Publicada em: 28/10/2009 às 11:30
Destacados del CLA M
País de contradicciones
A droga misoprostol, conhecida no mercado de medicamentos como Cytotec, é hoje vista no país
como droga abortiva ilegal e perigosa. Entretanto, o medicamento é aprovado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde para a indução do parto, procedimentos para
retirada de feto morto e para a realização do aborto nos países em que o aborto é legal ou nos casos
permitidos por lei no Brasil. Por sua vez, médicos obstetras e ginecologistas defendem a ampliação de
seu uso e a necessidade de difusão da informação correta sobre o medicamento no sentido de reduzir
os danos causados pelos abortos clandestinos.
A estratégia de redução de danos não é novidade no país. Ela é adotada pelo Ministério da Saúde
vinculada à prevenção e controle da epidemia de AIDS, desde o início dos anos 90, o que tem
permitido a redução de casos de AIDS entre usuários de drogas injetáveis – a proporção passou de
13% em 2000 para 7% em 2006, segundo dados oficiais. Segundo definição do próprio Ministério, a
redução de danos é uma estratégia da saúde pública que visa reduzir os danos sociais e à saúde.
Segundo o programa oficial do governo uruguaio intitulado “Iniciativas sanitárias para redução do
aborto em condições de risco”, toda mulher que não deseja a gravidez tem direito a uma consulta
médica onde ela será informada sobre o uso do misoprostol como redução de danos. Então por que
esta abordagem causou e ainda causa desconforto no Brasil quando vinculada ao uso do
medicamento na redução da morbi-mortalidade materna, sendo seu uso obstétrico aprovado pela
OMS, pelo Ministério da Saúde e pelas Federações Brasileira e Latino-Americana de Ginecologia e
Obstetrícia?
O Brasil foi o primeiro país no mundo a aprovar, em 2001, o uso do misoprostol em ginecologia e
obstetrícia, na forma de um novo produto chamado Prostokos, produzido pelo laboratório brasileiro
Hebron e registrado como medicamento para indução do parto e aborto legal, havendo indicações
para seu uso nas Normas Técnicas do Ministério da Saúde. Contudo, em 2005, o registro do Cytotec
(nome comercial do misoprostol) foi cancelado no Brasil por pedido do distribuidor e hoje a droga – na
forma Cytotec – é objeto de normas restritivas bastante draconianas, expressas em resoluções da
ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e portarias de agências similares estaduais que
dispõem sobre sua comercialização e proíbem sua publicidade em fóruns de discussões, murais de
recados ou sites na internet. Sua venda no país está restrita a estabelecimentos hospitalares com
cadastro especial na ANVISA, para uso em obstetrícia e em serviços de abortamento legal. O
problema é que as restrições do órgão, além de não condizerem com as resoluções do próprio
Ministério da Saúde, acabam por criar barreiras burocráticas para o uso da droga no SUS (Sistema
Único de Saúde). Menos de um quarto das maternidades tem acesso ao medicamento – das 4 mil
credenciadas, menos de 400 têm o medicamento. E mesmo quando cadastrados, os hospitais se
defrontam com exigências burocráticas. Assim, criou-se um mercado clandestino onde o medicamento
pode ser encontrado tanto na internet como nos vendedores ambulantes dos centros das grandes
cidades, ou mesmo vendido por traficantes.
No entanto, a existência desse mercado clandestino e o uso indevido do misoprostol estão
diretamente ligados à falta de acesso à informação e à crescente ideologização do debate sobre
aborto Brasil, que termina por restringir o acesso da população e mesmo dos profissionais de saúde à
informação qualificada e necessária sobre uma tecnologia médica segura, eficaz e necessária. O
acesso ao medicamento e às informações corretas sobre ele está hoje associado ao crime, por efeito
da criminalização da interrupção voluntária da gravidez no país.
“O misoprostol, ou Cytotec, é tratado como qualquer droga ou procedimento abortivo ilegal, quando
na verdade é resultado de extensa pesquisa e considerado um avanço da ciência para a ginecologia e
obstetrícia”, avaliou Margareth Arilha, diretora-executiva da Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR/Cebrap), durante a Reunião Técnico-Científica sobre o Aborto Medicamentoso no Brasil, evento
sediado pela CCR na semana passada que reuniu especialistas de todo o Brasil, incluindo
representante da ANVISA, para discutir o tema Misoprostol. Mas quais as verdadeiras implicações por
trás das restrições à sua comercialização e uso no país, uma vez que evidências científicas apóiam
seu uso na ginecologia e obstetrícia e vários estudos demonstram que as mulheres, apesar das
limitações legais, continuam de fato a usar o medicamento? “O problema da ampliação do uso do
misoprostol tem cunho político”, afirmou Margareth.
