A NOVA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL:
o papel da boa-fé objetiva e da função social
THE NEW CONTRACTUAL PRINCIPIOLOGY:
the role of objective good-faith and social function
Francisco José de Oliveira*
RESUMO
Os contratos sempre ocuparam lugar de destaque no Direito Civil, como
forma de regulamentar o trânsito jurídico de bens. Como manifestação
de vontade, vincula as partes que devem atuar no sentido de adimplir as
obrigações assumidas.
Levando-se em conta a igualdade garantida pela lei, a liberdade garantida
a todos, uma vez manifestada a vontade, o ali estabelecido tornava-se
imutável e intocável.
Entretanto, a desigualdade material e substancial sempre criou situações
onde um contratante se encontrava em posição superior a outro, estabelecendo vantagens desproporcionais de um, em detrimento do outro.
Com os movimentos da constitucionalização, publicização e repersonalização do Direito Civil, o contrato, embora significante deste ramo do Direito,
passa a ter outro significado, deixando de ser fim em si mesmo, para ser
meio de garantir ao ser humano, que deve ser centro de todo e qualquer
ordenamento jurídico, a efetividade de sua dignidade.
Assim, assumem especial relevância a boa-fé objetiva que determina aos
contratantes um comportamento leal, ético e de cooperação nas relações
contratuais, que devem sempre trazer benefícios a todos os envolvidos.
Nesta esteira, a função social, em seu aspecto interno no sentido de que,
sempre que possível, deve-se manter um contrato até o fim e, em seu aspecto
externo, deixando claro que o bom e firme cumprimento de um contrato é
de interesse de toda uma coletividade e não só mais dos contratantes.
Estes dois institutos tem o condão de efetivamente contribuir para que
os contratos guardem a devida e necessária equidade, sem descuidar da
segurança jurídica.
Palavras-chave: direito civil – constitucionalização – repersonalização
– publicização – boa-fé objetiva – função social – contratos – equidade.
*
Professor da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Mestre em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Defensor Público.
04_Francisco José de Oliveira.in101 101
16/10/2008 13:48:46
Francisco José de Oliveira
ABSTRACT
Contracts have always been a highlight in Civil Law, as a form of regulating
the juridical transit of property. As a manifestation of will, they bind the parties which should act so that they can perform the obligations assumed.
Taking into consideration the equality guaranteed by Law, the freedom
guaranteed to all, once will is manifested, what it was stated there became
unchangeable and untouchable.
However, the material and substantial inequality has always created situations where a contractor was always in a higher position than the other one,
establishing disproportional advantages to one, than to the other one.
With the movements of constitutionalization, publicization and repersonalization of Civil Law, the contract, despite being significant in the Law
area, starts to have another meaning, being not an end in itself, but being
a means of guaranteeing to the human being, that he should be the center
of every and any legal system, the effectiveness of his dignity.
Therefore, the objective good faith assume special relevance, the one that
states to the contractors a loyal, ethical and cooperative behavior in the
contractual relations, which should always bring benefits to everybody
involved.
Hence, the social function, in its internal aspect as to as always as possible,
should keep a contract to the end and, in its external aspect, making it clear
that the good and firm fulfillment of a contract is the interest of a whole
collectivity and not only of the contractors.
102
These two institutes have the ability of effectively contribute so that the
contracts keep their due and necessary equity, not disregarding juridical
security.
Keywords: civil law – constitutionalization – repersonalization – publicization – objective good faith – social function – equity.
1.
INTRODUÇÃO
O instituto do contrato sempre ocupou lugar de destaque nos ordenamentos
jurídicos. Ainda que seja a roupagem jurídica de algo que é essencialmente um
fenômeno econômico, tem relevante significado para o Direito Civil. Contrato é
conceito que se encontra em evolução e não há como desvinculá-lo de sua função primordial promover a circulação de riquezas e de regulamentar direitos e
deveres dos contratantes. Entretanto, a prevalência da autonomia das vontades,
reservando um limitado e subsidiário campo de atuação do Estado, seja o Estado
legislador ou o Estado-juiz, cede lugar a uma nova concepção contratual, na qual
aumentam as possibilidades desta intervenção. Supera-se a proteção da vontade
individual de cada contratante, buscando uma visão mais solidária de contrato, em
que o equilíbrio contratual, a confiança que gera expectativas em cada contratante,
04_Francisco José de Oliveira.in102 102
16/10/2008 13:48:46
A nova principiologia contratual
bem como a influência da figura contratual em face de uma coletividade, passam
a reclamar uma alteração na concepção de contrato.
O contrato, partindo desta concepção clássica, representava, assim como
outras figuras jurídicas, o predomínio do indivíduo, que podia fazer uso de sua
capacidade de autodeterminação para a satisfação de suas necessidades. Neste
sentido, rejeita-se a idéia de intervenção estatal, nesta manifestação de vontade,
já que expressão de liberdade. Constituem-se, assim, as bases da relatividade contratual (o contrato interessa e vincula somente os contratantes) bem como sua
obrigatoriedade e imutabilidade, ou seja, quaisquer que forem as circunstâncias,
os contratos permanecem os mesmos e devem ser cumpridos.
O contrato se dá na sociedade, sendo, por isso, também um fenômeno social.
Portanto, sofre influências de mudanças sociais e, de modo muito particular, das
mudanças econômicas.
O século XX foi pródigo no que diz respeito a mudanças. A evolução tecnológica foi assustadora em termos de velocidade. Tais mudanças, inevitavelmente,
atingem o modo de vida, o teatro social.
A circulação dos bens e riquezas realiza-se sob novas formas, o número de
pessoas interessadas em determinado bem, de determinada empresa cresce, as
necessidades aumentam, e, o modo de vida exige que as trocas aconteçam com
certa velocidade. A figura contratual deve adequar-se, criando novas bases para
a formação, a celebração e a execução dos contratos. Por vezes, há necessidade
de se tutelar situações pós-contratuais. A teoria contratual clássica não responde
adequadamente às necessidades desta nova realidade.
103
Contudo, o descortinar de contínuas e profundas transformações sociais
e econômicas durante o século XX dá origem a uma nova realidade contratual, dando causa aos fenômenos de massificação e a conseqüente despersonalização do contrato, com a adoção de novas técnicas na formação
do seu conteúdo (contratos de adesão, condições gerais dos contratos),
assim como na sua celebração (contratação a distância, telemática, vendas
emocionais, sob pressão). Da mesma forma, a crescente complexidade do
sistema econômico enseja o surgimento de uma multiplicidade de vínculos
contratuais substancialmente distintos da compreensão tradicional do
contrato bilateral (assim o fenômeno dos contratos conexos), da mesma
forma como exige uma compreensão diferenciada nos contratos em que
se acentue a dependência existencial econômica de um dos contratantes
em relação à continuidade do vínculo contratual (e.g., contratos cativos
de longa duração, contratos relacionais)1.
1
MIRAGEM, Bruno. Função social do contrato, boa-fé e bons costumes: nova crise dos contratos
e a reconstrução da autonomia negocial pela concretização das cláusulas gerais. In: MARQUES,
Cláudia Lima (Coord.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São
Paulo: RT, 2007. p. 177.
04_Francisco José de Oliveira.in103 103
16/10/2008 13:48:47
Francisco José de Oliveira
Assim, patente a necessidade de se renovar a figura jurídica do contrato. A
despersonalização reclama a repersonalização. A necessidade de relações mais
justas e solidárias, a publicização. E, ante a omissão legislativa, já que nossa Constituição é uma carta axiológica, a constitucionalização do Direito Civil.
O Código Civil sempre ocupou lugar de destaque na regulamentação das
relações privadas. Entretanto, mostrou-se ineficaz em acompanhar as mudanças
sociais. As mudanças reclamadas na figura contratual começaram a ser percebidas
entre nós por meio do Código de Defesa do Consumidor. Apresentava – e ainda
apresenta – campo de incidência próprio, as relações de consumo. Entretanto,
diante de um Código Civil desatualizado, em virtude de profícuo trabalho jurisprudencial, passou a ser instrumento de atualização da matéria contratual. A insuficiência do Código fez nascer o chamado “diálogo das fontes”, expressão usada
pela professora Cláudia Lima Marques.
O advento do novo Código Civil traz, na parte geral da teoria contratual,
uma nova maneira de se entender o instituto, agregando princípios e recuperando
valores. Legisla-se com a técnica das cláusulas gerais, buscando suprir as omissões
do ordenamento, visando a relações contratuais mais equânimes e equilibradas.
