SOCIEDADE, MORAL E DESTINO DO HOMEM
AS IMPLICAÇÕES E CONSEQÜÊNCIAS DO PENSAMENTO DARWINISTA
Duas grandes concepções científicas, em particular, tiveram a propriedade de
abalar profundamente as convicções filosóficas humanas: a teoria heliocêntrica de
Copérnico e a teoria evolucionista de Lamarck. Em ambos os casos, os seus autores
"teóricos" passaram quase despercebidos do público, e o impacto só viria depois, com
a comprovação cabal das teorias. No primeiro caso, por Galileu e, no caso do
evolucionismo, por Darwin.
Em ambos os casos o impacto deveu-se sobretudo ao fato de o homem ter sido
despojado do pedestal que ocupava no centro do universo. O homem foi ferido em seu
"ego" de ser superior, criado à imagem de Deus. Como poderia o "seu" mundo, criado
especificamente para seu conforto e domínio absoluto, ser considerado apenas um
pequeno objeto girando ao redor de um sol que, por sua vez, é apenas um dos muitos
bilhões de astros, que compõem o universo'? E... - o que é mais grave - como poderia
ser ele próprio apenas uma "opção" adaptativa surgida ao acaso, à mercê das mesmas
leis evolutivas que formaram e regem todos os demais seres vivos do planeta, desde
os ínfimos protozoários até os grandes primatas? Conta-se que a esposa do bispo de
Worce, ao tomar conhecimento da nova doutrina de Darwin, segundo a qual o homem
descenderia dos símios, teria exclamado estupefata: "Descender do macaco!
Esperemos que não seja verdade. Mas, se for verdade, é preciso que ninguém fique
sabendo!". De fato, essa foi a frase mais honesta que poderia ter sido proferida por um
representante da sofisticada e preconceituosa era vitoriana, atingida em seu ego
aristocrata... Imagine-se uma pessoa constantemente preocupada em proclamar e
defender sua alta linhagem, que a fazia sentir-se diferente e superior a todos que a
cercavam, de repente tomar conhecimento de que não só ela é igual aos outros quanto
à origem, mas ainda que o seu ancestral comum era um símio!
Por incrível que possa parecer, entretanto, vários pensadores pretenderam usar
a teoria da seleção natural e da "Luta pela vida" para explicar a evolução da sociedade
humana, da criação de "elites sociais", e justificar superioridades e inferioridades
raciais como decorrentes de um processo de seleção do mais apto. Essas teorias
deram origem a um conceito muito difundido no século passado - mas ainda hoje
defendido por muitos -, denominado darwinismo social, que, entretanto, nada tem que
ver com os princípios defendidos por Darwin.
A EVOLUÇÃO MORAL DO HOMEM
A espécie humana, uma vez que atingiu um alto grau de desenvolvimento da
inteligência, praticamente deixou de se submeter às leis da evolução biológica e da
seleção natural, por duas razões principais que serão aqui discutidas.
A primeira razão é que o homem, a partir de um certo estágio de seu
desenvolvimento "tecnológico", passou a suprir, por meio de seus próprios artifícios
técnicos, as dificuldades que encontrava em adaptar-se às mudanças do meio
ambiente e as deficiências que tinha com relação à sobrevivência. Assim, ao se
defrontar com os rigores do frio, ele fabricava roupas, abrigava-se em casas e utilizava
o fogo. Na ausência de alimentos próximos, passou a plantar e a criar animais.
Começou a descobrir remédios para suas doenças. Ora, já vimos que, no processo
evolutivo, o principal fator determinante é a pressão exercida pelas modificações
ambientais, no sentido de selecionar aquelas mutações que melhor se adaptem ao
ambiente; mas se o homem, por força de seu poder inventiva, se adapta artificialmente
às modificações do meio, a pressão desaparece, isto é, as pequenas mutações que
porventura ocorrerem permanecem "inaproveitáveis", sem efeito.
