Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
OBJETOS IMAGÉTICOS DAS SOCIEDADES cONTEMPORÂNEAS: USOS E
ABUSOS
Gustavo Henrique dos Santos Vale1
[email protected]
RESUMO: Este trabalho traz reflexões acerca da relação entre a memória e o
cinema, sobre como a memória ao ser abarcada em uma obra cinematográfica,
pode vir a ganhar dimensões e substancialidades, iluminando a idéia de que é
possível um diálogo entre o espírito e a matéria. É objeto desta análise o
documentário H.O. – Memórias de Arquivo (2007), dirigido por Raimundo Alves. A
análise aqui empreendida volta-se especificamente à experiência mnemôniconarrativa construída pela relação entre o fotógrafo e suas fotografias, num esforço
de mapear e discutir as dinâmicas que marcam os processos de evocação da
memória e aludir à idéia de que o cinema é um instrumento singular de apreensão
da realidade, visto sua dimensão tempo-espacial, seu caráter multi-interpretativo e
seu potencial representativo.
PALAVRAS CHAVE: memória, cinema, fotografia, imagem, objetos imagéticos
ABSTRACT: This paper presents reflections on the relation between memory and
cinema, from the approaching of memory in a cinematographic work, that may stand
to gain size and substantially illuminating the idea of a possible dialogue between
spirit and matter. Te subject of this analysis is the documentary H.O.-Memórias de
Arquivo (2007), directed by Raimundo Alves. The analysis undertaken here is
specifically about the experience mnemonic-narrative constructed by the relationship
between the photographer and his photographs in an effort to map and discuss the
dynamics that characterize the processes of memory evocation and allude to the
ideia that cinema is a unique understanding instrument of reality, demonstrated by its
time-space dimension, its mult-interpretative character and its representative
potential.
KEY WORDS: memory, cinema, photography, image, imagetic objects
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Goiás. Linha de pesquisa: Etnografia das idéias e dos repertórios culturais. E-mail:
[email protected]
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
1
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
Introdução
H.O. – Memórias de Arquivo, é um documentário no mínimo intrigante e
assisti-lo me causou certa inquietação, uma vez que o personagem principal do filme
é o senhor Hélio de Oliveira, primeiro repórter fotográfico de Goiás e primeiro
fotógrafo oficial do Governo do Estado, pessoa que acompanhou e fotografou
diversos fatos e acontecimentos da história de Goiânia desde sua construção, o
desenvolvimento do estado de Goiás e a construção de Brasília (foi o primeiro a
fotografar Juscelino Kubitschek em sua chegada à nova capital do país), assim
como também esteve presente e registrou com suas lentes inúmeros momentos de
expressão das relações pessoais e sociais de personagens que, não só fizeram
parte, como suas ações e pensamentos repercutem ainda hoje no cenário sóciopolítico-cultural-econômico de Goiânia.
A evocação da memória é uma viagem empreendida tanto pelo espírito
como pelo corpo humano (BERGSON, 1999), resultante de ações, reflexões e
percepções conscientes e/ou inconscientes, na qual o destino é a própria origem, ou
seja, há uma atualização, uma visada, uma busca no passado através do presente.
Deste modo, em H.O.- Memórias de Arquivo, este movimento articula e é articulado
por vários agentes e marcadores que enunciam sentidos e práticas, e também
sensações e afetos que se harmonizam em uma equação mnemônico-narrativa, sob
um caráter triangular: o Fotógrafo, a Fotografia e a Memória.
Ao explorar os argumentos, procurei construir o texto livre de uma
possível diegese narrativa que absorvesse o leitor para o embalo da obra
cinematográfica em si, optando por estruturá-lo sem seguir a mesma guia do filme.
Assim, problematizo as composições imagético-sonoras da obra, focalizando os
marcadores e discernindo os sentidos que selam os processos mnemônicos,
acionados a partir da construção narrativa de Hélio de Oliveira, à discussão sobre a
singularidade do cinema como instrumento de apreensão da realidade.
É necessário explicitar que as considerações aqui apresentadas, em
parte, são fruto de uma caminhada intelectual, repleta de leituras, debates e
conversas, trilhada na disciplina “Memória e Cultura Material”, ministrada pelo
professor Manuel Ferreira Lima Filho durante o primeiro semestre do ano de 2011,
referente ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de Goiás. Logo, para alargar os espaços de entendimento, trago à mesa
autores como Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Serge Moscovici, Pierre Nora,
Paul Ricoeur, entre outros.
