurança tradicional as preocupações dos estrategistas estão voltadas para a defesa dos bens tangíveis,
quantificáveis e que possuam um valor concreto. Na Infowar os ataques
serão contra a infra-estrutura nacional podendo redundar em paralisação
dos serviços essenciais como abastecimento de água, energia elétrica,
telefonia, sistema bancário, etc.
As ações da InfoWar compreendem o furto, modificação e destrui69
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
ção das informações ou da capacidade de processamento de informações,
efetivadas, normalmente, através da intrusão ilícita nos computadores
em busca de dados de valor, por exemplo, através da interceptação de
Eletronic Mail (e-mail).
Pelo seu baixo custo, segurança, simplicidade e comodidade, a
InfoWar pode ser utilizada pelo crime organizado, por terroristas, narcotraficantes, investigadores particulares, grupos de ação política, competidores comerciais nacionais ou internacionais, grupos fundamentalistas
radicais e governos de Estados-párias.
É de fundamental importância que o Governo Federal se esforce para construir as bases para o desenvolvimento da sociedade da
informação no País, propiciando a todos as vantagens decorrentes das
tecnologias da informação e de comunicações, o que, juntamente com o
desenvolvimento da Inteligência Competitiva, redundará em ganhos para
as empresas, para a construção da cidadania e para a competitividade do
País. É o que estão realizando os países desenvolvidos.
Por outro lado, faz-se necessário que os setores estratégicos,
militares e de Inteligência do país promovam debates públicos com
especialistas, visando adequar o conceito de defesa à essa nova ameaça,
intangível e perigosa, de forma a se estabelecer uma política que garanta
a privacidade, a segurança das informações e a proteção da infra-estrutura
nacional. Também deve ser analisado o papel dos hackers e crackers,
que podem ser bandidos ou mocinhos, podendo estes últimos serem
aproveitados com inteligência pelo Estado, caminho trilhado por vários
países – Israel é um exemplo. O importante é o debate com a sociedade
no sentido de esclarecê-la, ajudando-a a se defender e recebendo dela
as sugestões adequadas.
70
A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório
CONCLUSÃO
A Inteligência é parte das funções normais desenvolvidas pelos
governos, organizações e empresas constituindo-se em um instrumento
que permite aos decisores administrar conflitos e superar eventuais obstáculos à ação governamental ou empresarial. Ademais, a Inteligência
não deve se ater apenas às ameaças, mas também vislumbrar as oportunidades que se apresentem ao governante para a consecução dos seus
interesses estratégicos.
Ao profissional de Inteligência das organizações estatais não
é permitido ter uma agenda própria; ele é um servidor do povo e da
Constituição, que deve ter por linha-mestra o interesse da sociedade e
do Estado.
A Inteligência seja a estatal, ou a competitiva, deve cooperar na
promoção de Democracia, Estabilidade, Desenvolvimento Nacional,
Paz e Harmonia Social.
71
PERSPECTIVAS PARA A INTELIGÊNCIA
EXTERNA DO BRASIL
Alexandre Martchenko
Ex-Oficial de Inteligência, tendo chefiado vários
segmentos da área de formação (EsNI) e análise
(AC/SNI), culminando com a função de direção
geral nacional da atividade como Subsecretário de
Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos
(SAE), posteriormente Casa Militar, hoje Gabinete de
Segurança Institucional (GSI). É um dos próceres da
criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).
Foi, também, Presidente do Conselho Nacional de
Imigração (CNIg). Atualmente é Professor/Assessor
de Relações Internacionais e Coordenador de
Estratégia na Graduação e Pós-graduação da Universidade Católica de Brasília (UCB).
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Desde os tempos imemoriais aparecem registros da presença da
atividade de Inteligência – então caracterizada como reconhecimento,
espionagem e informação – como aspecto inerente ao desenvolvimento da
humanidade. A própria Bíblia apresenta exemplos no relacionamento entre várias etnias em formação, raças em evolução e povos em dominação.
As grandes conquistas foram palmilhadas por episódios fortalecidos pela
presença dessa importante atividade tornando-a inerente à consolidação
de um Estado em formação.
Assim, as conquistas romanas e a expansão grega no Mundo
Antigo, bem como o espraiamento das hordas mongóis, do Império
Otomano e do crescimento do domínio russo na Eurásia, foram respaldadas em reconhecimento prévio, e sua sustentação por longos períodos
foi garantida pelo aprimoramento do aparato de informações. Aliás, o
primeiro serviço de inteligência de que se tem notícia no mundo contemporâneo, foi criado por Ivan, o Terrível, para consolidar seu domínio
sobre os boiardos, senhores feudais russos da época. A Era Napoleônica
na Europa, bem como o domínio colonizador inglês no mundo, ocorreram
em grande parte através do aperfeiçoamento dos sistemas de captação de
dados, controle e antecipação das iniciativas dessas frentes. É o sistema
inglês o paradigma mais tradicional para os estudiosos dessa importante
área do conhecimento humano.
Cumpre salientar que tanto para consolidar sua atuação no campo
interno como para qualquer política de expansão internacional, todos
os Estados sempre tiveram, na área de Inteligência, uma preocupação
primordial com a Inteligência externa.
No continente americano, ou assim chamado Novo Mundo, além
da peculiaridade das conquistas dos europeus no início da colonização, na
medida em que as sociedades foram se aperfeiçoando e a concepção de
75
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
governo e Estado tomando forma, a assessoria de informações, segurança
e defesa foi crescendo em importância. Segundo alguns historiadores, a
própria libertação e secessão norte-americana tiveram influência marcante
da, então incipiente, atividade de Inteligência. Ademais, o governo dos
EUA, após a Segunda Guerra Mundial, quando, apesar das vitórias, foi,
em muitas oportunidades, surpreendido por ausência de informação ou
pela falta de análise e interpretação correta dos dados obtidos, criou uma
comunidade (sistema) centralizada de Inteligência, com ramificações nas
áreas sensíveis da estrutura do Estado. Esse estamento vem apoiando o
desenvolvimento do país tanto na seara interna como no âmbito internacional, apesar de sofrer grande reestruturação pós 11 de setembro de
2001 com a criação do Homeland Security.
Na América do Sul, a origem e o desenvolvimento das principais
estruturas de Inteligência sofreram forte influência da doutrina norteamericana. Sob o apanágio da contenção do Movimento Comunista
Internacional, essas organizações foram fortemente marcadas e, em alguns casos, funcionaram como sucursais do sistema norte-americano em
prol dos seus interesses estratégicos, com reflexos nos campos político
e econômico. Tal situação não deixava de ser uma espécie de sistema
internacional. Nos fins dos anos sessenta e década de 70, em especial,
assistiu-se à escalada de movimentos subversivos de inspiração marxista,
fato que contribuiu para a derrocada das ainda incipientes democracias
sul-americanas e a conseqüente instalação de regimes militares fortes,
chegando em muitos casos nos extremos ditatoriais.
Cumpre ressaltar que o alinhamento quase automático desses
governos com a doutrina norte-americana – uma vez que a cúpula militar
em grande parte havia realizado cursos nos EUA - aliado ao interesse
estratégico do então governo de Washington acarretou a criação de diversas doutrinas de segurança nacional, as quais exigiam a criação de uma
organização de informações para dar-lhes sustentação. Em conseqüência,
76
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
assistiu-se ao surgimento de diversos Serviços de Informações em países
latino-americanos, com atuação preponderante no campo interno, com
a finalidade precípua de combate à subversão.
O Brasil não ficou à parte desse processo, incorrendo no mesmo
caso com o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), que, apesar
de ter atribuições na produção de informações externas de contra-espionagem, pautou sua atuação, desde o surgimento em 1964, principalmente,
na produção de informações do campo interno. No entanto, demonstrava maior autonomia do que os demais serviços e, onde também foram
empreendidas iniciativas de grande visão no campo externo, após a
consolidação inicial do movimento.
Como curiosidade é interessante observar que a concentração
dessas três atividades em uma única estrutura, com preponderância
para o controle interno, até algumas décadas atrás, era típica de regimes
totalitários, como no caso o Comitê de Segurança do Estado (KGB), da
então União Soviética e de seus congêneres do Pacto de Varsóvia, no
Leste Europeu. Essa estrutura, oriunda daquela primeira organização
citada anteriormente, caracterizava sobremaneira o caráter sistêmico e
também expansionista para o exterior de suas atividades, uma vez que,
era o chamado braço armado para a exportação da ideologia pelo mundo,
um dos ditames fundamentais do regime soviético.
O desmoronamento do Império Soviético e o conseqüente desaparecimento do inimigo comum do Ocidente, acarretando o fim da Era
da Guerra Fria e de uma ordem internacional bipolar, promoveu uma
completa reformulação das políticas de defesa em todo o mundo, com
reflexos significativos na atuação dos serviços de inteligência. A sociedade, por sua vez, também passou a questionar, a participar de definições
quanto à validade e aos novos objetivos para nortear a atuação desse
importante segmento de governo.
No início deste século, com o episódio do atentado às torres gê77
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
meas, em Nova York, nova guinada ocorreu na atividade de Inteligência
em todo o mundo, com ênfase na necessidade de reestruturação e formação de sistemas com amplo intercâmbio entre os Estados-Nação para se
contrapor à nova ameaça no cenário internacional: o terrorismo.
Assim, o mundo assistiu, ao longo dos tempos, à criação de vários
organismos ligados à atividade hoje conhecida como Inteligência, os
quais mesmo que voltados precipuamente para a área interna, terminavam
por atuar na externa, na maioria das vezes em caráter sistêmico, até para
a sua própria sobrevivência.
PRIMÓRDIOS DA ATIVIDADE NO BRASIL
Há controvérsias quanto à criação efetiva do primeiro estamento de
Inteligência no Brasil. Alguns citam 1927, com o estabelecimento do Conselho de Defesa Nacional (CDN), no Governo Washington Luis. O órgão teria
sido criado pelo receio do crescimento do Movimento Comunista Internacional, e após o Levante de 1922, do movimento em São Paulo, em 1924, e
a Coluna Prestes em 1925/27. A crítica incide sobre o papel desempenhado
pelo CDN, de pouca participação na deposição do Presidente Washington
Luis, bem como no episódio Júlio Prestes e eleição de Getúlio Vargas. No
entanto, a maioria dos analistas destaca o papel preponderante durante o
Estado Novo, como sustentáculo da chamada ditadura de então, mas sem
ainda uma caracterização real de assessoria de Inteligência.
A maioria dos experts, no entanto, estipulam 1946, com o Serviço
Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI) e a data de 06 de
setembro, como marco inicial da Inteligência no País. É bom lembrar a
situação de pós-guerra vivida pelo mundo na época, e o início da bipolaridade que caracterizou boa parte do século passado, conforme já citado na
introdução.
78
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
Em 1955, após o suicídio de Vargas e a frutificação do pensamento
liberal, notadamente nas escolas militares Escola Superior de Guerra
(ESG), Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), etc,
começam a surgir as idéias preliminares de uma doutrina de informações, que teve seu ápice com a criação do SNI, após o movimento de
64. No entanto, alguns acontecimentos fizeram com que a ênfase dada
pela Inteligência - inicialmente maior para o campo interno, e após sua
consolidação conforme já citado - tivesse seu foco diversificado.
No Governo Costa e Silva, a iniciativa de participação na produção de artefatos atômicos para fins pacíficos, por exemplo, bem como as
mudanças de ênfase na política externa, direcionando-a para a Europa e
África, foram posturas importantes na auto-afirmação do país no cenário internacional, sempre acompanhadas pela ainda incipiente área de
Inteligência externa.
Foi no Governo Geisel, a grande guinada ascensional da senóide
para a área externa e, por conseguinte, na atividade de Inteligência. A
postura moderna, mais independente, tanto ao denunciar o acordo com os
EUA como nas múltiplas iniciativas ao redor do mundo, ensejou maior
participação e apoio por parte do estamento de Inteligência.
Assim, o envolvimento no conflito de Angola, visando cobrir os
embates entre o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA)
versus a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) e
abrindo caminho para a participação de empresas nacionais na tentativa de
construção do país, teve grande participação de membros da Inteligência.
O mesmo ocorreu em Moçambique no caso da Frente de Libertação de
Moçambique (Frelimo).
As negociações comerciais com o Iraque, desde 1978/79, onde
foi instalado um posto de Inteligência, abriram boas perspectivas para a
indústria de armamento brasileira, entre outras. A venda de armas para
a Líbia e as negociações com o Egito também caracterizaram essa fase
79
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
de importantes dividendos e autonomia no campo externo.
O Governo Figueiredo deu continuidade e aperfeiçoou esse intento. Assessorado pelo General Medeiros (Octávio Aguiar de Medeiros)
de notável visão e iniciativa, a área externa da Inteligência começou a
plantar os alicerces para sua atuação no mundo contemporâneo. Foram
aprofundados estudos e participação in loco em atividades da área da
então Cortina de Ferro e da Europa em geral. A criação do posto em Genebra serviu como centralizador dessas iniciativas. Foram incrementadas
as ligações com países que apresentavam similaridades: África do Sul,
México, Coréia do Sul e outros asiáticos.
Nas vizinhanças sul-americanas procurou-se consolidar o relacionamento e criar anteparo para o surgimento preocupante das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A abertura de posto de
Inteligência no Peru – onde havia uma crescente presença soviética no
fornecimento de armamento e equipamento militar – como também no
Suriname, ponto estratégico de crescente importância no continente,
principalmente após as intervenções dos EUA no Panamá, Granada e
outras situações semelhantes de instabilidade na América central, (como
Nicarágua e El Salvador), também foram importantes para a afirmação
da Inteligência brasileira no exterior.
Como ponto crítico nesta fase, ou seja, uma adversidade ou relação
negativa no tocante aos insucessos, pode-se alinhavar a surpresa com
a eclosão da Guerra da Malvinas, em 1982, fato que acelerou a criação
do posto na Argentina, que depois passaria a ser muito importante nas
iniciativas para o surgimento do Mercosul em 1985.
Em contrapartida, pode ser citado como vitória, ou exemplo de
sucesso do serviço de Inteligência da época, o acompanhamento e as
análises prospectivas das possíveis decorrências da situação no Leste
Europeu. Tanto nas atividades na área, principalmente em apoio à embaixada brasileira em Moscou, como principalmente no fornecimento de
80
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
dados, isentos e frutos de acompanhamento de várias fontes (informantes,
entrevistas, contatos e operações com dissidentes, via-satélite, e in loco
etc.) para a tomada de decisões governamentais, esse foi um setor que se
fortaleceu e passou a ser ponto de excelência da Inteligência brasileira.
A situação no Médio Oriente no final da década de 80, a situação do Kuaite no início de 90 e a conseqüente operação Tempestade no
Deserto, em 91, com os desdobramentos para o novo enfoque para a Inteligência, conforme será comentado mais à frente, provaram a validade
da participação da área de Inteligência para melhor acompanhamento
das evoluções e decorrências.
EVOLUÇÃO RECENTE DA INTELIGÊNCIA NO BRASIL
O processo de redemocratização do Brasil e o surgimento de nova
Constituição, onde os direitos e garantias individuais ganharam força,
fizeram com que práticas usualmente empregadas na primeira fase do
SNI fossem reenquadradas, ou em alguns casos, coibidas. Tais práticas
estiveram mais ligadas ao campo interno e a transformação ocorreu,
tanto pelas mudanças no quadro político institucional interno e externo
como, também, pela falta de respaldo na legislação em vigor. Aliás, em
particular, causou espécie durante essa transformação quando agentes
do então serviço foram instados a acompanhar os efeitos de um dos
planos econômicos do governo, “contando boi no pasto” literalmente,
para coibir a alta de preços na entressafra, num total desvirtuamento da
atividade-fim.
No início do Governo Collor, a criação do Departamento de Inteligência (DI), atrelado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), não
impediu, no entanto, que setores importantes da sociedade, em especial
a imprensa, continuassem a ver o novo órgão como um instrumento de
81
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
repressão política ou mesmo de uma entidade ligada à perseguição dos
cidadãos e de quase nenhuma utilidade para o País. Cumpre ressaltar
que a ênfase das críticas repousava nas atuações do órgão no campo
interno extrapolando suas atribuições institucionais, não sendo abordada
a atuação externa por natural falta de conhecimento.
O ato de criação do Departamento de Inteligência, em 1990, foi
um ato tão ou mais drástico que a criação do SNI, em 1964. O serviço
foi criado por projeto de lei e, a despeito do clima favorável gerado pelo
fervor “revolucionário” da época, não se deu senão após intenso debate
no Congresso Nacional. A criação do Departamento de Inteligência,
em contrapartida, responsável pelas atividades de Inteligência, deu-se
por Medida Provisória (nº 150, de 15 de março de 1990). A medida não
explicitou o entendimento de “inteligência”, apesar de ser um conceito
absolutamente novo no léxico brasileiro, utilizado em substituição a
“informações”, e uma corruptela da expressão inglesa “intelligence
activities” que nas democracias liberais diz respeito a ações de espionagem contra interesses estrangeiros e pressupõe a existência de delicado
mecanismo de supervisão e controle, além de caracterizar a existência de
redes ou sistemas. Assim, a julgar pela evolução da situação, o Congresso
aprovou algo que sequer sabia o que significava efetivamente.