104
Neste trabalho, respeitados seus limites, pretende-se analisar esta nova visão
do instituto contrato, desenvolvendo um estudo centrado nos princípios da função
social e boa-fé objetiva, que inauguram a teoria contratual no novo Código. Sua
posição topográfica revela sua importância.
Partindo do exame da teoria clássica contratual, sua evolução, chegar-se à regulamentação atual, ressaltando o papel dos princípios, das cláusulas gerais e como
tal evolução responde às atuais necessidades da regulamentação dos contratos.
A existência desses novos princípios não significa a extinção dos demais,
senão um movimento de reconstrução da principiologia contratual, na busca de
relações equilibradas, baseadas na boa-fé objetiva e que, cumprindo suas funções,
atendam ao seu papel social.
2.
OS CONTRATOS E SUA EVOLUÇÃO
Antes de efetivamente enfrentar-se a questão da atual conceituação de contrato, faz-se necessário breve análise histórica.
Partir-se-á do Direito Romano, não sem a advertência de que é comum fazerem-se análises históricas quase sempre tendo este como ponto de partida, gerando
assim a falsa impressão de que os atuais institutos de Direito Civil tiveram seu
nascedouro no chamado Direito Romano. Tal não é verdade. Existem institutos
que se formaram anteriormente a esse período. No caso específico dos contratos,
parte-se de tal patamar histórico, pois ali se encontra uma regulamentação mais
bem definida. Além disso, é preciso considerar a dificuldade de se ter uma acurada
04_Francisco José de Oliveira.in104 104
16/10/2008 13:48:47
A nova principiologia contratual
pesquisa histórica, especificamente em matéria contratual, embora tal figura seja
tão antiga quanto a própria sociedade.
O Direito Romano tinha como gênero as convenções, das quais eram espécies
os contratos e os pactos. Os primeiros exigiam indispensável formalidade, bem
como davam ao contratante o direito de ação. Já os segundos dispensavam qualquer
formalidade e conferiam ao contratante somente o uso de exceções, não de ações.
Já no Baixo Império, a manifestação de vontade passou a extremar sua importância, superando a das formalidades, e nesta época por pouco não foi a vontade
erigida a único requisito para a formação de um contrato.
Com o desaparecimento do Império Romano, historicamente sucedeu o
período conhecido como Idade Média, caracterizado entre outras particularidades
por um insuperável domínio da Igreja Católica no âmbito político.
Aqui há que se fazer uma chamada da teoria sobre casamento, uma vez que
os canonistas foram os primeiros a levantar a questão de ser o casamento um contrato, o que se encontra até hoje no Código Canônico. Sabe-se que, para a Igreja
Católica, o casamento é considerado sacramento e, portanto, indissolúvel, tendo
a manifestação de vontade, no sentido de contraí-lo, um caráter sagrado.
Assim, fácil entender a força que adquiriu a manifestação de vontade em seara
contratual, que levou a força adquirida pelo princípio do pacta sunta servanda. A
manifestação de vontade – relembre-se aqui que nos referimos ao período da Idade
Média – passa a ter um caráter religioso, sagrado, logo não poderia ser modificada.
Uma vez empenhada a palavra, esta deveria ser cumprida. Uma vez manifestada a
vontade, no sentido de estabelecer um contrato, este deveria obrigatoriamente ser
cumprido. A bem da verdade, há que se registrar que os próprios canonistas, preocupados já com a noção de justiça, deram o primeiro impulso à cláusula rebus sic stantibus, se bem que de forma tímida, e admitindo somente a extinção do contrato.
105
O direito canônico privilegiou a vontade contratual. Além da elaboração
da teoria dos vícios do consentimento, traduziu o descumprimento contratual como algo pecaminoso e a palavra dada ganhou transcendência,
obrigando quem a manifestou, independentemente de forma. Era o
pactum nudum. Canonistas, teólogos e partidários do direito natural dos
séculos XVII e XVIII foram os primeiros a dar sistematização à autonomia
da vontade2.
Com o surgimento dos Estados nacionais, no primeiro momento do Absolutismo, poucas alterações aconteceram nesta seara, mesmo porque havia forte
2
SANTOS, Antônio Jeová. Função social do contrato: lesão e imprevisão no CC/2002 e no CDC. 2. ed.
São Paulo: Método, 2004. p. 36.
04_Francisco José de Oliveira.in105 105
16/10/2008 13:48:47
Francisco José de Oliveira
vínculo ainda entre Estado e Igreja, pois a tese dominante era a de que o poder do
Monarca decorria de Deus.
Com o florescimento das atividades mercantis, bem como das atividades
bancárias, principalmente as casas bancárias italianas, é que, mesmo ainda em
uma sociedade estratificada, os contratos passam a ter maior relevância, pois a
nobreza empobrecida buscava préstimos junto à burguesia plebéia enriquecida.
Esta busca criar mecanismos de efetivamente receber seus créditos, mediante leis
que limitam os poderes da chamada nobreza.
A tomada do poder econômico pode ser representada pela Revolução Industrial, já a do poder político é normalmente vinculada à Revolução Francesa,
inaugurando assim a era do Estado Liberal.
O Estado Liberal, fundado nas premissas da liberdade, igualdade e fraternidade, valoriza o individualismo e, conseqüentemente, a mínima intervenção do
Estado na vida das pessoas.
Sendo o contrato uma forma de regulação de atividades privadas, tal instituto
deveria sofrer a menor intervenção possível, devendo as pessoas, já que livres e
iguais, manifestarem contratualmente suas vontades, com a mais absoluta e plena
liberdade.
106
Assim, fundadas estavam as bases para a clássica principiologia contratual,
influenciada também por um exacerbado positivismo jurídico que buscava na
completude da lei o fundamento da segurança jurídica. No âmbito do Direito,
iniciava-se a era do monismo jurídico.
As conseqüências de tal modelo logo fizeram-se sentir. Apenas a título de
argumentação, o Direito do Trabalho surgiu como forma de frear a autonomia das
vontades, já que os teoricamente iguais eram desiguais, o que afetava diretamente
a liberdade de contratar. Dessa maneira, o modelo jurídico do Estado Liberal, que
valorizava o indivíduo, não o sujeito, começou a dar mostras de sua insuficiência.
A necessidade de se tentar garantir, não somente a igualdade formal, mas a substancial, por meio da proteção daqueles menos favorecidos, faz surgir da idéia do
Estado Social. Neste, reconhece-se o ser, não mais somente como indivíduo de
direitos, mas como sujeito de necessidades, em sua completude.
As mudanças sociais, muito rápidas e profundas a partir de meados do
século XIX e todo século XX, alteraram radicalmente nosso modo de vida. No
que diz respeito ao campo contratual, dadas novas necessidades, reais ou criadas,
praticamente todos os atos da vida civil, excetuando-se os decorrentes do Direito
de Família e aqueles direitos inerentes à personalidade, passam a ser praticados
mediante a figura contratual.
O poderio das grandes corporações e o grande número de clientes fazem
surgir a figura do contrato de adesão.
04_Francisco José de Oliveira.in106 106
16/10/2008 13:48:47
A nova principiologia contratual
Muitas vezes, o marketing bem realizado origina uma necessidade que não
é real. O contrato com uma empresa de energia elétrica, por exemplo, não tem
aquele caráter volitivo exigido pelos romanos para a existência e a validade da
figura contratual.
Portanto, a figura contratual também teve de sofrer mudanças, para se adequar e atender às necessidades próprias dos novos tempos. Tais mudanças serão
analisadas posteriormente, ao tratarmos da principiologia contratual.
Feita esta breve análise histórica, buscar-se-á trazer a definição de contrato,
enquanto explicação do conceito.
Contrato tem a ver com manifestação de vontades. Há necessidade de vontades
antagônicas, como no caso de uma compra e venda, ou vontades harmônicas como
no caso da constituição de uma sociedade. Portanto, não há contrato decorrente
de uma vontade só, ou de uma pessoa só. A equivocada expressão “contrato consigo mesmo” refere-se ao caso de representação, em que o representante pode
contratar com o representado, desde que expressamente autorizado a isso. O fato
de possivelmente dar preferência aos seus interesses não desnatura a condição de
que atua em seu nome, mas também em nome de outrem, existindo, portanto, a
dupla manifestação de vontade.
Tal manifestação de vontade deve ser dirigida a um fim, como a criação, a
manutenção, a preservação ou mesmo a extinção de um direito. Há necessidade,
também, de que possa ser avaliado economicamente tal direito e que este possa
ser convertido em valor monetário.