A natureza do cinema
Ao assistir um filme, o que nos dá a impressão de movimento contínuo,
coeso e coerente é uma simulação lógica onde um conjunto de imagens
(fotogramas) por segundo é projetado sucessivamente e para ser assimilado como
tal, conta com fenômenos ópticos e de percepção. Da mesma forma que não
julgamos a inconsistência na dinâmica das imagens de um filme, ao fingirem-se em
movimento, não refletimos de forma pontual e sucessiva, a partir de diferentes
perspectivas, sobre os signos, valores, ideais, crenças, práticas sócio-culturais etc.,
expostos numa trama fílmica.
Assim, as obras cinematográficas são construções tanto objetivas quanto
subjetivas e, mesmo se tratando de um filme documentário - dessa forma impondo
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
2
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
uma legitimidade maior a seu caráter de portador de veridicidades, são fruto de um
processo de escolhas e preferências, valores e ideologias, e fundamentalmente
baseado na captação, montagem e tratamento de imagens e sons. Mas não está aí,
o seu maior valor.
O cinema apresenta-se como um insigne instrumento de apreensão da
realidade, funcionando como um portal de acesso às nuanças e perspectivas, visões
de mundo e formas de vida, saberes e práticas, valores e crenças particulares a um
ou mais coletivos sócio-culturais. Sobre essa qualidade específica do cinema, Walter
Benjamin afirma
A natureza que fala à câmera é inteiramente diversa da que se dirige aos
olhos. Diferente porque substitui o espaço, no qual o homem age conscientemente,
por um espaço onde sua ação é inconsciente. (...) Conhecemos em geral o gesto
que fazemos para apanhar um isqueiro ou uma colher, mas ignoramos quase tudo
da relação que efetivamente se estabelece entre a mão e o metal, e, ainda mais, as
mudanças que introduz nestes gestos a flutuação dos nossos diversos humores. É
nesse domínio que a câmera penetra, com todos seus meios auxiliares, com suas
subidas e descidas, seus cortes e suas separações, suas extensões de campo e
suas acelerações, suas ampliações e reduções. Pela primeira vez ela nos abre a
experiência de um inconsciente visual, assim como a psicanálise nos fornece a
experiência do inconsciente instintivo. (BENJAMIN, 1990, pg. 232 a 234).
Lanço minhas atenções, então, ao documentário H.O. – Memórias de
Arquivo, com o intuito de realizar uma interpretação antropológica no sentido
geertziano, em que esta é concebida como análoga a uma tradução,
compreendendo por tradução, uma “reformulação de categorias (...)
para
que
estas possam ultrapassar os limites dos contextos originais onde surgiram e onde
adquiriram seu significado, com o objetivo de estabelecer afinidades e demarcar
diferenças.” (GEERTZ, 1997, p.24)
Entretanto, os significados são abordados como processos sócioculturais, atentando-se aos contextos, às identidades culturais, ao pertencimento e à
visão da cultura tal como nos apresenta Geertz (1978), como organização simbólica
da ação e experiências humanas, cuja principal característica é a dinamicidade e
está ligada diretamente às formas de viver dos grupos sociais.
Destarte, é interessante pensar a complexidade das práticas
socializadoras na atualidade, não reduzindo os indivíduos a meros receptores de
idéias ou mesmo a simples consumidores de cultura, observando a abundância dos
usos e assimilações dos signos presentes nas obras cinematográficas, não devendo
haver, segundo Renato Ortiz (1988), uma homogeneidade cultural nas discussões
sobre o fenômeno da cultura de massa.
A memória, o fotógrafo e a fotografia
O filme abarca a temática da memória, o poder atípico e simbólico dos
arquivos, mas também dialoga com espaços e com outros depoentes, tornando a
narrativa fílmica itinerante e complexa enquanto prosa mnemônica, pelas visitas a
lugares que outrora fizeram parte da experiência pessoal e profissional de Hélio,
bem como pelos depoentes que perpassam sua vida. Nesta esteira, o documentário,
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
3
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
ao imprimir uma intenção memorialista em sua construção, pode ser compreendido
sob o conceito de “lugares de memória”, de Pierre Nora (1993). Segundo o autor
(...) os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter
aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas,
porque essas operações não são naturais. (...) É por isso a defesa pelas minorias,
de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados
nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de
memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa as varreria. (NORA,
1993, p. 13)
Entretanto, quero frisar a importância da obra enquanto objeto imagético
de uma sociedade que, ligada a um contexto maior de mudanças e transformações
estruturais, intensos fluxos tecno-informacionais e uma irrefreável atualização
tecnológica, instaura uma lógica do descarte e do individualismo, atentando contra a
preservação de suas memórias coletivas e identidades culturais.