As principais razões que levam um animal a morrer, em condições naturais, são:
a perda dos dentes, a redução da visão, a perda gradual das forças físicas e o aumento
de suscetibilidade às doenças. O homem inventou instrumentos e processos para
"corrigir" cada uma dessas deficiências. Quando não tem dentes, ele tritura ou cozinha
previamente os alimentos, de modo a amolecê-los, ou então fabrica dentes postiços;
para a falta de visão, ele se utiliza de lentes e, para as doenças, produz remédios. Com
esses recursos, ele conseguiu prolongar e tornar muito mais segura a vida humana e
conquistar espaços onde dificilmente outras espécies se adaptariam, sem a
necessidade de sofrer mudanças biológicas através dos processos seletivos naturais.
A segunda razão é, porém, ainda mais importante: o progresso cultural do
homem foi acompanhado de um desenvolvimento moral, em que a competição e a luta
pela vida tendem a ser substituídas pelos sentimentos de solidariedade. Certamente,
ainda não atingimos o auge desse desenvolvimento, pois presenciamos, ainda em
nossos dias, guerras fratricidas e competições acirradas por posições de destaque na
sociedade. Mas a evolução humana vem se dando nesse sentido, e é inegável que
contamos, já hoje, com leis e sistemas de garantia dos direitos individuais, direitos
esses que foram estabelecidos, ao longo da história da humanidade, num processo
inegável de evolução ética. Fundos sociais, embora ainda precários, garantem a
sobrevivência dos indivíduos "menos aptos" da sociedade, tais como inválidos, órfãos,
deficientes mentais e outros que, se sujeitos simplesmente às leis naturais de seleção
do mais apto, teriam inevitavelmente desaparecido.
Darwin fala, em sua obra, da substituição progressiva das atividades instintivas
por uma evolução de caráter intelectual, ou pelo desenvolvimento do que ele
denominou
"instintos
sociais".
Selecionados
conscientemente
pela
própria
humanidade', esses instintos levariam à difusão de sentimentos, ações, instituições e
condutas cujo efeito contradiz as conseqüências ordinárias da antiga lei' da seleção
natural. Os mais fracos não são mais eliminados, mas sim protegidos e defendidos. Os
instintos sociais, assim, se voltam contra a seleção natural. A esse fenômeno, o
pensador contemporâneo Patrick Tort denominou,. recentemente, efeito reverso da
evolução.
O DARWINISMO SOCIAL
O filósofo britânico Herbert Spencer (1820-1903) admitia, em seu livro intitulado
Princípios de biologia, publicado em 1864, que, à medida que os organismos foram se
tornando mais complexos, sobretudo quanto aos órgãos neuromusculares, observou-se
uma diminuição dos efeitos indiretos da seleção natural, dando lugar a influências
diretas, mais "conscientes", ou pelo menos espontâneas, sobre o processo evolutivo.
Essas influências diretas teriam atingido sua eficiência máxima no homem civilizado,
mas passaram a interferir em sua evolução. Segundo Spencer, a criação de leis sociais
de proteção aos "menos aptos" força a sobrevivência das raças inferiores, dos
criminosos e dos indivíduos de condições sociais precárias. Estes, geralmente com
menos obstáculos à reprodução, acabariam se impondo e prevalecendo nas
sociedades humanas. Spencer apregoava, pois, a necessidade de deixar que as leis da
"luta pela vida" agissem, sem qualquer favorecimento institucional dos mais fracos,
como único recurso à preservação da raça e de uma elite social.
As idéias de Spencer tiveram uma ampla repercussão em sua época,
favorecendo sobremaneira as tendências racistas - particularmente anti-semitas - e os
preconceitos sociais, representados sobretudo pela teoria da eugenia, de Francis
Galton (1822-1911), que, por sinal, era primo de Darwin.
Todos esses movimentos tinham por finalidade específica a "depuração da raça"
e conseguiram reunir inúmeros adeptos, em todo o mundo, no início do século XX.