107
Finalmente, tal manifestação de vontade, que tem por objetivo a regulamentação de atividades privadas, deve preencher requisitos de existência, validade e
eficácia, pois “seu fundamento é a vontade humana, desde que atue conforme a
ordem jurídica. Seu habitat é o ordenamento jurídico”3.
O nosso Código, a exemplo de outros (v.g. o suíço, o alemão, o da antiga
URSS), não define contrato, no que andou bem, já que tal tarefa deve ser cumprida
pela doutrina. Contrariamente, o Código Civil Italiano traz em seu artigo 1.321
a seguinte definição: “il contrato è l’accordo di due ou più parti per costituire,
regolare ou estinguere tra loro rapporto giuridico patrimoniale”4.
Não se pode olvidar que o contrato, como forma de regular a circulação de
riquezas e bens, permite a todos que, por seus próprios méritos, consigam independência financeira e ascensão social. Assim, sob o aspecto material, trata-se de
um meio de garantir e efetivar a dignidade da pessoa humana.
3
4
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria da obrigações contratuais e extracontratuais. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 3, p. 14.
O contrato é um acordo de duas partes ou mais, para construir, regular ou extinguir entre elas
uma relação jurídica patrimonial (tradução livre).
04_Francisco José de Oliveira.in107 107
16/10/2008 13:48:47
Francisco José de Oliveira
A nova principiologia contratual, abordada adiante, aponta para a necessidade de relações contratuais mais equilibradas e justas. Ao buscar dar ao contrato
uma função social, liga-o ao objetivo constitucional de construir uma sociedade
solidária (CR art. 3o, I). A função regulatória do contrato, neste contexto, deve
ser lembrada, pois avulta sua importância, impondo regras, respeito, confiança
e criando civilidade.
Paralelamente à função econômica, aponta-se uma missão civilizadora em
si, e educativa. Aproxima ele os homens e abate as diferenças. Enquanto o
indivíduo admitiu a possibilidade de obter o necessário pela violência, não
pode apurar o senso ético, que somente veio a ganhar maior amplitude
quando o contrato o convenceu das excelência de observar normas de
comportamento na consecução do desejado. Dois indivíduos que contratam, mesmo que se não estimem, respeitam-se. E, enquanto as cláusulas
são guardadas, vivem em harmonia satisfatória, ainda que pessoalmente
não se conheçam.5
Não é intenção deste trabalho enfrentar a questão de ser o contrato classificado como ato jurídico ou como negócio jurídico. Tal opção deve-se ao fato de
que essa distinção se mostra irrelevante para os aspectos pelos quais se analisará
a figura contratual.
108
Pode-se dizer que o contrato é um ato jurídico, baseado na vontade de duas
ou mais pessoas, as quais autonomamente regulamentam o ato praticado, tendo
por objetivo aquisição, conservação ou extinção de um direito.
Não se pode esquecer de que a definição de contrato é bastante variada entre
os autores. Assim, temos:
Contrato é ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e socioeconômica,
que cria, modifica ou extingue relações convencionais dinâmicas, de
caráter patrimonial, entre duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender necessidades individuais ou coletivas, em busca
da satisfação pessoal, assim promovendo a dignidade humana.6
Nos dizeres de Tartuce: “Em poucas palavras conceituamos o contrato como sendo
um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de
direitos e deveres com conteúdo patrimonial”.7
Vem, em auxílio do trabalho, a lição de Diniz:
5
6
7
USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade contratual no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: RT, p. 31.
FIUZA, César. Direito civil. Curso completo. 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 388.
TARTUCE, Flávio. Direito civil. Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. São Paulo:
Método, 2007. v. 3, p. 22.
04_Francisco José de Oliveira.in108 108
16/10/2008 13:48:47
A nova principiologia contratual
Ante o exposto, poder-se-á dizer que contrato é o acordo de duas ou mais
vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma
regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir,
modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial8.
Pode-se concluir não haver como de forma única definir ou conceituar contrato, até mesmo pelo dinamismo próprio ao instituto. Importante é entender sua
essência e seu papel no ordenamento jurídico.
Deve-se atentar para o fato de que o instituto jurídico contrato sempre foi
base do Direito Civil, sempre foi um dos seus significantes, para usar expressão
de Fachin9. A chamada crise dos contratos, entendida esta como oportunidade e
necessidade de evolução, leva ao abandono da clássica figura contratual, por meio
da adoção de nova principiologia, que não significa o abandono da anterior, mas
uma nova roupagem, uma mudança de significado.
3.
A PRINCIPIOLOGIA CLÁSSICA
Antes de se analisar a chamada principiologia clássica, há que se alertar sobre
a mudança de compreensão do que sejam os princípios, bem como sua posição
e efetividade no ordenamento jurídico. Tal posição será analisada em tópico
posterior, desde já salientando que os princípios deixaram de ter somente aquela
posição subsidiária, como forma de interpretação da lei.
109
Não se deve olvidar que tal principiologia tem suas bases no liberalismo,
valorizando o indivíduo como detentor de direitos e capaz de defender seus interesses, porém atomizado, sem preocupação com o fato de que este indivíduo
sempre esteve inserido em uma coletividade. Tal visão também se dirigia à figura
contratual, vista e regulamentada de forma atomizada, sendo o contrato defendido
enquanto instituto jurídico e não como algo a serviço do sujeito de interesses e
necessidades.
Há que se iniciar, fazendo análise do princípio da autonomia da vontade. Não
existe contrato sem que haja manifestação de vontade. Tal manifestação deve ser
livre e consciente. Não pode ser maculada por nenhum tipo de vício. Essa autonomia refere-se, também, à liberdade de se contratar no momento oportuno, com
a pessoa que se pretende, além da liberdade em estipular as cláusulas do contrato.
Bastante óbvio que tal autonomia sempre sofreu limitações da lei. O limite da lei
8
9
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, p. 14.
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da
pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
04_Francisco José de Oliveira.in109 109
16/10/2008 13:48:47
Francisco José de Oliveira
sempre foi a linha intransponível da autonomia da vontade, uma vez que não se
permite a contratação de um objeto ilícito. A autonomia da vontade é o sustentáculo jurídico dos ideais liberais de liberdade e igualdade. Daí a força que sempre
gozou, pois, se pessoas livres e iguais validamente manifestam sua vontade, tal deve
permanecer inalterada, não permitindo qualquer tipo de ingerência externa.
Consagrada a liberdade negocial, observa-se sua manifestação em diversas
fases do vínculo obrigacional. Em linhas gerais, quatro são os momentos
em que se notar com clareza o poder das partes em eleger, por critérios
de conveniência, os deveres que aceitam assumir. São eles: (a) o direito de
querer, ou não, contratar; (b) a escolha do parceiro negocial; (c) o objeto
do pacto; e (d) a faculdade de, se necessário e mediante interesse, recorrer
ao Estado para cumprimento da avenca, posto que o negócio jurídico
(como ato jurídico perfeito) é fonte de direitos subjetivos e pretensões
acionáveis10.
110
Já se viu anteriormente que o contrato exige sempre a concorrência de duas
ou mais vontades, portanto, temos também o princípio do consensualismo. Para
que exista contrato é necessário que as vontades sejam consensualmente expressas.
Ainda que antagônicas no início, haverão de encontrar, para que ambos atinjam
o objetivo esperado com a contratação. Não pode haver nenhum tipo de imposição. Ressalte-se desde já que nos contratos de adesão, embora de forma limitada,
existem tanto a autonomia das vontades, quanto o consenso. O aderente sempre
tem a opção de aderir ou não ao que lhe é proposto.
Como decorrência direta da autonomia da vontade e do consensualismo,
temos o princípio da obrigatoriedade dos contratos, que vem expresso no adágio
pacta sunta servanda. O contrato é a forma de os particulares regulamentarem suas
relações negociais, que importem em circulação de riquezas. Assim, uma vez que
tal regulamentação decorre da vontade livre e consciente dos contratantes, já que
se obrigam porque querem, vinculam-se ao cumprimento do avençado de forma
a não existir outra possibilidade que não o cumprimento cabal do contrato.
Na concepção clássica, justificava-se o extremismo de tal princípio em
virtude da igualdade que esse mesmo modelo exigia: se o contrato era
celebrado entre pessoas livres para dispor o que quisessem, em igualdade
de condições de negociação, logicamente o que fosse avençado entre elas
deveria ser cumprido com a máxima exatidão e pontualidade, pois, afinal,
liberdade se exerce com responsabilidade11.
10
11
USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade contratual no novo Código Civil, p. 43.
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. 3. ed. Saraiva: São Paulo, 2004. p. 51.