Tratava-se de fugir da conotação negativa e mesmo pejorativa
que o vocábulo “informação” acabou por catalisar como síntese das reações no período dos governos militares. O estratagema funcionou, pois
o Serviço de Informações deixou de freqüentar as páginas dos jornais,
e, aparentemente, também houve efeitos internos e a nova organização
passou a oferecer um perfil mais palatável às estruturas democratizantes
do País. Não se tratava apenas de mais um neologismo em moda, mas
da utilização de um termo de largo emprego, inclusive internacional, e
exclusivo para a atividade de Inteligência com caráter sistêmico.
O problema residia menos em onde colocar a estrutura de Inteli82
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
gência e mais em saber “o que colocar”, ou seja, em definir a atividade de
Inteligência sob padrões que assegurassem sua legalidade, legitimidade
e racionalidade a serviço do Estado brasileiro.
Na prática, a atividade cingiu-se à atuação interna, como caracteriza a ênfase dada ao acompanhamento de assuntos internos conjunturais,
indevidamente acoplados com maior prioridade à organização.
Assim, a criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE),
no que tange à área de Inteligência, deveria ser observada vis-à-vis à
extinção do SNI e da Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional
(Saden). A SAE deveria incorporar as tarefas das duas organizações extintas e conforme um tópico de campanha do então candidato a Presidente
que viria a ser deposto, caracterizar a desmilitarização da Presidência
da República.
A SAE, no entanto, embora tenha efetivado com alarde e sem
critério profissional esse último ponto, não fez corretamente a transição
de “informações”, como dito acima, para “inteligência”, como também,
deixou de assumir algumas responsabilidades importantes decorrentes
das atribuições herdadas da extinta Saden. De acordo com a Lei 8.183,
de 11/04/91, cabia à SAE executar as atividades permanentes necessárias ao exercício da competência constitucional do Conselho de Defesa
Nacional, ou seja, desempenhar o papel anteriormente afeto à Saden.
Pouco foi feito para cumprir essa determinação legal. Como decorrência, não havia um Conceito Estratégico de Defesa efetivo e nem uma
política de defesa como exige o mundo moderno, para fazer face a todas
as gigantescas modificações recentes nos perfis de conflito e interesses
das relações internacionais.
Embora, aparentemente, a intenção inicial dos reformadores
tenha sido a de transformar o DI precipuamente em um órgão de Inteligência externa - a exemplo de seus congêneres nos principais países
desenvolvidos como França, Inglaterra, Alemanha, EUA etc – a con83
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
juntura à época, principalmente no que tange à inexperiência e falta de
escrúpulos dos dirigentes indicados e assessorados por profissionais da
área, também sem a devida experiência ou capacitação, forçou a que se
mantivessem deturpações nas atribuições com o direcionamento mais
voltado para atividades internas, limitando, assim, ainda mais, o já debilitado organismo.
É desta época um dos mais calamitosos erros ou omissões da
atividade de Inteligência, quando, embora tivessem todos os dados
favoráveis em seu poder, os dirigentes deixaram de levar à frente um
importante plano de captação de cérebros oriundos da ex-União Soviética, por razões mesquinhas pessoais aliadas à falta de coragem e visão.
Vários países, muitos do assim chamado Primeiro Mundo, realizaram
semelhantes iniciativas, através de seus órgãos de Inteligência, auferindo
consideráveis dividendos.
Esse plano elaborado pelo setor de acompanhamento do Leste
Europeu (já citado anteriormente e apoiado no reconhecimento dessa
área inclusive pelos congêneres dos países mais desenvolvidos) traria
experts para os mais variados campos de atividade a custos irrisórios
(cerca de U$ 50 por mês per capita), fato que daria notável impulso,
principalmente às Universidades e Centros de Pesquisa do País.
Fatos dessa ordem, assim como a pulverização da área de ensino de idiomas e dialetos (que atendia a mais de 32 línguas de todo o
mundo), e a devolução de inúmeros especialistas aos órgãos de origem,
sem nenhuma consideração pela contribuição prestada ou trabalho de
recompletamento dos quadros, bem como a revogação da instalação de
posto na Costa Rica, entre outros, representaram um abalo catastrófico
na atividade, principalmente na sua vertente externa, caracterizando a
Era Collor como um crime “lesa pátria” atinente à área.
Essa situação ainda persistiu, apesar de algumas tentativas de
mudança no governo Itamar Franco, quando a área precisou se reestru84
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
turar depois do debácle sofrido, sendo realizações da época a criação da
área de Inteligência de sinais, bem como a admissão de novos servidores
selecionados por concurso público.
O Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), desde a
campanha eleitoral, foi enfático em promover seu objetivo de inserir o
Brasil no contexto das nações desenvolvidas do assim chamado Primeiro Mundo, através da prioridade dada a cinco pontos capitais, entre os
quais estavam as preocupações com a segurança e a defesa. A busca da
modernidade obrigatoriamente deveria passar pelo aperfeiçoamento do
segmento da Inteligência tornando-o um instrumento de fortalecimento
do Estado e não um mero executor em apenso para cada governo.
As iniciativas foram promovidas pela Subsecretaria de Inteligência, que recebeu a missão de criação da Abin, hoje Agência Brasileira
de Inteligência, após período inicial dos mais importantes, sob supervisão direta do General Fernando Cardoso - ex-chefe da Casa Militar no
Governo Itamar e assessor direto do Presidente FHC - um dos próceres
da Abin, militar de alto prestígio e experiência (instalou a adidância na
China), que praticamente abdicou de sua carreira por não se vergar às
imposições palacianas da época. Não foi conivente com as limitações
impostas no espectro de atuação da área de Inteligência nem com os sucessivos adiamentos para a efetivação da agência com plano de carreira
definido.
Os primeiros dois anos do primeiro governo FHC foram muito
intensos na área externa do setor. Foram estabelecidos contatos com todos
os países sul-americanos, bem como, buscou-se fortalecer o sistema com
países da África, em busca de maior segurança no Atlântico Sul. Novas
perspectivas para a área foram perscrutadas na Ásia e no Médio Oriente,
além da consolidação dos contatos na Europa e América do Norte.
A iniciativa de estabelecer parcerias com países anteriormente
considerados inimigos, como Rússia, Ucrânia, etc, trouxe grandes bene85
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
fícios para a atividade até os dias atuais, dando-lhe maior capilaridade,
autonomia, penetração e complementaridade nos trabalhos de assessoria
governamental. Importantes decisões e negociações entre governos foram
subsidiadas a partir deste relevante vínculo e em áreas onde os contatos
formais, diplomáticos etc, na maioria das vezes, não podem agir. O intercâmbio de dados, muitas vezes por triangulação e com reciprocidade
altamente confiável, são as bases de um sistema irreprochável para sobrevivência dos Estados nos dias atuais. A adequação dos concursados
foi outra iniciativa de valor, visando à sobrevivência e continuidade do
serviço.
Nessa época foi possível verificar o quanto o serviço, sua atividade e seus membros eram valorizados pelos congêneres de outros países
– muito mais do que em seu próprio país. Assim, uma missão de estreitamento de laços com a África do Sul constatou que a adaptabilidade do
serviço daquele país, nos seus novos tempos e mudanças ocorridas com
o fim do apartheid, deveu-se em muito à assessoria do SNI - através das
orientações do General Carracho (Ary Rodolpho Horne Carracho), um
dos próceres da Inteligência externa brasileira – quando da sua recriação
e reformulação.
Outro marco auspicioso da época foi a promoção no Rio de Janeiro, em outubro de 1996, de um importante simpósio contra a proliferação
de tecnologia sensível, juntamente com o United Nations Institute for
Disarmament Research (Unidir), órgão da ONU encarregado do setor. Os
dividendos dessa iniciativa dão frutos até os dias atuais na manutenção
de um sistema atinente a esse importante tema de acompanhamento.
No entanto, Fernando Henrique Cardoso não tinha a intenção de
levar à frente a idéia de criar um órgão de Inteligência moderno, conforme determinou e estipulou um prazo de 180 dias, a partir do início
de seu governo. Os sucessivos adiamentos que culminaram em quase 5
anos de espera, já que a Abin foi homologada apenas no final do seu 2°
86
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
mandato (1999), foram altamente prejudiciais, fomentando também uma
situação de dificuldades e até de estagnação que tem atingido vários segmentos da atividade até os dias de hoje. Profissionais experientes foram
se afastando das chefias pelo desgaste natural com os postergamentos,
sendo substituídos por outros, sem o devido conhecimento, vivência ou
envolvimento com os objetivos do órgão. Alguns, infelizmente, preocuparam-se em utilizar a área como trampolim em sua ascensão nas
carreiras originais ou ainda com a mera manutenção pura e simples dos
cargos, sem grandes arroubos ou iniciativas profissionais. No entanto,
em contrapartida, felizmente foram permanecendo alguns abnegados
dedicados e competentes, com a tarefa de dar sobrevida e continuidade
aos trabalhos da área.
CONSIDERAÇÕES SOBRE SISTEMAS PARA A INTELIGÊNCIA
Na Guerra do Golfo, já citada anteriormente, a estrutura de Inteligência americana percebeu a necessidade de um novo tratamento para
a área. Apesar da profusão de dados, 35% das baixas foram oriundas
do chamado “fogo amigo” e fizeram com que os mentores da atividade
repensassem seus paradigmas. Tal iniciativa rapidamente espraiou-se
pelo mundo, surgindo a nova vertente de controle de redes, inteligência
de sinais, não só na guerra eletrônica como também em todas as atividades.
Para Peter Drucker, a nova sociedade pós-capitalista apoiada
nas atividades sociais e econômicas, é a chamada sociedade centrada
em informações, ou seja, centros (redes) de informações (dados etc).
Conhecimento e informação são considerados fatores primordiais para
a produção e o desenvolvimento.
Para P. Nakamura, oficial de Inteligência do Comando da Aero87
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
náutica, apoiado em H. e A. Toffler, a atividade de Inteligência acompanhou as três ondas descritas pelos autores. A primeira – a agrária (rural),
a Inteligência ia até os limites das propriedades ou ao alcance da vista;
a segunda – a industrial, desenvolveu para a Inteligência o conhecido
patamar de “humint” (human intelligence), ou seja, a agregação da capacidade cerebral humana em prol de um desenvolvimento localizado,
específico, iniciando, assim, o ciclo do conhecimento. A terceira onda
– com as devidas adaptações da tese dos autores, seria a do conhecimento
movido e acompanhado ou controlado pelos sensores – blogs. É a era
da disputa pela central de redes, onde a Inteligência adquire aspectos
de commodity, num teatro de “ofint”, ou seja, “open force intelligence”
onde projetos de ampla envergadura, quase global, (como o Echelon)
caracterizam a multifacetada sistematização da atividade e, sem dúvida,
o maior desafio evolutivo para os tempos futuros.
Outro enfoque de crescente importância no cenário internacional
é a formação dos sistemas de acompanhamento por satélites, que atingem resolução menor que um metro, tornando a captação de dados e o
acompanhamento para múltiplas áreas como defesa, agricultura e outras,
substanciais para qualquer governo. Na América do Sul, o sistema Sivam/
Sipam é uma amostra desse aspecto, e de seu desenvolvimento, apoiado
em contínuo trabalho de Inteligência, dependem muitas decorrências de
sobrevivência futura.
As próprias comunidades antigas de informações, hoje Inteligência, apresentam esses aspectos sistêmicos, conforme a seguir especificado.
Na França, a Direção Geral de Segurança do Estado (DGSE)
tem por missão, “em benefício do Governo e em estrita colaboração
com outros organismos que lhe são relacionados, procurar explorar as
informações de interesse da segurança do País, assim como detectar e
dificultar, fora do território nacional, as atividades de espionagem diri88
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
gidas contra os interesses franceses, a fim de evitar suas conseqüências”.
Sinteticamente: a DGSE tem a seu cargo a Inteligência externa e a contra-espionagem no exterior. A Inteligência interna, a contra-espionagem
e a contra-subversão dentro da França são realizadas pela Direção de
Vigilância de Territórios (DST), subordinada ao Ministério do Interior.
Tem como principais missões realizar a busca de informações sobre
agentes estrangeiros que estejam operando internamente na França;
produzir informações de contra-espionagem e contra-subversão, no
país e nos territórios e departamentos ultramarinos; e realizar trabalhos
de proteção contra agentes estrangeiros e operações de representação e
aprisionamento.
Na Alemanha, o Serviço Federal de Informações (BND) é chefiado
por um presidente, subordinado diretamente ao Chanceler Federal (1°
Ministro) e com nível de Secretário de Estado. Dessa forma, relacionase diretamente aos diversos Ministérios. Tem como principais clientes a
Chancelaria Federal e os Ministérios; não tem missão executiva, judicial
ou policial. Suas atribuições se resumem à produção de informações
militares, políticas e econômicas relativas ao campo externo, e a sua difusão aos demais órgãos de governo. Preocupa-se, também, em infiltrar
e neutralizar organizações adversas, particularmente as que pertenciam
ao extinto bloco soviético. Hoje é adaptado para atuar no combate às
máfias, contra-terrorismo, etc. Os problemas de defesa são estudados pelo
Conselho de Defesa Federal, uma comissão do governo presidida pelo
Chanceler Federal e da qual o Presidente do BND participa na condição
de assessor direto do Chanceler. Por outro lado, o Serviço Federal de
Proteção à Constituição (BFV), subordinado ao Ministério do Interior,
é responsável pelas informações referentes a qualquer ameaça interna,
como movimentos extremistas, sabotagem, atividades terroristas e outras
afins.
Na Inglaterra, o Serviço Secreto de Inteligência (SIS), tradicional89
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
mente conhecido como MI-6, é responsável pela produção de informações
relacionadas com os países que não integram o Reino Unido. Centraliza
todos os informes e informações produzidas no exterior dispondo para
isso, de ligações diretas e sigilosas com todas as agências no exterior. Os
dois principais clientes do SIS são: o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Defesa. Seus principais alvos são: as organizações
de Inteligência e organizações subversivas estrangeiras, que desenvolvam atividades antibritânicas; as organizações extremistas estrangeiras,
cujas atividades possam ferir os interesses britânicos no exterior; e os
governos e organizações que desenvolvam atividades que representem
ameaça à paz mundial. A existência do SIS não é reconhecida oficialmente, e até há pouco tempo não tinha orçamento ostensivo. É chefiado
pelo segundo funcionário em hierarquia do Ministério dos Negócios
Estrangeiros e seus funcionários figuram nos quadros desse Ministério.
Por outro lado, o Serviço de Segurança Interna (SSI), tradicionalmente
conhecido como MI-5, tem por missão a produção de informações de
segurança interna no Reino Unido. Tem existência oficial e se enquadra na organização do Ministério do Interior, sendo seus funcionários
integrantes desse Ministério. O MI-5, além de suas atividades normais
no campo das informações, tem a responsabilidade de assessoramento
no que diz respeito à segurança das informações em todos os órgãos da
administração pública, assim como no campo da contra-espionagem.
Na Espanha, o Centro Superior de Informações da Defesa (Cesid),
subordinado tecnicamente ao Ministério da Defesa, foi substituído pelo
Centro Nacional de Informação (CNI). Atua nas áreas de Inteligência
externa, Inteligência interna e Contra-Inteligência e colabora com a Direção Geral de Política de Defesa, que é o órgão encarregado de assessorar
o Ministro na preparação, planejamento e direção da política de defesa
e no trabalho da Junta da Defesa Nacional.
Na Itália, o Serviço de Informações e Segurança Militar (Sismi)
90
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
é ligado ao Ministério da Defesa, que estabelece o seu ordenamento e
controla a atividade com base nas diretrizes e dispositivos estabelecidos
pelo Presidente do Conselho de Ministros a quem o órgão também é
ligado. O Diretor do Sismi tem acesso ao Presidente da República e é a
pessoa de mais alta hierarquia da Comunidade de Informações, sendo
considerada a autoridade nacional para a segurança de Estado. O Sismi
cumpre todas as tarefas de informações e de segurança para a defesa, no
plano militar, de independência e integridade do Estado frente a qualquer
perigo de ameaça ou ataque. Para os citados fins, o Sismi desempenha
as tarefas de contra-espionagem. O órgão atua no campo externo. É
encarregado das informações relativas à política externa italiana. Seus
Residentes Legais, que integram as Missões Diplomáticas, encarregamse de reunir os dados de interesse para o governo italiano. A missão de
Inteligência interna é desempenhada pelo Serviço para as Informações e
a Segurança Democrática (Sisde) subordinado ao Ministério do Interior,
a quem cabe “todas as tarefas informativas” e de segurança para a defesa
do Estado democrático e das instituições postas pela Constituição na sua
base contra quem a ataque e contra qualquer forma de subversão.
Nos EUA, a CIA, juntamente com o Conselho de Segurança
Nacional (NSC) e o Gabinete de Planejamento de Inteligência de
Emergência , é responsável pela coordenação da Segurança Nacional
do mais alto nível. Subordinada diretamente ao Presidente dos EUA, ao
Conselho de Segurança Nacional e ao Secretário de Justiça (para fins de
aprovação do emprego de técnicas operacionais) tem como principais
atribuições a Inteligência e a Contra-Inteligência externas. A Contra-Inteligência no âmbito dos EUA é realizada em coordenação com o FBI.
