CONTRATOS INTERNACIONAIS COM O ESTADO
Eliane Maria Octaviano Martins
Professora de Direito Internacional em cursos de graduação e Pós-graduação;
Mestre pela UNESP e Doutora pela USP;
Vice-Presidente do Instituto Paulista de Direito Comercial e Integração – IPDCI.
Fernando Passos
Advogado;
Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito do Centro Universitário de
Araraquara Uniara;
Conselheiro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de
São Paulo;
Membro do Comissão de Ensino Jurídico da OAB/SP;
Mestre em Direito pela Unesp de Franca.
INTRODUÇÃO
A doutrina internacionalista tem-se debruçado sobre a temática especialmente em
meados deste século, quando foi crescente o número de contratos com o Estado surgidos
após a II Guerra Mundial, aviltando as dificuldades para soluções de pendências quando
estas ocorressem. O tema assume extremo relevo em face da tendência mundial de
globalização da economia. Procura-se insistentemente por uma solução reconhecida e
legitimada pelos povos, portanto de caráter internacional, a ser adotada nestes tipos
contratuais especiais. A disparidade de partes contratantes contratantes - de um lado a
soberania do Estado e de outro o poder da empresa (geralmente multinacional), o receio
de parcialidade e da recorrência a Tribunal de terceiro Estado - que provoca a discussão
sobre a imunidade - ressalta a busca da internacionalização ou desnacionalização dos
contratos pretendendo levar a solução de eventuais pendências, ou para Cortes
internacionais, ou para tribunais arbitrais neutros representando alternativas para a justiça
estatal.
Porém, esta afirmação última não tem sido majoritariamente aceita, pois, desde 19291[1],
consagrou-se a tese de que o Direito Internacional Público nunca poderia servir de base
para solução de conflitos contratuais quando firmados entre o Estado e o particular. As
empresas não poderiam igualar-se aos Estados, pois somente estes possuem o treaty
making power. Doutrinariamente esta decisão provocou a sensação inequívoca de que
um contrato que não seja entre países, tem seu fundamento obrigatoriamente numa lei
nacional.2[2] O problema é que esta lei nacional é o direito da nação contratante. A
soberania lhe confere, inclusive, unilateralidade sobre as normas que irão regular estes
contratos, bem como a alteração das mesmas, mesmo após o avençado, em proveito
exclusivo desta parte: o Estado.
1[1] Cf. Decisão da Corte Permanente de Justiça Internacional, caso dos empréstimos sérvios e brasileiros.
2[2] HUCK, Hermes Marcelo. Contratos com o Estado. São Paulo: Gráfica Editora Aquarela, 1989, p. 43
O bombardeio sofrido pelos que defendem a internacionalização destes contratos, baseia-se
basicamente no argumento de que salvo parcas exceções, a internacionalização do contrato
almeja unicamente a proteção dos interesses da empresa multinacional, para que prevaleçam
este em face de interesses públicos revelados pelo Estado contratante, em caso de conflito de
ambos.3[3]
Ora, primeiramente há que inquirir-se: Quem é que pode garantir, no atual estágio
do papel do Estado no mundo contemporâneo, que o interesse do contratante Estado é
realmente interesse público? Segundo, quem pode afirmar não serem legítimos os
interesses privados, muitas vezes, sustento e avalista das ações do Estado?Queiramos ou
não admitir, toda a polêmica desemboca em uma única indagação: qual a extensão da
soberania de um Estado nos dias atuais? Haverá limites?
1. CONTRATOS INTERNACIONAIS COM O ESTADO – Considerações gerais
Também conhecidos como state contracts ou internacional agreement, a espécie tem
características muito específicas.
