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Professor Ubiratan Castro de Araujo na Fundação Cultural
PALMARES
O ano de 2003 foi emblemático para o Brasil. A cultura negra não ficou
imune a esse vendaval de mudanças.
Luis Inácio Lula da Silva, um ex-operario nordestino, assumiu a
presidência do país em clima de esperança e otimismo do povo brasileiro.
Para comandar a área da cultura, Lula convidou o cantor e compositor
Gilberto Gil.
Foi sob o comando dessa dupla, que o Professor Ubiratan Castro de
Araújo assumiu a presidência da Fundação Cultural Palmares/FCP, uma
vinculada do Ministério da Cultura/MinC.
Nos meses iniciais do primeiro mandato, o presidente Lula tomou duas
decisões importantes para a comunidade negra brasileira. Em janeiro de 2003,
assinou a Lei 10.639 que institui a obrigatoriedade do ensino da história e
cultura afrobrasileira. A dez mil, como por vezes nos referimos a ela, coroou
batalhas antigas pelo reconhecimento do papel da educação na produção,
manutenção e/ou reprodução das práticas racistas. Em março, mais
especificamente no dia 21– Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação
Racial
-
foi
criada
a
Secretaria
de
Promoção
da
Igualdade
Racial/SEPPIR, órgão com status de ministério, responsável por articular,
promover e garantir que o governo federal, por meio de suas políticas, combata
o racismo e promova a igualdade entre os diversos povos que fazem o Brasil.
O ministro Gil expressou no discurso de posse sua leitura do significado
da eleição de Lula e de seu próprio papel à frente do MinC.
"A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva foi a mais eloqüente
manifestação da nação brasileira pela necessidade e pela urgência
da mudança. (...) É também nesse horizonte que entendo o desejo do
presidente Lula de que eu assuma o Ministério da Cultura. Escolha
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prática, mas também simbólica, de um homem do povo como ele.
(...)”
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Gilberto Gil expressou em sua mensagem inaugural forte disposição de
rever o papel do Estado, e do MinC em particular, no trato com a cultura, bem
como de libertar as políticas formuladas pelo Ministério das prerrogativas
impostas pelo mercado e de uma concepção elitista de cultura.
Ainda em seu discurso de posse, Gilberto Gil expressou a concepção de
cultura que orientaria a sua gestão. O então ministro concebia Cultura “como
usina de símbolos de um povo” e frisava que “o acesso à cultura é um direito
básico de cidadania”. Desta forma, a cultura deveria estar associada ao projeto
de mudança protagonizado pelo governo Lula. A cultura deveria, igualmente,
atuar no combate às desigualdades sociais. Dessa forma, Gil destacava a
importância do MinC, em sua missão de formular a política pública de cultura
do Brasil, fazer “uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos
vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural
do país”.
Atento a diversidade cultural brasileira e a força da presença africana e
afrobrasileira, Gilberto Gil abordou a resistência cultural negra em artigo
publicado na Revista da FCP. Para ele,
“A marca original da nossa cultura negra brasileira é a sua obstinada
resistência. (...)os negros brasileiros constituíram na cultura o seu
território de resistência.”
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No rastro dos cuidados com os pontos desconsiderados, o ministro Gil
instou a equipe do MinC a pensar uma política de cultura voltada para o
exercício da cidadania, o que resultou na implementação de programas,
projetos e ações, nos quais podemos identificar uma perspectiva inclusiva.
Assim, analisamos o Programa Cultura Viva – Pontos de Cultura e o
incremento da política de valorização do patrimônio imaterial, sob o comando
do IPHAN, que na gestão de Gilberto Gil viabilizou o registro de diversas
expressões da cultura negra, como o Samba de Roda do Recôncavo Baiano;
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2
Discurso de posse de Gilberto Gil em primeiro de janeiro de 2003.
Revista Palmares. Cultura Afrobrasileira. Número 1, agosto/2005, p. 14
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o Ofício das Baianas de Acarajé; o Jongo no Sudeste; o Tambor de Crioula do
Maranhão; as Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de
Terreiro e Samba-Enredo; a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de
Capoeira, só para ficar com as mais conhecidas.
O Professor Ubiratan Castro de Araujo viveu, leu, analisou e interveio
nesse cenário de forma qualificada, perspicaz e inovadora, como intelectual
inquieto e comprometido que era.
Da mesma forma feita no Centro de Estudos Afro-Orientais/CEAOUFBA, dirigido por ele no período de 1999 a 2003, sua primeira atitude ao
chegar na
FCP foi ampliar o leque de diálogos da Instituição. Professor
Ubiratan no exercício da gestão pública defendeu ardorosamente que as portas
das instituições estivessem sempre abertas e receptivas às pessoas. Em sua
gestão, a FCP teve grande visibilidade e dialogou com diferentes segmentos
sociais.
Com formação em Direito, História, com incursão no mundo literário e
com diálogo com diversos segmentos do Movimento Negro, da academia e do
campo político como um todo, com o Prof. Ubiratan a FCP se fez presente em
diferentes espaços religiosos e territórios negros como os quilombos, as
manifestações culturais negras, os projetos desenvolvidos por artistas e
militantes negros de todo o Brasil. Muitas foram as participações em
seminários, palestras, encontros, oficinas e conferências nacionais e
internacionais, quando Professor Ubiratan explanava sobre a cultura negra no
Brasil articulando de forma magistral experiências negras vivenciadas nos
países africanos, nos trajetos para o novo mundo, nas praças de vendas de
escravizados, nas senzalas, nas casas grandes, nas fazendas, nas cidades,
nos
tantos espaços de sociabilidade criados pelos africanos e seus
descendentes no Brasil e na diáspora. A sensação que ficava após cada
encontro com professor Ubiratan era de que a cultura negra estava mais viva
que nunca. A forma como ele aproximava as experiências cotidianas, políticas,
culturais, econômicas, artísticas e intelectuais negras não deixava dúvida das
singularidades vivenciadas pela comunidade negra brasileira e, mais ainda, do
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papel de uma fundação cultural na defesa e preservação desse rico
patrimônio.