A CIA é membro destacado da Comunidade de Inteligência dos EUA,
haja vista que seu Diretor é coordenador da mesma, o qual é conhecido
como Diretor Central de Informações. Recentemente toda a estrutura
(após o 11 de Setembro) passou por ampla reforma com a instituição
91
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
do Homeland Security (já citado anteriormente) dando-lhe um caráter
sistêmico mais amplo.
Aliás, o Plano Estratégico de Segurança Nacional (National
Strategic for National Security), conhecido como Doutrina Bush, que
inclui a National Strategy for Homeland Security com o Departament
of Homeland Security (DHS) que possui mais de 7 escritórios pelo
mundo dando-lhe um caráter sistêmico nacional e internacional. É um
exemplo real de reformulação em função das novas realidades do mundo
contemporâneo.
De modo geral, assim como a estrutura dos EUA, todos os serviços
de Inteligência do mundo passam por uma reestruturação com vistas a
uma participação de caráter mais amplo e com características de sistemas
(mais abertos do que antes) para fazer frente aos multifacetados enfoques das adversidades e vissicitudes dos tempos modernos. Na Rússia,
a nova estrutura pós-soviética alia aspectos do antigo sistema, tendo o
KGB como referência, sendo o FSB – a força de segurança do Estado
– um órgão primordial na nova política para o exterior.
ATUAÇÃO DA INTELIGÊNCIA EM ÂMBITO
EXTERNO NOS DIAS ATUAIS
A atuação da Abin em âmbito externo, via Departamento de Inteligência, é conduzida, atualmente, por duas frações: Coordenação-Geral
de Inteligência Externa (CGIE) e Coordenação Geral de Ciência e Tecnologia (CGCT). A primeira encarrega-se de avaliar aspectos relacionados
à conjuntura dos países de especial interesse para o Brasil e a segunda,
de caráter temático, tem sob suas atribuições o acompanhamento e a
avaliação de questões vinculadas à economia internacional, ao desen92
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
volvimento científico e tecnológico e ao controle de não-proliferação
de armas de destruição em massa (ADM), todos tratados nas vertentes
de ameaças e oportunidades aos interesses estratégicos do Brasil. Além
desses, há ainda a área de Contra-Inteligência, também importantíssima,
principalmente nos dias atuais.
Quanto à CGIE, a sua atuação externa tem sido direcionada à
participação em eventos no exterior, notadamente em alguns países sulamericanos, visando ampliar a capilaridade da fração para a geração
de dados próprios de Inteligência. Ainda nesse sentido, tem atuado, via
encontro com serviços congêneres no exterior, visando estreitar as parcerias para a obtenção de dados e informações, conforme a capacidade
de geração de cada serviço.
A CGIE retomou, recentemente, antiga modalidade de ação – iniciada há 10 anos, que se pretende seja tornada rotineira a partir de agora,
haja vista seus resultados concretos -, que consiste na participação de
seus representantes nas equipes precursoras que preparam as viagens
presidenciais. A iniciativa mostrou como a Inteligência pode ser instrumento valioso no assessoramento dessas equipes, bem como significa
oportunidade para ampliar a capilaridade externa.
No que se refere à CGCT, o trabalho em parceria com outros
órgãos da administração federal, o estreitamento das relações com congêneres externos e a ampliação de sua capilaridade interna e externa,
em especial nos últimos dez anos, fez com que a fração consolidasse
considerável experiência sobre os temas vinculados às suas atribuições.
Isso propiciou que representantes da Abin integrem os principais fóruns
nacionais e internacionais relativos às suas áreas de atuação, bem como
participem das discussões e decisões em grupos de trabalho, como órgão
assessor, em questões de interesse estratégico para o País.
Assim, uma representação da Abin, decorrente daquela iniciativa
com a Unidir, em 1996, atua de forma sistemática integrando oficialmente
93
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
as delegações brasileiras nos fóruns onde são tratados assuntos referentes
à não-proliferação de armas de destruição em massa – Grupo de Supridores Nucleares (NSG), Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis
(MTCR), Convenção para Proibição do Desenvolvimento, Produção,
Estocagem e Uso de Armas Químicas (CWC), Convenção de Armas
Biológicas e Bacteriológicas (BTWC), Grupo de Trabalho Especializado
sobre Tráfico Lícito de Materiais Nucleares no âmbito da Reunião de
Ministros do Mercosul - bem como nos temas sob sua responsabilidade
com serviços congêneres.
Em âmbito interno, porém com vinculação e reflexos diretos no
ambiente internacional, a fração representa a Abin nas Comissões Interministeriais de Controle de Transferências de Bens Sensíveis, como
órgão assessor da Secretaria Executiva da Autoridade Nacional; no Grupo
de Trabalho de Biodefesa da Comissão de Relações Exteriores e Defesa
Nacional (Creden) e no Sistema de Acompanhamento de Atividade Nuclear (Creden). Ainda no mesmo sentido, a CGCT está desenvolvendo,
em conjunto com a Coordenação-Geral de Bens Sensíveis (CGBE/MCT),
o Projeto Ciências, projeto para aperfeiçoamento do sistema brasileiro
de controle de transferências de bens sensíveis.
A concepção do Projeto Ciências, inédita no Brasil, tem como
principal pilar a geração de condições para o estreitamento da relação
Estado/empresa em âmbito nacional, visando, ao mesmo tempo, resguardar interesses estratégicos do Brasil em nível internacional e facilitar a
atuação de empresas brasileiras em um mercado mundial restrito e de
extrema sensibilidade, competitividade e lucratividade. Sem dúvida, com
caráter sistêmico de grande abrangência.
A área tem participado, ainda, de diversos eventos internacionais,
como observadora ou representando oficialmente a Abin na qualidade
de expositora, o que tem propiciado ampliar a exposição sobre a forma
de atuação da atividade de Inteligência no Brasil com reflexos ampla94
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
mente favoráveis à imagem do órgão, interna e externamente, além de
ser instrumento facilitador para ampliação de capilaridade da fração em
âmbito externo, visando a geração de dados inéditos.
Assim, as ações de Inteligência desenvolvidas pelo Departamento
de Inteligência, por intermédio da CGIE e da CGCT, a despeito de ainda
necessitarem de aprimoramento e ampliação, têm possibilitado o fortalecimento da credibilidade da Abin e a expansão do acesso a novas áreas de
interesse e a interlocutores privilegiados, objetivando a geração de dados
próprios de Inteligência, inéditos e com valor agregado, para qualificar
constantemente o assessoramento do órgão ao alto escalão decisório, nas
questões externas de interesse para o Estado brasileiro.
A tendência verificada nas áreas externas sob responsabilidade
do Departamento de Inteligência – conjuntura de países prioritários para
o Brasil, economia internacional, desenvolvimento científico e tecnológico e tecnologias sensíveis e desarmamento – é de expansão quanto à
necessidade de geração de novos dados de Inteligência, haja vista serem
questões de interesse vital para o país, por serem os principais indutores
de inserção internacional e geradores de prosperidade social. Ademais,
essas questões constam do programa de governo e de políticas setoriais
já definidas como prioritárias pela atual administração federal.
É importante salientar que tais atividades devem ser continuamente acompanhadas pela Contra-Inteligência, também em caráter
sistêmico, pois fazem parte do rol de interesses da maioria dos países
nos dias atuais.
95
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
CONCLUSÃO
Como conclusão pode-se afirmar que nas principais democracias
do mundo moderno a atividade de Inteligência, mesmo eventualmente
despertando controvérsias - em virtude da falta de esclarecimento e do
receio dos cidadãos de terem seus direitos limitados ou tolhidos – tem
assegurado a participação no aspecto direto no gerenciamento das altas
esferas decisórias do Estado.
Os países desenvolvidos e democraticamente maduros consagraram como a melhor maneira de compatibilizar a atividade com o respaldo
legal por meio da criação de um sistema de defesa democrático, assessorando seus governos e sofrendo a supervisão direta de representantes
do executivo e do legislativo.
O novo conceito estratégico do governo norte-americano não
diz respeito apenas a ameaças de estados poderosos. O problema maior
são ações de fanatismo, adeptos de violência indiscriminada, dotados
de alta tecnologia e armas de destruição em massa. Fazer frente a essas
adversidades é o objetivo maior da inteligência no mundo, que só obterá
sucesso nesse intento através de sistemas internacionais eficientes.
No nosso caso, além de consolidar a prática acima, alguns aspectos
são de crescente importância na atual conjuntura mundial. A falta de um
sistema interno eficaz, com gerenciamento e coordenação – não como
nos antigos moldes de supervisão e controle – é limitador para o profícuo
funcionamento da área interna e externamente. Além disso, a ausência
de uniformidade de doutrina de algum órgão do tipo da antiga Escola
Nacional de Informação (Esni), conforme já abordado, trará reflexos
negativos irretorquíveis a médio prazo com conseqüência para a atividade. O número irrisório de postos no exterior também é fator limitador
de eficácia em prol do objetivo de formação de sistemas internacionais
válidos e eficazes.
96
Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil
A tendência é de que os encontros entre serviços de Inteligência
tenham uma expansão, crescendo em importância no futuro porque o
enfrentamento das ameaças globais e regionais que assolam países de
determinados continentes somente poderá ser efetivado por meio da união
dos governos. Nesse sentido, os sistemas de Inteligência desempenham
um papel fundamental, uma vez que está comprovada a tese de que o
intercâmbio de informações é um dos principais procedimentos a serem
adotados na prevenção de atividades danosas à segurança e estabilidades
das nações. Competência no acompanhamento dessas ações sistêmicas,
evitando que criem um novo campo de expansão unilateral, sob o apanágio de interesse geral, é mais um desafio emergente para a Inteligência
nacional no limiar desse novo século.
97
SÍNTESE DO III ENCONTRO DE ESTUDOS
Síntese do III Encontro de Estudos
APRESENTAÇÃO
A Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei)
realizou, no dia 23 de setembro de 2004, o Encontro de Estudos “Os
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI”, com o objetivo de ampliar o debate sobre a atividade de inteligência no seio da
sociedade brasileira. Realizado no auditório de Videodifusão do Palácio
do Planalto, o encontro constou de quatro conferências, duas pela manhã
e duas à tarde.
O encontro se insere na meta do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de incluir a Inteligência entre os grandes temas do debate
nacional, e no contexto das atividades da Câmara de Relações Exteriores
e Defesa Nacional (Creden), que na sua responsabilidade de estabelecer
políticas e orientar ações de interesse do Governo inclui a preocupação
de legitimar a atividade de Inteligência dentro de um regime democrático.
Atuaram como conferencistas o Coronel Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, o Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal e os Professores
Jorge da Silva Bessa e Alexandre Martchenko, todos eles especialistas
com experiência profissional e acadêmica na área de Inteligência. Ao
final de cada exposição a palavra era aberta ao debate, para melhor
compreensão do tema.
Os conferencistas abordaram o tema desde os seus primórdios até
os dias atuais e sua utilização como ferramenta indispensável à defesa
do estado moderno, de um lado contra as ameaças do terrorismo, do narcotráfico, do crime organizado, e de outro como radar de oportunidades
no campo da ciência e tecnologia, do desenvolvimento econômico e da
capacitação militar.
Do encontro participaram mais de 40 pessoas, representantes
101
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
da Agência Brasileira de Inteligência, do Comando da Aeronáutica, do
Comando do Exército, do Comando da Marinha, dos Ministérios da
Defesa, da Ciência e Tecnologia, da Fazenda, da Integração Nacional,
da Justiça, da Previdência Social, da Saúde, das Relações Exteriores,
do Trabalho e Emprego, da Secretaria da Receita Federal, da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, do Senado Federal e da Universidade
Católica de Brasília.
ADEQUAÇÃO DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA À REALIDADE
DO SÉCULO XXI
Coronel Geraldo Lesbat Cavagnari Filho
O primeiro conferencista, Coronel Geraldo Lesbat Cavagnari
Filho, iniciou sua palestra com um comentário sobre a opção que foi
feita pelo Governo Collor, de extinguir o Sistema Nacional de Informações (SNI), uma opção equivocada, para uns, ou criminosa para outros,
conforme disse. Para ele, o prejuízo só não foi maior porque na época os
ministérios militares tiveram o bom senso de continuar com essas atividades e retornaram ao que eram antes da criação do SNI, operando em suas
agências um sistema independente da própria atividade de governo.
Porém, com o resgate que está se fazendo daquilo que foi destruído, o Coronel acha que no futuro esse esquema terá que mudar para
que se tenha novamente uma Agência Central forte dentro de um sistema
bem articulado.
Contou que em 1992, quando era Diretor do Núcleo de Estudos
Estratégicos da Unicamp, recebeu do então Deputado Hélio Bicudo,
membro da Comissão de Defesa da Câmara dos Deputados, um pedido
de opinião sobre o projeto de lei para a criação da chamada Agência
Federal de Inteligência. O deputado queria saber se o texto tinha condi102
Síntese do III Encontro de Estudos
ções de aprovação, mas o coronel respondeu que naqueles termos não
deveria ser aprovado.
O Coronel explicou que fez objeção à proposta porque se tratava
de um projeto sem controles. O texto foi alterado e foi acrescido um
controle técnico na agência, mas faltou um controle político. O projeto
nunca foi aprovado e o parecer que ele ofereceu ao Deputado Hélio
Bicudo acabou sendo transformado em artigo para a revista do Ibase,
editada por Herbert de Souza, o “Betinho”.
O artigo publicado sob o título “Um serviço necessário que requer
controle”, seria usado como matéria-prima para o decreto de criação da
Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. Fruto da sua longa contribuição à área de Inteligência, iniciada quando fez o Curso de Inteligência
na Escola Nacional de Informações, a ESNI. Em seguida foi chefiar a
2ª Seção de Informações na Inteligência do Estado Maior da 6ª Região
Militar. Depois teve um posto no exterior, no México, e quando retornou foi para a 2ª Seção de Informações que, hoje, é a Inteligência do
Estado-Maior do Exército. Depois foi para a 3ª Seção, Sub-Chefia de
Planejamento Estratégico, que tinha sido criada naquele momento, e ali
ficou até 1986. Em 1986 ainda no Estado Maior do Exército já estava
contratado pela Universidade de Campinas como professor e pesquisador.
A partir daí dedicou-se ao estudo da estratégia teórica contemporânea e
ao estudo de planejamento estratégico.
Entrando no tema do encontro de estudos, “Os Desafios para a
Inteligência no Século XXI” e a adequação dessa atividade, o Coronel
começou falando sobre a Guerra Fria, esclarecendo de imediato que
quando se fala em configuração das relações de força temos que ter um
entendimento do que vem a ser essas relações. Segundo o Coronel, o
sistema internacional é de certo modo um sistema estrutural, com uma
relativa anarquia, onde quem impõe alguma disciplina ao funcionamento
dele são as grandes potências. Esse sistema se organiza em função da
103
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
configuração das relações de força. E essa configuração nada mais é que
a configuração das chamadas relações entre estados, ou relações de força
que se dão entre potências.
A configuração dessas relações durante a Guerra Fria, observou
o Coronel, era uma configuração bipolar. Como existia a arma nuclear,
sabia-se que nenhum confronto direto entre as duas superpotências seria
exeqüível. Porque não seria a destruição de uma delas somente, poderia
ser a destruição do mundo. Muitos diziam que em virtude da existência
da arma nuclear a guerra nuclear passou a ser impensável. Mas na sua
opinião a guerra nuclear sempre foi pensada pelas duas superpotências
que nos seus planejamentos estratégicos contaram com os chamados
patamares nucleares.
A concepção de segurança dos Estados Unidos em face dessa
realidade basicamente se sustentava em duas estratégias. A estratégia
da dissuasão e a estratégia da contenção. A estratégia de dissuasão pode
ser definida utilizando-se da própria definição da arma nuclear que é
aniquilar a intenção ofensiva do adversário, desde o momento em que é
percebida a sua posse pela potência contrária.
Ao mesmo tempo em que as duas superpotências investiam no
desenvolvimento da tecnologia nuclear elas procuravam o entendimento.
E a partir desse entendimento veio o controle das armas, que inicialmente
é um controle de limitação das armas nucleares e depois um controle de
redução desses armamentos. Esse entendimento incluía um tratado antibalístico, firmado em 1972, e que previa que as duas potências poderiam
ter escudos antimísseis que protegessem suas respectivas capitais, o que
deixava implícito que ambas as potências manteriam a mesma capacidade
de resposta nuclear: a capacidade de ação inicial, do primeiro golpe, e a
capacidade de segundo golpe, ou de retaliação.
Havia também a doutrina da destruição mútua assegurada, pela
qual aquele que sofre ataque deve ter firmes condições de retaliar na mes104
Síntese do III Encontro de Estudos
ma intensidade ou numa intensidade maior. Isso neutralizou o ambiente
nuclear, apesar das crises de Berlim (1948/49), da Guerra da Coréia
(1950/53) e a dos mísseis em Cuba (1962). Esses momentos da Guerra
Fria poderiam ter levado as duas superpotências ao confronto direto.
Quando a União Soviética força uma saída para os mares quentes,
repetindo tentativas que vinham desde os tempos dos czares, os Estados
Unidos começam a aplicar a estratégia da contenção para impedir que o
Império Russo chegasse ao Mediterrâneo e ao Mar Vermelho.