04_Francisco José de Oliveira.in110 110
16/10/2008 13:48:47
A nova principiologia contratual
Por força da obrigatoriedade é que se fala em intangibilidade dos contratos,
no sentido de que, uma vez iniciada a execução, nenhuma mudança ou revisão,
desde que não oriundas das partes, seriam possíveis. A interferência de terceiros
ou do Estado, uma vez celebrada a avenca, era algo impensável, sendo vista como
inadequada e indevida intromissão na liberdade negocial das pessoas.
Na concepção individualista do contrato, o princípio da intangibilidade,
que, por decorrência do princípio da obrigatoriedade, considerava o contrato como lei entre as partes, repelia qualquer interferência sobre o seu
conteúdo, inclusive do próprio Estado12.
Temos ainda o princípio da relatividade, que de certa maneira vem destacar o
caráter privado do contrato e refere-se ao afastamento de terceiros da figura contratual. O contrato é algo que interessa somente aos contratantes. Faz lei entre as
partes, não sendo permitido a quem não tenha participado do acordo de vontades
qualquer ingerência sobre a relação contratual. O contrato servia somente para a
satisfação dos interesses dos contratantes, sendo negada a projeção de seus efeitos
sociais, o que impedia também a interferência de terceiros na relação contratual.
Segundo o princípio da relatividade dos efeitos, as estipulações do contrato
só têm efeito entre as partes, não atingindo terceiros.
Essa conclusão, de fato é coerente com o modelo clássico de contrato, cujo
escopo era a satisfação de necessidades exclusivamente individuais das partes; daí tanto ser inadmissível que o contrato venha a operar efeitos sobre
terceiros, como também que terceiros possam intervir nessa relação13.
111
Conforme destacado anteriormente, a força desses princípios residia na
maneira como o direito tratava o indivíduo e os institutos jurídicos. O primeiro
direito fundamental seriamente reconhecido e defendido foi o da liberdade. A
necessária e correta preocupação em garanti-la levou às bases do liberalismo, que
resultou em individualismo. Ainda que dentro de novos regimes, com a liberdade
garantida, mas sem garantia de uma igualdade substancial, os interesses dos mais
fortes continuavam a prevalecer. O Direito deixou de lado os valores. Não havia
preocupação com o justo, mas com o legal, já que a lei limitava o poder Estatal e,
assim, garantia liberdade.
Nos dizeres de Silva14:
12
13
14
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 57.
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 56.
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e a sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a
Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 131.
04_Francisco José de Oliveira.in111 111
16/10/2008 13:48:47
Francisco José de Oliveira
É que o direito privado, ao ter como objeto as relações próprias dos indivíduos, acaba por cair, facilmente, na idéia de uma autonomia absoluta
dos privados (tônica do direito civil oitocentista, que reproduzia a idéia
de Sumner Maine acerca da migração da sociedade estatutária para a
sociedade contratual).
Tudo isto impregnava de maneira bastante exacerbada a visão oitocentista
da autonomia privada que considerava a vontade das partes soberana para
decidir o conteúdo contratual, limitar a modificação do mesmo e fixar o
alcance das manifestações volitivas emitidas.
Como corolário disto, tinha-se que, no campo do direito privado, as
vontades davam-se as suas regras, não se admitindo qualquer ingerência
externa aos contratantes.
Durante muito tempo, em visão equivocada, tais princípios foram considerados de forma absoluta, de modo que os contratos eram protegidos para além
das pessoas dos contratantes. Eram considerados como fins em si mesmos. Tal
posição é considerada equivocada, pois assim como os direitos, nenhum princípio
pode ser absoluto, o que redundaria na inexistência de outro. Dado seu caráter
de normas fundantes do ordenamento, devem ser ponderados ante a existência
de conflitos entre princípios.
112
Ressalte-se, outrossim, que a intenção de se verem os princípios contratuais
como absolutos e intocáveis vinha ligada à necessidade de proteger o instituto e suas
regras e conferir a segurança jurídica fundamentada na aplicação de leis válidas.
Vive-se momento histórico em que a busca por relações contratuais mais
equivalentes e justas é incessante. Não significa que os princípios ora analisados
deixaram de existir, até porque, se assim o fosse, não seriam princípios. Trata-se
de uma nova maneira de localizá-los no ordenamento, dar-lhes a correta conformação e alcance.
Novos princípios são trazidos à teoria contratual. Não para substituir os já
consagrados, mas para com eles formar um sistema harmônico de normas, as quais
contribuam para que os contratos efetivamente cumpram suas funções.
4.
A ATUAL PRINCIPIOLOGIA E AS FUNÇÕES CONTRATUAIS
Como antecedente lógico à análise da chamada nova principiologia contratual,
deve-se fazer breve passagem sobre como são considerados os princípios hoje em
dia no ordenamento jurídico. Em virtude das mudanças sociais do século XX, o
constitucionalismo e mesmo as constituições passaram a ter novo papel no ordenamento jurídico. De modo muito especial com o advento da Segunda Grande
Guerra, tornaram-se evidentes a necessidade de proteção aos seres humanos e, ao
mesmo tempo, a insuficiência dos ordenamentos existentes. Assim, a Constituição
deixou de ser apenas lei das leis, aquela que organizava o Estado e conferia validade
às leis infraconstitucionais, para assumir papel efetivo na vida dos cidadãos de um
04_Francisco José de Oliveira.in112 112
16/10/2008 13:48:47
A nova principiologia contratual
dado Estado. A Constituição garante direitos, cria deveres, faz parte do dia-a-dia
dos sujeitos de interesses e necessidade, que encontram na Constituição a guardiã
de seus direitos fundamentais.
Se as normas constitucionais são normas jurídicas – e o são: este é um
axioma a respeito do qual não se transige –, compartilham elas ao menos do
elemento mais essencial da normatividade: também elas pretendem produzir efeitos que deverão ser levados a cabo coativamente, se necessário15.
Levando em conta os limites do presente estudo, saliente-se que tal mudança
ocorreu pelo fato de que as Constituições pós-guerra transformaram-se em cartas
de valores. Os valores voltaram ao Direito por meio dos Princípios. A Constituição
Brasileira de 1988 não foi indiferente a tais influxos e fez a opção de ser uma carta
axiológica. Partindo de princípios que pretendem efetivar os direitos fundamentais,
coloca o ser humano como centro do ordenamento jurídico.
O Direito Privado, de modo especial o Direito Civil, não pôde permanecer
imune a essa nova realidade. Normas infraconstitucionais que sejam contrárias
aos princípios constitucionais não podem ter lugar no ordenamento, devendo
ser afastadas. Mediante fenômenos conhecidos como constitucionalização, publicização e repersonalização, busca-se a maior efetividade de suas normas, com
fundamento nos princípios constitucionais, mitigando inclusive a dicotomia
público e privado.
113
O Novo Código Civil traz em seu conteúdo vários princípios, visando a
aproximar-se da Carta Política. O faz por meio da técnica legislativa das cláusulas
gerais. Assim, necessário se faz abordar tais situações, antes de adentrarmos na
nova principiologia contratual.
4.1
A influência dos princípios no direito privado
Os limites do trabalho não permitem um maior aprofundamento histórico
e evolutivo, mas há um consolidado entendimento na teoria geral do direito, de
que as normas jurídicas devam ser categorizadas em princípios e regras. A questão
é definir o papel de cada qual no ordenamento.
Inegável que os princípios não podem mais ser reconhecidos somente como os
princípios gerais de direito, e que eram utilizados apenas como critérios interpretativos e integrativos das regras. A introdução de valores nas constituições atribui
aos princípios seu real valor e alcance e, principalmente, garante sua efetividade.
Malgrado tais esforços, entendo que, com o advento do constitucionalismo principiológico, não há mais que falar em “princípios gerais do
15
BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia dos princípios contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
p. 39.
04_Francisco José de Oliveira.in113 113
16/10/2008 13:48:47
Francisco José de Oliveira
Direito”, pela simples razão de que foram introduzidos no Direito como
um “critério positivista de fechamento do sistema”, visando a preservar,
assim, a “pureza e a integridade” do mundo de regras.16
Não se pretende discutir hierarquia ou predominância de princípios e regras.
Observe-se somente que regras que contrariem princípios expressos na Constituição devem ser afastadas. Interessa-nos, para o plano deste trabalho, trazer
a lume o fato, já aceito, de que os princípios são normas jurídicas e dotados de
imperatividade. Quanto ao seu conteúdo, estão mais próximos da idéia de valor,
justiça. Têm sua validade fundamentada em seu conteúdo. Explicam e justificam
as regras. Ao contrário do que possam argüir críticos, não podem ser culpados por
decisões equivocadas ou considerados fato de insegurança jurídica, pois unificam
o ordenamento.
