Ẹnú gbárijo – A boca que tudo come.
Um paralelo entre a função mítica de Èṣù e o desejo exacerbado do ser humano.
FELIPE ALVES E SILVA
OBJETIVO
O presente trabalho tem como objetivo, provocar uma reflexão sobre a força avassaladora e
desmedida dos muitos desejos humanos – desejo de ter mais, desejo de ser mais, desejo de conhecer
mais, desejo de controlar, desejo de poder – e suas consequências e efeitos sobre o mundo a sua
volta.
JUSTIFICATIVA
Esse escrito nasce de certas inquietações causadas pelas intrigantes perspectivas a cerca da
ação/ambição humana junto ao ambiente, e também nas relações interpessoais. Para Jung:
“Nós
precisamos entender melhor a
natureza humana, porque o único perigo real que
realmente existe, é o próprio homem.”
O homem já há muito, não tem consciência, e/ou não tem refletido sobre os resultados de
seus atos e ações nos âmbitos do micro e do macrocosmo, sendo guiado apenas pelas
necessidades/desejos e instintos – movimento, ora consciente, ora inconsciente – que o assemelha à
figura mítica de Èṣù, Oriṣá da comunicação e do movimento, primordialmente movido por instintos.
A partir da definição do conceito de ego por Freud, como sendo uma parte superficial do id, que
“filtra” os impulsos e desejos daí vindos, a visão de homem e de sua relação com o mundo entram
num entendimento de que tal força é contrária à razão e ao convívio social. Tal batalha consigo
próprio, leva o ser humano à exacerbação de seus atos e “quereres” em relação ou mundo e ao
outro. O ego, exigente, no afã de dominar e se sobrepor, gera no indivíduo, uma certa mania e
ansiedade, uma compulsão pelo poder, e não se vendo plenamente satisfeito nesse aspecto, leva este
a uma condição de extrema frustração, e, por vezes, graus diversos de depressão. Por outro lado, o
fato de ter nas mãos tudo aquilo que se desejou, que se planejou fazer e administrar – num momento
de inflação de ego – depara-se com as evidentes limitações, próprias de sua natureza.
Segundo Laplanche e Pontalis (1982), numa visão psicanalítica, trata-se de uma ação,
pensamento ou uma sequência complexa de comportamentos, que quando não realizados, acarretam
um aumento da angústia. Vale relembrar que a angústia ocorre quando há ausência ou insuficiência
de elaboração psíquica, que leva o sujeito a estar submetido a um afluxo de excitações, de origem
externa ou interna, que é incapaz de dominar, provocando um estado de desamparo psíquico. Ainda
nesse sentido, compulsão ou compulsivo, que vem do latim “compellere” de compelir, que impele,
que constrange, significando estar compelido, seguir um impulso, sentir-se forçado a alguma ação.
Isso me parece estar de acordo com o amplo espectro de processos compulsivos dos dias atuais. Ao
mesmo tempo em que compeli, impulsiona, vindo de uma pulsão ou estado de tensão, não se sabe o
porquê, também provoca, em alguns casos, constrangimento e angústia pela tentativa de se
evitar/controlar a situação, ou por não conseguir realizar certa ação.
Ẹnú gbárijo – a boca coletiva que a tudo come e que tudo fala – é um dos títulos de Èṣù,
divindade do panteão yorubano, que dentro de sua natureza instintiva, cumpre seu papel de devorar
tudo e todos, podendo assim promover a totalidade. Posteriormente, orientado por uma consciência
amadurecida e estruturada, e através de um pacto dorido – do qual tenta a todo custo escapar –
devolve o todo, estando dessa forma contido, pertencendo igualmente a esse todo. O Oriṣà
aproxima-se assim, sob certos pontos de vista, tanto do inconsciente, que, desde o momento do
nascimento tende a atrair para si aquele ego/consciência em desenvolvimento, numa tentativa de
manter a unidade (NEUMANN, 1996), quanto do homem na tentativa vil e frustrada – logo
inconsequente – de abarcar tudo.
Santos (2008) nos conta como se deu a criação do Oriṣá, e a determinação de sua função
mítica:
A história conta que nas remotas origens, Olódúmarè, o Senhor dos Céus e Òriṣànlá, o Grande
Oriṣà do Branco, estavam começando a criar os habitantes do mundo. Assim criaram Èṣù, que
ficou mais forte e mais difícil que seus criadores. Olódúmarè enviou Èṣù para viver com Òriṣànlá,
que o colocou na entrada de sua morada e o enviava como seu representante para efetuar todos os
trabalhos necessários. Foi então que Òrúnmìlà – o que detém o conhecimento sobre o destino –
desejoso por um filho, veio do àiyé (terra) ao òrun (céu), e foi pedir um a Òriṣànlá. Esse lhe disse
que ainda não havia acabado o trabalho de criar os seres q que deveria voltar um tempo mais
tarde. Òrúnmìlà insistiu, impacientou-se querendo a qualquer preço levar um filho consigo, ao que
Òriṣànlá repetiu que ainda não tinha nenhum. Então perguntou: “Que é daquele que vi à entrada
de sua casa?”. Òriṣànlá lhe explicou que aquele não era precisamente alguém que pudesse ser
criado e mimado no àiyé. Mas Òrúnmìlà insistiu tanto que Òriṣànlá acabou por aquiescer.