Os quatro princípios básicos contratuais,4[4], podem ser analisados a partir das
características particulares desta espécie de contrato. O primeiro deles, o da autonomia da
vontade. Evidencia-se o fato de não ser absolutamente livre esta autonomia, pois uma das
partes, o Estado, necessariamente deverá defender um interesse muitas vezes subjetivo, o
interesse público. É a vontade da cidadania que deverá estar representada e esta não é
expressa de forma ordenada, senão que por uma complexa rede formada por leis e
tratados, que confrontam com o poder discricionário, representado pelo que se
convencionou chamar ato de príncipe. Pois bem, a vontade registrada no contrato, pode
não ser a do interesse do público contratante, pode haver espelhado posição individual do
príncipe e portanto estará sujeita a ser anulada. Neste aspecto, evidencia-se então haver
limites muito rígidos que deverão ser observados quando da aposição da vontade do
contratante Estado. O segundo princípio, o do consenso entre as partes, também não se
verifica com a mesma exatidão que em outras espécies contratuais clássicas. Embora
afirmemos que em muitas situações, principalmente nos contratos de desenvolvimento
econômico, as empresas são muito mais fortes do que o próprio Estado, geralmente
pobre, portanto, estando este último “jogado” a barganha do particular, o inverso também
se constata, quando se exacerba no conceito da soberania do Estado contratante. Haverá
então em um caso ou noutro um “consenso possível”, quase imposto a um dos
contratantes. Relativo a igualdade dos contratantes, um dos princípios a que mais se
detêm o direito na atualidade5[5], conforme a posição que se adote, ter-se-á caminhado
em sentido oposto à obsessão da busca da igualdade real. Ora, um dos contratantes é
dotado de soberania, ou seja, pode unilateralmente alterar o pactuado, pode julgar-se a si
mesmo, pode impor restrições, pode fazer e desfazer, porque age em nome de um
interesse maior: o público que é de todos, não podendo sujeitar-se ao de poucos, mesmo
quando estes sejam muitos. Também não se observa com segurança a existência de uma
força obrigatória do pacto, uma vez, conforme se verá, possui um dos contratantes a
3[3] HUCK, op. cit., p. 61
4[4] TÁCITO, Caio, O Equilíbrio financeiro nos contratos administrativos.
RDA, São Paulo, n.187,
p.90.
5[5] Vide legislações que protegem o hiposuficiente para igualá-lo na relação contratual, como as
legislações específicas das relações de consumo, do direito ambiental, e outras tantas proteções que se espalham pelo
mundo moderno .
“liberdade” de não cumprir o pactuado, pelo mesmo ato de príncipe que pactuou. Desta
forma, espantoso que essas avenças tenham merecido a expressão contrato.
2. DESNACIONALIZAÇÃO DOS CONTRATOS COM O ESTADO
Há verdadeiro confronto inconciliável entre as teorias monistas internacionalistas e
nacionalistas. Os monistas nacionalistas defendem ser impossível a internacionalização
dos contratos do Estado pois haveria (i) submissão do interesse público (coletivo) ao
interesse privado (individual), (ii) o direito internacional público não pode legitimar o
particular como contratante pois seria dotá-lo de personalidade jurídica internacional,
própria e exclusiva dos Estados; (iii) nem mesmo poderia haver submissão do Estado ao
direito internacional privado, pois somente o DI público é que poderá discipliná-lo, (iv)
os contratos firmados entre o Estado e o particular não podem igualar-se a tratados
internacionais, (v) a submissão a outro direito nacional que não o do Estado contratante
acarretaria quebra do princípio da imunidade de jurisdição que proíbe um Estado de
julgar outro Estado, mesmo que seja um Estado neutro em relação a questão abordada,
(vi) o Estado não pode submeter-se a arbitragem pois os direitos defendidos nestes
contratos não são disponíveis do príncipe e sim pertencentes a toda coletividade, (vii) a
desnacionalização total significaria a adoção de uma lex contractus inadmissível tendo
em vista ser uma das partes portadora de aspirações coletivas, que são materializadas em
complexo conjunto de obrigações ditadas por leis internas, de direito próprio de cada
povo, (viii) a adoção de um “contrato sem lei” é fruto exclusivo de uma estratégia
montada para a defesa da empresa que contrata com o Estado 6[6] , defendendo portanto
interesses ilegítimos.
Já os internacionalistas defendem a posição fundamentando que (i) a submissão
do Estado a uma internacionalização não significaria submissão a interesses privados,
mas sim submissão a uma ordem internacional que legitima o próprio Estado, (ii) o
Direito internacional público poderia reger esses contratos, sem reconhecer personalidade
jurídica Estatal ao particular, simplesmente pelo fato destes possuirem treaty making
power, (iii) nem mesmo seria vexatório ao Estado submeter-se às normas de Direito
Internacional Privado quando este age em caráter privado, (iv) a internacionalização não
equipara 0um contrato a um tratado, pois este regido exclusivamente entre Estados, em
situação de igualdade. A soberania de um dos contratantes seria aceita normalmente,
impondo-se a ela limites éticos aceitáveis por todo o mundo civilizado, (v) poder-se-ia
manter o princípio da imunidade de jurisdição, quando não estipulado um Estado neutro
de comum acordo entre as partes, para solucionar eventuais conflitos, porém em não
havendo tal omissão, nada obstaria aos contratantes, estipularem que eventuais conflitos
fossem dirimidos por determinado direito interno, que não o do Estado contratante e não
o do Estado a que pertença a empresa parceira; (vi) os direitos expostos num contrato
desta natureza não são indisponíveis, tanto que o próprio Estado os contratou, sendo
então possível a submissão a arbitragem internacional, (vii) a desnacionalização não
significa a adoção de um contrato sem lei ou uma lex contractus, senão que a submissão e
adoção às leis escritas ou não de caráter internacional, ou seja a princípios de boa-fé e
moral universalmente aceitos pelo mundo civilizado e (viii) a pacífica submissão de
muitos países a convenção do BIRD para a solução de controvérsias relativas a
6[6] HUCK, op. cit. p. 50
investimentos entre Estados e empresas nacionais de outros Estados e as inúmeras
legislações nacionais que internacionalizam espontaneamente esses contratos, são provas
mais do que cabais de que os mesmos devam submeter-se ao Direito Internacional e os
que já o fizeram produziram excelentes resultados.