Quando positivados, têm maior grau de abstração, assim geralmente são
consubstanciados nas chamadas cláusulas gerais, que nem sempre expressarão
princípios, analisadas adiante. Por isso mesmo, exigem maior rigor argumentativo e interpretativo. No que concerne à sua aplicação, seria inconcebível que
um princípio anulasse outro. Assim, diante do caso concreto, deverá prevalecer o
princípio que, naquele caso, ofereça a solução mais adequada.
114
A Constituição Brasileira de 1988, conforme assinalado antes, optou por
uma carga axiológica. Tal mudança de paradigma fez com que o direito infraconstitucional, de modo muito especial o Direito Civil, buscasse se adaptar a essa
nova realidade. Antes do advento do NCCB, houve necessidade de se conferir ao
Direito Privado um novo lugar no ordenamento. Devia este aceitar a influência
das efetivas normas constitucionais.
Ante a inexistência de legislação adequada, os fenômenos da constitucionalização, publicização e repersonalização desempenharam e desempenham relevante
papel na efetivação desses princípios.
Ao se tratar de constitucionalização do Direito Civil, ou Direito Civil Constitucional, primeiramente há uma correção no ordenamento. O Código Civil não
pode se sobrepor à Constituição, não podendo ter mais força que esta, mas, sim,
ocupar o lugar que lhe pertence. A Constituição deixa de ser somente o critério
auferidor da validade, mas passa ser elemento de concretização da força emancipatória do Direito, ainda que inexistam regras infraconstitucionais. Destarte, não
se deve também simplesmente trocar o Código Civil pela Constituição. A troca
de um modelo pelo outro seria insuficiente para efetivação dos chamados direitos
fundamentais, que é o objetivo maior dos princípios.
16
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 111.
04_Francisco José de Oliveira.in114 114
16/10/2008 13:48:47
A nova principiologia contratual
Não basta, por certo, pelo simples desvio do enfoque de modelos codificados para modelos constitucionalizados. O que se deve é examinar as
possibilidades concretas de que o Direito Civil atenda a uma racionalidade
emancipatória da pessoa humana que não se esgote no texto positivado,
mas que permita, na porosidade de um sistema aberto, proteger o sujeito
de necessidades em suas relações concretas, independente da existência de
modelos jurídicos. O modelo é instrumento, e não um fim em si mesmo.
Por isso, ele não deve esgotar as possibilidades do jurídico, sob pena de
o direito se afastar cada vez mais das demandas impostas pela realidade
dos fatos17.
Na seara contratual é de fácil percepção o fenômeno da publicização. Uma das
características do Direito Civil é ser composto em sua maioria por regras de ordem
dispositiva. Significa dizer regras que, respeitado o limite da licitude, podem ser
alteradas pelos envolvidos. Tal situação encontrava seu ápice na teoria contratual,
principalmente em função do princípio da autonomia das vontades. O Estado
deveria regulamentar o mínimo possível a atividade de circulação de riquezas, devendo ser mínima inclusive a regulamentação jurídica. Devido às mudanças sociais
já referidas, e, diante da necessidade de se garantir igualdade substancial, já que a
formal punha por terra inclusive a liberdade, houve necessidade de intervenção
estatal também na seara contratual. Fácil perceber que tal intervenção se deu na
forma legislativa, ante o crescente número de regras cogentes, aquelas que não
podem ser alteradas pela vontade dos envolvidos e vigoram na teoria contratual.
Essa foi a maneira encontrada pelo Estado de intervir nos contratos, para buscar
garantir maior eqüidades a essas relações.
115
O Código Civil de 1916 possuía caráter fortemente patrimonialista, uma vez
que os direitos eram garantidos ao indivíduo proprietário, que conseguia contratar,
e ao pai de família. Assim, a pessoa estava ligada aos institutos jurídicos, como se
estes fossem fins em si mesmos.
Um contrato no qual não fossem respeitados, v.g., a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual deveria ser cumprido até o fim, com o argumento de que qualquer
alteração traria segurança jurídica. Não se viam riscos para a segurança jurídica
na injustiça, esta sim, atingindo o sujeito. Quando se fala em repersonalização,
significa dizer, nos moldes da Constituição Federal, colocar o ser humano como
centro do ordenamento jurídico. O ser humano é fim em si mesmo. Não pode
ser coisificado. Não é um retorno ao individualismo liberal, é superar a visão do
indivíduo, para a de sujeito de interesses que convive com outros, devendo todos
ter garantida e efetivada sua dignidade. Em uma relação contratual, a figura do
contrato não pode suplantar a do contratante.
17
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da
pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica, p. 102.
04_Francisco José de Oliveira.in115 115
16/10/2008 13:48:48
Francisco José de Oliveira
O desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a
pessoa humana em toda a sua dimensão ontológica e não como simples
e abstrato sujeito de relação jurídica. A pessoa humana deve ser colocada
como centro das destinações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é,
sendo medida da propriedade, que passa a ter função complementar18.
Diante dessa realidade principiológica, não existia a possibilidade de que o
Código Civil não viesse também impregnado de princípios, buscando resgatar
valores. E de fato, permeado está de princípios. Entretanto, em algumas situações,
ao tornar expressos alguns princípios, referindo-nos desde já ao da boa-fé objetiva
e o da função social, o faz por meio da técnica de legislar por cláusulas gerais.
O sistema fechado, baseado na maneira casuística de legislar, mostrou sua
insuficiência na regulamentação das atividades privadas, ante um pluralismo social
dinâmico. Na sociedade plural, as normas que regulam condutas de forma isolada
não se prestam a criar a almejada segurança. Há necessidade de se introduzir valores
que permitam uma interpretação capaz de dar efeito útil à norma.
Nesse sentido, a maneira de legislar por cláusulas gerais, definindo valores
e fixando padrões de interpretação, definem os limites de aplicação das demais
normas. As cláusulas gerais oxigenam o sistema, conferem-lhe menor rigidez e
mitigam o exacerbado positivismo acrescentando ao ordenamento determinados
valores. Nas palavras de Jorge Jr.19:
116
Transitando entre a generalidade, a vagueza e os valores, inseridas numa
roupagem de proposição prescritiva escrita, as cláusulas gerais afirmam o
objetivo de dotar o sistema de normas com características de mobilidade,
que proporcionem abertura ao ordenamento jurídico, evitando-se a tensão
entre preceitos normativos rígidos e valores em mutação a implicar um
indesejável mal-estar decorrente de um embate sem solução sistêmica.
Seria, ademais, o alto teor valorativo contido nas cláusulas gerais o
elemento caracteristicamente diferenciador destas normas perante o
ordenamento jurídico, o nódulo essencial que faria com que as cláusulas
gerais fossem aquilo que são.
Ultrapassada essa necessária análise da evolução ocorrida em nosso ordenamento jurídico, já se pode enfrentar a questão da nova principiologia contratual.
4.2
O equilíbrio contratual
Ao se abordar o que se convencionou chamar de nova principiologia contratual, cumpre lembrar que a severidade dos princípios contratuais sempre
18
19
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. In: FIUZA, César et al. (Coord.).
Direito civil atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 206.
JORGE JR., Alberto Gosson. Cláusulas gerais no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 10.
04_Francisco José de Oliveira.in116 116
16/10/2008 13:48:48
A nova principiologia contratual
foi amenizada, no sentido de se evitar enriquecimento ilícito. Entretanto, tais
tentativas não conseguiam ultrapassar o limite imposto pela interpretação dada,
principalmente, ao princípio da obrigatoriedade, assim, havendo dificuldades
supervenientes, a única solução possível era a extinção contratual.
Uma das maneiras pelas quais se tentava abrandar os rigores da obrigatoriedade era a teoria da imprevisão, consubstanciada na cláusula rebus sci stantibus,
também inserida pelos canonistas, que, embora defensores da autonomia da
vontade, tinham preocupação com o valor justiça.
A questão é que a teoria da imprevisão, em sua versão clássica, exigia tantos
e cumulativos requisitos, que sua aplicação era ínfima, além de apresentar como
solução, única e tão somente, o fim da relação jurídica. Exigia um fato imprevisível e extraordinário que atingisse uma série de pessoas. De tal fato, o contrato
devia tornar-se extremamente oneroso para uma das partes, com a conseqüente
indevida vantagem para a outra. Aqui residia o maior problema da teoria. Nem
sempre o fato de o contrato tornar-se excessivamente oneroso para uma das partes
significava vantagem para a outra.