Essa estratégia se estrutura nas bases militares dos Estados Unidos
na Europa, na Turquia, no Japão, na Coréia do Sul e nas Filipinas. Além
dessas bases avançadas eles tinham o controle de todos os oceanos e da
maioria dos mares.
Essa blindagem limitou o avanço da União Soviética à Tchecoslováquia, o último trunfo que os russos tiveram durante a Guerra Fria,
em 1948.
O plano de contenção incluía a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o Plano Marshall, que isolaram a Europa Ocidental
de um avanço dos soviéticos impedindo que chegassem aos oceanos.
Eles ainda tentaram atingir esse objetivo pelo Afeganistão, mas essa
pretensão também foi barrada pelos Estados Unidos apoiando toda forma
de guerrilha contra a ocupação russa, inclusive a milícia Talibã, que os
EUA destruíram após o 11 de setembro de 2001.
Até que veio o final da Guerra Fria sem a batalha decisiva. Foi
uma guerra que não houve, definiu o Coronel. Acabou quando os Estados
Unidos fizeram uma aposta arquimilionária de desenvolvimento científico
e tecnológico no campo das armas para criar escudos antimísseis que
protegessem todo o seu território continental. A União Soviética tentou
acompanhar fazendo grandes investimentos em defesa, mas seu orçamento não suportou e esse esforço bélico levou o império à bancarrota. Os
105
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Estados Unidos ganharam a Guerra Fria sem dar um tiro contra a União
Soviética e com isso conseguiram afastar uma possibilidade histórica de
uma potência ser hegemônica em toda a Eurásia.
Mas no hemisfério ocidental os EUA sempre exerceram a hegemonia, particularmente em relação aos países da América Sul, o que
foi feito em torno de dois consensos. Era um alinhamento fundado em
uma doutrina comum que é a doutrina de segurança nacional, o que faz
a nossa doutrina de segurança nacional, em qualquer época, ser igual à
de qualquer país latino-americano. Em torno dessa doutrina buscaram o
consenso ideológico, do anticomunismo, e o consenso estratégico, que
era deter o expansionismo soviético.
Mas como os países sul-americanos não tinham condições de deter
o avanço soviético, suas forças armadas foram colocadas no combate à
subversão comunista. O alvo era o “inimigo interno”, o agente da insurgência interna, de formação marxista. No início da primeira metade da
década de 1980, o inimigo interno já estava destruído há muito tempo
e se passou a questionar a hegemonia dos Estados Unidos nos nossos
negócios internos e externos.
Com o colapso do Império Soviético, inicia-se uma nova ordem
que se esperava mais justa, mais simétrica e mais pacífica. Mas com os
primeiros movimentos que se fizeram logo após a queda da União Soviética, essa nova ordem mostra que não seria mais justa, mais simétrica e
nem mais pacífica. Continuaria conflituosa, assimétrica e injusta. O que
é da natureza do sistema internacional.
Foi quando se acertou que os problemas de segurança surgidos
seriam submetidos ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e as
decisões desse conselho deveriam ser obedecidas. Nessa aposta multilateralista a intervenção militar contra um país recalcitrante, com o
emprego da força, se faria no contexto da segurança coletiva, aprovada
e legitimada pelo Conselho de Segurança.
106
Síntese do III Encontro de Estudos
Até que veio a guerra do Iraque, que seria o primeiro exemplo de
um problema internacional solucionado no contexto do multilateralismo.
Mas, como lembrou o Coronel, quando houve a invasão do Kuaite, a ONU
ficou calada e estupefata. Foram os Estados Unidos quem denunciaram
a invasão, declararam o embargo comercial, fizeram o bloqueio naval
e deram o ultimato ao Iraque. A ONU confirmou todos esses atos, mas
sempre a reboque das iniciativas do governo americano.
Essa guerra serviu para mostrar como as grandes potências deveriam se comportar dali para frente. E essas ações unilaterais se repetiriam
depois na desintegração dos Bálcãs (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Kosovo). Até que houve o 11 de Setembro e os EUA responderam com novas
ações unilaterais contra o Afeganistão e depois, contra o Iraque.
A partir do 11 de Setembro os Estados Unidos inovam no campo
doutrinário do emprego da força e se sentem no dever de agir unilateral
e militarmente contra o país que apoiar ou organizar ações de guerrilha
ou hospedar guerrilheiros. Foi baseado nesse princípio da autodefesa
que justificaram as guerras contra o Afeganistão e o Iraque. Este é o
argumento do império, isto é, que não submete a outras potências ou ao
Conselho de Segurança a defesa dos seus interesses.
Depois dessa explanação sobre o cenário mundial, o Coronel
Geraldo Cavagnari apresentou o perfil do Brasil como potência. Segundo
ele, o Brasil é uma potência média com espaço político na América do
Sul, no Atlântico Sul e no Pacífico Sul-americano. Disse que esse espaço
geopolítico pode ser ampliado abarcando-se o que chamamos de África
Austral, que inclui Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul, a
maior potência africana.
Para ter essas condições, explicou o Coronel, falta ao Brasil autonomia estratégica – a capacidade de articular alianças militares e comandar alianças militares. Isso implica capacidade de repelir alinhamentos
indesejáveis, assim como de agir militarmente além de suas fronteiras.
107
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Ele advertiu que para sustentar pretensões dessa natureza o País
precisa de uma economia forte e de condições tecnológicas avançadas
como fundamento econômico e de capacidade militar, além de um serviço de Inteligência.
Embora a América Latina experimente um período de relativa
estabilidade institucional, o Coronel ainda vê ameaças de regressões autoritárias na região, como Peru, Bolívia e Equador, para os quais o Brasil
deve estar atento porque uma recaída autoritária pode ser prejudicial.
Para Cavagnari, os problemas imediatos que o Brasil tem no campo de segurança são poucos se comparados a outros países. Há ameaças
concretas na Amazônia, mas por enquanto nenhuma dessas ameaças
implica resposta militar.
A questão da instabilidade rural também preocupa. Ele falou de
sua participação no encontro de 50 formadores de opinião e intelectuais, o
“DNA Brasil”, em Campos do Jordão, onde conversou com Pedro Stédile
a esse respeito. Disse para ele que o MST levaria à instabilidade e com
isso eles iriam perder, mas Stédile discordou. De qualquer forma, ao se
despedir, o líder do MST afirmou que procuraria se lembrar do que lhe
havia dito o Coronel. Há também a questão da Tríplice Fronteira, que
no seu entender ainda será objeto de muita pressão dos Estados Unidos,
e por último o espaço aéreo amazônico.
Essas ameaças levam ao comportamento imperial dos Estados
Unidos porque são ameaças ao mundo livre, mas as pressões hegemônicas dos EUA também ameaçam constantemente o Brasil, explicou o
Coronel. Porque são pressões numa das suas áreas de interesse, que é a
América do Sul.
108
Síntese do III Encontro de Estudos
Para ter assento no Conselho de Segurança, o Brasil
precisará dispor de forças de Imposição da Paz
Por causa disso tudo o nosso paradigma deve ser construir a
grande potência, até para alcançar um assento permanente no Conselho
de Segurança da ONU, que o Brasil reivindica. Mas para isso o País
precisará ter condições de participar das decisões cruciais que o Conselho de Segurança toma e que podem implicar o emprego da força sobre
responsabilidade daqueles que detêm o poder de veto. Se o Brasil não
tiver essa capacidade, se não dispor de uma força militar moderna, bem
equipada, bem adestrada e uma parcela significativa dela em prontidão
permanente, para ser empregada nas situações de imposição de paz, não
será cogitado como membro permanente do Conselho de Segurança da
ONU.
Por isso que a Austrália e o Canadá procuram participar de forças
de imposição da paz e não de forças de manutenção da paz, porque é
crédito para eles disputarem uma cadeira no Conselho de Segurança. Operações de manutenção da paz são operações de polícia militar. A Austrália
esteve presente no Timor Leste, o Canadá esteve na península Balcânica
como força de interposição entre forças de confronto ou como força de
imposição da paz. No caso do Timor Leste, por exemplo, embora lá se
fale português, o coronel acha que se precisar entrar uma força no Timor
não é o Brasil que vai fazer isso, primeiro porque está longe e segundo
porque se recusa a participar desse tipo de operação. E quem não tiver
essa força estará eliminado de fazer parte do Conselho de Segurança.
Mas essa capacidade militar não poderá estar dissociada do Estado de
direito, outra credencial importante para ter assento no conselho.
Ao final da exposição do Coronel Geraldo Cavagnari, o Ministro
José Carlos de Araújo Leitão, da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei), abriu o primeiro bloco de perguntas pedindo
109
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
que o coronel expusesse a relação existente entre capacidade militar e
capacidade tecnológica. Ele também solicitou que o expositor ampliasse
sua abordagem sobre a crise dos mísseis soviéticos em Cuba. O bloco
de perguntas foi completado pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Jorge Armando Felix, que indagou
sobre a existência de uma posição americana de consentimento, ou até
mesmo de estímulo, para o Brasil assumir uma posição de liderança na
América do Sul.
O Coronel respondeu que não podemos ter capacidade militar sem
um apoio tecnológico, para permitir uma indústria bélica forte. Mas admitiu que isso já se observa nas universidades brasileiras, principalmente
na USP e na Unicamp, que estão bem avançadas no campo tecnológico,
inclusive com parcerias com empresas.
Sobre a crise dos mísseis, explicou que havia uma pressão da
Casa Branca para que se usasse a arma nuclear, se a União Soviética
não retirasse seus mísseis de Cuba. Mas uma pressão diplomática dos
Estados Unidos fez a própria União Soviética reconhecer que estava
fazendo uma aventura por causa de um país pequeno, Cuba, inexpressivo em termos da sua grande estratégia, e que poderia colocar a pique a
estabilidade do mundo.
Os Estados Unidos só aceitam a liderança do
Brasil na América do Sul, se ela não ameaçar
a sua hegemonia
Sobre a possibilidade dos Estados Unidos estimularem uma liderança do Brasil na América do Sul, o Coronel disse que eles não estimulam processos sobre as quais não tenham controle. Os Estados Unidos
aceitam essa desenvoltura do Brasil desde que a liderança brasileira não
110
Síntese do III Encontro de Estudos
ameace a sua hegemonia na América do Sul. Eles aceitam o Brasil não
hegemônico, porque não cabem no mesmo espaço duas hegemonias. Ou
são eles ou o Brasil.
No campo da segurança, respondeu que tudo o que o Brasil fizer
não poderá comprometer a segurança do hemisfério. Disse que não podemos pensar na Argentina para fazer segurança regional. Os argentinos
não aceitam a assimetria, econômica ou militar. Então é muito difícil se
fazer uma segurança regional contemplando a aliança Brasil/Argentina
porque eles vão fazer com que essa aliança seja simétrica.
No segundo bloco de perguntas, o Comandante Armando Amorim Ferreira Vidigal quis saber do Coronel Geraldo Cavagnari se seria
possível uma integração militar do Brasil com a América do Sul capaz
de viabilizar uma indústria militar brasileira, já que ele considera que
nas condições atuais do Brasil é extremamente improvável que haja uma
economia de escala que torne viável a existência de uma indústria nacional. Como exemplo de sucesso nessa cooperação, o comandante citou o
reparo que a Marinha fez no submarino argentino Santa Cruz, no Arsenal
de Marinha no Rio de Janeiro. E o professor Alexandre Martchenko quis
saber como deve ser a participação do Brasil nas forças da ONU, se de
manutenção da paz ou de imposição da paz.
O Coronel Geraldo Cavagnari respondeu que para o Brasil fazer
uma integração industrial bélica com os países sul-americanos, tem que
ser seletivo, mas antes de fazer isso precisa reconquistar a posição que
teve no cômputo do comércio mundial de material bélico. E tem que
consolidar a sua indústria, não somente a indústria bélica, mas também as suas bases científicas e tecnológicas que vão ser praticamente
o software da indústria bélica.
O reparo de um navio ou de um submarino, no entender do Coronel, não se compara ao projeto de cooperação aeronáutica feito com a
Argentina para construir aviões de passageiros. Na ocasião o Governo
111
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
argentino não pagou nada do que foi gasto, o Governo brasileiro atrasou
os repasses e a Embraer quase foi à falência, porque bancou com os seus
recursos.
Ele disse que ainda não via confiabilidade nesses países para
participarem de empreendimento dessa natureza e sugeriu que o Brasil
pode se associar a outro país para produzir determinados componentes
como os Estados Unidos fazem.
O Coronel também acha que devemos deixar um pouco de lado
arroubos de liderança ou sonho de hegemonia, que podem criar problemas com os EUA.
Quanto à pergunta do Professor Martchenko, ele acha que temos
que participar com forças de manutenção da paz, e depois de imposição.
Repetiu que participar do Conselho de Segurança com o poder de veto
é participar das decisões mais cruciais no que diz respeito à segurança
internacional. Só as grandes potências que pertencem ao Conselho de Segurança têm Forças Armadas com capacidade de prontidão imediata. Os
Estados Unidos, a França, a China, a Rússia, a Grã-Bretanha têm forças
armadas de Imposição de Paz. Só participam de Forças de Imposição.
Sugeriu que a Austrália, que ainda não pertence ao Conselho de
Segurança, é uma séria candidata. Justificou porque naquela região do
Pacífico Central ela é a maior potência, com alcance sobre o arquipélago
das Filipinas e o arquipélago da Indonésia que são massas territoriais
significativas, principalmente populacionais e depois tem uma área altamente sensível que é a existência de um forte contingente muçulmano
que está na Indonésia, num país de duzentos milhões de habitantes.
No terceiro bloco de perguntas o Comandante Luiz Gusmão, do
GSI, pediu ao Coronel Geraldo Cavagnari que fizesse uma reflexão dentro do tema proposto “Desafios da Atividade de Inteligência do Século
XXI”, diante dos acontecimentos de 11 de Setembro quando, na sua
112
Síntese do III Encontro de Estudos
opinião, ocorreu a negação dos numerosos serviços de Inteligência da
maior potência, que não foram capazes de identificar a ameaça terrorista.
A segunda pergunta foi da professora Ana Maria Junqueira Dantas, da
Abin, que indagou sobre o papel da Inteligência diante das grandes ameaças e das grandes questões estratégicas. Finalmente, o Coronel Reinaldo
Silva Simião, do Estado-Maior da Aeronáutica, depois de considerar o
problema rural como uma ameaça estratégica interna, perguntou se a
questão agrária não estaria associada à questão ideológica, que o sistema de informações anterior trabalhou, ou se hoje essa questão já não se
constitui mais em ameaça.
Ele iniciou sua resposta pela última questão, lembrando que o sistema anterior trabalhava voltado, fixado no inimigo interno, e que a nossa
preocupação com a área rural é antiga. Um dos fatores que contribuíram
para 1964 foram as Ligas Camponesas, que tentaram mas não conseguiram
a desestabilização da área rural. Se houver essa desestabilização, o governo
terá de tomar decisões sérias a respeito. Porque hoje o agronegócio é um
dos sustentáculos da nossa economia e a desestabilização da área rural é
muito perigosa para nós. Primeiro porque compromete uma área econômica
altamente sensível da economia brasileira. Segundo porque considera a
proposta ideológica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
socialista, mas de um socialismo puramente estatal ultrapassado.
Quanto ao papel da Inteligência no Brasil, disse que ela tende a se
desenvolver em função dos interesses brasileiros, como o narcotráfico,
mas o assunto deve ser de competência da Polícia Federal. A Abin não
precisa cuidar de narcotráfico. Ela tem que ser informada, estar a par do
narcotráfico, mas não quer dizer, necessariamente, que seja sua principal
atividade. A principal atividade da Inteligência é, indiscutivelmente no
campo da segurança e no campo da tecnologia. Além de se voltar para
fora do País, o que implica atividades de Inteligência e de Contra-Inteligência.
113
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Respondendo agora ao Comandante Gusmão, disse que foi a
falha da Inteligência que permitiu o 11 de Setembro. A CIA abandonou
o trabalho de campo, estava abandonando o trabalho de campo há muito
tempo acreditando que os satélites e a inteligência eletrônica fossem
capazes de substituir os trabalhos dos agentes no campo. Não foi só
a CIA, mas o FBI também, porque a Contra-Inteligência em território
continental dos Estados Unidos é responsabilidade do FBI. Eles foram
surpreendidos por causa desse trabalho que praticamente foi abandonado ou negligenciado. O número de agentes na atividade de Inteligência
externa e na Contra-Inteligência dentro do território continental, nos
Estados Unidos, diminui consideravelmente desde o fim da Guerra Fria.
E eles foram surpreendidos.
INTELIGÊNCIA E INTERESSES NACIONAIS
Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal
O Almirante Armando Vidigal vê uma relação muito grande
entre relações internacionais, competitividade e inteligência. Por isso
sua análise teve como ponto de partida as relações internacionais e a
competitividade entre as nações.
No período entre guerras, ou seja, de 1918 a 1939, houve nas
relações internacionais a predominância de uma vertente que chamou
de liberal nas relações internacionais. Essa vertente é uma herança do
Iluminismo europeu que punha toda a confiança na razão humana e na
possibilidade de evitar que as tensões internacionais fossem resolvidas
por meio da guerra. Seus teóricos acreditavam no sucesso da Liga das
Nações, que não considerava a guerra um recurso válido para as relações
internacionais.
