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O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO PRESSUPOSTO
FUNDAMENTAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Felipe Dalla Vecchia (UNESP- Franca)
Riva Sobrado de Freitas (UNESP – Franca)
1 INTRODUÇÃO
O escopo principal do trabalho consiste em tecer explanações acerca do
princípio da igualdade em vigor no Brasil pela Constituição Federal de 1988,
explicitando sua fundamentalidade no contexto do Estado Democrático de Direito,
em que se proclama a República Federativa do Brasil no art. 1º do referido diploma
legislativo. Para tal, algumas etapas hão de cumprir-se.
Inicialmente e de modo a situar o leitor no tema abordado, expor-se-ão as
concepções de igualdade em três correntes filosóficas, quais sejam: nominalista,
idealista e realista, cuja adoção variou ao longo da história do pensamento
constitucional brasileiro. Trata-se de uma análise preliminar das principais formas
de tratamento da igualdade que constituíram influxos ao constitucionalismo
brasileiro essenciais à investigação do princípio da igualdade adequado ao
Estado Democrático de Direito, fundado na República Federativa do Brasil pelo
artigo primeiro da Constituição Federal de 5 de Outubro de 1988.
Intrinsecamente a esta configuração de Estado reside o desígnio de
transformação do status quo, cujo objetivo consiste em proporcionar-se o bemestar de toda a população, conforme apontam os objetivos fundamentais do
Estado Brasileiro, arrolados no artigo terceiro de sua Lei Maior. Para tanto, a
igualdade, prevista duplamente no caput artigo 5º do referido Estatuto, constitui
um pressuposto fundamental. Logo no início do dispositivo encontra-se a
prescrição de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza”.
Com isso, não se almeja o estabelecimento da igualdade jurídicoformal proveniente das Declarações Liberais do século XVIII. Nesta, o
160
tratamento homogêneo dos indivíduos perante a lei contrariamente constituía
agravante da desigualdade, principalmente econômica, ao proporcionar a
distribuição indiscriminada de bens e direitos a toda a população, beneficiando
tanto os necessitados como os abastados. Em verdade, com esta pretende-se
tolher as discriminações odiosas e as injustificadas concessões de privilégios.
Alhures, o mesmo dispositivo confere a todos o direito à igualdade,
referindo-se à sua materialização, auferida, paradoxalmente, ao tratar-se
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se
desigualam. A observância conjugada destes dois aspectos da igualdade
reveste-se de capacidade para proporcionar sua substancialização, mesmo
que para tal haja a necessidade de provocar-se a intervenção jurisdicional.
2 CONCEITOS DE IGUALDADE
Desde o nascimento, os seres humanos apresentam disparidades entre si,
diversificando-se em homens e mulheres, brancos e negros, altos e baixos, ricos e
pobres, portadores e não-portadores de deficiência, dentre outros, havendo, ainda,
extraordinária variação entre esses pólos (VIEIRA, 2006, p. 281). Por outro lado, tais
seres encontram-se envoltos por certa unidade, conferida pelo pertencimento à
mesma espécie.
Tendo em vista essas duas constatações, seria possível pretender-se o
estabelecimento da igualdade entre os indivíduos, ou estaria esta completamente
obstaculizada pelo antagonismo que envolve tais aspectos da existência humana?
Na busca pela resposta a esta questão, destacam-se três correntes filosóficas
principais, nomeadamente o nominalismo, o idealismo e o realismo (FARIA, 1973,
p. 36).
O estudo dos aludidos três conceitos reveste-se de importância primordial
ao tratamento prático da igualdade e, conseguintemente, também à configuração do
perfil constitucional de determinado Estado, uma vez que, dotados da capacidade
de influir sobre a inteligência dos indivíduos, os conceitos formulados refletem-se
nas atitudes e manifestações dos Poderes Públicos e também dos particulares.
(MARITAIN, 1960, p. 115, 116).
2.1 CORRENTE NOMINALISTA
161
Assim como o empirismo ou o sensualismo, a corrente nominalista atribui a
capacidade de conhecer exclusivamente aos órgãos dos sentidos, os quais seriam
responsáveis pela interação entre o objeto do conhecimento, e a inteligência do
sujeito cognoscente. Assim, o conhecimento, para os adeptos desta corrente,
corresponderia à instantânea reprodução de objetos ou fatos concretos na
consciência daqueles que os contemplam.