Charles Richet, por exemplo, um ilustre fisiologista que obteve o Prêmio Nobel de
Medicina, em 1913, sustentava que era necessário que se criassem leis universais e
inflexíveis que impedissem o casamento inter-racial. Richet dizia em uma de suas
obras: "Está mais do que provado, por todo um conjunto de provas irrefutáveis, que a
raça amarela e, sobretudo, a raça negra, são absolutamente inferiores à raça branca".
"Não se trata de martirizá-las, nem de combatê-las. Não! É preciso muito
amigavelmente, muito simpaticamente, mantê-las à distância, isso é tudo! Pois a raça
mista, que resulta de toda a união com uma raça inferior, será forçosamente inferior."
E, em outra parte da mesma obra: "Nós deveríamos considerar a normalidade corno
um mínimo necessário... Se os aleijados, os lábios-leporinos, os polidáctilos, os
hidrocéfalos, os idiotas, os surdos-mudos, os raquíticos, os cretinos fossem suprimidos,
as sociedades humanas nada perderiam".
Esses eram, pois, os princípios que os darwinistas sociais imaginavam ser
originários da doutrina de Darwin. Em vez de exaltar os princípios morais decorrentes
do próprio desenvolvimento da inteligência e da cultura, voltados para uma sociedade
que protegesse os menos favorecidos - como sugerira Darwin -, propunham uma
sociedade altamente seletiva, desenvolvida à custa da supressão dos menos aptos ou
"inferiores". A lei do mais forte, aplicada à sociedade. Essa tendência atingiu o auge
com o nazismo, quando ficou provada sua total incompatibilidade com a ética e com a
superioridade do intelecto humano sobre os seus instintos animais(...)
A EVOLUCÃO DA CONSCIÊNCIA
O comportamento inato, isto é, aquelas formas de comportamento que os
animais transmitem, geneticamente, de uma geração a outra, tem importância capital
para a sobrevivência da espécie e foi originado pelo processo de seleção natural. Um
pássaro, por exemplo, mesmo nascido e criado em cativeiro, sabe como construir o seu
ninho quando chega a época da reprodução. Tais comportamentos inatos têm sido
objeto de estudos realizados pelos etologistas (do grego etos, "comportamento"), como
o contemporâneo Konrad Lorenz, ou por alguns naturalistas antigos, como o
entomologista francês Henri Fabre, contemporâneo e admirador de Darwin, porem não
de sua teoria evolucionista.
O homem também apresenta comportamento inato, como os movimentos de
sucção manifestados pelos recém-nascidos ao procurar, desde os primeiros dias de
vida, alimentar-se ao seio materno. É um comportamento "instintivo", sem o qual o
animal não conseguiria reagir ao meio no sentido de garantir sua sobrevivência e
reprodução.
Além disso, o equipamento genético de cada um dispõe de algumas "tendências
inatas" que poderão ou não ser desenvolvidas no confronto com o meio em que se
vive. A agressividade de um cão, ou do ser humano, poderá ser estimulada se o
ambiente for selvagem, ou inibida pela educação. Na medida em que o ser humano se
desenvolve culturalmente, seu comportamento inato perde gradativamente a
importância. A cultura -- que pode ser definida brevemente como o conjunto de
conhecimentos, crenças, artes, moral, costumes e demais disposições e hábitos
adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade - constitui, para o
homem, um elemento a mais do meio ambiente ao qual deve adaptar-se. Do confronto
permanente entre suas tendências inatas e o ambiente cultural a que pertence é que
surge o comportamento característico de cada um. Mas não se pode dizer que esse
confronto seja da mesma natureza que o que ocorre na seleção natural, uma vez que o
comportamento resultante não é hereditário, como ocorre com o comportamento inato.
Conseqüentemente, o comportamento social de um ser humano se origina de
um processo fundamentalmente diverso do comportamento de uma formiga ou de
qualquer outro "animal social". Além disso, o homem tem a capacidade de influir no
ambiente cultural, alterando-o e, eventualmente, fazendo-o evoluir, o que constitui o
aspecto mais importante da história da humanidade. O desenvolvimento cultural do
homem é, por conseguinte, o resultado de um processo consciente, e essa consciência
constitui o principal atributo do homem a diferenciá-lo dos outros animais. A
consciência é uma propriedade inata e exclusiva do homem que lhe permite "perceberse a si mesmo", em sua individualidade, e é resultante de um alto grau de organização
de seu sistema nervoso. Essa consciência individual pode, por sua vez, exercer papel
estimulador ou inibidor sobre as tendências inatas, juntamente com os fatores culturais
de modo a criar formas de comportamento individualizadas perante a sociedade.