A II Guerra Mundial, uma catástrofe para aqueles teóricos, veio
114
Síntese do III Encontro de Estudos
mostrar que as coisas não funcionavam assim. Com o início da Guerra
Fria ganhou mais força ainda a idéia de que as relações entre as nações
são relações conflituosas. Há uma total insegurança em termos globais
e daí nasce uma vertente que passa a dar grande valor ao problema estratégico, aos problemas de ordem militar.
Essa vertente, chamada de realista, passa a ter força durante a
Guerra Fria. Porque todos os países sentiam que precisavam protegerse das ameaças recebidas. Outros tinham vontade de aumentar a sua
participação no cenário internacional e isso é margem para conflitos,
para divergências.
Explicou que nessa vertente as questões estratégicas ou questões
militares eram absolutamente predominantes. Em conseqüência dessa
visão limitada, há margem para o surgimento da vertente chamada abrangente, do inglês “widener”, mostrando que além das ameaças militares,
existem as de ordem política, econômica, social ou ambiental.
Esta é a posição da Escola de Copenhague, surgida em 1985. Essa
Escola sofre a crítica de uma vertente associada à Escola de Frankfurt,
que considerava que as pesquisas de segurança devem colaborar para o
permanente desenvolvimento da espécie humana e, em conseqüência,
outros valores devem ser priorizados, além da segurança, como a liberdade e a fraternidade. A segurança pessoal seria mais importante do que
a do Estado.
Qualquer que seja a visão adotada por essas Escolas para os princípios que regem as relações internacionais, o papel da Inteligência é a
avaliação das ameaças à segurança. Para o almirante, a visão da Escola
de Copenhague, temperada em parte pelas críticas da Escola de Frankfurt, é um bom ponto de partida para a definição das áreas de atuação
da Inteligência, que é totalmente abrangente e quase ilimitada, tanto no
campo interno quanto no externo.
115
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Segundo ele, a atuação dos órgãos de Inteligência no campo
interno é absolutamente imprescindível, e independe do regime de governo, autoritário ou democrático. Os movimentos sociais, de qualquer
tendência, mas especialmente os que atuam em descompasso com a
lei, devem ser acompanhados pelos serviços de Inteligência de modo a
permitir a ação preventiva do Estado. O fato de que o Estado autoritário
possa usar o seu serviço de inteligência para perseguir grupos políticos
que se opõem aos interesses de governo, não deve coibir a ação do Estado democrático de direito de agir sempre que pessoas ou grupos atuem
contra os interesses do Estado.
Para o Almirante, quando da instituição do Sistema Brasileiro de
Inteligência (Sisbin) e da criação da Agência Brasileira de Inteligência
(Abin), ficou claro que o nosso sistema está fundamentado na vertente
abrangente mas tendo levado em conta a vertente crítica: as atividades
da Agência devem estar voltadas para a defesa do Estado Democrático
de Direito, da sociedade, da eficácia do poder público e da soberania
nacional.
Há uma outra ótica, disse, para definir a responsabilidade da Inteligência que é a transnacionalização. Hoje o crime organizado é transnacional. Hoje o terrorismo é transnacional. Então esses dois elementos,
hoje, passam a ser objeto de preocupação da Inteligência.
Em dezembro de 2002 a Organização Marítima Internacional
(IMO), por pressão dos EUA e outros países, adotou emendas à Convenção Marítima Internacional para Salvaguarda da Vida Humana no Mar
– Convenção Solas. Essas emendas criaram um novo Código de Segurança e Proteção de Navios e Instalações Portuárias, o chamado Código
ISPS, com o propósito de proteger embarcações, portos e terminais de
ataques terroristas e, concomitantemente, impedir que as embarcações
e suas cargas possam servir de veículo para atos terroristas. O Código
está em vigor desde o dia 1º de julho de 2004.
116
Síntese do III Encontro de Estudos
Trata-se de um acordo multilateral para se tentar coibir o terrorismo, mas de forma unilateral os Estados Unidos criaram a Lei do
Bioterrorismo, que obriga todos os exportadores de alimentos para
aquele país, a identificarem todas as partes intervenientes no processo
de produção e comercialização do produto. Os EUA também criaram
a Iniciativa para a Proteção dos Contêineres (CSI) estabelecendo que
sejam verificados no porto de origem por pessoal americano, para que
o contêiner tenha liberação mais rápida no porto norte-americano de
destino. Com isso, o combate ao crime organizado e ao terrorismo se
torna uma tarefa transnacional.
É preciso, entretanto, que haja uma certa cautela para que na
cooperação entre serviços de Inteligência, o mais fraco não acabe sendo
dominado ou comandado pelo mais forte. A soberania tem que prevalecer
nesses casos.
Nos Estados Unidos tem havido muita confusão entre a ação da
CIA e do FBI. Por causa da transnacionalidade do crime organizado e do
terrorismo as ações desses dois órgãos estão começando a se confundir
certas vezes, provocando uma série de problemas.
Disse que é preciso lembrar que existe a Contra-Inteligência e
que cabe ao Governo se proteger contra os serviços de Inteligência estrangeiros, não apenas governamentais, não só com relação a assuntos
militares, mas também em relação a matéria não-militar como a proteção
dos segredos industriais.
Para um país que procura uma maior inserção no
mercado internacional, é enorme a importância do
Serviço de Inteligência
Para mostrar que esse problema existe de fato, lembrou que o
117
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Brasil vem resistindo a um tipo de inspeção da Agência Internacional
de Energia Atômica (AIEA) para proteger o segredo industrial de suas
centrífugas que podem vir a ser um importante fator para a entrada do país
no rico mercado internacional de urânio enriquecido. A razão aparente
para as pressões é forçar a adesão do Brasil ao Protocolo do Tratado de
Não Proliferação Nuclear (TNP), mais exigente em termos de visitas do
que o próprio Tratado.
Para um país como o Brasil que procura uma maior inserção no
mercado internacional é enorme a importância de serviços de Inteligência
e Contra-Inteligência. Isso é uma conclusão lógica, natural e que se impõe. No Estado Democrático realmente há um risco, quando se procura
implementar políticas de Inteligência. Corre-se o risco de fazer o mesmo
que se está querendo reprimir. Já tivemos uma porção de exemplos.
As relações entre o Governo e a Inteligência são relações estranhas, pois significa ter independência na dependência. Evidentemente
que os órgãos de Informação ou de Inteligência dependem totalmente do
governo para recursos, para tudo. No entanto eles têm que manter a sua
independência. Mesmo dentro dessa dependência total e absoluta têm
que ser independentes. Porque afinal de contas o serviço de Inteligência
tem que atender muito mais os interesses do Estado do que do Governo.
O Governo é transitório, o Estado é permanente.
O espectro das possibilidades de ingerência do governo nos órgãos de Inteligência é ainda mais amplo. As justificativas dos EUA para
a invasão do Iraque, e do Reino Unido para apoiá-lo, basearam-se em
informações supostamente produzidas pelos serviços de Inteligência que
atribuíam a Saddam Hussein a posse de armas de destruição em massa,
o desenvolvimento acelerado de armas nucleares, ou de que mantinha
relações com a Al-Qaeda. Posteriormente, essas informações mostraramse infundadas.
O Almirante citou dois jornalistas americanos, Paul Krugman e
118
Síntese do III Encontro de Estudos
Nicholas Kristof, que acusam o Governo Bush de manipular informações sobre as armas de destruição em massa no Iraque, encomendando
relatórios que dessem apoio à decisão já tomada de atacar o país.
E lembrou que a legislação brasileira é muito clara e específica
com relação aos conhecimentos adquiridos pelo serviço de Inteligência,
os quais em momento algum poderão ter utilização de caráter pessoal
em favor de grupos, diversa do seu fim específico.
Ele também apresentou manifestações de um ex-funcionário da
CIA, Vitor Marchetti, condenando as operações encobertas dos serviços
de Inteligência, da sua utilização como um braço operacional ou instrumento da Presidência e de um grupo de homens poderosos, totalmente
independentes do acompanhamento público, cuja principal finalidade é
interferir nos assuntos domésticos de outros países.
Depois de considerar essas operações clandestinas ilegais e antiéticas, questionáveis tanto do ponto de vista moral quanto em termos
práticos para a nação, o próprio Marchetti conclui que “no longo prazo,
a não interferência e a correção de atitudes irão aumentar a posição e o
prestígio internacional”.
Para o Almirante, a coleta de informações também exige ética. Se
a coleta de informações se der no campo interno, evidentemente temos
que estar no estrito cumprimento da legislação do país. O interrogatório,
que é uma das maneiras de se coletar informações, acha que deve ser feito
como se fosse para prisioneiro de guerra de acordo com a Convenção de
Genebra. Da mesma forma, ele acredita que a infiltração de agentes e o
agenciamento de informações podem ser feitos eticamente.
De acordo com o Almirante, enquanto a nossa legislação se baseia
em princípios éticos, a coleta de informações no campo externo tem diversas modalidades: assassinatos, sabotagem, há muitos atos agressivos.
Como exemplo, além de Israel, com sua política de assassinatos seletivos,
119
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
ele citou os EUA, que vêm empregando assassinatos e sabotagem.
Por outro lado, comentou que a China passou a adotar na sua
estratégia militar um tipo de operação sui generis, as operações não militares de não-combate, que assim são consideradas porque não envolvem
nenhuma ação de combate. Em outras palavras é o uso do terrorismo
do Estado. Os chineses dizem com toda tranqüilidade: numa guerra
convencional não podemos enfrentar os Estados Unidos.
A coleta de informações nem sempre precisa ser feita de uma
maneira sigilosa, explicou o Almirante. Ela pode ser ostensiva e é impressionante o acervo de informações que podem ser obtidas dessa forma.
O Tenente-General Reinhard Gehlen, que serviu a Hindenburg, a Hitler,
à CIA, e finalmente durante 26 anos à República Federal da Alemanha
como chefe do serviço de espionagem anti-soviética, diz o seguinte:
“Um chefe de órgãos de informações deve fazer
tudo ao seu alcance, para desfazer a heresia de que o
serviço secreto só deve se ocupar de fontes secretas e
não dar atenção a material ostensivo que se encontra
livremente a disposição em jornais e livros por todo
o mundo”.
De fato, há um acervo enorme de informações ostensivas, como
na Internet, que de tão exagerado chega a ser de difícil manipulação.
Já a coleta sigilosa o Almirante a classifica como uma operação
não-paramilitar. É feita pelo agente encoberto, o “espião” da literatura
policial. Ele tende a manter as suas mãos limpas de sangue e os seus
crimes são do tipo do “colarinho branco”: conspiração, suborno, corrupção. Seu fracasso e sua exposição são em geral punidos com a sua
expulsão do país onde ele está operando. Já o agente envolvido em ações
120
Síntese do III Encontro de Estudos
paramilitares, pelo contrário, é um gângster que trabalha com a força, o
terror e a violência.
Ele também chamou a atenção para a influência da tecnologia na
Inteligência e voltou a citar Gehlen:
“Os progressos científicos nos campos da eletrônica
cibernética e automação tornam necessários novos
meios para se obter informações, mas também dão ao
inimigo novos meios para guardar os seus segredos.
Um verdadeiro arsenal de aparelhagem sofisticada
tem sido acrescentado aos instrumentos convencionais do passado. Há necessidade de se dedicar uma
atenção especial aos novos métodos científicos de
busca de informes”.
A citação data da década de 80. Ele considera que hoje a situação
é muito pior, quando se pergunta se a tecnologia vai substituir o espião
tradicional. Disse que David Kay é taxativo na crítica que faz aos serviços
de inteligência americanos, que estão abandonando os métodos tradicionais de coleta de informações para deixar tudo entregue aos satélites,
aos aparelhos de escuta ultra-sigilosos, causa do mau funcionamento dos
serviços de inteligência.
O Almirante sugeriu que essa substituição pode estar se dando
porque na verdade o espião é um indivíduo pouco confiável em qualquer
circunstância. A clandestinidade encoraja a amoralidade profissional e
daí para a duplicidade é um passo.
E considerando que na vida real a questão da ética é de difícil
consenso, lançou algumas perguntas para reflexão do auditório sobre
o assunto: Se Bush ou Blair agiam no caso do Iraque com a absoluta
121
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
convicção de que atendiam aos interesses superiores do Estado estariam
eticamente justificados? Se de fato eles falsearam as informações ou
deram interpretações tendenciosas para as informações que receberam
dos seus serviços de Inteligência, mas estavam convencidos de que isso
era do maior interesse do Estado, eles estariam eticamente justificados?
Estaria o interesse nacional acima da ética? É possível dar tratamento
ético às ações encobertas? Se a informação tem um valor muito grande,
no sentido de salvar muitas vidas, o homem que interroga um preso tem o
direito de violar os direitos humanos desse preso? Ele mesmo considerou
as questões terríveis, mas encontrou a resposta em Hannah Arendt:
“Somos talvez a primeira geração a adquirir plena
consciência das conseqüências fatais de um modo de
pensar que nos força a admitir que todos os meios,
desde que sejam eficazes, são permissíveis e justificados quando se pretende alcançar alguma coisa que
se definiu como um fim.”
Sobre o profissional da Inteligência, ele acha que não existe alguém acabado, mas uma série de qualificações indispensáveis para um
serviço de Inteligência. Esse profissional deve ser preparado, depois de
recrutado no meio da sociedade e orientado para o serviço de Inteligência.
Para ele no serviço de informação deve-se levar em conta até a formação
do pessoal administrativo, do pessoal de copa, que deve ser de absoluta
confiança e preparado para agir nessa área.
Defendeu uma cultura de informações e contra-informações, que
não precisa necessariamente ter a legislação como peça fundamental,
pois a legislação sempre permite uma série de interpretações e acaba
prevalecendo a mais conveniente. Além disso, ela pode também ser
122
Síntese do III Encontro de Estudos
simplesmente ignorada, burlada, o que no Brasil é tão freqüente. Para
o Almirante Vidigal, o ponto principal é o homem, é quem faz parte do
serviço de Inteligência. Esse homem é que tem que ter predicados e
características adequadas.
No regime democrático, a Inteligência deve ser
controlada pela sociedade
Para que o serviço de Inteligência possa desempenhar as suas
tarefas de forma democrática e dentro dos princípios éticos, ele sugere
um controle do serviço não somente pela sociedade, mas também que
exista um autocontrole. O próprio serviço tem que controlar, ele tem
que se fiscalizar, que se autodisciplinar, e esse é o maior seguro que a
sociedade pode ter. Isso vai depender da qualidade dos homens que vão
para o serviço de Inteligência. O homem do serviço de Inteligência tem
que ser um homem realmente excepcional, em todos os sentidos da sua
competência, do seu valor e da sua qualificação moral.
Os debates da segunda conferência foram abertos por Jeferson
Mário, da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei),
que perguntou qual seria o papel dos movimentos sociais, hoje, numa
democracia, pergunta que estendeu também ao Coronel Cavagnari. Em
seguida, Joanisval Brito Gonçalves, do Senado Federal, abordou no seu
questionamento dois pontos. Ele queria saber sobre a possibilidade de
cooperação entre os serviços de Inteligência, diante dessas novas ameaças, e qual seria a importância, no cenário brasileiro, da divulgação das
atividades de Inteligência junto à sociedade. Completou o bloco o Brigadeiro-do-Ar Raul José Ferreira Dias, Chefe do Centro de Inteligência
da Aeronáutica que perguntou como fazer para recrutar profissionais de
Inteligência por meio de um concurso público.
O Almirante respondeu que o serviço de Inteligência é extrema123
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
mente especial e só o pessoal administrativo deve ser convocado através
de concurso público, e assim mesmo depois de muita triagem. Os agentes
não podem ser recrutados por concurso público, defendendo um critério
singular para a contratação do pessoal do serviço de Inteligência. Sustentou sua opinião em Gehlen, um homem que tem uma vivência enorme
no serviço de Inteligência, que defende o desenvolvimento de um outro
sistema para a contratação de pessoal no serviço de Inteligência.
Sobre a divulgação do serviço de Inteligência, não vê nenhum
paradoxo nisso. Defende a divulgação do valor e da importância do serviço de Inteligência para o País. Lembrou que muitas críticas foram feitas
ao serviço de Inteligência, principalmente depois do final dos governos
revolucionários, quando se duvidou da sua necessidade. Ele considera
o serviço vital para o País e que a divulgação das suas atividades é importante para que a sociedade reconheça a sua importância.
Disse que a cooperação do serviço de Inteligência no campo
internacional aumentou muito com o crime organizado, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas. E que os fatos estão mostrando a importância
dos diversos serviços de inteligência dos países que estejam envolvidos
nestas operações trabalharem harmoniosamente, em conjunto. Considera
fundamental que eles mantenham essa cooperação.
Quanto à questão dos movimentos sociais, na sua opinião devemos considerar que pela nossa Constituição eles estão legitimados,
mas deve ficar claro que eles não têm liberdade absoluta para realizar as
suas ações. Eles precisam respeitar o direito de propriedade, as decisões
judiciais e não podem realizar ações predatórias durante as suas ocupações, derrubando cercas, abatendo gado, destruindo instalações dentro
de uma fazenda, como está ocorrendo. Ele acha que o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está se tornando provocativo
porque isso faz parte da sua estratégia por saber que quem grita mais
alto tem as suas reivindicações atendidas.