E, conforme considera a corrente nominalista, precisamente nesta espécie
de interação se esgota a capacidade humana de conhecer, de modo que, se não
pode o sujeito cognoscente relacionar-se com o objeto ou fato concreto por meio
dos sentidos, não há como conhecê-lo. Somente se conhece, pois, o que se reveste
de materialidade.
Dentre os adeptos desta corrente destaca-se John Locke, quem
argumenta a favor da experiência como a única fonte de conhecimento da
realidade1 em fins do século XVII, na obra intitulada Ensaio sobre o entendimento
humano:
Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel
branco, desprovida de todos os caracteres sem quaisquer idéias;
como ela será suprida? [...] De onde apreende todos os materiais
da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da
experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela
deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. (LOCKE, 1983,
159)
Por experiência compreende-se a interação entre o sujeito e o objeto do
conhecimento, o qual será auferido pelo primeiro através de um processo que o
mencionado pensador denomina sensação. Trata-se, desta forma, do processo
pelo qual os órgãos dos sentidos apreendem as características dos objetos ou fatos
oriundos do mundo sensível e os transportam para a inteligência, produzindo-se,
pois, o conhecimento daquilo que se apresenta externamente à mente humana
(LOCKE, 1983, 160).
A mais alta expressão da concepção sobre o conhecimento humano em
foco reside em David Hume, quem considera que mesmo noções abstratas como
o tempo e os números não podem provir de criações autônomas do
pensamento. Tais idéias, assim como todas as demais, surgiriam a partir da
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reprodução de objetos ou fatos concretos sensorialmente apreendidos, com
uma peculiaridade: a repetição com que as apreende a inteligência humana.
Ou seja, a freqüência com que determinados fatos concretos
apresentam-se perante os sentidos faz suscitar na inteligência uma relação
apartada dos acontecimentos em que se baseiam, a qual não recebe respaldo
do filósofo em apreço por considerá-la proveniente de uma extrapolação da
capacidade cognoscente humana, conforme ele próprio assevera:
[...] embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade
ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso,
que ele está realmente confinado dentro de limites muito
reduzidos, e que todo poder criador do espírito não ultrapassa
a faculdade de combinar, de transpor, de aumentar ou de
diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e
pela experiência. (HUME, 1996, p. 36)
Indubitavelmente, concepções como estas, apregoadas pelas correntes
nominalista, empirista e sensualista revelam conseqüências práticas no tocante
à validade e eficácia do princípio da igualdade.
Por basearem o conhecimento humano estritamente no que a
experiência sensível pode auferir por intermédio dos órgãos dos sentidos, os
adeptos da corrente nominalista não crêem que exista a igualdade pelo fato de
esta constitui-se em um conceito, um ente abstrato. A existência desta estaria
restrita à de seu nome, de modo que toda a sua realidade seria a de mera
palavra ou flatus vocis.
Por conseguinte, nega-se qualquer unidade entre os indivíduos, conforme
ilustra Jacques Maritain:
Mesmo se reconhecem que a natureza humana é comum a
todos os bípedes sem penas, não há para eles, de facto, mais
do que uma simples afirmação verbal que não possui nenhum
conteúdo de realidade própria e não descobre no seu campo
de visão nenhum horizonte de ser e de vida a contemplar e a
honrar. (1960, p. 110)
Ademais, o contato com a realidade circundante revela a coexistência de
homens e mulheres, brancos e negros, altos e baixos, gordos e magros, ricos e
pobres, portadores e não portadores de deficiência, dentre outros. Deste modo, a
corrente nominalista considera que a desigualdade caracteriza a espécie humana,
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tal posicionamento acaba por justificar a existência de privilégios, sejam eles de
nascimento, de riqueza ou os atribuídos à elite que detém o poder.
Pode, deste modo, constituir-se em base ideológica para teses racistas,
como a proclamada pelo nacional-socialismo (FARIA, 1973, p. 37), cuja ideologia
pregava a superioridade de determinado grupo de seres humanos, aos quais
atribuía a qualidade de superiores às demais “raças humanas”, conforme
usualmente referiam-se a outros grupos, compostos por indivíduos em que
inexistiam as características aludidas.
