Uma Infância Entre Rousseau e Freud Anderson Beltrame Pedroso1 Edson Luiz André de Sousa2 Resumo: Na atualidade, a agressividade e a sexualidade são elementos que constituem a idéia de infância. Sem dúvida a cultura ocidental deve este fato à contribuição psicanalítica. Neste pequeno ensaio pretendemos indicar uma perspectiva de compreensão da forma como a evolução histórica dos discursos permitiu que estes elementos se ligassem aos conceitos de cultura e, conseqüentemente, de mal-estar. Para isso, centraremos nossa análise no pensamento de dois autores, sem pretender com isso exaurirmos os argumentos com relação ao tema: em primeiro lugar tomaremos alguns pontos da obra de Jean-Jacques Rousseau, por ser este um representante do início do pensamento moderno e cuja obra foi capital para cunhar um conceito de infância; em segundo lugar analisaremos alguns elementos da teoria freudiana, pois entendemos que Freud operou uma torção da relação do infans com o laço-social, produzindo um deslocamento do primeiro de uma posição passiva para uma posição de autoria no processo de constituição da subjetividade. Para alcançar o objetivo almejado, propomos uma desconstrução dos discursos de ambos os autores, procurando deixar evidentes os pontos-cegos em que as concepções de sujeito, e conseqüentemente as concepções de infância, se ligam às idéias de estado de natureza, liberdade e propriedade (em Rousseau) e sexualidade infantil e agressividade (em Freud). A retomada da obra destes autores visa assinalar os traços que, no devir histórico, foram adquirindo força e delimitando um campo do “infantil”; todavia, como a experiência psicanalítica nos ensina, a retomada do passado é o que permite a ressignificação de certezas enrijecidas e a abertura do presente para a construção do novo. Palavras-chave: infância, psicanálise, laço-social ▬♦▬ Este pequeno ensaio propõe apresentar algumas reflexões iniciais para uma aproximação do campo psicanalítico e do campo da filosofia política. Trata-se de uma apresentação prematura que visa indicar a infância como um ponto de diálogo entre as obras de Rousseau e Freud. Jean-Jacques Rousseau foi um filósofo do século XVIII que no ano de 1762 publicou O Contrato Social e também um tratado pedagógico intitulado Emílio, ou, Da Educação. As duas obras alcançaram rapidamente muita popularidade em vários países da Europa e suscitaram muitas críticas. Será, contudo, sobre esta última que centraremos nossa análise. A tese do livro é uma proposta de educação negativa ou da natureza, que contrariava em muitos aspectos as práticas pedagógicas da época e, mais 1 Psicólogo, Especialista em Direitos da Criança e do Adolescente (FMP/RS), Mestrando do PPG em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: [email protected] 2 Psicólogo, Doutor em Psicanálise e Psicopatologia (Université Paris VII – Université Denis Diderot), Pós-Doutor pela Université Paris VII e pela EHESS, Analista membro da APPOA, Professor do PPG em Psicologia Social e Institucional e do PPG em Artes Visuais (UFRGS). do que isso, seus objetivos e razões. O Emílio é, portanto, um texto construído contra o espírito do seu tempo, é o projeto de uma outra forma de sociabilidade (questionamos, todavia, se sobrevive à crítica de Rousseau algo que possamos chamar sociedade). Seu alvo é o homem natural; só e em harmonia com a natureza. Já nas primeiras páginas da obra, o autor justifica seu intento defendendo a peculiaridade do infantil; uma primeira crítica à concepção de homem e à política de sua época: Apesar de tantos escritos que, segundo dizem, só têm por fim a utilidade pública, a primeira de todas as utilidades, que é a de formar os homens, ainda está esquecida. [...] Não se conhece a infância; no caminho das falsas idéias que se têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem. (ROUSSEAU, 2004[1762], p. 4) Na delimitação do campo inédito de sua pedagogia, Rousseau parte da idéia de natureza e a coloca no fundamento de seu conceito de infância. Reconhece a fraqueza, a estupidez e a carência da criança quando comparada com o adulto e diz que tudo o que ela adquire no seu amadurecimento lhe vem da educação; distingue, contudo, entre a educação da natureza (o desenvolvimento interno de seus órgãos e faculdades), a educação dos homens (o uso que lhe ensinam a fazer desse desenvolvimento) e a educação das coisas (a aquisição de sua própria experiência sobre os objetos). Na construção de seu projeto, coloca como alvo a natureza, pois, “já que o concurso das três educações é necessário para a perfeição delas, é para aquela quanto à qual nada podemos que é preciso dirigir as duas outras” (ibid., p. 9). Defende que a