1 O LUGAR DA MULHER E DA CRIANÇA NA OBRA CASA-GRANDE & SENZALA Msc. Ana Regina Ferreira de Barcelos Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC [email protected] Msc. Júlia Siqueira da Rocha Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC [email protected] Gilberto Freyre inscreve Casa-Grande & Senzala como um ensaio de sociologia genética e de história social1; o autor pretendia fixar e às vezes interpretar alguns dos aspectos que avaliava como os mais significativos da formação da família brasileira. Objetivamos com o estudo analisar a relação estabelecida com as mulheres e as crianças, no interior da sociedade patriarcal escravocrata e rural descrita na referida obra. Para sistematizar a reflexão nos optamos por um estudo bibliográfico e selecionamos dentre as inúmeras facetas que a obra permite abordar, de modo especial, o quarto capítulo, o qual se intitula “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. Recorreremos, também, ao diálogo com Gondra ; Garcia (2004) e Ostetto (1990), para localizar pistas que ilustrem como esta mesma relação ocorreu na passagem do Império para República, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo que viviam um processo inicial de urbanização e industrialização. Na parte introdutória da publicação explorada, Cardoso define a obra como perene e delineia algumas considerações. Trata da postura, em certa medida, conservadora de Gilberto Freyre, que se opunha “a modernização política do Estado a partir de um projeto liberal e tudo o que fundamentara o estado de direito (o individualismo, o contrato, a regra geral), numa palavra, a modernidade”. (CARDOSO, apud FREYRE, 2006, p.27). Não podemos esquecer que a análise de Freyre tem a 1 Segundo Soares (2002) A perspectiva histórica apresentada por Gilberto Freyre, em Casa- grande e Senzala, aproxima-se da “Escola dos Annales e, particularmente, de um dos seus precursores, Lucien Febvre, que também considerava que não é pela história política e militar que se percebe a verdadeira história de um povo, e sim pelo seu cotidiano ou pela sua rotina de vida. Para Gilberto Freyre é exatamente nesta rotina de vida que se nota a continuidade social, o próprio caráter de um povo e sua história mais íntima”.Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/27_6_gilberto.pdf.>. Acesso em:14 jul 2010. 2 marca do homem branco e senhor, é uma versão que agrada a elite. Embora enalteça a contribuição do negro na composição da nossa “brasilidade” e ostente a mestiçagem como algo que temos que nos orgulhar, o autor deixa escapar um tom deliberado de saudosismo e resistência: Desfeito em 88 o patriarcalismo que até então amparou os escravos, alimentou-os com certa larguesa, socorreu-os na velhice e na doença, proporcionou-lhes aos filhos oportunidade de acesso social. O escravo foi substituído pelo pária da usina; a senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista ausente (FREYRE, 2006, p.51). Ao compreender o lugar de onde fala Gilberto Freyre2, consegue-se perceber o porque do esforço constante da “conciliação”, da “confraternização”, do “equilíbrio dos contrários”, que explora com modo próprio de apreensão do real. Ele é firme na tarefa de convencer o leitor sobre suas teses, e talvez a si mesmo. Embora tenha-se que ter cautela com algumas interpretações por ele empreendidas, há que se deliciar com a exploração de várias fontes, que passa pela literatura, relatos de viajantes, cartas, iconografia e a recolha de uma empiria vasta e diversa. É um exímio sociólogo que busca entender seu tempo. Ele vasculha pistas como um historiador e nos mais inusitados objetos revela a riqueza da cultura e do modo de ser do brasileiro. Para conhecer o modo como às relações eram estabelecidas na sociedade patriarcal de monocultura escravagista, a obra de Freyre tem uma contribuição importante, que revela pistas do confronto com o projeto em curso de um Estado Nação, em uma sociedade pré-industrial e urbana que precisava firmar suas bases, enquanto Estado laico e regulador, no ínterim do final do Império e início da Primeira República. 