A elaboração destas falsas hierarquias, assentadas em critérios
pseudo-científicos ensejava diretamente não somente o menosprezo pela idéia
de igualdade entre todos os indivíduos humanos como o incentivo ao
desrespeito a todos aqueles que não preenchessem as características que
obrigatoriamente deveriam apresentar os homens considerados superiores.
Segundo, novamente, Jacques Maritain:
É assim que uma das teses racistas proclamadas em
Nuremberg declarava que há ”uma maior distância entre as
formas mais baixas chamadas humanas e as nossas raças
superiores do que entre o homem mais inferior e os macacos
mais desenvolvidos”. (1960, p. 117)
Tendo em vista que um indivíduo aprende sem grande esforço os
modelos cognitivos de sua cultura, logo a ideologia de menosprezo ao ser
humano recebeu acolhida pela vasta maioria das pessoas sobre as quais o
nazismo exercia sua influência, funcionando como verdadeiro axioma, ou seja,
como uma norma inquestionável a serviço da elaboração de odiosas ordens
morais. (GOLDHAGEN, 1997, p. 39 e ss)
Sabendo-se que contra as coletividades consideradas inferiores
verificavam-se desde agressões verbais e físicas, medidas legais e
administrativas de isolamento, incentivo à emigração e deportação forçada, até
a submissão a trabalho escravo e matanças através de fome e doenças
(GOLDHAGEN, 1997, p. 150), não restam dúvidas a respeito do perigo de uma
concepção nominalista da igualdade justificar a supremacia do mais forte sobre
o mais fraco.
Deste modo, não se pode nem sequer pretender uma discussão acerca
da adequação ou inadequação do conceito de igualdade produzido por esta
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corrente gnosiológica às características informadoras do Estado Democrático
de Direito, vez que a última reputa-se inexistente. No entanto, considerar
inexistente a igualdade agride frontalmente a configuração de Estado vigente
no Estado brasileiro, e isto se pode considerar inadmissível perante a
Constituição Federal Brasileira de 1988.
2.2 CORRENTE IDEALISTA
Em posição diametralmente oposta ao Nominalismo, a corrente idealista
sustenta que para conhecer determinado objeto ou fato não basta que este apareça
na consciência, sendo necessário que se faça uma reflexão acerca deste objeto. E,
tendo em vista que a reflexão é feita de maneira subjetiva, a verdadeira natureza do
objeto consiste em um produto do sujeito.
No tocante à igualdade, importa salientar a maneira como esta corrente
gnosiológica responde à querela dos universais, âmago de controvérsias que
objetivam responder à questão de se os conceitos existem somente de maneira
abstrata, isto é, em nível de pensamento, ou se os mesmos materializam-se fora da
consciência humana.
E pelo fato de o Idealismo conferir validade exclusivamente ao
conhecimento produzido através da reflexão, pode-se afirmar que aqueles que
pensam desta maneira, o conceito de humanidade realmente existe e aplica-se a
todos os indivíduos indistintamente, independentemente de suas características
físicas e mentais individuais. Deste modo, o conceito idealista de igualdade prega a
unidade absoluta entre os seres humanos, o que não significa o desconhecimento
da existência de desigualdades, mas sua recusa. (MARITAIN, 1960, 119 e 120)
Tanto que um dos maiores adeptos desta concepção de igualdade, o
pensador francês Jean Jacques Rousseau reconhece duas espécies de
desigualdades. A primeira, denominada natural ou física, conforme definição do
próprio filósofo, “consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e
das qualidades do espírito ou da alma”. (ROUSSEAU, 1999, 159) A outra, moral ou
política, tem origem a partir de convenção entre os homens e corresponde aos
diferentes privilégios conferidos a poucos em prejuízo dos demais, a exemplo da
riqueza e do poder. (ROUSSEAU, 1999, 159)
O extremo da concepção idealista de igualdade reside em Platão.