educação deve partir da educação dos órgãos do sentido; afinal são eles a porta de entrada das experiências na alma das crianças. E que só depois estas experiências poderiam transformar-se em idéias. Diz: Nascemos sensíveis e, desde o nascimento, somos afetados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam. Assim que adquirimos, por assim dizer, a consciência de nossas sensações, estamos dispostos a procurar ou a evitar os objetos que as produzem, em primeiro lugar conforme elas sejam agradáveis ou desagradáveis, depois, conforme a conveniência ou inconveniência que encontramos entre nós e os objetos, e, enfim, conforme os juízos que fazemos sobre a idéia de felicidade ou de perfeição que a razão nos dá. Essas disposições estendem-se e firmam-se à medida que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos; forçadas, porém, por nossos hábitos, elas se alteram mais ou menos segundo nossas opiniões. Antes de tal alteração, elas são o que chamo em nós a natureza. (ibid., p. 10-11) Para Rousseau, seguindo a trilha inaugurada pelo pensamento de Locke, a criança nasce sem conhecimento algum, “nem mesmo o sentimento de sua própria existência” (ibid., p. 46). Suas percepções iniciais são somente as de prazer e de dor e a partir delas a criança forma “aos poucos as sensações representativas que lhes mostram os objetos exteriores a elas” (ibid., p. 49). Para ele, a condição infantil pode ser caracterizada como miserável já que o descompasso entre a sua força e a sua vontade é intransponível sem a ajuda de um outro que a assista. Desta forma, considera o choro do infans uma expressão tanto da sensação de dor quanto da condição de “miséria” e da “fraqueza” (ibid., p. 53) do homem, um ponto incontornável marcado pela insuficiência das forças da criança e pela necessária dependência dela do cuidado dos adultos – a ama-de-leite e o preceptor –, todavia, um ponto determinante para a arquitetura do projeto educacional baseado na natureza. “Desse choro, que acreditaríamos ser tão pouco digno de atenção, nasce a primeira relação do homem com tudo o que o cerca. Aqui se forja o primeiro elo da longa cadeia de que é formada a ordem social” (ibid., p. 45). Essa passagem, da condição de fraqueza, de miséria e de dependência à ordem social marca a passagem da idéia de natureza à idéia de liberdade na obra rousseauniana. Seguindo a linha de raciocínio do autor, junto com o desenvolvimento das forças, que marca o amadurecimento da criança, desenvolve-se o conhecimento (inclusive a consciência de si). Porém, junto a esse conhecimento podem se somar os vícios inerentes ao estado civil. Sua crítica é de que a dependência recíproca dos homens entre si e de cada um com a coletividade dos homens restringe a liberdade. Portanto, segundo ele advoga, para a formação do homem natural e livre, desde seu nascimento sua relação com o mundo tem de ser mediada pelo preceptor, para que este possa protegê-lo dos vícios e mantê-lo no estado puro de natureza. Tudo há de ser controlado para que não surja em sua alma nem a imaginação nem o desejo, pois: É na desproporção entre os nossos desejos e as nossas faculdades que consiste a nossa miséria. [...] Em que, então, consiste a sabedoria humana ou o caminho da verdadeira felicidade? [...] Trata-se, pois, de diminuir o excesso de desejos relativamente às faculdades, e de igualar perfeitamente a potência e a vontade. Somente então, estando todas as forças em ação, a alma permanecerá tranqüila e o homem se encontrará bem ordenado. [...] É a imaginação que amplia para nós a medida dos possíveis, tanto para o bem quanto para o mal e, por conseguinte, provoca e nutre os desejos com a esperança de satisfazê-los. [...] Quanto mais o homem tiver permanecido próximo à sua condição natural, mais a diferença entre as suas faculdades e os seus desejos será pequena e, conseqüentemente, menos distante estará de ser feliz. [...] O mundo real tem seus limites, o mundo imaginário é infinito. Já que não podemos ampliar o primeiro, reduzamos o segundo, pois é unicamente da diferença entre eles que nascem todos os sofrimentos que nos tornam realmente infelizes. (ibid., p. 74-75). Disso, Rousseau conclui que a única experiência que conduz à liberdade e, portanto, aquela que deve ser proporcionada à criança é a da impotência. Para o filósofo, aos olhos do preceptor, as manifestações de dor ou desconforto da criança são transparentes. Não há, em seu texto, margem para leitura ou interpretação da necessidade da criança por parte dos adultos – empregando sentido a essas manifestações. Dessa perfeita adequação depende a impressão, no espírito da criança, das idéias de justiça e injustiça, de domínio e