Doutrina e jurisprudência abrandaram as exigências da teoria, ora dispensando que uma das partes tivesse vantagem, ora dispensando que o fato atingisse
uma coletividade. Entretanto, mesmo assim, continuava-se atrelado a ter como
única solução a extinção do contrato.
A teoria da imprevisão continuou sofrendo evolução, mas em dado momento
começou-se a defender a possibilidade da revisão contratual. Registre-se que doutrinariamente tal possibilidade já era defendida há algum tempo. Ainda na vigência do
Código Civil de 1916, um ou outro julgado admitiam revisão contratual, a grande
maioria no que se referia a taxa de juros estipulada, em função da discussão que
existia em torno do art. 192, § 3º, ora baseados na teoria do abuso do direito.
117
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a teoria da
imprevisão cede lugar à teoria do equilíbrio da base objetiva do contrato.
Há que se deixar claro que o CDC tem campo de incidência próprio e específico, ou seja, as relações de consumo. Entretanto, se ele existe dada a crise das
fontes, não só é necessário como possível o diálogo das fontes. O CDC, além de
outros diplomas, existe porque o Código Civil, como fonte única legislativa do
Direito Civil, não responde mais a uma série de situações postas e consolidadas na
sociedade. Mas o CDC é direito civil, assim existem situações em que, nas relações
civis, normas do CDC poderão e deverão ser aplicadas, e vice-versa. Portanto,
perfeitamente utilizável nos contratos a teoria do equilíbrio da base objetiva do
contrato.
A teoria vem no sentido de dizer que desequilíbrios supervenientes ao
contrato, que o tornem excessivamente oneroso a uma das partes, causados por
motivo alheio à sua vontade, admitem correção. É necessário clarificar que a teoria
04_Francisco José de Oliveira.in117 117
16/10/2008 13:48:48
Francisco José de Oliveira
não ampara o inadimplemento ou a falta de controle pessoal em relação as suas
contas. Assim, somente fatos supervenientes que tragam desequilíbrio autorizam
a correção. Digno de nota que, ao buscar sanar o desequilíbrio, não pode onerar
a outra parte e criar novo desequilíbrio. Então, existirão situações nas quais, não
sendo possível a correção, a única solução será a extinção contratual. Mas note-se
que hoje a extinção deixou de ser a primeira e única solução.
Já se pode, então, analisar o primeiro dos chamados novos princípios contratuais, que é exatamente o princípio da equidade, ou da justiça contratual. Para
que o contrato cumpra todas as suas funções e realize todos os seus objetivos,
imprescindível seja equânime, equivalente, justo. À vantagem obtida, deve corresponder o ônus, a obrigação. A proporcionalidade entre obrigação e vantagem
deve estar presente em todas fases contratuais.
Nos dizeres de Fiuza20:
É a relação de paridade que se estabelece nas relações comutativas, de sorte
a que nenhuma das partes dê mais ou menos do que o que recebeu.
É modalidade de justiça comutativa ou corretiva, que procura equilibrar
pessoas em relação que deve ser de paridade.
A eqüidade é fundamental ao princípio da justiça contratual. É a equidade
que impede que a regra jurídica, se entendida à letra, conduza a injustiças.
Equidade é sinônimo de justiça, ou mais especificamente, é a justiça do
caso concreto.
118
Juntamente com o princípio da justiça, também chamado de princípio da
equivalência material, compõe esta nova principiologia o princípio da função social
do contrato e da boa-fé objetiva. Inegável sua importância, pois inauguram a teoria
contratual no novo Código Civil, respectivamente nos arts. 421 e 422 do NCCB.
Juntamente com os demais princípios, buscam efetivar a força emancipatória do
Direito, que no campo contratual diz respeito à impossibilidade de o contrato constituir forma de obter vantagens para um contratante, em detrimento do outro. Tem
a ver com o fato de que o contrato é um fenômeno social, e como tal projeta-se para
a comunidade. O contrato ultrapassa o âmbito de interesse dos contratantes.
Enfim, alterado o panorama histórico, a noção puramente voluntarista,
baseada em uma falsa crença de igualdade formal entre os contratantes,
cedeu passo a outra concepção, também preocupada com a justiça social,
porém elaborada sob outro contexto. Pensar o contrato, atualmente, é
pensar simultaneamente: (a) na realização individual dos cidadãos; (b) nas
expectativas que a relação desperta em ambos os participantes; (c) no efeito
da contratação perante terceiros; (d) na projeção social da relação negocial;
20
FIUZA, César. Direito civil. Curso completo, p. 412.
04_Francisco José de Oliveira.in118 118
16/10/2008 13:48:48
A nova principiologia contratual
(e) no equilíbrio relativo entre as prestações e (f) na satisfação mútua.
Esses objetivos são bem identificados pela moderna teoria dos princípios
contratuais que, partindo dos postulados da doutrina oitocentista, acresce
novas formas para tutela das expectativas sociais do século XXI21.
Equilíbrio está intimamente ligado à noção de eqüidade. O contrato deve
gerar benefícios a todos participantes.
4.3
A boa-fé objetiva na seara contratual
Para compreendermos o real papel e alcance da boa-fé objetiva há necessidade
de um breve recuo histórico, e o faremos com a correta condução da professora
Judith Martins Costa, a partir daquilo que ela chama de tríplice raiz da boa-fé:
Não era desconhecida na Europa do século XVI a bona fides romana.
Contudo, na Idade Média, e principalmente após a Recepção, havia o
instituto romano sofrido um processo de subjetivação, conseqüência
entre outros fatores, do papel secundário que merecera na constituição
justinianéia, e de já um certo contágio com a boa-fé canônica. Para compreender o tratamento que os humanistas deram à boa-fé é necessário
um breve recuo no tempo, visualizando-se as conotações e as funções que
lhe foram emprestadas no direito romano, no antigo direito germânico
e no direito canônico22..
119
Embora se reconheça maior antiguidade à boa-fé, sua noção mais elaborada
provém do ordenamento romano. O sistema romano era baseado em ações, não
em direitos. Assim, a fides era recurso utilizado na falta de norma escrita. Nessa
época, a bona fides já tinha o significado de fidelidade à palavra dada, exigindo dos
contratantes um honesto procedimento.
Mencionou-se anteriormente que houve uma inversão no Direito Romano,
quanto à matéria contratual, da forma para o consentimento. Essa inversão fez
com que a noção de fides passasse a ser qualificada como fides bona. Nessa fase
tinha esta o papel de criar a obrigação de cumprir deveres assumidos.
Ainda no Império Romano sua conotação se modifica, sofrendo uma diminuição em sua acepção objetiva. Começa a ganhar relevo o sentido moral e
intencional.
Os germânicos trazem para a noção da fides bona romana “as idéias de lealdade
(Treu ou Treue) e crença (Glauben ou Glaube)”23, porém remetendo a determinadas
características humanas objetivadas. Os ideais cavalheirescos é que originam tal
21
22
23
USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade contratual no novo Código Civil, p. 33.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999. p. 110.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, p. 124.
04_Francisco José de Oliveira.in119 119
16/10/2008 13:48:48
Francisco José de Oliveira
acepção. É fundamentada na necessidade de se proteger não só os próprios interesses, como os de terceiros. Na esteira do pensamento de Martins-Costa:
Do substrato cultural geral a fórmula adquirirá, no específico campo
das relações comerciais, o conteúdo de cumprimento exato dos deveres
assumidos, vale dizer, a obrigação de cumprir exatamente os deveres do
contrato e a necessidade de se ter em conta, no exercício dos direitos, os
interesses da contraparte24.
Já o Direito canônico, ao vincular a boa-fé à ausência de pecado, atribuindo-lhe
uma acepção moral e subjetiva, unifica seu conceito, que havia sido bipartido pelo
Direito Romano. Não basta a ignorância, mas a consciência íntima e subjetiva da
ausência de pecado. Nos dizeres de Rosenvald,
A boa fé canônica se traduziria na ausência do pecado, na linha de valores
do cristianismo. Ao contrário do direito civil romano – no qual a boa-fé
se aplicava à posse e às obrigações –, o direito canônico estendeu a boa-fé
aos nuda pacta, ou seja, os acordo meramente consensuais por ela também
seriam abrangidos, em virtude da transcendência do respeito pela palavra
dada. A boa-fé adquire uma dimensão ética e axiológica por se situar em
uma escala que traduz a concretização da lei divina25.