165
Considera-se Platão um idealista devido à divisão que este filósofo faz
entre o mundo sensível e o mundo inteligível, e a priorização deste sobre
aquele no que diz respeito à busca pela compreensão da realidade. O primeiro
corresponderia ao mundo real, no qual predominam objetos e fatos concretos,
efêmeros e variáveis, aferíveis a partir dos órgãos dos sentidos, enquanto o
mundo inteligível consistiria em um mundo eterno e imutável, em que
predominam as respectivas essências do que se pode verificar no mundo
sensível.
Pontes de Miranda melhor explica a aludida divisão entre estes
mundos:
Temos diante de nós um cão, que acabas tu de trazer-nos, e
também tua mulher e um livro. Platão ensinou que a verdadeira
essência é “cão”, “mulher”, “livro”, isto é, as Ideas, e que o cão que
me trouxeste, a tua mulher e o livro, cão que nasce, cresce, se
transforma e morre, mulher que nasce, passa pelas idades
humanas, envelhece e deixa de ser, livro que se compõe, se
imprime, pode ser queimado e desaparecer, não são parte do
mundo do “verdadeiro ser”. São o cão, a mulher e o livro do mundo
dos sentidos. Reproduzem, apenas transeuntemente, na sua
precariedade ínfima, no seu quási-nada, as múltiplas Ideas. (1937,
17)
E refletindo acerca dos requisitos para que se torne possível definir
determinada coisa, o que presume o conhecimento da mesma, Platão elenca
dois principais, denominados princípios da identidade, pelo qual uma coisa é aquilo
que é e não outra, e da permanência, o qual exige que a coisa sempre se conserve
do mesmo modo. Como nenhum desses princípios aplica-se às coisas concretas do
mundo sensível, dotadas de variabilidade e efemeridade, o filósofo considera o
mundo das idéias como aquele em que residem os seres verdadeiros, idênticos a si
mesmos e não sujeitos a mudanças. (ARANHA; MARTINS, 2005, p. 108)
Esta forma de pensar exerce ponderosos influxos sobre a igualdade. Isto
porque as dissemelhanças que se aferem entre os diversos exemplares da
espécie humana, ademais das variações verificáveis desde o momento em que
vêm ao mundo sensível, provêm de constantes alterações e mutações, o que
representa fenômenos adversos ao conhecimento verdadeiro, de acordo com a
concepção em apreço.
Estas diferenças entre os seres humanos se podem comparar com
sombras projetadas na parede de uma caverna2, ou seja, reproduções
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imperfeitas do verdadeiro objeto, o qual corresponderia ao homem perfeito,
inteligível, universal e imutável, verdadeira essência dos indivíduos reais e fonte da
unidade entre os mesmos. Destarte, passa-se a encarar a igualdade entre os
seres humanos de maneira absoluta, uma vez que toda a carga de realidade
transfere-se a este homem ideal, ao qual todos os indivíduos apresentam-se
iguais e, por conseguinte, iguais entre si.
E por considerar que ente os indivíduos humanos existe uma igualdade
absoluta, Platão identifica algumas conseqüências que se deveriam manifestar
no mundo sensível, como a igualdade do processo educacional, a ausência de
propriedade privada e a comunidade de habitações, refeições e até mesmo de
mulheres e filhos, conforme se verifica em trecho da obra A República:
Que as mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e
nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por
sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão que
são os seus próprios filhos, nem os filhos os pais. (1949, p.
224)
Conforme mencionado, Rousseau e Platão, assim como os demais
idealistas, recusam tais disparidades, sob alegação de que, por integrarem a
mesma espécie, haveria a igualdade entre os seres humanos. Trata-se, pois, de
igualdade pura e simples, aritmética, em que não há lugar para a idéia de proporção
ou distribuição. (MAIRTAIN, 1960, 123 e 124)
A concepção idealista de igualdade caracteriza o Estado Liberal de Direito
instituído na Europa após as Revoluções burguesas. Nesta configuração de Estado,
a regulamentação da igualdade verifica-se a partir da laicização da máxima cristã
pela qual todos são iguais perante a Deus, dando origem àquela que preceitua
serem todos iguais perante a Lei.
Afere-se, deste modo, que estas idéias serviram de base para a elaboração
das Declarações de Direitos, típicas do contexto social e jurídico da época.