2 Gilberto Freyre, (1900-1987) Tanto seu legado intelectual quanto sua vida pessoal são objetos de intensa polêmica e controvérsias. .Nascido no Recife, Gilberto de Mello Freyre era descendente legítimo da aristocracia rural em seus últimos suspiros. Então menino, no início do século 20, brincava com os descendentes dos escravos recém-alforriados. Assumia involuntariamente, nesse período, a condição de meninote de engenho, de brancura tradicional. Afirmava-se que o mestre de Apipucos exacerbou na candura com que descreveu as relações senhor-escravo. Freire concluiu o 2º grau, no Collegio Americano Baptista de Recife. Já aos 22, defendeu a tese "A Vida Social no Brasil em Meados do Século 19" e recebeu título de mestre em ciências jurídicas, políticas e sociais pela Universidade de Columbia (EUA).Ele trabalhou com uma voracidade rara. O resultado de sua bibliografia de mais de 60 livros e centenas de artigos reverbera múltiplos significados. Destacamos as obras:Casa Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1956)Tido como comunista e subversivo nos anos de 1930 e 1940, as esquerdas das décadas seguintes vestiram-lhe roupagem conservadora. Foi considerado aristocrata e reacionário .Disponível em:< http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=78&Artigo_ID=783&IDCategoria=9 58&reftype=2> Acesso em:13 jul 2010. 3 Neste contexto situamos a problemática que permeia todo o estudo, a saber: Qual o lugar da mulher e a criança no referido cenário? A trajetória da Mulher e da criança3 na obra Casa Grande & Senzala aparece intimamente imbricada. Em diferentes escalas as relações de submissão fortemente exercidas pelo senhor de engenho tomam corpo no cotidiano, sejam elas do Senhor sobre a família e escravos, da Sinhá-dona em relação aos escravos, da sinhá-moça sob as mucamas, ou entre os meninos brancos e os meninos escravos. A prática da opressão, que subjuga o mais fraco, tem lugar de destaque no convívio estabelecido entre os indivíduos. As marcas de um Brasil agrário, regido pela monocultura, patriarcal e escravocrata “continuaram a influenciar a conduta, os ideais, as atitudes, a moral sexual dos brasileiros” (FREYRE, 2006, p.51) durante a constituição de uma sociedade préurbano-industrial que se configurava no final do século XIX. Este novo modo que se instituía não suplantou as práticas existentes no antigo regime; elas conviveram e paulatinamente transformaram-se, atingindo ritmos e uma abrangência temporal e territorial diversa, nas quais é possível observar os contrastes em diferentes relações. A expressão da subserviência tinha uma dimensão diferente dos dias atuais, era regida por modos e práticas próprias do período. É possível identificar “um não lugar” das mulheres (brancas e negras) e das crianças. A separação entre os tempos criança/ mulher era difusa e a relação de posse e domínio estavam expressas nas transações matrimoniais que assumiam um caráter de “negócio”: 3 Peter Burker (1997), enfatiza a preocupação de Gilberto Freyre referente à infância: “Ele também tinha algo a dizer acerca das crianças. Em 1921, o jovem confidenciou a seu diário sua ambição. ‘O que eu desejaria era escrever uma história como suponho ninguém ter escrito com relação a país algum: a história do menino brasileiro - da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios -, desde os tempos coloniais até hoje’. Entre 1921 e 1930, a versão publicada do diário de Freyre refere-se ao projeto da história da criança no Brasil não menos do que sete vezes. Quatro dos artigos que escreveu para o Diário de Pernambuco nos anos 20 tratavam da infância, das crianças e seus livros e brinquedos. A história da criança atraiu seu interesse por si mesma, como uma desculpa para discutir sua própria infância, e como um microcosmo da cultura brasileira.Embora Freyre nunca tivesse realizado seu plano original, não o abandonou completamente. Se voltamos para Casa-grande & Senzala, logo fica óbvio que fragmentos substanciais do ‘projeto secreto’ estão embutidos no texto, indo das bonecas, pipas, piões, bolas e outros brinquedos e jogos das crianças brancas, negras e índias até o ‘sadismo patriarcal’, os estudos e a disciplina dos colégios jesuítas e a breve discussão sobre a educação das meninas. Freyre argumenta, como Philippe Ariès iria fazer no caso da Europa moderna nascente, que no Brasil colonial meninos com dez anos de idade eram ‘obrigados a se comportarem como gente grande.’ ” (cf. Freyre, 1933, p. 215 ss, 613 ss, 632 ss). Disponível em:< http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/freyrenovahistoria.html>. Acesso em:13 jul, 2010. 