124
Síntese do III Encontro de Estudos
Na sua intervenção, o Coronel Geraldo Cavagnari recorreu a
Francisco Graziano para responder a questão. O ex-presidente do Incra
não é contra o MST, mas diz que no Brasil não existem mais terras devolutas ou latifúndios improdutivos. Quem tem latifúndios no Brasil é
o Exército, para seus campos de provas. As grandes propriedades, hoje,
são altamente produtivas. Aquelas propriedades que eram improdutivas
praticamente desapareceram.
O Coronel disse que os pequenos proprietários estão se engajando
no agronegócio cooperativo, no Sul do País. Os outros que conquistaram o campo no Sul de Mato Grosso, depois o Norte do Estado, e que
estão ali próximos da Floresta Amazônica, em Goiás e para o Oeste do
São Francisco eram pequenos proprietários que foram expulsos de suas
terras e buscaram outras regiões. Conseguiram sucesso porque traziam
uma tradição de agricultura familiar. Eles vinham da terra. Eles não eram
homens expulsos das cidades, não vinham da pobreza, eram pessoas que
tinham conhecimento, tradição agrícola e muita vontade de vencer.
No último bloco de perguntas o Capitão Alexandre Pereira Aguiar,
do Comando da Marinha, manifestou preocupação com o problema da
proteção do conhecimento por parte dos órgãos que produzem esse conhecimento. José Irigaray, da Abin, perguntou sobre a possibilidade da atividade
de Inteligência atuar identificando oportunidades para o Estado resolver
determinadas questões, como a da fome, em vez de limitar sua atuação
preocupando-se com ameaças e adotando uma postura defensiva.
Em sua resposta, o Almirante disse que a atitude defensiva vem
mostrar que hoje estamos vivendo muito mais dentro daquela postura da
Escola de Copenhague, daquela postura abrangente que vê a segurança
agindo em tudo, considera que foi feita essa opção. Quanto à fome, ele
concorda que também pode ser vista como uma ameaça porque enfraquece
o nosso Estado social. Ele considera que todos esses fenômenos são objeto
da Inteligência.
125
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Quanto a definir o que temos que proteger - tarefa para nosso
serviço de Contra-Informações - considera um problema extremamente
complicado. Deve ser um trabalho multidisciplinar porque um setor
apenas terá dificuldade de identificar todas as áreas de risco. Reportouse ao caso das centrífugas para enriquecimento de urânio, mas disse que
há inúmeras outras coisas que poderiam ser trabalhadas e identificadas,
já que todas as áreas sensíveis que trabalhamos são do interesse internacional.
Exemplificou com a utilização do Rio Madeira como hidrovia
para escoamento da soja do Centro-Oeste para o Porto de Itacoatiara,
que permitiu ao Brasil colocar o produto nos mercados internacionais
a preços abaixo do preço internacional. O problema é de tal ordem de
grandeza, disse, que os Estados Unidos mandaram uma comissão ao
Brasil para verificar como conseguimos chegar a exportar soja a um
preço altamente competitivo.
Em sua resposta, o Coronel Geraldo Cavagnari também concordou que a fome é uma ameaça, mas acha que temos uma estrutura civil
capaz de dar solução a esse problema. Na sua opinião, não precisamos
direcionar as atividades de Inteligência para um problema quando existem
outros órgãos que poderão oferecer melhor solução, e se começarmos a
olhar tudo o que contém ameaças, a inteligência não vai realizar coisa
alguma. Por isso, temos que estreitar o leque das nossas opções enquanto
estivermos reconstruindo o novo sistema de Inteligência, procurando ser
seletivo na escolha dos objetos a serem considerados pelas atividades de
Inteligência, sejam ameaças ou oportunidades.
126
Síntese do III Encontro de Estudos
SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA NO BRASIL
Professor Jorge da Silva Bessa
Sobre o tema que foi proposto, “Sistemas de Inteligência no Brasil”,
o Professor Jorge da Silva Bessa apresentou uma visão híbrida, porque foi
um profissional que militou trinta anos na área de inteligência e hoje passou
para o outro lado, militando na área acadêmica e na área da Inteligência
competitiva.
Essa visão híbrida, disse, está baseada na experiência que acumulou
em todos os órgãos de inteligência que serviam ao Governo Federal e que culminaram com a Abin. E também a visão dos acadêmicos, o que pensam, o que
discutem. E como a Inteligência se divide, em nível estratégico e tático.
Na fundamentação básica para a existência de um serviço de Inteligência destacou a questão da sua legalidade e legitimidade. Acha que o
Serviço Nacional de Informações (SNI) tinha legalidade, pois havia todo
um arcabouço jurídico que dava legalidade à sua existência plena. Avaliou
que talvez faltasse ao SNI a legitimidade que a Abin tem hoje, ou precisa
conquistar. Para ele, essa legitimidade, dispensável nas ditaduras, não pode
faltar a um órgão de inteligência no regime democrático.
Disse que antigos profissionais da Inteligência foram alvos da falta
de entendimento sobre esse trabalho e por isso, também foram os primeiros
a levantar a questão da legitimidade.
Depois de lembrar que informação é poder, ele defendeu a necessidade de controle da atividade de Inteligência, para evitar que seja usada para
objetivos espúrios.
O Professor Bessa não vê necessidade de um código de ética específico
para o pessoal da Inteligência, já que militares e diplomatas que tratam de
segredos de Estado não têm um código de ética específico.
Sobre a razão de ser de um sistema de Inteligência, ele acha que o
127
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
serviço existe para fornecer análises e estudos que atendam as necessidades de
alguém que decide. Sua finalidade é assessorar quem decide, pois a informação
é que vai orientar o processo decisório, seja empresarial, seja governamental,
seja na esfera militar ou qualquer outra. Outro aspecto que o Professor Bessa
considera importante é o planejamento estratégico, que deve estar baseado
nos estudos da Inteligência.
Ele discorreu também sobre a questão da Inteligência interna e da
Inteligência externa. Disse que para alguns puristas Inteligência só pode ser
externa. Segundo eles, Inteligência só pode ser a busca, o processamento e
a disponibilização de análises, de estudos de situações, fatos, eventos, populações, geografias, etc. de outros centros de poder. Mas ele acha que esse
modelo não funciona porque para atender às necessidades de informação do
Presidente da República, a Inteligência tem que contemplar os dois aspectos:
lá fora e aqui dentro. Principalmente num país como o Brasil onde, muitas
vezes, as necessidades da Inteligência se prendem muito mais ao interior,
ao nosso processo de desenvolvimento, a gestão da administração pública.
A grande dúvida que fica é se essa Inteligência, interna e externa, deve estar
concentrada no mesmo órgão.
Ele disse que quando analisamos os modelos de Inteligência de Estados ditatoriais, como a KGB à época da sua existência com todos os seus
homólogos do Leste Europeu, observa-se que todos eles se baseavam nesse
sistema, congregando as duas áreas, interna e externa.
Essa observação remeteu o Professor para o aspecto da legitimidade
do SNI. Ele acha que ninguém teria se preocupado com o SNI se ele estivesse atuando na China, na Rússia ou em qualquer país, mas, com a atuação
interna, todos ficavam preocupados, porque a questão da violação dos direitos e garantias constitucionais preocupa a todos pois ninguém quer ter seus
direitos violados.
Nesse contexto, ele acha que se deve discutir até que ponto a atividade do órgão da Inteligência viola os direitos humanos, pois se observa que
128
Síntese do III Encontro de Estudos
a sociedade, através dos seus segmentos, mas basicamente o Parlamento,
se cerca de várias garantias para evitar que esse órgão interno extrapole das
suas funções.
Quanto ao profissional de Inteligência, Bessa acha que quando ele sai
da escola carrega a dúvida de onde vai atuar, se na área interna ou externa.
E começa toda uma série de problemas internos porque quem atua na área
externa pode ter mais chances, mais possibilidades, mais vantagens, viagens
ao exterior, possibilidade de ser um Adido de Inteligência, etc. A temática
das relações externas é uma, e a das relações internas é outra completamente
diferente. Apesar das suas correlações, aquele que cai na área interna vai achar
que não está fazendo Inteligência. Ele vai cuidar de coisas pontuais que, às
vezes, não interessam a quem vai tomar decisões. Já na área externa há aquela
facilidade do contato, troca de conhecimentos com os serviços estrangeiros
com os quais mantemos relações. Na opinião dele, a convivência das Inteligências interna e externa é uma questão ainda mal definida.
Sobre o Sistema Nacional de Inteligência (Sisni), afirmou que era um
sistema montado dentro de um sistema de poder bipolar com a influência
americana, já que o Brasil estava aliado ao pensamento geo-estratégico dos
Estados Unidos. Ele foi criado sob inspiração da Escola das Américas, num
contexto da guerra ideológica. Então o SNI nasce sob essa característica.
Com a responsabilidade de atuar contra aquilo que era considerado a ameaça maior, o Movimento Comunista Internacional. Não tinha meio termo.
Vários teóricos tentaram fazer uma terceira via, mas o fato real é que você
ou era pró-americano ou pró-União Soviética. O nível de abrangência era o
mesmo de hoje: os aspectos interno e externo, sendo que o Sisni contava com
a colaboração das assessorias de segurança e informação de cada ministério
ou órgão da administração pública.
Para o Professor, esse sistema causava medo porque de fato, muitas
vezes, foi utilizado politicamente, de forma incorreta. No entanto, acima de
tudo, as assessorias eram partes importantes do sistema de informações à
129
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
época. O suporte teórico era dado pela Escola Superior de Guerra (ESG),
com seu conceito de Poder Nacional. Esse suporte teórico incluía os temas
segurança e desenvolvimento, que era o binômio daquela época e em relação
ao qual ele não observa nenhuma diferença: hoje como ontem, a sociedade
quer segurança e desenvolvimento.
Bessa disse que a ESG era o grande centro do pensar estratégico do
País, já que o mundo civil não se preocupava muito com essa visão. Já os
militares, por tradição, por necessidade da profissão, tinham obrigatoriamente
que ter essa visão estratégica. E através da ESG, participando dos seus cursos,
os civis começaram a desenvolver a visão estratégica.
Ele considera o suporte teórico da ESG fundamental na constituição
do Sisni, pois as condicionantes políticas exigiam que se atuasse dentro desse
aspecto ideológico. Disse que tem satisfação de ter participado desse embate
ideológico e que hoje se considera um vencedor da Guerra Fria, haja vista
que na Rússia, com o desmantelamento da União Soviética, nunca mais o
comunismo chegou ao poder pelo voto.
Para Bessa, acima de tudo esse sistema agia e trabalhava com um brilhantismo ímpar. Disse que quem conheceu o Plano Nacional de Informações
e o seu detalhamento quanto às necessidades da informação, viu que era algo
primoroso e único. O SNI, com a sua agência central, detinha poder incomensurável como órgão central do sistema e ao qual todos deviam obediência.
Funcionava um pouco à base do medo, mas funcionava e bem.
Bessa contou que se vivia uma época boa, pois o SNI tinha poder,
dinheiro, importância. Seus funcionários tinham a auto-estima elevada,
trabalhavam ali com satisfação. Até que, de repente, a situação se altera e
a partir de 1985, com a eleição de Tancredo Neves, inicia-se o processo de
redemocratização do País.
Esse sistema continuava funcionando, ainda que num nível mais lento,
com outros condicionantes, e com outras preocupações. Tancredo Neves não
130
Síntese do III Encontro de Estudos
assume, mas o chefe do SNI que ele havia escolhido imaginando todos os problemas que iriam advir desse processo gradual de redemocratização, General
Ivan de Souza Mendes, continuou e levou a bom termo esse processo.
Na opinião de Bessa, o grande problema vai acontecer com a eleição
do Presidente Collor e o cumprimento da sua promessa de campanha de
acabar com o SNI, que atingia de imediato vários segmentos que clamavam
há muito tempo por isso. Ele acha que foi uma atitude inteligente, mas trouxe
como conseqüência algo desastroso que foi a desintegração do sistema. Então
o todo poderoso SNI, a agência central que tinha toda aquela capilaridade,
que reunia todos os ministérios, onde as informações sempre fluíam tranqüila
e normalmente numa direção única, se esfacela e nunca mais consegue se
equilibrar. Esse período marca o momento negro da Inteligência, que ficou
como um filho enjeitado.
A nova Inteligência surge com a Lei 9.883/99 e é regulamentada por
dois decretos. Enquanto o antigo SNI era formado por todos os ministérios
e órgãos do Governo, esse novo sistema é formado por apenas treze órgãos,
onde se incluem a Casa Civil, através do Censipam, que cuida da proteção
da Amazônia e suas fronteiras, do crime organizado, do contrabando, do
narcotráfico; o GSI, como órgão coordenador; a Abin como órgão central, e
o Ministério da Justiça, com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, o
Departamento de Inteligência da Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal.
Para Bessa, essa visão é de segurança, de uso da Inteligência para o combate
à criminalidade.
Quando o SNI ruiu, as Forças Armadas montaram
o seu próprio sistema de Inteligência
Segundo o Professor Bessa, é no Ministério da Defesa que encontramos os órgãos específicos de Inteligência: a Subchefia de Inteligência do
Estado-Maior e o Centro de Inteligência do Exército. É o segmento militar
131
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
que trata e assume a questão da Inteligência. É o mesmo segmento que
sabiamente, em 1994, quando o sistema todo rui, montou o seu sistema de
Inteligência militar, o sistema cooperativo. De acordo com o Professor, aquilo
que as organizações civis não fizeram, os militares decidiram fazer e com isso
não ficaram sem a sua comunidade, sem o seu sistema de Inteligência.
No Ministério das Relações Exteriores, o órgão que faz parte do sistema é a Coordenação-Geral de Combate aos Ilícitos Transnacionais. Isso o
leva a interpretar que para o Ministério das Relações Exteriores sua colaboração com o sistema se dá apenas nessa questão dos ilícitos transnacionais,
deixando a idéia de que cabe à Inteligência só a questão de criminalidade
e ilícitos.
No Ministério da Fazenda, Inteligência é assunto para a SecretariaExecutiva do Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Para Bessa,
quando falamos sobre o controle de atividades financeiras, estamos falando
em crime “do colarinho branco”, o que lhe faz parecer também que o ministério e as pessoas que montaram o sistema acham que Inteligência trata
apenas do aspecto criminoso.
Ele analisou, também, dentro do aspecto legal, como a Inteligência
atua e que dificuldades tem para desempenhar seu papel. O artigo 2º da Lei
9.883/99 diz que: “Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal
que direta ou indiretamente possam produzir conhecimentos de interesse
das atividades de inteligência, em especial àqueles responsáveis pela defesa externa, segurança interna e relações exteriores, constituirão o Sistema
Brasileiro de Inteligência”.
Isso faz Bessa supor que os órgãos e os ministérios que estão fora
do sistema não produzem informações ou não têm informações de valor
para a Inteligência. Ele questiona como se pode desprezar informações do
setor de agricultura, pecuária e abastecimento, setor este que está fora do
Sisbin, e que hoje é a mola do desenvolvimento do País. Ele entende que
qualquer problema, qualquer tensão, como a proveniente da ação do MST,
132
Síntese do III Encontro de Estudos
qualquer lobby ou decisão que atinja esse setor influencia diretamente o
País. Além do setor agrário também não fazem parte do Sisbin o Ministério
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que cuida das nossas
exportações e de buscar os dólares que o Brasil precisa; o dos Transportes,
que cuida de uma área estratégica para a economia e a segurança nacional;
e o das Comunicações, também de fundamental importância na infra-estrutura do País.
Embora o Itamaraty tenha um importante papel nas disputas comerciais, como as travadas hoje na Organização Mundial do Comércio (OMC),
Bessa não considera excludente a participação da Inteligência para ajudar
na busca das informações necessárias para auxiliar as autoridades governamentais nessa guerra econômica.
Bessa vê “uma forma de romper com o passado” quando a lei estabelece que o sistema de Inteligência tem como fundamento a preservação
da soberania, defesa do estado democrático, direito e a dignidade da pessoa
humana. Mas quando a mesma lei remete aos tratados, convenções, acordos
e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte,
ele se preocupa quanto ao que devemos cumprir e preservar. Ele explicou
que a sua preocupação se prende ao fato de que a busca de informações no
exterior pode exigir do agente o rompimento de normas ou a violação das
leis do país, para obter a informação que procura. Ele acha que isso amarra
a atuação externa do órgão na busca de informações importantes.
Ele defende como fundamental para o Sisbin uma doutrina para que
todos adotem uma única linguagem, como no tempo do SNI, assim como
a ampliação do seu quadro de funcionários, que considera muito reduzido
para alimentar de informações o processo decisório. Além disso, considera
preciso também dar treinamento ao pessoal da sociedade de informação,
apresentar uma nova visão para essas novas necessidades, diante da abundância de meios de informação, da tecnologia de informação que podem
favorecer o trabalho desses profissionais.
133
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Outro aspecto que ele considera é a necessidade da recuperação da
auto-estima dos profissionais. Essa recuperação da auto-estima é que deve
estar ligada, obrigatoriamente, a uma comunicação com a sociedade, uma
interface aberta com a sociedade nacional. Mostrar o que é a Inteligência,
o que fez no passado e faz hoje, seus êxitos e o que ainda pode fazer pelo
País.