Diante desse contexto, é necessário ampliar as perspectivas de usos e
noções de legitimidade referentes a tais objetos imagéticos, assim, estendo às obras
cinematográficas a notabilidade considerada por Annette Weiner, quanto ao
potencial dos objetos:
(...) nós usamos objetos para fazer declarações sobre nossa identidade,
nossos objetivos, e mesmo nossas fantasias. Através dessa tendência humana a
atribuir significados aos objetos, aprendemos desde tenra idade que as coisas que
usamos veiculam mensagens sobre quem somos e sobre quem buscamos ser. (...)
Estamos intimamente envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os
quais presenteamos os outros. Marcamos nossos relacionamentos com objetos (...).
Através dos objetos fabricamos nossa auto-imagem, cultivamos e intensificamos
relacionamentos. Os objetos guardam ainda o que no passado é vital para nós. (...)
não apenas nos fazem retroceder no tempo como também tornam-se os tijolos que
ligam o passado ao futuro.” (WEINER apud GONÇALVES, 2007, p.26)
Em H.O.-Memórias de Arquivo, temos um universo simbólico-narrativo em
que o principal personagem, o senhor Hélio de Oliveira, nos apresenta parte de sua
trajetória individual, valendo-se de fotografias para compor sua narrativa, seja para
ordenar seu discurso ou para ilustrar com documentos visuais a história que conta. A
tríade fotógrafo-fotografia-memória é o ponto nuclear desta análise, e partindo das
inter-relações estabelecidas entre esses elementos chegamos a um amálgama
marcador que condensa os processos de evocação da memória presentes na obra.
Segue um trecho um filme que sintetiza a tríade acima mencionada:
“Sobre uma pequena mesa redonda repousa uma enorme e caleidoscópica pilha de
fotografias e sentado a esta mesa está Hélio de Oliveira, que vasculha com todo
cuidado aquele conjunto de imagens, revolvendo-as incessantemente, observandoas, tocando-as, afastando-se ou se aproximando, descartando-as ou se valendo
delas para dar continuidade à sua narrativa”. Essa espacialização conformada pela
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
4
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
disposição das fotografias em relação ao personagem, nos atenta para as seguintes
proposições bergsonianas:
Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo
sobre eles. (...) Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem
que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única
diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a
maneira de devolver o que recebe. (BERGSON, 1999, p. 14, 15, 16)
Compreendo que o papel primeiro das fotografias seja de ordenar e
iluminar os esforços mnemônicos de Hélio. Entretanto, tem-se uma recíproca relação
entre fotógrafo e fotografias, abstrata e sinestésica simultaneamente e, a meu ver, o
que de fundamental tais objetos imagéticos vem a lhe oferecem são pistas, pontos
de acesso ao passado, assumem o caráter de elementos de conservação e passam
a funcionar como mecanismos de lembrança, ajustando-se ao que Paul Ricoeur
(1997) chamou de “rastro”:
(...) porque antes um homem, um animal passou por ali. (...) o rastro
convida a segui-lo, a voltar, por meio dele, se possível, até o homem e até o animal
que passaram por ali (...) o rastro indica aqui, portanto no espaço, e agora, portanto,
no presente, a passagem passada dos vivos; ele orienta a caça, a busca, a
investigação, a pesquisa. (RICOEUR, 1997, p. 200, 201)
Porém não se estabelecem previamente os rastros, não são construídos,
são largados ou esquecidos, e nesse caso, a fotografia, por se tratar de algo
arquitetado intencionalmente através da intervenção objetiva e subjetiva humana e
por comportar leituras e recontextualizações múltiplas e diversas, não se vincularia a
esta compreensão de “rastro” (RICOEUR, 1997), mas o fato de o personagem estar
intimamente ligado a tais objetos, ou seja, ser ele o fotógrafo das fotografias em
questão legitima-as para o conceito.
No compasso em que constrói sua narrativa, Hélio nos deixa claro sua
intimidade com tais objetos mnemônicos, mas explicita também a fragilidade e a
porosidade de sua construção mnemônico-narrativa. Ora, a memória é relativa à
percepção e ao tempo, não é estável e apresenta lacunas, dispõe situações
incompletas, faltando detalhes e muitas vezes sentidos, passível de reflexão e
modificação.
Passa a ocorrer, então, um processo de construção, transformação e
rearranjos intrínsecos a este processo a partir de um movimento mnemônico que
não se reduz a ficcionar lembranças, mas está intimamente ligado à imaginação e
consiste em reformular e reapresentar a realidade para si e para os outros.