4 [...] guardavam as sinhá-moças. Aí vinha colhe-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos [...] Abafadas sob as carícias de maridos dez, quinze, vinte anos mais velhos [...] Maridos de escolha exclusiva dos pais. Bacharéis... Negociantes portugueses [...] Oficiais. Médicos. Senhores de Engenho. Desses casamentos feitos pelos pais nem sempre resultaram dramas ou infelicidades (FREYRE, 2006, p. 423). A relação de posse e do poder senhoril era naturalizada, e somava a ela os interesses econômicos, sejam eles previstos nas relações matrimoniais das filhas e mesmo na relação com as escravas. Freire resgata o relato de Joaquim Nabuco, no qual ele destaca que “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador” (2006, p.399), de forma que a suposta depravação sexual estava vinculada a condição de escravidão, uma vez que se tornava fundamental que as negras produzissem mais crianças. Conforme já explicitado a inserção das meninas, filhas do Senhor de engenho, no mundo adulto era precoce: aos doze, treze, quatorze anos, eram identificadas como “anjos louros”, “Santas imaculadas”. Desde o dia da primeira comunhão deixavam de ser crianças e tornavam-se sinhá-moças4, disponíveis para o matrimônio. O impacto do poder destrutivo do regime de subserviência estabelecido pode ser constatado na descrição que Freyre relata do viajante Luccock que conheceu a sociedade escravocrata brasileira, e destacando que as mocinhas ou meninotas não eram feias, no entanto, envelheciam depressa: “[...] os olhos vivos, dentes bonitos, maneiras alegres- tal retrato que nos traça de meninas de treze ou quatorze anos. Aos dezoito anos, já matronas, atingiam a completa maturidade” (2006, p.430). Tal estado era resultante da postura passiva e morosa que as mulheres assumiam dentro das casas e sobretudo dos muitos filhos que tinham. O fato de se casarem antes de terem atingido o desenvolvimento físico necessário para desenvolverem gestações sucessivas sem riscos 4 Ariès (1981) destaca que a vida já foi repartida de acordo com o número de planetas, signos do zodíaco, ou mesmo meses do ano. Já a invenção da infância no formato que conhecemos é algo recente. O desenvolvimento da ciência e, sobretudo, da medicina, ditou os esforços de uma categorização frente a heterogeneidade dos critérios para compreender e descrever o desenvolvimento humano. No entanto, diferentes áreas fazem este recorte de forma diversa. Na religião os rituais dos sacramentos vinculam-se a diferentes idades, ou ainda em sociedades indígenas temos rituais de passagem que inserem a criança na vida adulta, na psicologia adotamos fases do desenvolvimento psíquico, no campo legal temos um outro recorte etário, enfim, a necessidade de enquadramento das diferentes idades é algo da modernidade. 5 - para mãe e para as crianças - tinha como desdobramento o nascimento de muitas crianças mortas e outras que sobreviviam quase por milagre. Como resultante da frágil condição das jovens mães, estas se transformavam em “mulambos de gente”, outras não tinham a mesma sorte e morriam no parto, e logo eram substituídas por suas irmãs mais novas, ou primas, as quais eram concedidas pela família ao senhor viúvo. Nesta sociedade patriarcal as meninas/mulheres viviam sob o julgo da severa tirania dos pais, que era substituída pela dos maridos. De forma que “a multiplicação de gente se fazia a custa do sacrifício das mulheres, verdadeiras mártires em que o esforço de gerar, consumindo primeiro a mocidade, logo consumia a vida” (FREYRE, 2006, p.444). O autor salienta que perder um filho pequeno para a família patriarcal não implicava em dor profunda. Sob os ditames da religião católica, o “anjo” iria para o céu, o que para alguns pais era considerado uma felicidade, era a “vontade de Deus”, e mesmo porque outros filhos nasceriam. A natureza se encarregaria de substituí-los e deslocá-los para o lugar do esquecimento. A prática das mães ricas delegarem às amas de leite a tarefa de amamentarem as crianças foi trazida de Portugal para o Brasil. No entanto, aqui o costume foi incorporado tendo em vista a precária condição das prematuras e franzinas mães, bem como o grande contingente de mães/meninas mortas no parto, de forma que entregar às crianças as mucamas, para que fossem amamentadas e cuidadas, era a alternativa possível. Havia uma crença de que a mulher negra se adaptava melhor as condições dos trópicos e eram mais fortes e resistentes para empreender as tarefas de alimentar e cuidar das crianças. Todavia, conforme evidencia Freyre, se definiam critérios para a seleção das negras, as quais eram promovidas