Òrúnmìlà deveria colocar as suas mãos em Èṣù e, de volta ao àiyé, manter relações com sua
mulher, que conceberia um filho. Doze meses mais tarde, ela deu à luz um filho homem e, porque
Òriṣànlá de será que a criança seria Elégbara, Senhor do Poder, o pai decidiu chamá-lo assim. E,
desde que Òrúnmìlà pronunciou seu nome, a criança, o próprio Èṣù, respondeu e disse:
“Mãe, mãe, eu quero comer preás.”
Ao que a mãe respondeu:
“Filho, come, come. Um filho é precioso como uma conta de coral vermelho, é como
cobre, é como uma alegria inesgotável, uma honra apresentável, que nos representará
depois da morte.”
Então, Òrúnmìlà trouxe todos os preás que pôde encontrar. E a criança acabou com eles. No
dia seguinte, a cena se repetiu com Èṣù pedindo e devorando todos os peixes frescos, defumados,
secos, que existiam. No terceiro dia, ele quis comer aves. Gritou e comeu até acabar como todas as
espécies de aves. E sua mãe cantava todos os dias os versos supracitados e ainda acrescentava:
“Visto que consegui ter um filho, o que acorda e usa duzentas vestimentas diferentes,
filho continue a comer.”
No quarto dia, Èṣù disse que queria comer carne. Sua mãe cantou como de hábito, e o pai
trouxe-lhe todos os animais quadrúpedes que pôde achar: cachorros, porcos, cabras, ovelhas,
touros, cavalos, etc.; até que não ficou um só, a criança não parou de chorar.
No quinto dia Èṣù disse:
“Mãe, mãe, eu quero comê-la.”
A mãe repetiu a canção, e assim, Èṣù engoliu a própria mãe. Òrúnmìlà, alarmado, correu a
consultar os Babaláwo – os Pais do Mistério – que lhe recomendaram fazer a oferenda de uma
espada, um bode, e quatorze mil cauris (búzios), e assim ele o fez.
No sexto dia depois de seu nascimento, Èṣù disse:
“Pai, pai, quero comê-lo.”
O pai repetiu a canção da mãe da criança, e quando essa se aproximou, Òrúnmìlà lançou mão
da espada e pôs-se em perseguição a Èṣù, que fugiu em direção aos céus. Quando o apanhou, no
primeiro céu, começou a seccionar pedaços de seu corpo, e espalhá-los, e cada pedaço
transformou-se em um Yangí – a pedra de laterita vermelha. Òrúnmìlà cortou duzentos pedaços
que se transformaram em duzentos Yangí. Quando Òrúnmìlà se deteve, o que restou de Èṣù ergueuse e continuou fugindo. Òrúnmìlà só pode reapanhá-lo no segundo céu e lá Èṣù estava inteiro
novamente. O pai então voltou a cortar duzentos pedaços que se transformaram em novas duzentas
pedras. Isso se repetiu nos nove céus, que assim ficaram povoados de Yangí. No último céu, depois
de ter sido retalhado, Èṣù decidiu pactuar com Òrúnmìlà: esse não deveria mais persegui-lo; todos
os Yangí seriam seus representantes e Òrúnmìlà poderia consultá-los cada vez que fosse
necessário, e enviá-los a executar os trabalhos que ele lhe ordenasse fazer, como se fossem seus
verdadeiros filhos. Èṣù assegurou-lhe que seria ele mesmo quem responderia por meio dos Yangí,
cada vez que fosse chamado. Òrúnmìlà perguntou-lhe sobre a sua esposa, a mãe que havia sido
devorada. Èṣù devolveu-a a Òrúnmìlà e acrescentou:
“Òrúnmìlà deveria chamá-lo, se ele queria recuperar a todos e cada um dos animais
e das aves que ele tinha comido sobre a terra. Assim, e só assim, Èṣù iria reavê-los das
mãos da humanidade.”
Após esse fato Òrúnmìlà volta à cidade natal e junto com sua mulher gerou muitos filhos, de
ambos os sexos que povoaram o mundo.