Entretanto, apesar de muito significativa no tocante à instituição da igualdade entre
os seres humanos, a concepção de igualdade proveniente da corrente idealista
revelou-se insuficiente com o passar do tempo.
Isto porque, entre os indivíduos, havia uma desigualdade de ponto de
partida, de modo que a mera declaração de uma igualdade assentada no fato de
que todos são iguais em essência, sem espaço para considerações acerca das
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desigualdades fáticas entre os diversos exemplares da espécie humana acaba por
agravar tais dissemelhanças, ao invés de proporcionar uma substancial
equiparação entre os aludidos indivíduos.
Não se trata, portanto de um conceito de igualdade suficiente para o Estado
Democrático de Direito, apesar de integrá-lo, na medida em que ainda nesta
configuração estatal aos Poderes Públicos e particulares é vedada a prática de
desequiparações desmotivadas. A complementação verificar-se-á na próxima
corrente abordada.
2.3 CORRENTE REALISTA
Por fim, a corrente realista adota posição conciliadora entre o nominalismo
e o idealismo. Considera que as diferenças naturais entre os indivíduos
correspondem a todas as variedades de perfeições e virtudes das quais é capaz a
espécie humana (MARITAIN, 1960, p. 135), de forma que, ao invés de conflitarem
com a unidade que os envolve, estas a intensificam.
No que diz respeito à querela dos universais, a corrente realista considera
que os conceitos abstratos, como a humanidade – fundamental para a existência de
igualdade e unidade entre os seres humanos – possuem, ademais de uma
realidade objetiva, isto é, fora da mente, uma realidade metafísica, a qual constitui a
essência de todos os indivíduos, e da qual todos fazem parte.
Ou seja, a todos os indivíduos singularmente considerados, com todas as
diferenças observadas com relação aos seus semelhantes, cabe participação nesta
figura abstrata denominada humanidade, pelo fato de constituírem-se exemplares
da espécie humana. Assim, concilia-se a existência de desigualdades com a
necessidade de buscar-se a efetivação da igualdade, intrínseca a todos os seres
humanos.
Adotar este posicionamento significa responder considerar que nada dá a
um e tolhe de outro indivíduo o direito de gozar de satisfatórios níveis de dignidade,
visto que todos são acolhidos pela essência denominada humanidade. Por esta
razão considera-se o conceito realista de igualdade o mais adequado ao Estado
Democrático de Direito, uma vez que traz em si o sentimento de inconformidade
frente à inaptidão de alguns e as exageradas suficiências de outros no que refere à
consecução das ditas dignas condições de existência.
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Aristóteles responde por uma das mais expressivas manifestações deste
conceito. De um lado, considera fundamental à família ou ao Estado, que sua
existência se assente na unidade entre os indivíduos que os compõem. De outro,
adverte que tal unidade não pode tomar-se de maneira absoluta, aritmética, o que
equivaleria à tentativa de “fazer um acorde com um único som, ou um ritmo com
uma só medida” (ARISTÓTELES, 1995, p. 47).
Destarte, o filósofo estagirita mostra-se favorável à igualdade proporcional,
conforme se comprova pelo alerta de que “a desigualdade dos trabalhos e dos
prazeres virá despertar, naturalmente, o descontentamento por parte dos que
trabalham muito e recebem pouco, contra aqueles que mal trabalham e recebem
muito” (ARISTÓTELES, 1995, p. 42). E esta noção encontra-se clara na idéia de
igualdade material, a qual abordar-se-á adiante.3
3 A IGUALDADE FORMAL OU DE IURE
Destarte, pela investigação dos documentos políticos e ordenamentos
jurídicos ao longo da História, verificam-se distintas maneiras de se amparar a
igualdade, todas resultantes da adoção de algum desses conceitos, conforme
sugeria o contexto vigente. O primeiro a ampará-la foi a Declaração dos Direitos do
Bom Povo de Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da
América, ambas de 1776.
No tocante à influência sobre o constitucionalismo brasileiro, sobreleva-se a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada na França em 1789.