para o trabalho na casa grande: A negra ou mulata para dar de mamar a nhonhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno, cuidar-lhe da roupa, contarlhe histórias, às vezes substituir-lhe a própria mãe - é natural que fosse escolhida entre as melhores escravas da senzala. Dentre as mais limpas, mais bonitas, mais fortes. Dentre as menos boçais e as mais ladinas (2006, p.435). A relação da maternidade escrava, que para alguns médicos do período estava vinculada a promiscuidade das negras, era a condição destas para dar de comer aos seus filhos e, sobretudo, as crianças brancas. O que de possibilitava às escravas a saída da senzala para a casa-grande, o que revela uma ascensão na condição de escravos e 6 funciona como uma estratégia de sobrevivência. Ao longo da obra, há um esforço do autor, mesmo nas condições mais adversas e antagônicas de identificar pistas que conciliam diferentes interesses. Não só nas casas-grandes instaladas na zona agrária, a seleção das escravas amas de leite estava em pauta, como também nas cidades. O processo de passagem do Império para a República nas cidades que se urbanizavam instaurava um movimento pautado na racionalidade médica, que aponta indícios das mudanças em curso na sociedade. Numa sessão da Academia de Medicina, ocorrida no Rio de Janeiro em 1846, é recriminada à prática de amamentação por escravas, com poucos escrúpulos escolhidas. Na ocasião, Freyre destaca o discurso do médico Dr. Marinho “salienta como causa da mortalidade infantil no Brasil a umidade, as fortes alternativas de temperatura, o vestuário, a alimentação prematura, a amamentação mercenária” (FREYRE, 2006, p.449 ) Gondra e Garcia5 retomam a tese do doutor Urculu (1882) para ilustrar como, através da crítica às amas de leite, o médico elabora argumentos para combater o regime de escravidão e discutir a condição social das amas. Ele define três aspectos fundamentais que qualificam a prática da amamentação: “a saúde e o estado geral, as qualidades do leite e dos órgãos de lactação da candidata a ama” (GONDRA; GARCIA, 2004, p.74). Num sentido inverso da relação amistosa e dócil travada entre ama de leite e as crianças brancas predominante na descrição de Gilberto Freyre, veremos, no trecho a seguir, como Dr. Urculu dispara contra as mães, senhoras ricas da sociedade, as quais nutrem o regime escravocrata e se eximem da responsabilidade de exercerem a tarefa de mães: O erro gravíssimo de certas senhoras, aliás muitas aptas para por si próprias alleitarem, em entregarem seus filhos á ama cresce de ponto quando essa ama é escrava. Ellas se dedignam de cumprir a augustissima missão de mães para não perderem a belleza dos seios, a elegancia do talhe, o torneado dos membros; ellas que não querem ter suas custosas toilletes manchadas por alguma inconveniência do filhinho, que evitam com repugnância a presença de um individuo menos bem trajado, porque a etiqueta... a posição... a nobreza..., não 5 GONDRA, José; GARCIA, Inará. A arte de endurecer “miolos moles e cérebros brandos”: a racionalidade médico-higienista e a construção social da infância.Revista Brasileira de Educação. nº 26, Maio/Ago, 2004. 7 se envergonham de entrega-los aos cuidados de uma pária da sociedade, não coram de ver converter-se em sangue azul de sua família o leite da escrava! Deshonram-se em estender a mão para darem uma esmola a pobre maltrapilha, mas não pejam de ver conchegado ao peito da escrava seu nobre descendente! Irrisão!... Do charco immundo do vicio, onde a prepotência arrojou a miseranda escrava, a photographia está bem junta da criancinha. Esta a vê, sente, apalpa, nada mais fácil que imitar o original, e é precisamente no talento da imitação que as crianças são insignes. Não é senão por esta convivência tão intima que nos admiramos de ver crianças tão novas sabendo cousas impossíveis. (URCULU, 1882, p. 52 apud GONDRA; GARCIA, 2004, p. 75) A constituição de argumentos regidos pela ciência, defendida paulatinamente pelos médicos-higienistas em espaços e tempos diferentes, toma lugar na sociedade escravocrata que resiste às mudanças exigidas pelo novo regime. Ostetto (1990) destaca que o discurso médico do período contribuiu sobremaneira para a construção da brasilidade, para constituição da “formação do povo brasileiro”, sendo indício das transformações que marcam a passagem do Período Imperial para a Primeira República. [...] se no Império a cidade apenas começa a se