servidão, e de bom e mau; isso equivale a dizer que não há para Rousseau na natureza a idéia do mal. Do estado de pureza original, o autor depreende que a única paixão natural é o amor-próprio que, por se referir a si mesmo, lhe é útil já que todos os movimentos naturais se relacionam inicialmente com a sua conservação e seu bem-estar. O objetivo da educação é, ao fim, preservar a criança em seu estado de liberdade natural (conservando-a no exato ponto de equilíbrio entre suas forças e suas vontades) para que o homem possa exercê-la com a razão. Para o êxito desse processo, corroborando com um aprendizado pela experiência, Rousseau afirma que “a primeira idéia [...] que lhe devemos dar [à criança] é menos a de liberdade do que a de propriedade, e, para que possa ter essa idéia, é preciso que ela tenha algo de seu. [...] Trata-se, pois, de voltar à origem da propriedade, pois é de lá que a primeira idéia deve nascer” (ibid., p. 104). Seria esta idéia o que lhe daria acesso à compreensão de si mesmo, de sua força, de seu trabalho e de sua liberdade. Para compreender o conceito de infância que Rousseau propõe nessa obra, cremos que entender a co-dependência das idéias de natureza, liberdade e propriedade é fundamental na medida em que este tripé opera a ruptura que seu pensamento propunha com relação ao espírito de seu tempo. Menos de um século e meio depois da publicação do Emílio, um texto freudiano produziu uma torção do conceito de infância: referimo-nos ao segundo dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1996[1905]). Esta torção operou um deslocamento ao apontar os movimentos de tensão entre prazer e desprazer evidentes nas manifestações da sexualidade infantil. Apoiadas em “funções somáticas vitais”, sob o domínio de zonas erógenas específicas e tendo por alvo o próprio corpo estas manifestações abriram caminho para o estudo da dimensão econômica (pulsional) do psiquismo, do desvelamento de auto-erotismo que baliza o princípio do prazer e, conseqüentemente, do conceito de narcisismo. Já em Formulações Sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico (FREUD, 2004[1911]) o autor assinala que na passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade não há uma supressão do primeiro; trata-se antes de um prolongamento de um ao outro, preservando o objetivo de alivio das tensões experienciadas como desprazer. Esta afirmação foi repetida por Freud em outros termos em O Mal-Estar na Cultura (FREUD, 2010[1930]), definindo ser a busca pela felicidade a finalidade e o propósito da vida. Porém, numa crítica que em muito se assemelha à crítica rousseauniana, ele identifica, não sem espanto, na vida em sociedade uma das fontes de impedimento deste objetivo: Uma grande parte de nossa miséria é de nossa chamada cultura; seríamos muito mais felizes se desistíssemos dela e retornássemos às condições primitivas. Eu a chamo de espantosa porque – seja como for que se defina o conceito de cultura – é certo que pertence justamente a essa mesma cultura tudo aquilo com que tentamos nos proteger da ameaça oriunda das fontes de sofrimento (FREUD, 2010[1930], p. 81) Porém, esta “condição primitiva” do ser humano remete à experiência de desamparo e, frente a ela, a possibilidade de experienciar a felicidade está fadada ao fracasso se não houver a intervenção de um outro que se ocupe do cuidado do bebê humano. Além disso, outro problema se coloca, tornando o debate ainda mais nebuloso: dos significantes necessidade e desejo. Rousseau afirma que a natureza que deve ser preservada no homem é a que limita as suas necessidades às suas forças. Contudo, não poderíamos dizer que justamente, por se tratar de uma relação entre a criança e os objetos desde sempre atravessada pela voz, pelo olhar ou pela força de um adulto que exerce as funções mais essenciais de cuidado – trate-se aqui da mãe, do pai, da ama-deleite ou do preceptor – se trataria não de necessidade, mas de desejo. Não seria esta condição de transmissão de um desejo, sempre remetida a um Outro, o que humaniza o humano? Não seria ela o que instaura essa ordem propriamente política da existência? E, por último, seria ela correlativa à ordem civil, que Rousseau recrimina como fonte de todos os vícios? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FREUD, Sigmund. Formulações Sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico. In: ______. Escritos Sobre a Psicologia do Inconsciente. Vol. 1. Rio de Janeiro, RJ: Imago Ed., 2004. ______. O Mal-Estar na Cultura. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. ______. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: ______. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.