A droga foi aprovada no Brasil em 1985 com o nome Cytotec para o tratamento da úlcera estomacal.
Mas sua bula continha a indicação contra seu uso por grávidas porque poderia provocar
abortamentos. A prostaglandina, base farmacológica do Cytotec, possui ação estimulante sobre a
musculatura uterina, promovendo sua contração, o que explica sua utilização na indução do parto e
do aborto. Segundo o médico e pesquisador do Unicamp, Aníbal Faundes, que participou do encontro
promovido pela CCR, as vendas do Cytotec se ampliaram rápida e geometricamente porque os
balconistas e farmacêuticos, ao identificar seu efeito abortivo, promoveram seu uso num contexto em
que a demanda por esse tipo de produto foi e continua sendo elevada, pois estima-se que se realizem
no Brasil cerca de um milhão de abortos clandestinos e inseguros ao ano.
Mas em 1988, quando os Estados Unidos regulamentaram a utilização do medicamento, houve uma
forte reação dos grupos pró-vida, que passaram a chamá-lo de “droga da morte”. Neste período, com
a pressão do Comitê Nacional pelo Direito à Vida sobre o FDA (Food and Drug Administration, agência
americana responsável pelo controle de alimentos e medicamentos), não muito mais tarde o assunto
chegaria à mídia brasileira. Segundo Margareth Arilha, diretora executiva da CCR que conduziu uma
pesquisa sobre o medicamento no início dos anos 1990, “de acordo com os argumentos disseminados
pela mídia na época, o medicamento provocava nascimento de crianças com malformação e gerava
infecções uterinas fatais, além de ser abortivo. Isso mobilizou a reivindicação no Brasil pelo
enquadramento do misoprostol como droga controlada. Foi nesse contexto que se deu a primeira
regulamentação do medicamento em nosso país, sem que, entretanto, se enfrentasse com
racionalidade a questão do aborto clandestino e inseguro, que era e é o fator que mobiliza a compra
do medicamento”.
Apesar das restrições então estabelecidas o medicamento continuou a circular no mercado e, o que é
mais importante, médicos e profissionais de saúde que lidam no seu dia a dia com as conseqüências
do aborto seguro, muito rapidamente perceberam que seu uso estava claramente reduzindo
infecções, perfurações uterinas, hemorragias, ou seja, fazendo cair a morbimortalidade feminina por
aborto. Isso explica por que mesmo hoje, quando há maiores restrições ao medicamento, são
inúmeros os médicos que, diante de uma paciente decidida a abortar, optam por orientá-las a fazê-lo
da melhor forma, ao invés de denunciá-las à polícia.
“Se uma mulher chega em meu consultório dizendo ter decidido abortar, eu não posso impedi-la.
Tenho o dever ético de explicar a ela quais são os métodos abortivos e, se necessário, ajudá-la”,
disse o obstetra Osmar Ribeiro Colas, da Universidade Federal de São Paulo e presidente da Comissão
Nacional de Violência Sexual da FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia).
A orientação médica, segundo ele, é essencial neste momento de decisão da mulher. “Ela pode
comprar o Cytotec clandestinamente e se automedicar. Mas imagina se ela, depois de tomar quatro
comprimidos – dosagem geralmente indicada – e não abortar, resolver levar a gravidez adiante e não
procurar um médico. Essa criança pode, de fato, nascer com algum tipo de deficiência e malformação
– ou mesmo morta”.
Aníbal Faúndes, em sua intervenção, também enfatizou sistematicamente que: “bons resultados
dependem de como ele será ministrado, as indicações, as doses, as vias de administração (sublingual,
oral, vaginal etc) e o intervalo entre as doses”, afirmou.
