PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
Palestra
Depois do Abuso Sexual
Como encaminhar e lidar com criança vítima de abuso sexual
Guilherme Schelb, Promotor de Justiça da Infância em Brasília (1992-1995), especialista em temas
da infância e juventude e palestrante em temas da prevenção da violência infantojuvenil há mais de
20 anos.
O objetivo desta palestra é orientar famílias e profissionais a lidar
com a vítima de abuso sexual, bem como encaminhar
corretamente o caso.
É preciso ter em mente que, mesmo ao lidar com a violência já
praticada, a atuação da família e dos profissionais é de grande
importância. A vítima pode sofrer novas violações de direitos se
não houver cuidados especiais ao lidar com o caso.
Caso real – A aluna de 13 anos de idade foi vítima de tentativa de
estupro na escola. O funcionário a agrediu fisicamente, mas foi
preso antes que pudesse consumar a violência sexual. Os
professores que lidaram com o caso foram muito descuidados e
revelaram os detalhes para outras pessoas. Em decorrência da
indevida divulgação dos fatos envolvendo a adolescente,
disseminou-se na comunidade que ela realmente havia sido
estuprada, o que não era verdade. Em virtude da humilhação
pública, a adolescente teve que se mudar para outra cidade.
Em muitas situações, a pretexto de obter a condenação do autor da
violência sexual submete-se a vítima a uma série infindável de
constrangimentos e humilhações.
Caso real – A criança de 4 anos de idade queixou-se com os pais
de uma dor no “bumbum”. Ao examinar o filho, perceberam que
havia escoriações e marcas no ânus da criança. Imediatamente
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
levaram o filho para a delegacia, onde lavraram ocorrência
policial acusando um determinado professor da escola onde o
filho estudava. Em seguida, submeteram a criança, que chorava
muito pela situação, a exame médico-legal extremamente
constrangedor.
Em muitos casos, não se recomenda sequer encaminhar o caso às
autoridades, pois o encaminhamento legal pode ser mais danoso
do que o próprio abuso sofrido.
Caso real – A criança de 8 anos foi corrompida por adolescente
de 16 anos, que mostrava revistas de sexo explícito à menor para
induzi-la a fazer sexo com ele. Embora abuso mais grave não
tenha ocorrido, nem qualquer outra forma de contato físico
libidinoso, não recomendamos, o encaminhamento legal deste
caso à polícia, pois a vítima sofreria indevida violação de direitos
em consequência da investigação policial – depoimento,
acareação, etc. A exposição pública de sua intimidade e imagem,
assim como o despreparo das autoridades para colher o
depoimento da criança não aconselharam o encaminhamento
legal deste caso, sobretudo porque não houve grave ameaça nem
violência física contra a vítima.
O fato de não encaminhar o caso às autoridades não significa que
o autor não possa ser investigado. Neste caso real, os pais do
adolescente foram informados da situação, e trataram o caso com
muita seriedade, inclusive submetendo o adolescente a tratamento
psicológico. Mesmo quando o abuso ocorreu há anos e o caso não
foi encaminhado devidamente na época dos fatos, é possível
alcançar a punição do autor, se houver cuidados especiais.
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
Caso real – Três crianças foram abusadas sexualmente por um
tio. Os abusos ocorreram quando tinham entre 8 e 10 anos de
idade. 5 anos depois, já adolescentes, denunciaram o abuso
praticado aos pais. O caso foi encaminhado à justiça, e o autor
dos abusos condenado a 19 anos de prisão.
Quando não é mais possível a punição do abusador ou as provas
forem muito fracas, é possível alertar as autoridades policiais
sobre a pessoa. É comum ouvirmos relatos de adultos, narrando
que foram vítimas de abusos sexuais na infância ou adolescência.
Embora, muitas vezes não se possa mais punir legalmente o autor
da violência, considerando o longo transcurso de tempo decorrido,
é possível realizar uma investigação preliminar para apurar se ele
continua a praticar abusos contra crianças. Infelizmente, muitos
abusadores são reincidentes nesta prática criminosa.
Por estas razões, é fundamental lidar com equilíbrio e sabedoria
em casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes.