120
A boa-fé ressurge com o Código de Napoleão, e de forma expressa. Mas o
apego à idéia de que a lei deveria conter a solução dos problemas, sem margens de
interpretação judicial, aliada à necessidade de se defender a intangibilidade de atos
praticados por pessoas livre e iguais, fizeram com que o real alcance do conceito
permanecesse oculto nos ordenamentos por mais algum tempo. De acordo com
Rosenvald26, “Enfim, a fusão entre a redutibilidade positivista e o anseio da classe
dominante pela irrestrita liberdade de contratar adiou o desabrochar das potencialidades contidas na boa-fé objetiva, o que apenas se deu no direito germânico”.
Embora prevista no BGB de 1900, a boa-fé objetiva, tendo em vista que dentro de um sistema fechado, não logrou concretizar-se. Foi necessário trabalho da
doutrina e recepção deste pelos tribunais, para que a boa-fé se desvinculasse de sua
carga axiológica e se transformasse em fonte autônoma de direitos e obrigações.
Mais próximo já se está do atual sentido de boa fé. Entretanto se faz necessário,
neste ponto, diferenciar a boa fé objetiva da boa fé subjetiva.
A boa-fé subjetiva, diga-se primeiramente, não recebe tratamento de princípio
jurídico. É estado anímico, pois tem a ver com desconhecimento da real situação.
Aquele que acredita ter a melhor posse, que se casa não sabendo da existência de
24
25
26
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, p. 126.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Lumen Juris,
2007. p. 76.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil, p. 77.
04_Francisco José de Oliveira.in120 120
16/10/2008 13:48:48
A nova principiologia contratual
um impedimento. O sujeito acredita, erroneamente, ter um direito, mas não o
tem. Imprescindível que tal erro seja escusável. Os arts. 1.210, 1.214, 1.219 e 1.561
de nosso Código Civil, trazem situações de boa-fé subjetiva.
Na lição de Negreiros:
De um lado, tem-se a boa-fé subjetiva, definida como um estado de crença
ou ignorância, que pode ou não se verificar, e ao qual o direito atribui
relevância para o efeito, em geral, de proteger aquele que age ou deixa de
agir sob tal estado27.
A boa-fé objetiva, por sua vez, é norma de conduta. Tem a ver com lealdade,
com comportar-se com correção. Sob a visão da contraparte, em seara contratual,
tem a ver com a boa-fé confiança, com essa expectativa desse correto proceder.
Mais que um estado de espírito, é princípio que determina ético comportamento
nas relações contratuais. Salutar a lição de Godoy:
Ou seja, boa-fé subjetiva e objetiva são conceitos diversos, o primeiro encerrando mesmo um estado e o segundo, um princípio, de especial incidência
no campo contratual. Em diversos termos, alguém pode perfeitamente
ignorar o indevido de sua conduta, portanto obrando de boa-fé (subjetiva)
e, ainda assim, ostentar comportamento despido da boa-fé objetiva, que
significa um padrão de conduta leal, pressuposto da tutela da legítima
expectativa daquele com quem se contrata. Daí dizer-se que pode alguém
estar agindo de boa-fé (subjetiva), mas não segundo a boa-fé (objetiva)28.
121
Diferencia-se ainda da boa-fé subjetiva, a boa-fé objetiva, pois esta pressupõe
atividade, obriga a um determinado comportamento ao invés de outro, leva à
cooperação para alcançar os objetivos, leva à necessária consideração dos interesses do outro. Fica bastante clara a vinculação da boa-fé objetiva com o princípio
norteador do NCCB da eticidade.
A boa-fé objetiva é princípio “segundo o qual as relações contratuais se devem
pautar não apenas pela autonomia e liberdade das partes, mas igualmente pela
lealdade e pela confiança”29.
Definida a boa-fé objetiva, há necessidade de analisar seu real alcance e as
conseqüências da adoção do princípio em nosso ordenamento.
Atribui-se constantemente à boa-fé objetiva a função interpretativa-integrativa, a de criar deveres (norma de conduta) e a de limite no exercício de direitos
27
28
29
NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In: MORAES, Maria Celina Bodin de
(Coord). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 224.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. De acordo com o novo Código Civil.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 73.
NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual, p. 222.
04_Francisco José de Oliveira.in121 121
16/10/2008 13:48:48
Francisco José de Oliveira
subjetivos. Os arts. 113, 422 e 187 do CCB demonstram de forma clara essas funções. Para nosso trabalho, interessa aquela que impõe aos contratantes normas
de conduta.
Muito se tem escrito sobre boa-fé objetiva. Mister se fazer a advertência de
que a vinculação de qualquer inadimplemento obrigacional à quebra da boa-fé
objetiva faz com exista demasiado e inadequado uso do princípio, criando-se o
risco de enfraquecê-lo. Aquele que não paga uma prestação em dia, por dificuldades
financeiras, descumpre o contrato. Se tais dificuldades existem por situações alheias
à vontade do devedor, não há que se falar em falta de boa-fé objetiva. Porém, se a
falta de dinheiro se deu porque o valor da prestação foi gasto de forma deliberada
em uma viagem de lazer, houve, além do descumprimento obrigacional, quebra
da boa-fé objetiva. É justa a expectativa do credor de que o devedor faça sacrifícios
razoáveis para cumprir sua obrigação. Note-se que, mesmo que o gasto não tenha
sido realizado com a deliberada intenção de não pagar, a boa-fé foi infringida.
Se os deveres inerentes à conduta de boa-fé objetiva implicar um agir, seu
descumprimento também. Há necessidade de ação contrária para que não se esteja
agindo segundo a boa-fé.
122
No que diz respeito aos momentos contratuais em que aplicam a boa-fé, já
bastante pacificado que esta existe nas fases pré, durante e pós-contratuais. À guisa
de exemplo, cite-se a teoria da perda da chance, que admite eventuais indenizações
ainda nas fases preliminares, se ficar provado o proceder sem a boa-fé objetiva.
Objeto desse tema é o enunciado 170, aprovado na III Jornada de Direito Civil
do CEJ-JF, de nossa autoria.
Se a boa-fé objetiva for transgredida durante a execução do contrato, não
haverá nenhuma dúvida quanto aos remédios disponíveis. Havendo prejuízo a
indenização, a resolução do contrato. Atinge-se a eficácia do ato.
Entretanto, se alguém proceder sem a devida boa-fé na fase pré-contratual,
sendo tal comportamento descoberto somente em sua execução e tornando-se este
decisivo na cooptação da vontade da contraparte, teremos configurado o dolo,
vício que inquina de nulidade o ato dessa maneira praticado.
Mesmo que a atitude contrária à boa-fé não esteja vinculada a fato essencial
do contrato, ante o caráter de confiança que se tem neste proceder com lealdade,
mesmo assim poderá o ato ser anulado. Não se trata de discutir essencialidade ou
acidentalidade do erro, mas quebra de um dever de lealdade, erigido a princípio
em nosso ordenamento.
Como exigir confiança ante a má-fé? Se a boa-fé exige cooperação, esta se
torna impossível ante a confiança, assim a relação se invalida.
Qualquer outra solução nega ao princípio toda sua força e grandeza, no sentido de indicar aos contratantes um comportamento ético, que conduza a relações
contratuais mais eqüânimes.
04_Francisco José de Oliveira.in122 122
16/10/2008 13:48:48
A nova principiologia contratual
4.4
A função social dos contratos
Antes de se adentrar à função social, é necessária uma breve reflexão sobre
as demais funções dos contratos.
O contrato nasceu dada a necessidade de cooperação entre os homens, que
necessitavam adquirir aquilo que lhes faltava, entregando aquilo que lhes sobrava.
As coisas precisavam circular. O contrato é a forma pela qual se dá essa circulação,
o trânsito jurídico das titularidades, sendo antes de tudo um fenômeno econômico.
Tem uma função econômica, a de promover a circulação de riquezas.
De outro lado, mesmo ante um maior dirigismo estatal, as partes ainda podem
convencionar o conteúdo de um determinado contrato. Assim, decorrente da lei
ou da vontade das partes, o contrato assume uma função regulatória. Cumpre
desde já assinalar que a função social não afasta nem mitiga as demais.
No que tange às funções do contrato, três são as principais: uma econômica, na medida em que representa um instrumento de circulação de riquezas
e difusão de bens; outra regulatória, enquanto enfeixa direitos e obrigações
voluntariamente assumidas pelas partes; e, por fim, social, considerando
que seu exercício dirige-se para a satisfação de interesses sociais30.