Segundo os médicos presentes no encontro da CCR em São Paulo, a Organização Mundial de Saúde
(OMS) incluiu o misoprostol na lista de medicamentos essenciais por que, de acordo com evidências
científicas, a droga pode e deve ser indicada em casos de aborto terapêutico, indução do
parto/aborto com feto morto retido, indução do parto com colo imaturo, tratamento do aborto
incompleto e prevenção da hemorragia pós-parto, além de diminuir as complicações decorridas do
aborto. É indicado como método seguro para indução ao parto/aborto no 1º, 2º e 3º trimestres de
gestação.
Aborto medicamentoso
“O uso do misoprostol permite que o aborto seja feito mais precocemente, de forma mais segura e
menos traumática. Também é muito mais econômico, uma vez que reduz a mortalidade materna e os
custos advindos dela. Além disso, é um procedimento simples, que não inclui o uso de anestésicos ou
anestesia e que preserva a intimidade da mulher que deseja interromper a gravidez, e o melhor é que
ela tem a oportunidade de exercer enorme controle sobre o processo”, salienta a socióloga argentina
Silvina Ramos, do Comitê Consultivo para a Investigação da Saúde da OMS e membro da Aliança
Regional do Consórcio Internacional pelo Aborto Medicamentoso (ICMA, na sigla em inglês).
Segundo ela, o chamado aborto medicamentoso tem mudado a prática do aborto em todo o mundo.
Nos Estados Unidos, por exemplo, tornou-se o principal método para a indução do aborto durante o
segundo trimestre de gestação, período em que o método tem se popularizado cada vez mais, apesar
de seu uso mais comum continuar sendo durante o primeiro trimestre, especialmente em países onde
o aborto é legalmente restritivo. “Na França, os médicos apenas confirmam a gravidez da mulher. No
caso de uma mulher decidir que não quer ter a criança, são as enfermeiras ou enfermeiros que
realizam o resto do trabalho, provendo as informações e o medicamento necessário à realização do
aborto”, relatou a socióloga.
Ela acha importante ressaltar que o uso do misoprostol – comercializado há mais de 30 anos na
Europa em mais de 30 países – não se reflete em aumento nas taxas de aborto e sim em diminuição
dos casos de morte materna decorrentes da clandestinidade da prática. O aborto medicamentoso,
segundo Silvina, também possibilita, no caso das anomalias fetais graves, o parto de um feto intacto,
o que é fundamental para efeito de pesquisa.
De acordo com Leila Adesse, mestre em Saúde da Mulher e da Criança e diretora da Ong IPAS Brasil,
o problema é que poucos profissionais da área da saúde conhecem os benefícios do método. “Há uma
forte associação do misoprostol com o aborto e, consequentemente, com o crime. Não se faz quase
nunca uma associação com o parto”. Para ela, o medicamento deveria ser vendido em farmácias,
assim como acontece com outros medicamentos controlados.
“Limitar o uso do remédio a uso hospitalar é absurdo em um país com tanta dificuldade de acesso a
médicos como o Brasil. No mundo inteiro o medicamento é indicado para uso obstétrico e pode ser
adquirido em farmácias. Além disso, é inconstitucional exigir prescrição médica para um remédio que
deve ser usado em situações de emergência”, afirmou o médico obstetra Cristião Rosas, da
FEBRASGO.
Para os especialistas, o controle efetivo do medicamento no Brasil pela vigilância sanitária é um viés
ideológico e representa afronta aos direitos das mulheres.
“O que vemos é uma óbvia ideologização desses instrumentos de regulação e normativas. O texto da
resolução da ANVISA de 2006, por exemplo, tem um conteúdo quase religioso”, comparou Sonia
Correa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês).
Para Margareth Arilha, a ação dos grupos conservadores na estigmatização do misoprostol evidencia
conexões internacionais no âmbito global desde a década de 1980 frase falta palavras. “A criação de
barreiras a avanços científicos que promovem benefícios às mulheres no campo da autonomia
reprodutiva segue padrões similares às ações em torno de assuntos como as pesquisas com célulastronco, a pílula do dia seguinte e a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos”, finalizou ela.
Dando prosseguimento ao ciclo de debates que vem promovendo, no dia 12 de novembro a CCR
realizará o Seminário “Contracepção de emergência no Brasil: Dinâmicas Políticas e Direitos Sexuais e
Reprodutivos”.
Sobre a Reunião Técnico-Científica sobre o Aborto Medicamentoso no Brasil, leia também:
O tráfico do Cytotec no Brasil – apresentação de Débora Diniz
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