3. MONISMO INTERNACIONAL COMO SALVAGUARDA DOS PRINCÍPIOS
CONTRATUAIS
Somente o monismo internacional poderá então evitar que nacionalismos
unilaterais acarretem prejuízos a terceiros, indevidamente. Esta tese não pressupõem
nenhuma subversão da ordem instituída garantidora da soberania estatal.
4.
DAS CLÁUSULAS DE ESTABILIZAÇÃO
Questão importante para o equilíbrio nas condições contratuais é a aplicabilidade
do direito no tempo quando há um conflito de interesses entre as partes. Vê-se que, em
regra, o direito aplicável é aquele vigente no momento da ocorrência da pendência
A aplicação do referido princípio é condição ímpar para a manutenção do equilíbrio nos
contratos pactuados com o Estado, uma vez que afasta a possibilidade de uma alteração
“maliciosa” da lei poder dificultar o cumprimento e a execução contratual.
É necessário observar-se também, que o príncipio do pacta sunt servanda e do direito
adquirido devem ser respeitados, mesmo quando a parte contratante é o Estado.
Por outro lado, se faz necessário o Estado acatar as cláusulas de estabilização, já que o
seu cumprimento não se traduz em privilégios, mas sim, apenas em respeito a
aplicabilidade da legislação vigente na data da assinatura do contrato.
Aqueles que
criticam as cláusulas de estabilização invocam, para tanto, que elas ferem o princípio da
soberania nacional. Em verdade, isto não ocorre, tendo em vista que as cláusulas de
estabilização miram a defesa de uma possível intervenção direta e arbitrária pelo Estado e
não uma manipulação do seu direito de legislar. Neste sentido, não há nenhum tipo de
controle, pois o que se quer é que uma possível lei nova não atinja acordos firmados sob a
tutela da lei antiga e não uma paralização do legislativo.
5.
NOVAS TENDÊNCIAS PARA O CONTRATO COM O ESTADO
Poder-se-ia então ressaltar que as novas tendências serão aquelas estipuladas pelos orgãos
supra-nacionais, como a ONU, OMC, BIRD e tantos outros.
Um bom exemplo é o Art. 42 da convenção do BIRD para a solução de controvérsias, assim
escrito: “O Tribunal decidirá as pendências de conformidade com as normas de direito acordadas
pelas partes. Na falta de acordo, o tribunal aplicará a legislação do Estado-parte na pendência,
inclusive suas normas de Direito Internacional que puderem ser aplicadas” Convenção para a
solução de controvérsias relativas a investimentos entre um Estado e empresa nacional de outro
Estado, BIRD.
6. TRIBUNAL NACIONAL E FORO
A recorrência ao tribunal nacional é vista com temeridade pelos particulares, quando se trata de
litígios envolvendo o Estado. Presente se faz o receio de parcialidade.
Destacamos porém, que em contratos internacionais, não há foro previamente
determinado e a situação é – e sempre foi – confusa, e dispendiosa. Pode-se dizer que a
maturidade em negócios internacionais surge a partir do momento em que o empresário
compreende a necessidade de se precaver contra uma demanda internacional, ou seja,
pagando o custo desta prevenção, em outras palavras um bem redigido contrato.
Contratos internacionais são, a princípio, regidos pelo Direito Internacional, o qual não
possui "enforceability", ou seja, suas regras não são exigíveis ou de aplicação
compulsória – mesmo porque não existem muitas regras e as que existem costumam ser
descoordenadas e, até, contraditórias.
Portanto, não existe uma instituição designada somente para a coação do cumprimento do
contrato ou da decisão judicial administrativa.
Nestes contratos o foro deve ser estabelecido previamente e com clareza pelas partes,
caso contrário surgirá um sério impasse quando despontarem divergências acerca de
interpretação de disposições contratuais.