Tal ocorreu no contexto de derrocada do Absolutismo Monárquico e fundação de
um Estado Liberal de Direito neste país, resultados das reações burguesas contra
os constantes detrimentos experimentados em virtude da concessão de regalias ao
clero e à nobreza. (BOBBIO; METTEUCI, 2004, p. 605 e 606)
Proclama o referido documento, em seu artigo primeiro: “Os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem
fundar-se senão na utilidade comum”4. Com isso, pretendia-se vedar a prática
injustificada de desequiparações, tanto as proveitosas, a exemplo dos privilégios a
determinados setores sociais, como as detrimentosas, tendo em vista as
perseguições de qualquer gênero. (MELLO, 1993, p. 18)
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A partir de então, funda-se um tratamento perante a lei de caráter
puramente negativo (SILVA, 2007, p. 214). Trata-se, supostamente, do que
Norberto Bobbio denomina “igualdade de oportunidades” ou “de ponto de partida”
(BOBBIO, 1990, p. 30), pela qual o aproveitamento de determinados direitos tidos
como naturais aos seres humanos, a exemplo da vida e da propriedade, dependeria
estritamente dos méritos de cada um.
Consiste, portanto, em uma igualdade meramente formal ou de iure, a qual
esteve presente, no Brasil, na caracterização formal das instituições dos períodos
considerados
por
Paulo
Bonavides
a
primeira
e
segunda
fases
do
constitucionalismo pátrio, às quais pertencem, respectivamente, as Constituições de
1824 e 1891 (BONAVIDES, 2009, p. 361 e ss).
Na primeira, o princípio em apreço consta do artigo 173, item 13, in verbis:
“A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em
proporção dos merecimentos de cada um”. Preceitua a outra, sucintamente, no §2º
de seu artigo 72, serem todos iguais perante a lei.
No entanto, logo no século XIX, o tratamento burguês da igualdade
revelou-se insuficiente. A lei, ao conceder os mesmos direitos de forma genérica a
todos os indivíduos, terminava por ignorar suas prerrogativas ou desvantagens,
naturais ou sociais, de materialização de direitos (BOBBIO, 1990, p. 23). A contrario
sensu, pois, a igualdade formal revelou-se fonte de acentuadas desigualdades,
principalmente de natureza econômica.
4 IGUALDADE MATERIAL OU DE FACTO
A partir de tal constatação, evidencia-se a necessidade de substancializar a
igualdade no acesso aos direitos e garantias dignificadoras da pessoa humana
(BONAVIDES, 1972, p. 6 e 7). Desse modo, o tratamento liberal da igualdade,
insatisfatório quando abrigado com exclusividade nas constituições modernas,
acha-se gradativamente complementado por dispositivos de teor social.
Trata-se da tutela da igualdade material ou de facto, auferível mediante a
compensação dos natural ou socialmente hipossuficientes, proporcionando-lhes a
mesma dignidade daqueles “que nunca sofreram quaisquer restrições” (BULOS,
2009, p. 421).
170
Esta nova noção de igualdade se adequa à terceira e atual fase do
constitucionalismo
brasileiro,
denominada
por
Paulo
Bonavides
de
“constitucionalismo do Estado Social” (BONAVIDES, 2009, p. 366), cuja
inauguração deu-se sob o influxo primordial da Constituição Alemã de Weimar de
1919. Não se trata, no entanto, da renúncia às características provenientes de fases
anteriores, mas da conciliação destas com a nova realidade ou de sua incorporação
de maneira cumulativa, conforme se verá infra.
A partir da Constituição Federal de 1934, a primeira da etapa vigente,
abandona-se a mera declaração de uma igualdade aritmética e busca-se sua
concretização. Paradoxalmente, utiliza-se a discriminação como meio para tanto.
Indivíduos, coisas ou situações são amparados por regimes diferentes, com base
nas variações de determinado fator, considerado relevante aos olhos do legislador
(MELLO, 1993, p. 13).
Conforme exemplifica Oscar Vieira Vilhena, para proporcionar-se igual
respeito e consideração a uma criança, um adulto e um idoso, os tratamentos
dispensados a cada um deles não poderão ser os mesmos. Desse modo, o
princípio da igualdade aproxima-se das necessidades reais apresentadas por
grupos de pessoas, tornando-se um “regulador das diferenças”, e não mais uma
regra de igualdade e absoluta e indiscriminada, o que pode sintetizar-se no
enunciado de que “todos os Xs têm direito a Y” (VIEIRA, 2006, p. 284 e 285).