Este tema é destacado por Ricoeur (2007) no livro A memória, a história,
o esquecimento, em que o autor faz distinções entre memória e imaginação,
afirmando que o processo de tornar presente o objeto ausente, produz uma
sobreposição entre tais fenômenos. Nessa direção, o autor concede à imaginação
um status privilegiado, apontando-a como parte integrante da memória, e afirma que
a imaginação exerce funções tanto miméticas quanto projetivas, e que
correspondem à dinâmica da ação.
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
5
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
Os depoimentos do fotógrafo Hélio de Oliveira, bem como as imagens
oriundas de seu arquivo fotográfico expostas no ecrã, expõem memórias coletivas
que alcançam as balizas da história de Goiânia e reapresentam suas paisagens:
cultural, econômica, política, social e estética num dado recorte temporal. Tais
dimensões não foram esquecidas, porém não são alvo desta análise.
Vislumbrando essa paisagem a partir da narrativa fílmica, contamos com
uma tessitura imagético-discursiva que expressa uma diversidade e multiplicidade
de elementos que constituem as memórias individuais de Helio. Todavia, esses
elementos, ao serem projetados na tela, revelam uma profusão de sentidos
coletivos. Sobre essa questão, Maurice Halbwachs (2004) afirma que a memória
individual é constituída a partir de uma memória coletiva, partindo da idéia de que
toda impressão é formada no interior de um grupo.
Helio, num exercício de rememoração de lembranças, elenca fatos,
pessoas e contextos, numa tarefa de reconstrução da experiência vivida,
cronologisando sua narrativa. Para tanto, conta com o suporte de fotografias que
revelam imagens, valores, anseios e afetos que estão amarrados, segundo
Halbwachs (2004), a grupos sociais, cujo o fotógrafo exercita um determinado
sentimento de pertencimento.
No entanto, o autor assinala uma distinção possível entre memória
coletiva e memória individual, afirmando que: “Haveria então, na base de toda
lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para
distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social admitiremos que se chame intuição sensível.” (HALBWACHS, 2004, p. 41)
À medida que Hélio pincela e traz as fotografias para um campo de
percepção e ação possíveis, passa a imprimir uma atitude analítica e dinâmica sobre
os conteúdos que elas expressam. Segundo Bergson (1999), “à medida que meu
corpo se desloca no espaço, todas as outras imagens variam; a de meu corpo, ao
contrário, permanece invariável. Devo, portanto fazer dela um centro, ao qual
relacionarei todas as outras imagens.” (BERGSON, 1999, p. 46).
Assim, compreendendo que as fotografias enunciam sentidos e
significados, reproduzem idéias e contextos, elas passam a ocupar outro lugar e
papel no ensejo da narrativa, caracterizando-se como conjuntos simbólicos
passíveis de uma interpretação dialética, para Jacques Aumont (1995) a imagem ao
produzir enunciados “se apresenta como discurso”. (AUMONT, 1995, p. 107).
Nessa direção, as fotografias de Helio são para ele, instrumentos de
interlocução com seu passado e configuram um quadro histórico-simbólico de
intersecções pessoais. Entretanto, segundo Aumont (1995) “o contexto simbólico
revela-se necessariamente social, já que nem os símbolos nem a esfera do
simbólico, em geral, existem no abstrato, mas são determinados pelos caracteres
materiais das formações sociais que os engendram.” (AUMONT, 1995, p. 192)
É possível, assim, sob o ponto de vista da psicologia social, atribuir às
fotografias o caráter de representações sociais, sendo estas representações,
segundo Jodelet (2001), frutos da interação entre indivíduos, integrados em
determinadas culturas que, ao mesmo tempo, constroem uma história individual e
também produzem uma história social. Num sentido mais amplo podemos enxergar
as representações sociais como uma forma de pensamento social, sendo os
significados compartilhados que possibilitam a construção de perspectivas comuns.
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
6
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
Para Moscovici (2003) as representações sociais são autônomas e se
comunicam entre si, caracterizam- se como sistemas de valores, idéias e práticas
que funcionam para convencionalizar o mundo e o prescrever. Segundo o autor,
criamos representações sociais para transformar o “não-familiar” em “familiar” e,
nesse sentido, ocorrem dois processos através dos quais são construídas as
representações sociais, a objetivação e a ancoragem.