constituir espaço político, administrativo e financeiro importante, sobrepondo-se ao campo, com o advento da República a primazia da cidade é total, convertendo-se no centro de atividades e lutas da vida nacional. É na cidade que assistimos o peso de todas as mudanças estruturais em andamento. É a cidade o grande “chamariz” para quem sonha em construir a vida nova. (OSTETTO, 1990, p.94) Na obra Casa Grande & Senzala o cenário que se descreve é o da região agrária, enquanto na cidade se moldam as transformações. Observamos que nas casas-grandes e nas senzalas. Assiste-se a resistência à mudança, há um esforço para ignorar os novos códigos de conduta que se instituíam. A escravidão nas fazendas perdurou fortemente durante um longo período. Durante muito tempo a condição da mãe escrava e seu filho, que compunham o “estoque de negros” que trabalhavam nas fazendas, revelam a faceta atroz das relações estabelecidas. A título de exemplo, Freyre destaca que, no Maranhão, havia fazendeiro que “obrigava as escravas negras a deixarem seus filhos, crianças ainda de mama, no tejupabo, metidos até o meio do corpo em buracos para esse fim cavados na terra” 8 (2006, p.442). O tratamento destinado pelo Senhor de engenho às escravas, às crianças e às mulheres revelam um descaso com a condição humana que era naturalizada. A ausência de indícios de civilidade por parte de muitos patriarcas revela uma das facetas do período. Nos princípios do século XIX, o domínio da leitura e da escrita6 era um privilégio de poucos, de forma a ser esse um dos requisitos definidos pelos Senhores de Engenho, para seleção dos genros. Nesta lógica, tornava-se desnecessário que as filhas aprendessem a ler ou escrever. No entanto, havia senhores de engenho que encaminhavam as meninas para o “Recolhimento”, onde aprendiam a ler, a coser e a rezar, com o propósito de afastá-las da sina do analfabetismo, ou da ausência de modos educados necessários ao convívio social, o que revela um embrião das mudanças que estavam por se estabelecer. Gondra e Garcia (2004) ilustram a estreita relação estabelecida entre a educação da mulher e a educação da criança. Ao tratarem da infância pobre e da infância rica, recorrerem aos discursos dos Séculos XIV, XVII e XIX, e nos auxiliam a comparar em que medida as relações estabelecidas nas casas-grandes cedem lugar aos novos modos de condutas que se delineavam na passagem da sociedade escravocrata para uma sociedade pré-urbana-industrial. Buscam Fenelón (1651-1715) e sua obra “A Educação das Meninas”, que foi adotada em muitas casas de “Recolhimento” e abordava a necessidade de instrução das mulheres. As mães de família da elite deveriam saber bem sua religião e ter o conhecimento que precisavam para orientarem os filhos. Recomendava-se que dominassem o ler e o escrever corretamente, as quatro regras da aritmética, as principais regras da justiça, o conhecimento da história grega ou romana, a história da pátria e a de outros povos; a utilidade do latim, de também de algumas línguas vivas, da poesia e da música. Estes saberes instrumentalizavam a mulher/mãe a educar os quadros para o novo formato de sociedade que se instituía. No entanto, na área rural, onde estavam as casas-grandes e senzalas, tal entendimento durante muito tempo foi raro-efeito, uma vez que, não apenas as mulheres tinham um acesso limitado ao domínio da leitura e escrita, assim como também os 6 Não é foco deste texto descrever e analisar como se constituíram os indícios do processo de escolarização apresentado por Gilberto Freyre, mas compreender como nas relações domesticas o domínio da leitura e da escrita tornam-se moedas de troca e revelam o descompasse entre as demandas oriundas da cidade em oposição à resistência presente na casa grande. 9 homens. “portugueses e filhos de portugueses quase sem instrução nenhuma, analfabetos uns, semi-analfabetos na maior parte. Gente que quando tinha que escrever uma carta ou de fazer uma conta era pela mão do padre-mestre ou pela cabeça do caixeiro” (FREYRE, 2006, p.382). Embora grosso modo, equivocadamente se generalize a idéia de que os negros trazidos para o Brasil como escravos fossem todos iletrados e ignorantes, tal afirmativa não se sustenta, uma vez que, segundo Gilberto Freyre (2006, p.381) “importaram-se para o Brasil, da área mais penetrada pelo islamismo, negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à grande maioria dos colonos brancos”, de forma que na Bahia, por volta de 1835, existia mais gente sabendo ler e escrever nas senzalas, do que nas casas-grandes. É sabido que a África se constitui num mosaico de diferentes nações, que revelam diferentes práticas culturais, de forma que é um erro concebê-las como um povo homogêneo. Havia um contingente de negros trazidos para o Brasil que desempenharam uma função civilizadora. Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de pano e sabão; mestres; sacerdotes e tiradores de reza maometanos.(FREYRE, 2006,p.391) É importante destacar que a condição do negro trazido para o Brasil está colada a sua condição de escravo. A escravidão desenraizou o negro de seu meio social e da família, o trouxeram da África e o largaram numa terra estranha, com uma gente hostil. Ao longo da obra, Gilberto Freyre se empenha em destacar as inúmeras contribuições do negro para a constituição do povo brasileiro, constrói argumentos para se opor aos pesquisadores que atribuem a inserção do negro no Brasil a causa do atraso e da decadência do país. Em oposição à inicial recepção agressiva empreendida aos negros pelos brancos, Gilberto Freyre apresenta elementos que minimizam as relações de antagonismo e busca um equilíbrio, que em muitos momentos mascara a aviltante condição de escravo. Descreve a docilidade exercida pelas amas negras no trato com as crianças no interior da Casa Grande, são elas as contadoras de histórias que enriquecem o imaginário infantil, são elas que ninam os meninos numa fusão de cantigas que incorporam 10 elementos de diferentes origens. São as mães negras que moldam o duro português adotado como língua nos processos de socialização instaurado entre elas e os nhonhôs, de forma que “a ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que fez com a comida: machucou-as, tirou-lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles” (FREYRE, 2006,p.414). Ela transgrediu a linguagem geral, a fala solene de gente grande e cunhou outro modo de lidar com a língua, para tanto contou com a anuência de seus cúmplices. Mães negras e mucamas, aliadas aos meninos, às meninas, às moças brancas das casas-grandes, criaram um português diverso do hirto e gramatical que os jesuítas tentaram ensinar aos meninos índios e semibrancos, alunos de seus colégios; do português reinol que os padres tiveram o sonho vão de conservar no Brasil (FREYRE, 2006,p.415). Em oposição à severidade das aulas ministradas pelos padres jesuítas, ao ritmo da vara e da palmatória, eram bem aventurados os meninos que aprendiam a ler e a escrever com professores negros, doces e bons, sendo poupados dos rituais tirânicos, que lhe eram impostos pelos jesuítas, com o propósito de incorporar nos meninos os modos civilizados do além mar. Em contraste ao tom dócil e dengoso presente na linguagem das mucamas, os estrangeiros que estiveram no Brasil em meados do século XIX, indicam que a fala estridente e desagradável das brasileiras é a manifestação da prática de falarem aos gritos, dando ordem às escravas, um “circuito compulsório dentro do qual sempre o sujeito de maior poder, num dado momento, estava a exercê-lo sobre outrem”. (FREITAS, 2008, p.179). Um indício a mais na revelação da reprodução do princípio do poder exercido pelo “homem feito”, expressão da sociedade patriarcal. A obra Casa Grande & Senzala é rica em exemplos que descrevem a tirania e o sadismo presente também entre as mulheres e crianças brancas, que na escala de reprodução tinham os escravos como destinatários das atrocidades. No relato de viajantes descrito ao longo da obra, há exemplares de requintes de crueldade: [...] Sinhás moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-las à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro de uma compoteira de doce boiando em sangue ainda fresco [...] ou mandavam-lhe cortar os peitos, arrancas as unhas, queimar a cara ou as orelhas. [...] O motivo, 11 quase sempre, o ciúme do marido. O rancor sexual. A rivalidade de mulher com mulher (FREYRE, 2006,p.421). A fúria das mulheres brancas destinada às mucamas era a “válvula de escape”, da relação de submissão e indiferença que também eram vítimas e seguiam reproduzindo num ciclo vicioso em diferentes escalas e gestos. É destacado o isolamento árabe e a submissão muçulmana das sinhá-donas diante dos maridos, a quem temiam e a eles se dirigiam como “Senhor”. Não por acaso que os anos de matrimônio fossem matando antecipadamente a alegria, a