5 CRITÉRIOS PARA A EFETIVAÇÃO DA IGUALDADE MATERIAL
Mas o que difere a discriminação que proporciona a igualdade daquela que,
contrariamente, a ofende? Em um primeiro momento, tem-se a impressão de que a
legitimidade da discriminação aceitável reside no próprio traço de diferenciação
escolhido.
Essa suspeita supostamente confirma-se pela da análise de dispositivos
constitucionais como o artigo 113 da Constituição Federal de 1934, que estabelecia,
in verbis: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções por
motivos de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social,
riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”.
171
No entanto, Celso Antônio Bandeira de Mello identificou três critérios que,
se observados cumulativamente, possibilitam a utilização de qualquer elemento
residente nas coisas, pessoas ou situações como fator de discrímen.
O primeiro deles exige que este elemento não especifique o destinatário da
diferenciação a ponto de singularizá-lo. Procura-se impedir, com isso, que a
concessão de um benefício ou a imposição de uma sujeição se revelem fontes de
favoritismo ou ofensa à garantia individual (MELLO, 1993, p. 24).
Ademais, não se podem eleger quaisquer fatores alheios às pessoas,
coisas ou situações a serem discriminadas. Conforme exemplifica o próprio
Bandeira de Mello, ofender-se-ia o princípio da igualdade ao conceder “aos
magistrados ou aos advogados ou aos médicos que habitem em determinada
região do País – só por isso – um tratamento mais favorável ou mais desfavorável
juridicamente” (MELLO, 1993, p. 30).
O segundo critério consiste na exigência de haver correlação lógica e
abstrata entre o elemento tomado como fator de discrímen e a disparidade
estabelecida. Ofenderia a igualdade, verbi gratia, permitir-se somente a funcionários
gordos o afastamento remunerado para assistir a congresso religioso (MELLO,
1993, p. 38). Neste caso, não se guarda a referida correlação entre o elemento
compleição corporal e o privilégio produzido.
Por fim, o terceiro critério procura impedir que a desigualação revista de
caráter negativo situações às quais a Constituição confere conotação positiva e vice
versa. É dizer, nenhum dispositivo constitucional deve restar desacatado pela
prática da discriminação (MELLO, 1993, p. 42).
Tendo em vista que a observância de tais critérios permite que a prática de
discriminações constitua meio idôneo ao alcance da igualdade de facto, deve-se
compreender que, a exemplo já citado do artigo 113 da Constituição Federal
Brasileira de 1934, a proibição de adotar-se qualquer dos fatores de desigualação
arrolados nas Cartas aplica-se somente nas ocasiões em que originam
discriminações odiosas e preconceitos.
Exempli gratia, a atual Constituição Federal Brasileira, de 1988, trata de
maneira abrangente as desequiparações entre pessoas. No caput de seu artigo 5º
estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
Em seguida, no inciso I deste mesmo artigo, estabelece que “homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações”. No entanto, nos artigos 40, §1º, III, a e b e 201,
172
§7º, I e II, instaura a aposentadoria da mulher com menor tempo de contribuição e
idade.
José Afonso da Silva justifica tal medida considerando que a mulher que
trabalha apresenta uma sobrecarga de serviços, proporcionada pelo fato de que a
ela tradicionalmente cabem as tarefas domésticas, para a realização das quais
conta com pouca ajuda do marido (SILVA, 2007, p. 217 e 128). Destarte, os
dispositivos que à primeira vista constituiriam uma antinomia inconciliável com
princípio da igualdade, em verdade, contribuem para a distribuição eqüitativa de
dignidade social.
6 DIMENSÕES DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
Ainda utilizando-se do mesmo exemplo, podem-se demonstrar as três
dimensões que, segundo J. J. Gomes Canotilho, compõem o princípio da igualdade
no contexto do Estado de Direito Democrático, fundado no Brasil pelo artigo
primeiro da Constituição Federal de 1988 sob a denominação de Estado
Democrático de Direito.