Moscovici (2003) afirma que a objetivação é um processo de
materialização que “(...) une uma idéia de não-familiaridade com a realidade, tornase a verdadeira essência da realidade”, enquanto ancorar significa “(...) classificar, e
dar nome a alguma coisa. Coisas que não são classificadas são estranhas, não
existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras”. (MOSCOVICI, 2003, p. 71, 62)
Assim, todos os quadros sociais, culturais, econômicos e estéticos
presentes no filme através das memórias e fotografias de Hélio de Oliveira, nos
informam sobre traços, sinais, características de uma “cultura goiana” que, diante as
reflexões que compõe este trabalho, mostra-se dinâmica e ininterruptamente
(re)configurada em consonância com processos sociais, históricos, culturais,
econômicos e estéticos mais amplos, características que revelam as marcas de uma
sociedade encerrada num cotidiano citadino e algoz, marcado por uma midiatização
desenfreada.
Considerações finais
Logo no início do filme, temos cenas atuais de Goiânia que mostram
construções arquitetônicas e monumentos públicos tradicionais, em sons e imagens
noturnas e diurnas. Ouvimos uma voz em off2, que mais à frente reconhecemos ser
a voz de Hélio: “A Goiânia que eu vi era bem diferente”. Logo em seguida, entram
em quadro fotografias em preto e branco da cidade recém construída. O peculiar
desses dois momentos é presença de elementos globalizantes, dos processos de
encurtamento espaço-temporais e fragmentação dos indivíduos, fenômenos que
causam instabilidades e inseguranças que alcançam e afetam necessariamente os
processos de preservação das memórias coletivas.
Tal questão torna-se um convite a refletirmos sobre novos caminhos para
os usos, leituras, significações e noções de legitimidade no tocante aos objetos
imagéticos das sociedades contemporâneas. E é aí que está uma das questõeschave deste trabalho. O cinema nos permite experimentar sensações e aferir leituras
que extrapolam as intenções e domínios dos realizadores e, que muitas vezes, são
obscurecidas pela fugacidade do cotidiano.
Destarte, as obras cinematográficas podem ser concebidas como teias
simbólicas de significações, como “lugares de memória” (NORA, 1993, p. 13), como
textos que carregam semânticas e sintaxes culturais. Entretanto, não se reduz a
simbolizar, o cinema constrói representações sociais, mas estas também o
constroem, sendo que as representações sociais constituem um “tipo de realidade.”
(MOSCOVICI, 2003, p. 34)
Personagem nuclear do documentário, Hélio de Oliveira, um senhor de
quase 80, é guardião de memórias caríssimas à cultura brasileira, goiana e
2
Partindo da idéia de que há uma linguagem cinematográfica, esta possui, entre outras
especificidades, gramática e vocabulário próprios. Logo, “off” é um termo técnico utilizado para indicar
que a fonte emissora de algum dos elemento da trilha sonora, ou seja, vozes, ruídos, efeitos sonoros
ou músicas não aparece em quadro.
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
7
Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
goianiense, é dono de um acervo fotográfico de anos de trabalho e dedicação.
Encerro com fragmentos da fala de um dos entrevistados do filme, o fotógrafo
Orlando Brito de Brasília – DF: “A fotografia funciona pra sociedade como os olhos
que vigiam as coisas que acontecem. [...] Um meio de difusão daquilo que o mundo
vive diariamente”.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Teoria
da cultura de massa LIMA, L. C. (org.), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.
BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 1999.
GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
_________ O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. PetrópolisRJ: Vozes, 1997.
GONÇALVES, J. R. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios.
Coleção Museu, Memória e Cidadania, vol. 2. Rio de Janeiro: Garamond,
MinC/IPHAN/DEMU, 2007.
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2004.
JODELET, D. (org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: Editora da Uerj,
2001.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
NORA, P. Entre história e memória: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto
História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
ORTIZ, R. A moderna tradução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
RICOUER, P. Tempo e narrativa – Tomo III. São Paulo: Papirus, 1997.
_____________ A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2007.
Filme
H.O. – Memórias de Arquivo; Gênero documentário; 60’; Ano: 2005-2007; Direção e
Fotografia: Raimundo Alves; Roteiro: Lígia Benevides e Raimundo Alves; Produção
Executiva: César Kiss; Produtora Responsável: Idéia Produções; Produtor
Associado: Ronaldo Araújo; Pesquisa: Lígia Benevides e Narjara Medeiros;
Pesquisa Musical: Narjara Medeiros; Produção: Rubens Garcia, Paulo Prudente,
Lígia Benevides; Produção de Arte: Marcela Borela; Edição/Finalização: Levy
Álvares; Computação Gráfica/Desing: Vinícius Lousa; Trilha Sonora: Fausto Noleto e
Sólon Moraes.
Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281
8
Download

45º Link - IV Congresso Internacional de História: Cultura