beleza e o frescor das sinhá. Por sua vez, os meninos precocemente assumiam a posição de mando, eram estimulados aos olhos indulgentes dos pais, ao exercício da tirania e ao intercurso sexual, reproduziam em suas brincadeiras a condição de futuros senhores de engenho. Dos cinco aos dez anos eram descritos como meninos-diabo, recebiam um escravo do mesmo sexo e de idade aproximada que se tornava seu camarada e brinquedo. Nas brincadeiras, muitas vezes brutas, dos filhos dos senhores de engenho, os moleques serviam de tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram bestas de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas. Mas principalmente cavalos de carro. Ainda hoje, nas zonas rurais menos invadidas pelo automóvel, onde velhos cabriolés de engenho rodam pelo massapê mole, entre os canaviais, os meninos brancos brincam de carro de cavalo ‘com moleques e até molequinhas filhas das amas’, servindo de parelhas. Um barbante serve de rédea; um galho de goiabeira, de chicote. (FREYRE, 2006, p.419) A conduta estabelecida nas casas-grandes e senzalas regidas pelo patriarca, senhor de engenho, secundarizando o lugar da criança e da mulher, acabam por demarcar de forma substancial das relações entre mulheres brancas e escravas, entre crianças brancas e escravas, e entre mulheres e crianças, e revelam os impasses engendrados na decadência do modelo escravocrata, resquício do período imperial e a constituição da República, que acena com um novo código de conduta das relações. A população que começava a se avolumar nas cidades em processo de urbanização e industrialização precisava formar os novos quadros que definiriam os rumos do país. Diferente da lógica de dependência da monocultura e da escravidão, presente no Brasil agrário, que consegue burlar o poder da igreja e manter os ditames da família patriarcal no recôncavo do interior do país, o Brasil em processo de industrialização e 12 urbanização clamava pela modernidade, onde o fortalecimento do Estado/Nação, enquanto agente regulador, necessitava criar dispositivos de controle mais eficientes. A Igreja conservadora, sobretudo a católica, enfrenta limites na tarefa de constituir uma nação progressista e ordeira. A família tem lugar de destaque no final do século XIX. O ideário de que a mulher, mais precisamente a mãe, é “predestinada” a ser educadora natural da infância toma corpo. É preciso educar os quadros para nova sociedade e esta começa na família, que é um espaço privilegiado de socialização. Mas como se desvencilhar dos vestígios de uma tradição escravocrata que subjugou durante tanto tempo a mulher, a criança e o escravo, além de influenciar na diversidade das práticas instituídas na vida domestica? Toma espaço no discurso da República “a promoção de um novo modelo de feminilidade - a esposa-dona-de-casa-mãe-de-família e a preocupação com a infância, convertida em potencial riqueza da nação” (OSTETTO, 1990, p.109), a qual se associa a expansão da escola que objetiva um alcance de padronização e ordenação, necessário ao desenvolvimento da Nação que a igreja e a família não conseguem atingir. CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra Casa Grande & Senzala nos auxiliou a compreender as transformações ocorridas no interior da sociedade patriarcal escravocrata e rural que não se consolidaram de forma abrupta e total. O estudo mostrou que nas cidades em processo inicial de urbanização e industrialização as mulheres e as crianças, também estavam a margem do processo. Apesar do esforço de “conciliação”, da “confraternização”, do “equilíbrio dos contrários” empreendido por Freyre ao longo da obra, ele naturaliza na família patriarcal a condição de submissão da mulher e da criança, os quais reproduzem a relação de dominação sobre os menos favorecidos (as mulheres negras e as crianças negras). Logo, é este o lugar reservado às crianças e às mulheres no contexto da obra. No lento processo de mudança social, os elementos de transformação e permanência confrontaram-se quase infinitamente e alguns permanecem a sombra, sempre prontos para nos assaltar em gestos, palavras e escolhas. Gilberto Freyre nos oferece uma versão da constituição da “brasilidade”, que engendra o ser homem, mulher e criança nos dias de hoje. 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. BURKE P. Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 1-12, out de 1997. 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