Ao determinar que “todos os cidadãos são iguais perante a lei” e que
“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, proíbe-se a distribuição
das pessoas em diferentes classes jurídicas tendo em vista características
provenientes do nascimento e do sexo. De maneira mais abrangente, visa
proporcionar a igual posição de todas as pessoas perante a lei geral e abstrata.
Trata-se da dimensão liberal do atual princípio da igualdade, herança do Estado
Liberal de Direito (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 337 e 338).
Quanto ao tratamento diferenciado de determinado grupo de indivíduos
frente a uma situação concreta, verifica-se uma “desequiparação positiva”,
característica da dimensão social deste princípio. Esta visa a eliminação ou
atenuação das desigualdades, e a conseqüente consecução de uma igualdade real
entre as pessoas (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 337).
Por fim, a dimensão democrática visa tolher qualquer espécie de
desequiparação injustificada no tocante à participação política (CANOTILHO;
MOREIRA, 2007, p. 337).
173
A partir da conjugação destas três dimensões, aufere-se o princípio da
igualdade como o principal dentre os princípios garantidores dos direitos individuais
(MELLO, 1993, p. 45). Portanto, constitui-se um dos alicerces da atual configuração
de Estado em Democrático de Direito, o qual, de acordo com o artigo segundo da
Constituição da República Portuguesa, baseia-se:
[...] na soberania popular, no pluralismo de expressão e
organização política democráticas, no respeito e na garantia de
efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na
separação e interdependência de poderes, visando a
realização da democracia económica, social e cultural e o
aprofundamento da democracia participativa.
Diante do exposto, constata-se que a tutela da igualdade como princípio
constitucional constitui uma das mais recentes conquistas do constitucionalismo
brasileiro. Com base em Pontes de Miranda, pode-se asseverar que, de maneira
geral, o desenvolvimento dos princípios capazes de proporcionar a dignificação da
pessoa humana encontra-se a meio caminho, mesmo nos países em que a
afirmação e reconhecimento destes verificam-se nos mais elevados graus
(MIRANDA, 1953, p. 6).
Destarte, como tudo o que é novo, o princípio da igualdade necessita ser
desbravado, explorado e desenvolvido, o que seguramente mostrar-se-á frutífero
tanto no campo doutrinário como no prático. No entanto, José Afonso da Silva e
Celso Antônio Bandeira de Mello alertam que há “minguado auxílio doutrinal efetivo
em tema de igualdade” (MIRANDA, 1953, p. 12), uma vez que este não tem
merecido “tantos discursos como a liberdade” (SILVA, 2007, p. 211).
Destarte, a realização do presente trabalho justifica-se na medida em que
este se constituirá contribuição para o suprimento dessa escassez de trabalhos
sobre o princípio constitucional da igualdade, mesmo que de maneira modesta.
Ademais, tendo em vista que a pesquisa e a produção de conhecimento
doutrinário acerca da temática da igualdade constituem-se meios aptos fazer com
que esta seja observada tanto na atuação dos Poderes Públicos como nas relações
dos particulares entre si, este ensaio constituir-se-á contributo à consolidação do
Estado Democrático de Direito, do qual o princípio da igualdade é pressuposto
fundamental.
174
Por fim, há que ressaltar-se a inegável constatação de que, a negligência
do estudo e da aplicação do princípio em tela significa abrir espaço à prática de
discriminações injustificadas e, conseqüentemente, de preconceitos dos mais
odiosos gêneros.
1
Saliente-se: conhecer a realidade. John Locke identificava, ainda, uma segunda fonte de conhecimento,
denominada reflexão, pela qual a mente humana far-se-ia capaz de conhecer seus próprios procedimentos
cognitivos, o que não haveria como provir de fontes externas. Verbi gratia, o pensamento, a crença, o
raciocínio e etc. (LOCKE, 1983, p. 160)
2
Diz-se que as sombras projetam-se na parede de uma caverna devido ao Mito da Caverna, elaborado por
Platão para explicar, por meio de metáforas, como usualmente opera a inteligência humana com relação
ao conhecimento das coisas.
3
Verificar item 4.
4
No original: “Article premier: Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les
distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l'utilité commune.”
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