7. ARBITRAGEM COMERCIAL INTERNACIONAL
No que tange à arbitragem comercial internacional, têm-se que a cláusula arbitral tem
sido presença constante na formulação de contratos internacionais, a despeito das
controvérsias ensejadas pelo processo arbitral que englobam desde aspectos de escolha de
direito aplicável até dúvidas quanto à possibilidade de execução efetiva do laudo arbitral.
A arbitragem entre Estados é pacificamente aceita no direito e nas relações
internacionais, fundamentando-se na igualdade jurídico-formal entre litigantes. Destarte,
quando a relação contratual conflitante ocorre entre Estado e particular, tal
posicionamento não ocorre.
O procedimento arbitral geralmente é imposto pelo particular que busca na neutralidade
da corte arbitral, a supressão do direito e jurisdição nacionais do Estado contratante. Na
medida em que a racionalidade da arbitragem é a busca da desnacionalização na solução
de pendências, a tendência quase natural dos árbitros é a de afastar a aplicação da lei
nacional do Estado contratante. Afastada esta aplicabilidade, surge a alternativa de
aplicação do Direito Internacional, da lex mercatoria. Consequentemente, qualquer
alternativa de direito aplicável que não seja o do próprio Estado tenderá fortemente a
conduzir aos interesses do Estado.7[7]
O contrato pode estabelecer que a arbitragem e seus procedimentos deverão seguir as leis
de arbitragem do país escolhido ou, então, irão seguir as leis de arbitragem de qualquer
convenção internacional.8[8] Inexiste na arbitragem solução pacífica para o problema da
lei aplicável (tanto ao processo como ao mérito) permanecendo dúvidas no tocante à
forma de execução da cláusula arbitral quando uma das partes se recusa a firmar o
compromisso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
7[7] Cf. HUCK, Marcelo, op.cit.
8[8] A UNCITRAL – United Nations Commission on International Trade Law, que vem a ser órgão
das Nações Unidas que regula a arbitragem internacional, publicou em 21 de Junho de 1985, a lei-modelo para
arbitragem internacional, que, entre outros, define a forma como deve ser redigido um acordo de arbitragem.
O que se pode detectar no que concerne à solução de pendências decorrentes dos
contratos com o Estado é que pelo lado da empresa particular há o receio da parcialidade
dos tribunais estatais . Sob a ótica do Estado, ainda há um certo receio com relação à
adoção do procedimento arbitral. Nesse ínterim, porém, há certa tendência nacionalista
trazendo as questões novamente para tribunais domésticos.
A busca de conciliação prévia de foros arbitrais institucionalizados e especializados como
os do BIRD e da OPEP, com resultados altamente satisfatórios a prática de renegociação
tem sido amplamente incentivadas. Porém, a negociação, a despeito de configurar
eficiente fórmula para solucionar pendências em contratos com o Estado, não se pode ser
considerada como fórmula definitiva e final. Deve-se ter sempre presente que, uma das
partes envolvidas é o Estado. E nesse sentido, embora não esteja sendo aceita e aplicada,
a tese da imunidade relativa nos parece mais justa, pois imunidade realmente acaba se
transformando em impunidade pela aplicabilidade da tese da imunidade absoluta.
Destarte, indubitavelmente, indicamos a arbitragem como a melhor fórmula de resolução
de litígios. Ao término destas considerações, impossível não identificar-se estarmos
diante de problemática de extremo caráter ético. Ética que interesse a todos os povos
civilizados e que em regra não divergem muito sobre o seu conteúdo. O diferencial,
mormente em contratos, é a tentativa de aplicação de justificativa enobrecedora de
interesses, esses sim verdadeiramente escusos e protetores de minorias, mas que se
revestem de falsidades conhecidas como “soberania”, “interesse público” e se escondem
sob o “manto protetor” do que convencionou-se chamar Estado soberano.
Assim, como o direito não se sustenta na posição “avestruz” de omissão e fuga, forçoso
reconhecer que diante da alteração quase completa da função do Estado no mundo
contemporâneo, o Direito a ele aplicado também tenderá a evoluir, mesmo que lentamente....
Poder-se-á abandonar princípios; aliás, como se pode verificar na disciplina relativa aos contratos
internacionais do Estado com o particular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GARCIA Jr., Armando Álvares. Conflito entre normas do Mercosul e Direito Interno.
São Paulo : LTR, 1997.
LAFER, Celso. A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão
brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
HUCK, Hermes Marcelo. Contratos com o Estado: Aspectos de Direito Internacional.
São Paulo: Gráfica Editora Aquarela S.A., 1989.
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