Por achar que ainda convivemos com uma mentalidade de que tudo
que circula no âmbito da Inteligência tem que ser no mínimo confidencial,
o Professor entende que está na hora de se flexibilizar o sigilo, como já se
faz nos Estados Unidos e em outros países. Para ele, um sigilo excessivo
impede que a informação chegue a outros decisores.
Bessa também vê uma tendência de privatização da Inteligência,
como já se observa nos Estados Unidos. Segundo ele, os militares americanos estão utilizando a Inteligência privada com resultados muitas vezes
superior ao da Inteligência do Estado. Eles terceirizam o que a iniciativa
privada pode fazer melhor. Sem enumerar, disse que nos EUA existe uma
grande quantidade de empresas atuando no campo da Inteligência.
No primeiro bloco de perguntas ao Professor Jorge da Silva Bessa,
Fernando Magalhães, da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, se reportou aos temas tratados durante a manhã, quando
foi abordada a questão dos movimentos sociais, como o MST, para perguntar ao Coronel Geraldo Cavagnari quais as perspectivas da Inteligência
no acompanhamento do problema indígena, em vista dos vários interesses
internacionais envolvidos na questão. O Ministro José Carlos de Araújo
Leitão, da Saei, completou o bloco de perguntas indagando ao Professor
Bessa sobre as diferenças e as semelhanças entre antigos analistas e jovens
analistas. Ele ainda quis saber, diante da discrição que protege a atividade
de Inteligência, como é que ficariam as relações entre os profissionais de
Inteligência e a imprensa num regime democrático.
O Coronel Geraldo Cavagnari respondeu que a questão indígena
134
Síntese do III Encontro de Estudos
se inclui, embora não tenha destacado, na questão da Amazônia. Porque a
Amazônia não tem só problema de fronteira, mas tem o problema das reservas indígenas, do contrabando, do desmatamento, do garimpo, da presença
das ONGs. Tudo isso está incluído na Amazônia, e a questão indígena é um
dos objetos da atividade de Inteligência.
Já o Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal disse que tinha
uma visão muito particular da questão indígena, que considera o índio como
um cidadão que precisa ser recuperado para a sociedade brasileira e cuja
cultura precisa ser preservada.
Defende a criação de escolas e de estímulos para incorporá-lo à nossa
civilização. Transformá-lo num cidadão completo, pleno. Como exemplo,
disse que o Exército faz muito a esse respeito, quando possibilita ao índio
fazer serviço militar. Considera que a questão indígena está errada e defende
sua completa reformulação.
O Professor Jorge da Silva Bessa esclareceu o que havia dito sobre
as diferenças de atitudes entre jovens e antigos analistas, afirmando que
quis se referir ao velho conflito de gerações, onde os mais antigos se sentem
mais experientes e os mais jovens se consideram mais modernos. Quando o
SNI estava nas mãos dos militares, nós nos revoltávamos porque como todo
jovem, queríamos mudar o mundo. Entende que é o mesmo processo que
acontece na Abin, só que agravado um pouco mais pela questão da legitimidade que muitos jovens analistas acham que os antigos não têm, porque
não passaram em concurso público. Todavia foram eles que plantaram e
adubaram esse processo de transição que redundou, hoje, na Abin.
Como qualquer órgão governamental, a Abin
também deve ter a sua assessoria de imprensa
Quanto à questão do relacionamento com a imprensa, considera
135
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
que como qualquer organização governamental, a Abin também deve
ter a sua assessoria de imprensa, até para desmistificar a Inteligência. E
para isso defende não apenas a abertura de canais com a imprensa, mas
acima de tudo utilizá-la para a Inteligência “cantar os seus louros”. Bessa
disse que já no tempo do SNI eles recebiam jornalistas e conversavam
com eles sobre Inteligência e Contra-Inteligência.
No segundo bloco de perguntas, a Professora Ana Maria Junqueira
Dantas, da Abin, pediu um comentário sobre o tipo de Inteligência que
se quer para o País, porque na opinião dela isso não está claro na lei,
considerando que a legislação do Sisbin acabou criando um órgão de
informações, e não de Inteligência. O Coronel Reinaldo Silva Simião,
do Comando da Aeronáutica, no mesmo contexto da abordagem da
professora Ana, quis saber se não estaria faltando um Plano Nacional de
Inteligência ou um Plano Nacional de Informações no sistema atual, para
que ele funcionasse como o antigo. Fechando o bloco, José Irigaray, da
Abin, fez dois comentários à palestra do Professor Bessa, primeiro para
dizer que a maioria dos que atuam na Inteligência também discordam da
formatação que a lei deu ao sistema, especialmente no que diz respeito a
alguns órgãos que deveriam integrá-lo, e outros que estão e não deveriam
integrar o sistema. A outra questão foi sobre o conflito de novos e antigos
funcionários, que ele não acredita que exista, pois considera normal em
qualquer organização a troca de opiniões de como fazer coisas com visões
novas e antigas, sem que isso pudesse caracterizar um conflito.
O Professor Jorge da Silva Bessa disse que concordava plenamente com o Professor José Irigaray e que provavelmente não tenha sido
entendido quando se referiu ao passado, falando de conflito entre jovens
agentes e a cúpula militar do sistema. Ele aproveitou para afirmar que
na verdade também não vê conflito.
Com relação às observações da professora Ana, respondeu que
não basta conceituar o que é Inteligência, mas que é preciso definir efeti136
Síntese do III Encontro de Estudos
vamente qual é a missão e que diretrizes tem um órgão de Inteligência.
Lembrou que no final do governo passado, o presidente enviou
para o Congresso a proposta do Plano Nacional de Inteligência. Após
dois anos de debates, o GSI retirou esse projeto e passou pela experiência
da “gestão participativa”, com o objetivo de ouvir a sociedade sobre a
atividade de Inteligência. Disse que na sua época foi feita uma proposta
semelhante, mas advertiu que não interessa ter um documento formal,
mas que as missões sejam claras, para que se possa cobrar e que cada um
saiba o que tem a fazer. Ele afirma que não adianta um sistema formal
que ninguém obedece. Sua percepção da criação da Abin é que o sistema
nasceu sob o signo da timidez, para não assustar.
Sobre o modelo de Inteligência, Bessa acredita que o País deve ter
seu modelo próprio. E este modelo não deve ter, como hoje, limitações de
pessoal e de orçamento, quando sabemos que órgãos de menor hierarquia
contam com mais recursos. Para conseguir os recursos, ele afirma que o
sistema deve mostrar a sua necessidade, a sua competência.
Antes da palestra do Professor Alexandre Martchenko, o representante do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Luiz Augusto
Cardoso, fez uma breve ponderação sobre a palestra do Professor Jorge
da Silva Bessa. Disse que o MCT considera a Inteligência fundamental e
imprescindível, mas que da mesma forma que não se pode simplificar a
atividade de Inteligência, também não é possível, como fez o Professor,
simplificar uma observação sobre ações científicas.
Ressalvando que não sabia se era a mesma pesquisa a que o
Professor Bessa se referira a respeito de mosquitos, ele disse que há
uma área de alta tecnologia de produtividade de frutas do Nordeste na
qual o ministério investe muito e conseguiu, através de uma inversão de
trabalho em cima de uma mosca, basicamente evitar a destruição quase
que completa da produção de fruticultura na região.
137
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
PRIMÓRDIOS DA ATIVIDADE E EVOLUÇÃO DA INTELIGÊNCIA
NO BRASIL
Professor Alexandre Martchenko
O Professor Alexandre Martchenko abordou alguns pontos dos
antecedentes históricos, dos primórdios da atividade, sua evolução recente
e o que é Inteligência no Brasil.
Lembrou que um dos primeiros estamentos de segurança de
Estado que se tem notícia foi o de Ivan o Terrível, na Rússia. Ivan Terrível, que já em 1564 criou a Oprichnik, um serviço de Inteligência que
o ajudou a consolidar o seu poder. Em suas conquistas, os espanhóis, os
ingleses e os portugueses também se valeram da atividade. Nos Estados
Unidos o uso da Inteligência data da Guerra da Secessão.
Segundo o Professor, depois da II Guerra, com a disseminação da
Doutrina de Segurança, em 1946, temos o marco inicial da Inteligência
no Brasil dentro do contexto da bipolaridade, antes mesmo do estabelecimento da estrutura de Inteligência americana, que ocorreria em 1947.
A articulação da Inteligência brasileira com o exterior se daria,
de acordo com Martchenko, nos Governos Costa e Silva e Médici. Foi
quando começamos a ter alguma atividade mais preocupada em coletar
dados e ter uma manifestação um pouco mais independente na nossa
política externa.
A grande guinada viria no Governo Geisel, quando houve a denúncia do acordo militar com os Estados Unidos e a assinatura do acordo
nuclear com a Alemanha.
Contou que nessa época, o Brasil começou a ter uma atuação de
Inteligência, em apoio a Angola, por parte do Movimento Popular da
Libertação de Angola (MPLA) e a Moçambique, com a Frente de Liber138
Síntese do III Encontro de Estudos
tação de Moçambique (Frelimo). Também nessa época se estabeleceu
um posto de Inteligência em Bagdá, que seria muito importante para a
nossa indústria de armamentos e a venda de armas para o Iraque, a Líbia
e o Egito.
No Governo Figueiredo, ressaltou a criação de um posto da Inteligência no Peru para acompanhar a evolução do apoio militar da União
Soviética a esse país. E que no Suriname foi criado um posto, de onde
eram acompanhadas manifestações em El Salvador, Nicarágua, e Granada. Lembrou que essas ações se inseriam na preocupação estratégica
da Inteligência de antecipação de cenários.
Pouca gente sabe, mas a Inteligência brasileira
teve grande atuação no exterior
Martchenko relatou como aspecto negativo o caso da Malvinas,
quando a Inteligência brasileira naufragou, junto com muitas outras.
Acha, no entanto, que isso teve um lado positivo, que foi a criação, em
seguida, de um posto na Argentina que deu dividendos até para a consolidação do Mercosul.
O Professor aponta a queda da União Soviética como um dos
trabalhos mais importantes e interessantes da Inteligência brasileira
acompanhando, treinando pessoas e lançando essas pessoas in loco,
para que pudessem captar os dados e não ficássemos na dependência
dos serviços aliados. Ele disse que na época, os trabalhos da Inteligência passaram a serem valorizados para assessorar a área governamental
e que, embora pouca gente saiba, foi fundamental porque antecipou
informações para que o gestor da política externa pudesse direcionar
melhor a sua decisão.
Martchenko se reportou também à situação do Oriente Médio e
139
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
disse que se chegou a estudar a possibilidade da instalação de um posto
na região, o que não ocorreu porque se entendeu que o posto em Genebra,
como coordenador, resolveria a questão.
Mas com a redemocratização do Brasil, o serviço foi obrigado
a trabalhar com situações que considerou inusitadas, como a de contar os bois no pasto. Por sobrevivência – e esse é um exemplo, que
disse que passava aos novos, da necessidade do sistema se adequar às
situações.
Quanto ao caso Collor, para ele foi um crime de lesa-pátria.
Martchenko acha que o que foi feito nessa fase marca até hoje de
forma indelével a atividade. Mas para ele, a atitude do ex-presidente
mostrou a validade da Inteligência, porque sem ela do seu lado, não
teve competência de manter-se no cargo.
Ainda sobre o Governo Collor, ele acha que o Departamento de
Inteligência (DI), criado na época por Medida Provisória, foi um ato
muito mais arbitrário do que a criação do SNI, que embora com todo o
fervor da época revolucionária, foi criado após debate no Congresso.
Outro ponto negativo para o Brasil por falta do assessoramento
da Inteligência citado por Martchenko foi o projeto de captação de
cérebros da ex-União Soviética. Chegou-se a pensar na colaboração de
cerca de 200 cientistas que iriam contribuir com as nossas atividades
de pesquisa, mas isso não se concretizou e esses cientistas acabaram
indo para outros países, como o Japão e os Estados Unidos.
A Inteligência daria sinais de soerguimento no Governo Itamar
Franco. Até que no Governo Fernando Henrique criou-se a Abin e o
General Alberto Cardoso foi convidado como assessor para estabelecer
a agência. Abriu mão de sua carreira em prol de um ideal, em prol de
uma idéia. Não se envolveu nas brigas palacianas da época, ou melhor,
não as aceitou porque sabia onde se deveria colocar a Inteligência, mas
140
Síntese do III Encontro de Estudos
ainda perdemos muito tempo, cinco anos dos dois governos, tanto que
a Abin só foi promulgada em 1999.
O professor Martchenko relatou o prazo exíguo para a criação
da Abin, de 180 dias, em meio às dificuldades ainda herdadas da Era
Collor, como a extinção dos postos e a ausência da antiga capilaridade
e de comando para o pessoal existente. Disse que mesmo com esses
condicionantes a agência foi estruturada partindo do pressuposto de
que a Inteligência dentro desse contexto tem a parte externa e a contraespionagem, que é uma atividade intrínseca voltada, também, para o
exterior.
Foram feitos contatos com serviços de Inteligência dos países da
América do Sul e também com a África do Sul, que vivia a transição, o
fim do regime de apartheid e tinha uma estrutura de Inteligência semelhante à nossa, inclusive quanto às preocupações com a segurança do
Atlântico Sul.
Também foram estabelecidos contatos com os serviços que antes
combatíamos no Leste Europeu, o russo, o polonês, o ucraniano e assim
por diante, o que Martchenko considera uma das realizações mais positivas, porque logo em seguida o serviço passou a capitalizar uma série
de dados em maior profusão. Como nessa atividade ninguém sobrevive
sozinho, havia o reconhecimento de que tínhamos dados diferentes e passamos a ter aquela moeda de troca. Além dessas realizações, ele destacou
a inauguração do posto dos Estados Unidos, o primeiro da nova fase.
Outra realização que reputa importante e que traz dividendos, até
hoje, para área de ciência e tecnologia, foi a criação de um simpósio na
área de tecnologia sensível muito criticado na época, mas que hoje em
dia uma vertente da Inteligência trabalha ainda com os dividendos dessa
iniciativa de dez anos atrás.
O professor colocou também o que chama de marco teórico.
141
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Segundo ele, ponto de inflexão na área de Inteligência, embora muitos
coloquem como o 11 de Setembro, ocorreu antes, na Guerra do Golfo,
quando em meio aquela profusão de dados os Estados Unidos verificaram
que 35% das suas baixas eram de fogo amigo. A operação Tempestade
no Deserto tinha dados de monta, mas não tinha o conhecimento e a
competência para gerenciá-los e trabalhá-los.
Em seguida, passou a falar sobre o funcionamento do Departamento de Inteligência, que deve considerar os dados mais recentes da
conjuntura dos países, a economia internacional, o desenvolvimento
científico e tecnológico e o combate às armas proibidas, aquelas de
destruição em massa. Diante dessas situações supervisionadas pela área
de Contra-Inteligência, explicou que o serviço atua através de viagens e
de contatos com congêneres e órgãos da administração federal como o
grupo superior nuclear, regime de tecnologia de mísseis, a parte biológica,
biotecnologia. Não se trata, explicou, de imiscuir-se nas atividades dos
outros e sim buscar complementaridade, e também a captação daquilo
que é necessário.
Destacou também que no atual mundo multilateral, a formação de
blocos torna cada vez mais necessárias reuniões das áreas de inteligência
de países da América do Sul, inimaginável um tempo atrás.
Ele manifestou preocupação com a falta de unidade no sistema,
provavelmente devida à ausência de uma doutrina.
Por tudo isso, Martchenko acha importante consolidar o sistema
interno, para que se possa pensar nas ações externas. Quanto à nossa
participação no exterior, considera irrisório o número de postos que
temos hoje. Se a situação persistir, se não tivermos números de postos
em profusão, vamos perder esse tempo da história.
Ele concluiu perguntando qual seria a Inteligência que foi discutida no encontro de estudos, e antecipou-se na resposta, afirmando que
142
Síntese do III Encontro de Estudos
talvez não se saiba qual, mas ela tem que ser competente, estar amparada
no conhecimento, e considerar a necessidade fundamental de sistemas
de Inteligência no campo externo.
O primeiro bloco de debates sobre a palestra do Professor Alexandre Martchenko constituiu-se de considerações e de observações sobre
o funcionamento do serviço de Inteligência.
O Brigadeiro-do-Ar Raul José Ferreira Dias, Chefe do Centro de
Inteligência da Aeronáutica, observou que o marco doutrinário, na sua
avaliação, que é também a posição da Inteligência da Aeronáutica, é a
gênesis do sistema. Para ele, só uma análise estratégica permite identificar os pontos fortes, os pontos fracos, as oportunidades e as ameaças.
Segundo o Brigadeiro, esse conjunto é que vai estabelecer claramente a
nossa política de Inteligência e em conseqüência a nossa estratégia – uma
vai dizer onde queremos chegar e outra vai dizer como deveremos chegar
lá. Ele acha que em função disso, um plano põe o sistema a funcionar
porque o que temos hoje é um relógio desmontado, que pode não ser o
ideal, mas que se for montado e receber corda começará a funcionar.
Na seqüência, Joanisval Brito Gonçalves, do Senado Federal,
opinou que o maior desafio para a Inteligência brasileira é sobreviver,
no sentido de conseguir fazer um trabalho eficiente e que tenha respaldo
da sociedade e dos tomadores de decisão.