Falar de função social dos contratos tem a ver com a questão da solidariedade
(CF art. 3o I) e da relatividade dos contratos. Inegável que o interesse contratual
extrapola os interesses meramente individuais dos contratantes. O inadimplemento
de uma obrigação pode desencadear uma série de subseqüentes inadimplementos
ocasionados pelo primeiro. Tornam-se evidentes a relevância social dos contratos
e também a projeção do objetivo da solidariedade em seara contratual.
123
No que concerne à relatividade dos contratos, embora não vinculados, terceiros
podem ser atingidos pela má execução contratual, e exatamente sua função social
servirá de proteção. Cite-se, desde já, o exemplo do sujeito que compra imóvel
financiado de uma construtora. Esta faz mútuo com instituição financeira para
construir o edifício. Dois contratos diferentes. O que comprou o apartamento, paga
suas prestações. A construtora não paga seu mútuo e a instituição financeira pede
penhora dos apartamentos. A solução final do caso31 foi no sentido de, reconhecendo
a função social do contrato do sujeito com a construtora, afastar a penhora.
Antes de se avançar, é necessário, já que se analisa uma das funções dos contratos, debater sobre a funcionalização. Funcionalizar significa atribuir objetivo,
finalidade. Significa dizer que o instituto não é um fim em si mesmo, mas vale na
medida em que cumpre essa função.
30
31
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 63.
Resp. 187.940/SP publicado RST 122/347.
04_Francisco José de Oliveira.in123 123
16/10/2008 13:48:48
Francisco José de Oliveira
Ao supor-se que um determinado instituto jurídico esteja funcionalizado,
atribui-se a ele uma determinada finalidade a ser cumprida, restando estabelecido pela ordem jurídica que há uma relação de dependência entre
o reconhecimento jurídico do instituto e o cumprimento da função. Mais
do que um poder atribuído ao titular (no sentido de direito subjetivo
atributivo de faculdades), está-se falando de um poder-dever, ou seja,
uma faculdade que está umbilicalmente ligada ao cumprimento do fim
por conta do qual é aceita no direito32.
Devem ser evitados alguns abusos e equívocos no trato da função social. Primeiro, esta não anula a autonomia privada, nem tem sentido ideológico marxista.
Não pode, ainda, ser confundida com filantropia judicial ou legislativa. Segundo,
parece equivocada a redação do art. 421 do CCB ao tratar a função social como
razão dos contratos. Pode-se até exigir que os contratantes não ultrapassem os
limites do interesse social ao contratar, mas pressupor que contratam em razão do
interesse social é subverter toda a natureza dos contratos. Até porque, a liberdade
contratual é que se subordina aos limites impostos pela função social.
124
No aspecto interno, a função social dos contratos está intimamente ligada
à teoria da conservação dos contratos. A aquisição de bens é uma das formas de
se conferir dignidade à existência humana. Assim não fosse, não existiriam entre
nós defensores do chamado patrimônio mínimo. Portanto, ante a onerosidade
excessiva, ainda que concomitante ou superveniente, desde que não atribuível ao
contratante, deve-se buscar solução que preserve e mantenha o contrato. Cumprindo sua função econômica, o contrato cumpre sua função social.
No aspecto externo, conforme exemplo citado, remete o princípio à possibilidade de terceiros apresentarem oposições a contratos dos quais não fizeram parte,
quando forem nocivamente atingidos por estes, bem como no sentido de demonstrar que a correta celebração e o bom cumprimento de um contrato extrapolam
o interesse das partes, produzindo efeitos a todos que circundam os contratantes.
Contratos válidos, mas que em sua execução ofendam o meio ambiente, podem
ser impugnados por terceiros. Já encontram acolhimento entre nós, dado o aspecto externo da função social, as figuras do terceiro ofendido e ofensor, aquele
que intervém de modo inadequado na relação contratual já existente, reforçando
o art. 608 do NCCB tal entendimento.
No necessário diálogo com outros princípios, a função social atua como
limite, pois restringe a liberdade contratual, ao condicionar que a consecução dos
objetivos legítimos contratados não prejudiquem terceiros. No âmbito interno
permite intervenção judicial, para que, mediante revisão judicial, busque-se o
indispensável equilíbrio e a manutenção da relação.
32
SILVA, Luiz Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão
com a solidariedade social, p. 134.
04_Francisco José de Oliveira.in124 124
16/10/2008 13:48:48
A nova principiologia contratual
A justa circulação dos bens, no sentido de que esta ocorra sem prejuízos para
alguns e lucros excessivos para outros, e de que dessa circulação não ocorram malefícios para pessoas estranhas ao contrato, é também função social do contrato.
Pode-se afirmar que o contrato cumpre com êxito seu papel, quando as três funções
atuam na relação contratual.
Não se pode olvidar que a busca de equidade na circulação dos bens é uma
forma de se garantir, pelo aspecto material, a dignidade da pessoa humana.
5.
CONCLUSÃO
A nova concepção do contrato é impregnada da necessidade de proteção aos
direitos fundamentais dos sujeitos contratantes, tendo caráter social, uma vez que
busca preservar interesses socialmente reconhecidos. Para atingir tal objetivo, é
necessária uma releitura de alguns dos principais institutos do Direito privado.
Vive-se numa época de alta complexidade, que se projeta nas relações sociais.
As antigas previsões legislativas são insuficientes para solucionar problemas práticos
do dia-a-dia. A massificação contratual, muito mais do que a nova principiologia,
atinge a autonomia da vontade, até mesmo porque podem ser criadas vontades.
Daí a proteção contra propaganda abusiva.
Os princípios da boa-fé objetiva e da função social expressam valores, dialogam com o ético e fincam raízes nos fundamentos da eticidade e da sociabilidade,
pilares do NCCB.
125
A liberdade não se vê em xeque, somente deve ser exercida com a convicção
de que não é possível uma existência atomizada, senão uma coexistência. A boa-fé
reclama probidade nas relações contratuais, cooperação, assistência e lealdade entre
os contratantes. A função social exige que a troca seja justa, e que, para a consecução
de seus objetivos, os contratantes respeitem e não prejudiquem direitos alheios.
A exigência da boa-fé tem a ver com a necessária tutela da confiança, nascida
das expectativas geradas pelo outro. A função social auxilia na promoção de um
desenvolvimento adequado, justo e correto das relações sociais.
A existência de limites é inerente à vida em sociedade. Quando tais limites
impedem o abuso do direito, preservam o equilíbrio das relações.
A adoção de princípios e cláusulas gerais, como veículos de reintrodução de
valores no Direito privado, não é causadora de insegurança jurídica, mas, sim,
ponto de partida para que o contrato, desempenhando suas funções e permitindo
ao sujeito a aquisição de bens e serviços, cumpra, enquanto instituto jurídico, seu
papel emancipatório, propiciando o adequado desenvolvimento do sujeito.
Para que tais princípios cumpram seus papéis, não se pode analisar o novo
com os olhos e entendimento do velho. Garantir efetividade à boa-fé e à função
social é criar condições de que as relações contratuais sejam equilibradas, pois,
somente com esse equilíbrio, se alcançará a igualdade.
04_Francisco José de Oliveira.in125 125
16/10/2008 13:48:48
Francisco José de Oliveira
REFERÊNCIAS
BARCELOS, A. P. de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.
BIERWAGEN, M. Y. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil.
3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 3.
FACHIN, L. E.; RUZYK, C. E. P. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o
novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição,
direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
FIUZA, C. Direito civil. Curso completo. 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
GODOY, C. L. B. de. Função social do contrato. De acordo com o novo Código Civil. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2005.
JORGE JR., A. G. Cláusulas gerais no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004.
LÔBO, P. L. N. Constitucionalização do direito civil. In: FIUZA et al. (Coord.). Direito civil
atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999.
126
MIRAGEM, B. Função social do contrato, boa-fé e bons costumes: nova crise dos contratos
e a reconstrução da autonomia negocial pela concretização das cláusulas gerais. In: MARQUES, C. L. (Coord.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São
Paulo: RT, 2007.
NEGREIROS, T. O princípio da boa-fé contratual. In: MORAES, M. C. B. de (Coord.).
Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
ROSENVALD, N. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Lumen Juris,
2007.
SANTOS, A. J. Função social do contrato: lesão e imprevisão no CC/2002 e no CDC. 2. ed.
São Paulo: Método, 2004.
SILVA, L. R. F. da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a
solidariedade social. In: SARLET, I. W. (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção
do direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
TARTUCE, F. Direito civil. Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. São Paulo:
Método, 2007. v. 3.
USTÁRROZ, D. Responsabilidade contratual no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: RT,
2007.
04_Francisco José de Oliveira.in126 126
16/10/2008 13:48:48
Download

04_Francisco José de Oliveira.indd