Era com essa certeza que ele representava a FCP nos distintos espaços
voltados para construção das políticas públicas de interesse da população
negra. Os embates e enfrentamentos foram muitos. Impossível relatá-los em
um único texto. Farei, portanto, algumas escolhas. Destacarei a atuação da
Palmares no campo quilombola, na produção do conhecimento e na área da
comunicação.
No que tange a questão quilombola, à época do Prof. Ubiratan, a
legislação que tratava da implementação do artigo 68 da ADCT compreendia
como terras passíveis de serem reconhecidas como quilombolas, apenas
comunidades que “eram ocupadas por quilombos em 1888 e estavam
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de
outubro de 1988”.3
Portanto, imperava uma noção de quilombo distante, estanque e nada
representativa do dinamismo desse segmento populacional. Essa concepção
acarretava sérios problemas para as populações no que se refere ao
reconhecimento de suas identidades e titulação de suas terras, reivindicações
centrais da luta quilombola.
Fruto de intensa participação e formatação teórica do Prof. Ubiratan, a
legislação foi revista, resultando na aprovação do Decreto Federal de numero
4.887/2003.
Aprovado em 20/11/2003, os quilombolas, a partir do referido decreto,
passaram a ser concebidos em sua historicidade, sempre dinâmica.
O segundo artigo do novo decreto expressa mudanças significativas.
Além da autoidentificação, a trajetória histórica e seus nexos com a
ancestralidade negra e com a tragédias do escravismo e do racismo foram
tomadas como marcas identitárias das comunidades quilombolas.
3
Artigo 1º, parágrafo único do Decreto 3.912/2001
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“Art. 2o Consideram-se
remanescentes
das
comunidades
dos
quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão
histórica sofrida.”
Tive a oportunidade de escutar o professor Ubiratan relatar inúmeras
vezes os embates teóricos travados nas reuniões com os demais órgãos
envolvidos, sempre refratários à ideia de um Movimento Quilombola atual e
atuante.
Garantir aos quilombolas o direito de definir sua identidade e reconhecer
as práticas culturais como avalistas de suas propriedades fundiárias foi a
bandeira defendida pela Palmares do professor Ubiratan na formulação das
políticas para os quilombos.
Naquele período, 2003 a 2006, a questão ganhou atenção especial,
inclusive com a criação de organismos específicos em diferentes ministérios. A
FCP e o INCRA, pioneiros no trato com os quilombolas, estiveram presentes
em todas as negociações. A capacidade de diálogo baseada no respeito foi
fundamental, em momentos por vezes tensos de reconfiguração das políticas
quilombolas. A FCP, ao transferir para o INCRA a tarefa de titulação das terras
quilombolas, fortaleceu-se em sua missão cultural de reconhecer, certificar e
apoiar as comunidades quilombolas, como patrimônio cultural que são.
A luta quilombola continua e muitos embates ainda estão por vir.
Professor Ubiratan contribuiu de maneira fundamental.
Outra área que destaco na gestão do professor Ubiratan é o incentivo à
difusão de conhecimentos sobre a cultura negra, em especial a produção da
intelectualidade negra,
Vale trazer trecho do editorial da revista Palmares:
“A Revista PALMARES – CULTURA AFRO-BRASILEIRA é uma
iniciativa da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura,
que tem como objetivo principal a instituição de um veículo de
divulgação da produção cultural dos artistas, dos militantes e dos
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intelectuais negros brasileiros. Desde já esconjuramos a tentação de
uma publicação veiculadora de qualquer tipo de propaganda
institucional. Acreditamos que o papel de uma fundação pública de
cultura negra é promover a produção e a circulação de ideias
referenciadas no patrimônio cultural que nos foi legado por nossos
antepassados africanos, capazes de fortalecer nossa identidade e, ao
mesmo tempo, estabelecer o diálogo com todos os componentes da
diversidade cultural brasileira.”
4
Com essa compreensão, a Fundação Palmares durante a gestão do
Professor Ubiratan lançou a revista Palmares (três números); promoveu o
premio
palmares
de
comunicação
(10
radiodocumentários
e
07
videodocumentarios premiados); imprimiu em cd a serie Heróis de Todo Mundo
do projeto A Cor da Cultura para uso geral,em especial no sistema radiofônico;
publicou dezenas de livros, cartazes, posters, folders.
Na perspectiva de ampliar o acesso aos conhecimentos produzidos,
muitas dessas publicações saíram também em formato cd, cd-room e foram
disponibilizados em pdf no sítio eletrônico da FCP.
Portas abertas, difusão dos saberes e de seus produtores, diálogo amplo
visando a garantia dos direitos das culturas e pessoas negras, eis, a meu ver,
uma síntese da atuação do professor Ubiratan no mundo e na Fundação
Cultural Palmares.
Martha Rosa Figueira Queiroz
Historiadora, trabalhou com Professor Ubiratan Castro de Araújo no
CEAO (2000-2003) e na FCP (2003- 2006). Atualmente é chefe de Gabinete
da FCP/MinC.
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Revista Palmares. Cultura Afrobrasileira. Número 1, agosto/2005.
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Professor Ubiratan Castro de Araujo na Fundação Cultural