Para ele, antes de se discutir quais são as ameaças a Inteligência
precisa saber o que é e do que precisa para existir. Joanisval disse que
também pensa sobre a necessidade de se reestruturar efetivamente o sistema, de forma especial com relação ao orçamento e número de analistas.
Ele questionou, por exemplo, a capacidade da Abin enviar agentes ao
exterior caso fosse chamada a cumprir uma missão.
Considerando que a percepção da sociedade é que a Inteligência
está vinculada ao aparato repressor, ele acha que a legitimização da Abin
143
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
passa pela difusão de uma cultura de Inteligência não só nos órgãos
governamentais, mas também junto à iniciativa privada, mostrando a
existência das ameaças, como a espionagem industrial, e a importância
de um sistema encarregado de tentar neutralizar essas ameaças.
Um outro ponto que ele abordou é como a Abin trabalha com
aqueles que saíram do sistema, para saber o que eles estão fazendo e como
é que eles poderiam ser úteis e se gostariam de voltar a servir ao sistema.
No entanto, destacou que, na sua avaliação, a maior parte das pessoas
que saíram não possuem uma visão boa da atividade de Inteligência.
É preciso conscientizar o Congresso sobre a
importância, de um sistema de Inteligência
Joanisval também defendeu uma maior aproximação entre a Abin
e o Congresso Nacional, lembrando que o Senado Federal dispõe de um
consultor para a área de Inteligência que assessora todos os senadores,
a Presidência do Senado, os órgãos do Senado e a Comissão Mista do
Congresso no controle da atividade de Inteligência. Além disso, lembrou
do papel do Congresso no controle da atividade de Inteligência e na
aprovação do seu orçamento e reforçou a necessidade de uma aproximação da Abin não somente com os parlamentares, mas também com seus
assessores de Inteligência. Joanisval acredita que enquanto não houver
uma conscientização do Congresso sobre a importância de um sistema
de Inteligência, não haverá efetivamente sistema de Inteligência, e o
sistema que existir vai ser ridicularizado.
José Irigaray, da Abin, depois de se reportar aos desvios da Inteligência para contar boi no pasto, medir nível de água nas barragens e,
mais recentemente, para levantar os pontos de extrema pobreza no Brasil,
defendeu a necessidade de se mostrar aos usuários da Inteligência para
que ela existe. Ele acha que os clientes da Inteligência precisam saber
144
Síntese do III Encontro de Estudos
o que pedir e, por seu lado, a Inteligência também precisa aprender a
dizer “não” e indicar, quando for o caso, o órgão competente para dar a
resposta solicitada.
Na opinião dele, só podemos discutir Inteligência vinculada a
um projeto político, ou seja, a atividade de Inteligência tem que existir
para atender uma necessidade. É preciso saber qual é o projeto político
do Brasil, que tipo de informação o Brasil quer para se desenvolver e
chegar a ser uma grande potência, e qual é a Inteligência que se quer.
Essa Inteligência que se quer, defende Irigaray, é aquela que vai estar
vinculada ao Brasil que se quer. Por isso, acredita que não adianta discutir
qual é a Inteligência se não se sabe qual o país que se quer.
O Professor Alexandre Martchenko começou a responder a partir
da observação do Brigadeiro Dias e considerou que dentro da idéia colocada pelo representante da Aeronáutica de que há um sistema interno
que não funciona, a solução talvez esteja em dar competência ao sistema
para que ele possa mostrar a sua presença, mostrar que tem condições
de colaborar com o projeto de desenvolvimento dentro de uma política
de governo.
Em relação à colocação de José Irigaray, o professor disse que
concordava quanto à necessidade de definição de uma política de Inteligência. Mas ele acha que diante da ausência dessa política, o desafio que
se coloca para todos os profissionais da atividade é tentar provar com
seu trabalho a necessidade da política de Inteligência.
Com relação ao contato com o Congresso, Martchenko lembrou
que acompanhou o General Alberto Cardoso na primeira visita que o
então Chefe do GSI fez ao Congresso para discutir a criação da Abin,
tendo tratado, na ocasião, com o Deputado José Genoíno. Segundo o
Professor, o Deputado ficou surpreso com a visita e até elogiou a proposta
de criação da agência.
145
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
Sobre a questão de dizer “não”, o Professor acha que para chegar
a esse ponto é preciso competência e conhecimento. Esclareceu que
quando se fala em unidade doutrinária, se recorda da proposta da antiga
Escola Nacional de Informações (ESNI) e acha que pode ser adaptada
à realidade de momento.
O Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal fez uma observação à colocação do Brigadeiro Dias para dizer que, na sua opinião,
a Inteligência não é um fim em si mesma. Ele considera evidente que
precisamos ter uma política de Estado que defina o papel da Inteligência.
Entretanto, num regime democrático é extremamente complicado fazer
essa política de Estado. Ele acha muito difícil que a sociedade chegue a
um acordo sobre o rumo que o Estado deva seguir, o que não acontece
num regime autoritário onde se impõe o Estado que se quer.
Lembrou que no passado as Forças Armadas e o Itamaraty nunca
receberam uma diretiva do Estado que estabelecesse qual era a concepção
estratégica do Estado. O Itamaraty nunca recebeu uma orientação clara
da política externa que deveria seguir e ia estabelecendo uma política
externa ao sabor dos acontecimentos. Por sua vez, cada uma das Forças
Armadas, da sua própria maneira, estabelecia sua própria diretiva. Diante
dos exemplos que citou, ele sugeriu que a Inteligência faça o mesmo,
enquanto não houver uma visão mais nítida do Estado.
A Professora Ana Maria Junqueira Dantas, da Abin, ponderou que
na época do SNI não havia necessidade de se perguntar, porque todos
sabiam qual a finalidade do serviço. Ela acha que as dúvidas quanto à
missão do sistema surgem com a Abin, como ocorreu no caso da medição do nível das barragens, consumindo em outra atividade os poucos
recursos da agência.
No seu entendimento, esses recursos poderiam ser destinados à atividade fim da Inteligência, ou seja, para prevenir as ameaças, da questão
ambiental ao terrorismo, passando pela corrupção e o crime organizado.
146
Síntese do III Encontro de Estudos
Além disso, poderiam ser utilizados para robustecer a própria estrutura
da agência, como seus sistemas criptográficos, para que quando ocorra
uma falha na segurança não se venha responsabilizar a Abin por não ter
detectado a ameaça.
Para a Professora, os desafios já são mais do que conhecidos
faltando apenas saber como a Inteligência vai se portar diante deles. O
que a sociedade brasileira está disposta a dar, em que sentido ela está
disposta a direcionar essa Inteligência e lhe oferecer os meios necessários
para se contrapor e até para antecipar-se a essas ameaças, ou até criar
oportunidades na guerra econômica, na guerra da informação, oportunidades essas que vão reverter em benefício, bem-estar social e vão poder
minimizar os problemas sociais.
Seguiu-se a intervenção de Jeferson Mário, da Saei, que se contrapôs à simplificação da questão do nível dos reservatórios, para lembrar
que o trabalho da Abin foi desenvolvido dentro do contexto da crise de
energia elétrica de 2001. Segundo ele, os dados levantados pela agência
foram utilizados com propriedade em reuniões ministeriais, tanto que
em certos momentos o órgão responsável pelo levantamento teve que
rever os seus números, ou seja, a Abin participou efetivamente da crise
e contribui para a tomada da decisão nacional.
Outra observação de Jeferson Mário foi para dizer que dentre os
temas de responsabilidade da Câmara de Relações Exteriores e Defesa
Nacional (Creden) está também a Inteligência. E no ano passado, lembrou, essa Câmara de Governo definiu quais eram as diretrizes para a
Abin e para o Sisbin e, portanto, indicou os temas a serem acompanhados. Dessa forma, Jeferson entende que já está claro que a Inteligência
possui um norte a seguir.
Já Marlos Ribas Lima, da Abin, voltando à questão da medição
de água e da contagem do boi no pasto perguntou se cabe à Inteligência
contemporizar ou resolver problemas de ineficiência do Estado. Ele de147
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
fende que se os dados da área do Governo que faz a medição do nível dos
reservatórios não são confiáveis, que os responsáveis sejam substituídos,
pois o desvio de função desvirtua a atividade de Inteligência e faz com
que cada vez mais se confunda com uma atividade do Governo e não do
Estado. Para Ribas, foi exatamente por agir complementando as funções
dos Ministros de Estado, com um poder paralelo em cada ministério, que
o antigo SNI acabou se enfraquecendo.
Ribas também questionou a necessidade de uma unidade de
doutrina para o sistema, argumentando que os órgãos que integram esse
sistema têm atividades muito díspares. Ele também lembrou que a Inteligência brasileira troca informações com outros países, sem que tenha
necessariamente a mesma doutrina.
O Professor Alexandre Martchenko começou a responder essas
colocações lembrando que em comparação com outros serviços, a própria estrutura de Inteligência norte-americana ajuda a definir sua missão.
Embora aceitando a colocação em relação à Creden, ele acredita que não
existe uma definição clara da missão da Inteligência brasileira, mas disse
que as suas iniciativas têm amparo na Constituição.
Quanto ao “alguém tem de dizer não”, afirmou que quando a
Inteligência mostrar conhecimento, competência, capacidade, poderá
evitar o que chamou de “fator de acomodação” do Governo.
Uma unidade de doutrina pode facilitar o
trabalho da Inteligência
Sobre a unidade de doutrina, disse que como saudosista gostaria
de ter uma Esni, mas reconhece que como os tempos são outros há necessidade de uma adaptação. Ele acha que essa unidade não deve ser algo
dogmático, mas em termos de uma linguagem comum, ou de acepções
148
Síntese do III Encontro de Estudos
semelhantes. Admitiu que se houvesse uma política ficaria tudo mais
claro, mas se ela não existe deve-se arquitetar uma maneira para que o
serviço não tenha uma posição díspare.
José Irigaray, da Abin, fez nova intervenção para complementar a
colocação de Jeferson Mário, da Saei, sobre a Resolução da Creden que
determina quais os temas prioritários para a Abin ou para a atividade de
Inteligência no Brasil, afirmando que sessenta dias depois o documento
virou letra morta e que ele continua recebendo demandas de outros órgãos. E insistiu na tese de que se os recursos são poucos é preciso definir
as prioridades.
Em seguida o Ministro José Carlos de Araújo Leitão, da Saei,
indagou se, a exemplo das Forças Armadas e do Itamaraty, a Abin não
deveria ter uma assessoria de imprensa que em vez de ser entregue a um
jornalista, pudesse ser dirigida por um profissional da própria instituição
e se isso poderia ajudar no processo de divulgação.
O Professor Alexandre Martchenko disse que concorda com a indicação de um profissional da Inteligência para a assessoria de imprensa,
mas ele acha que poderia ser também um profissional da área de imprensa. Considera que seria até mais fácil do que formar um agente para a
função, o que já se tentou antes. Ele também defende que a divulgação
é necessária, até porque na sua opinião mais de noventa por cento dos
trabalhos da agência podem ser divulgados.
O Coronel Geraldo Cavagnari fez nova intervenção para dizer
que as atividades de Inteligência estavam sendo muito adjetivadas. Ele
acha que a Abin está passando por uma crise de identidade semelhante
à que as Forças Armadas de um certo modo num determinado período
também enfrentaram.
Ele disse que se observa uma diferença entre o comportamento
dos funcionários de carreira de Estado no Itamaraty e nas Forças Arma149
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
das com o funcionário da área de Inteligência. Algo que ele considera
inadmissível é a organização sindical de carreira de Estado, a exemplo
do que existe na Abin, ainda que em forma de associação de servidores.
Ele admitiu que o problema é decorrente da ausência de uma mentalidade
de preservação das carreiras de Estado no Brasil, mas apesar disso não se
pode admitir que uma carreira de Estado esteja sujeita ao corporativismo. Esclareceu que essa posição não é só dele, mas também das Forças
Armadas e do Itamaraty.
Sobre a questão das oportunidades, como a que se perdeu quando
o País não conseguiu trazer os cientistas russos, o Coronel acha que Brasil
deveria, a exemplo do que fazem Japão e Israel, exigir dos estudantes
que estão fazendo cursos no exterior, principalmente os de doutorado, o
envio de relatórios detalhados sobre as atividades dos países nos quais
estejam vivendo no campo científico, tecnológico, militar, econômico
etc. Para Cavagnari, o fato de termos centenas de bolsistas no exterior
e nenhum relato do que se faz lá, mostra o nosso amadorismo tanto na
área do Governo quanto na área de atividades de Inteligência. Segundo
ele, os estudantes japoneses e israelenses enviam esses relatórios para as
suas chancelarias, que os repassam para os órgãos de Inteligência.
A política de defesa, a política externa e a política de Inteligência
são políticas de Estado, não são políticas de Governo. Existem algumas
diretrizes. Por exemplo, o Governo Geisel baixou diretrizes para as Forças
Armadas e que deram as bases do planejamento estratégico no Exército.
Não tínhamos Ministério da Defesa, tínhamos uma política de defesa. Só
que quando se executava a política parecia que tínhamos três políticas,
porque cada Força fazia a sua política de acordo com os seus interesses
corporativos. Por isso que tínhamos uma unidade na formulação da política e uma falta de unidade na sua execução.
150
Síntese do III Encontro de Estudos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas considerações finais o Comandante Cunha Couto, Secretário
da Saei, disse que nas consultas feitas à sociedade sobre a atividade
de Inteligência no Brasil, observou-se que poucos conhecem a atividade. Sobre a Abin, ele afirmou que há um ranço que permanece com
relação ao SNI. Curiosamente, ele disse que esse ranço não existe com
relação à Polícia Federal que teve nos tempos de repressão uma participação exatamente igual à do SNI, e que isso se deve a um trabalho
de comunicação com a sociedade, que não aconteceu com relação à
atuação do SNI.
Ele também destacou, como foi citado pelo Professor Alexandre Martchenko, o contato com o Deputado José Genoíno e o trabalho
desempenhado por esse parlamentar para a aprovação do projeto de lei
que criaria a Abin. Cunha Couto defendeu a necessidade de ampliação
das relações institucionais da Abin com o Congresso Nacional para
uma melhor compreensão da sociedade sobre o papel de um órgão de
Inteligência.
Faltou por parte de alguns funcionários
a compreensão da grandeza do trabalho de
medir o nível das barragens
O Comandante Cunha Couto lamentou a falta de compreensão
de funcionários da Abin para a grandeza de algumas tarefas que foram solicitadas à agência, como a medição do nível dos reservatórios
naquele momento que estávamos vivendo. Observou que quando o
serviço foi solicitado a ajudar, o país passava por uma grave crise energética. Segundo ele, se a Abin foi chamada, isso se deu num contexto
de confiança na sua competência para levantar dados que pudessem
151
Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI
indicar tendência do que aconteceria energeticamente no País. Para o
Comandante, a Abin devia se orgulhar desse tipo de missão.
Sobre a Política Nacional de Inteligência enviada ao Congresso,
Cunha Couto acredita que necessitava de aperfeiçoamentos, o que justificou a sua não aprovação. Já com relação à definição feita pela Creden
no tocante aos temas a serem seguidos pela atividade de inteligência,
o propósito foi elencar aqueles temas já identificados como ameaças à
segurança do Estado, mas com uma margem de inclusão de outros temas
relativos a novas ameaças.
Ele chamou atenção para a necessidade de se compreender as
diferenças entre o Sisni e o Sisbin, até porque eles se situam em momentos totalmente diferentes. O comandante acha que o Sisni tinha a
facilidade de ser totalmente hierarquizado, com a central chefiada por
um general de quatro estrelas, as agências por generais de três estrelas
e assim por diante. Já o Sisbin, explicou, se propõe a um voluntariado
de adesão ao sistema. Nesse caso, sem imposição, é necessário mostrar
que a Inteligência trabalha bem para que as pessoas possam aderir ao
que está funcionando.
Sobre o cenário estratégico nacional, o comandante disse que o
assunto está sendo coordenado pela Secom, que tem a gestão estratégica
na sua área de competência.
Para que o Sisbin passe a funcionar, Cunha Couto sugeriu que a
Escola Federal de Inteligência ajude nesse processo abrindo espaço para
todos os órgãos que trabalham em Inteligência. Ele entende que a partir
desse conhecimento e de uma convivência comum, pode-se ter a base
de um sistema de Inteligência, que na sua opinião para funcionar bem,
precisa ser praticamente unificado.
152
Síntese do III Encontro de Estudos
A atividade diplomática tem muito da
atividade de Inteligência
No encerramento do encontro, o Ministro José Carlos de
Araújo Leitão, da SAEI, lembrou que na primeira reunião da Creden,
no primeiro semestre de 2003, o representante do Itamaraty era o
atual Secretário-Geral de Relações Exteriores, Embaixador Samuel
Guimarães. Ao se falar sobre atividade de Inteligência, ele disse
que a atividade diplomática era uma atividade de Inteligência, o que
naquele momento lhe soou um pouco curioso, mas que hoje está
convencido de que a atividade diplomática tem muito de atividade
de Inteligência, sobretudo, no exterior. Ele se reportou a um ex-chefe
que lhe ensinou que, na busca da informação, o diplomata não devia
competir com a imprensa, e que o mesmo raciocínio também pode
ser aplicado a Abin.
153
Download

desafios para a atividade de inteligência no século xxi