Não se pode afirmar em que fase do desenvolvimento evolutivo do homem teria
surgido a consciência. Provavelmente ela constitui um estágio avançado e muito
complexo do instinto de sobrevivência que passaria, de um simples processo de ação e
reação, a um estado de natureza preventiva em favor de sua autopreservação. De
qualquer forma, a partir desse sentimento um tanto egoísta (os animais em geral são
dotados de um instinto inconsciente de preservação da espécie, mais forte que o de
preservação individual) foram se originando as tendências altruístas de solidariedade
consciente para com o próximo e a sociedade como um todo, enquanto nos outros
animais esses sentimentos ou são inatos e hereditários ou não existem, e a espécie
sucumbe: não há como serem adquiridos durante a vida.
Já vimos que a evolução do homem, no sentido biológico, está praticamente
estacionada, uma vez que, ao contrário de todos os outros seres vivos, ele realiza sua
adaptação ao ambiente por meio de processos artificiais ou tecnológicos. Mais do que
isso, o homem é capaz de modificar o ambiente, no sentido de adaptá-lo a si próprio. A
própria inteligência humana talvez não tenha sofrido desenvolvimento significativo nos
últimos milênios. Seria difícil admitir-se, por exemplo, que o homem comum de hoje ou mesmo o homem altamente intelectualizado de nossos dias - seja mais inteligente
que um Aristóteles. Se examinarmos uma de suas obras - como a Lógica, ou a
Metafísica -, não encontraremos "simplicidade" de raciocínio. que nos permita afirmar
que se trata de uma "mente primitiva". Evidentemente, Aristóteles, há mais de 2.300
anos, não dispunha de instrumentos de observação e medida que lhe permitissem
formular conceitos perfeitamente corretos no campo da física ou da astronomia. Mas
era perfeito, naquilo que podia ser conhecido por meio do raciocínio ou da simples
observação sem instrumentos, pois não defendia conceitos a priori, baseados em
simples crenças ou tradições, como ocorre nos juízos mais primitivos: nesse sentido,
podemos afirmar que não só Aristóteles, mas também Arquimedes ou Eratóstenes,
eram muito mais inteligentes que os doutores da Idade Média...
Entretanto, a mente do homem atual confronta-se a todo momento com
situações complexas e cada vez menos "usuais" que as que se apresentavam ao
homem de outras épocas, principalmente anteriores à era tecnológica. Sua enorme
capacidade de alterar o mundo exige a aplicação de uma parcela significativa de sua
inteligência na busca de processos de adaptação consciente a essas novas situações
que ele mesmo criou. Segundo uni psicólogo moderno, Robert Ornstein, "a percepção
humana decorre da organização do cérebro, mas deve ser desenvolvida em cada um
de nós". Acontece que "algumas das mais importantes adaptações da mente mostramse apropriadas a um mundo que já não existe, e não estamos conseguindo à
sociedade moderna". Mais adiante, esse mesmo autor conclui: "Graças ao nosso
cérebro, dispomos da capacidade extra de nos conscientizar de nós mesmos, muito
mais que qualquer outro animal(...) Os seres humanos têm, dentro de si, adaptações
imcomparáveis, adaptações novas a serem cultivadas na escola, no trabalho, na vida".
Em última análise, a evolução que se prevê para o homem, no futuro, será a evolução
de uma consciência coletiva, altruísta e eminentemente ética, como única possibilidade
de sobrevivência da espécie; mas, para essa evolução, não poderemos contar com o
mecanismo passivo da seleção natural.
BRANCO, Samuel Murgel. A Evolução das Espécies. São Paulo: Ed. Moderna, 2004
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