Como conta o itan – a história supracitada – Èṣù é o primeiro nascido da criação e, transferido
para a terra onde é concebido por um casal e num processo de expansão, se multiplica ao infinito.
Esse descendente internaliza e se identifica com todos os seres da existência – ingere não só todos
os animais como também sua mãe, ventre continente da humanidade.
De acordo com Jung (1971):
Quanto maior for uma comunidade [...]em detrimento da individualidade, tanto mais o
indivíduo será moral e espiritualmente esmagado. O resultado disto é a obstrução da única
fonte de progresso moral e espiritual da sociedade. [...] Tudo o que nele for individual
submerge, isto é, está condenado à repressão: os elementos individuais caem no
inconsciente onde, geralmente, se transformam em algo de essencialmente pernicioso,
destrutivo e anárquico.
A cultura de massas, fenômeno ainda relativamente recente na história humana, oriunda da
modernidade, se dá por meio do que conhecemos por indústria cultural. Indústria é a conjugação do
trabalho e do capital para transformar a matéria prima em bens de produção e consumo. A indústria
cultural, grosso modo, caracteriza-se por sua vez pela produção de bens culturais, disseminados
através dos meios de comunicação de massas, que impõem formas universalizantes de
comportamento e consumo. Nesse sentido, a comunicação em massa funciona como uma
articulação do sistema mercantil e industrial, influenciando na construção de uma identidade social.
Esta identidade social parece caminhar cada vez mais em desacordo com a possibilidade do
indivíduo olhar-se e ser visto segundo sua própria singularidade. E não há outra fonte para suprir
toda essa “vontade” de consumo, senão a natureza em seus mais diversos ambientes e biomas. A
“fome social” torna-se cada vez mais avassaladora e insaciável. E a humanidade tem caminhado
para engolir, a grande Mãe-Terra, o ventre primordial, aniquilando assim, inclusive a si própria.
Jung, em Resposta a Jó (2012), escreve:
“Agora é o homem que interessa: uma imensa força de destruição foi posta em suas
mãos e o problema é o de saber se ele resistirá à força de usá-lo.[...] É claro que há uma
grande diferença, subjetivamente falando, em o indivíduo saber o que ele está vivendo e
compreender o que ele está fazendo, e declarar-se responsável ou não pelo que intenciona
fazer ou já fez.”
Desse modo, assumir suas limitações e conscientizar-se cada vez mais de si, de suas relações
consigo mesmo, na assimilação da sombra e de seus elementos, e da coexistência de outras
consciências – igualmente pertencentes, integrantes e integradas ao meio – transforma os ímpetos,
os impulsos de desejo e de prazer, e minam as compulsões. A luta entre ego e Self, deixa então, de
ser uma disputa de poderes e passa a ser uma atividade contínua de crescimento.
CONCLUSÃO
De acordo com a mitologia yorubá, Èṣù contém e está contido em tudo, cada ser que habita a
terra tem seu Èṣù. O homem na tentativa de se expandir, de fazer parte, ter, controlar tudo e a outros
homens, acaba por consumir, dizimar, sorver ao máximo, o que está a sua volta, e, não se
conscientizando de que a restituição, e a reorganização harmônica do todo – extremamente
necessárias – estão além de seus “poderes” e saberes, caminha para desfecho incerto e sombrio.
REFERÊNCIAS
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia Simbólica Junguiana – A viagem de
humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo :Editora Linear B, 2008.
JUNG, C. G. AION – Estudos do simbolismo e do si mesmo, 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
__________. Arquétipos e o inconsciente coletivo, 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
__________. O eu e o Inconsciente, 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
__________. Resposta a Jó, 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Editora Martins Fontes,
4ª edição, 2001.
MARONI, Amnéris. Jung na era das catástrofes. Coleção Memória da Psicanálise, nº 2 – Jung: A
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NEUMANN, Erich. A grande mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do
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NICHOLS, S. Jung e o Tarot – Uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte – Pàe , Àsèsè e o Culto Égun na Bahia. 13. ed.
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SILVA, Felipe Alves e. Yemojá, A Grande Mãe dos Filhos Peixes – Uma breve leitura sobre
aspectos do feminino no Candomblé, a partir da Psicologia Junguiana. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Psicologia) – Faculdade Frassinett do Recife, Recife, 2012.
XAVIER Marlon. Arendt, Jung e Humanismo – um olhar interdisciplinar sobre a violência.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/sausoc/article/view/7594. Acesso em: 20/03/2014.
ZOJA, LUIGI. Carl Gustav Jung como fenômeno histório-cultural. In: Cadernos Junguianos,
Associação Junguiana do Brasil, vol 1, n 1. São Paulo: AJB, 2005.
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ENU GBÁRIJO,a boca que tudo come