1. O abuso sexual realmente ocorreu ?
Pela própria natureza do tema, as pessoas são levadas
naturalmente a conclusões precipitadas ao lidar com situações de
suspeita de abuso sexual contra crianças. O natural zelo pela
proteção da infância, a revolta contra pedófilos, a influência da
mídia, entre outros fatores, podem instigar famílias e profissionais
– professores, policiais, etc. - a julgamentos precipitados. Por esta
razão, é muito importante analisar com equilíbrio os diversos
indícios e provas.
Caso real – Ao realizar o exame pericial em criança que teria
sido vítima de abuso sexual, o médico afirmou para o pai: “seu
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
filho sofreu abuso sexual”.
Isto é um erro. O que o legista pode afirmar é que o ânus da
criança apresenta escoriações ou ferimentos compatíveis com a
introdução de objeto contundente ou pênis. Mas não pode afirmar
que houve abuso sexual, a menos que tivesse identificado sêmen
na criança, o que não foi o caso em comento.
Sabemos que muitas crianças podem ter problemas com a
evacuação em decorrência de fatores emocionais ou biológicos.
Pois bem, uma criança com fezes muito sólidas pode apresentar
lesões anais decorrentes desta condição. A um observador
desatento, estas lesões podem constituir prova irrefutável de abuso
sexual. O que não é verdade neste caso específico.
A constatação médica de ferimentos no corpo da criança ou
adolescente – especialmente no ânus ou região genital – é muito
relevante. Mas não é suficiente, muitas vezes, para comprovar o
abuso sexual. É preciso colher o maior número possível de
informações (testemunhas, depoimento da vítima e familiares,
documentos, fotos, ocorrências, etc.) que possam auxiliar na
comprovação do crime e identificação do autor.
Por outro lado, há muitos abusos sexuais graves sem contato físico
com a vítima. Muitos pedófilos se satisfazem apenas corrompendo
a vítima por meio de filmes, revistas ou literatura pornográfica,
comentários eróticos (ás vezes apenas por telefone ou internet), ou
se masturbando ou pedindo para a criança ficar nua. Todas estas
situações não serão constatáveis por meio de exame médico-legal,
embora, extremamente graves.
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
2. Cuidados estratégicos ao constatar o abuso sexual
Uma vez constatada a ocorrência do abuso sexual, é preciso adotar
as seguintes atitudes:
a) Preservar a intimidade da vítima, não comentando sobre o
caso com terceiros, inclusive familiares.
Somente os profissionais e familiares que realmente irão cuidar do
caso devem ter acesso às informações sobre o abuso. Infelizmente,
especialmente nos momentos seguintes à descoberta da violência
sexual, muitos pais comentam com familiares e amigos sobre o
caso envolvendo o filho. Além de prejudicar as investigações
(imagine se o autor do abuso é alguém da família), esta atitude
causa grave dano à imagem e à intimidade da criança ou
adolescente. É fundamental orientar os pais da vítima a não
comentar sobre o caso com terceiros, inclusive familiares.
b)Realizar os exames médicos o quanto antes.
Nos casos em que é necessário o exame médico da vítima
sugerimos duas alternativas:
a) inventar um história cobertura e induzir a criança a
participar do exame como se fosse uma brincadeira; ou
b) ministrar um calmante na vítima com orientação médica,
para que se possa realizar o exame com a criança adormecida,
evitando realizar o ato a força.
c) Apurar como a vítima compreendeu (percebeu e entendeu) a
violência sofrida.
É fundamental ouvir a vítima, deixar que ela fale espontaneamente
sobre a situação vivida, sem interferências. O objetivo maior é
descobrir como a criança ou adolescente elaborou em sua mente a
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
situação vivida. Neste sentido, não podemos pressupor que houve
dano psicológicos graves unicamente com base no fato da
violência praticada ter sido grave.
Caso real – A menina de 12 anos comentou com as amigas como o
pai brincava com ela. “Tira minha roupa, começa a brincar
comigo, põe seu pirulito na minha boca, e depois faz muitas
coisas legais.” Era uma relação sexual. Embora vítima de um
grave abuso sexual, a criança entendia o abuso como uma
brincadeira.
Caso real – O menino de 2 anos de idade foi abusados
sexualmente por um adulto, namorado da babá que dele cuidava.
Embora a violência tenha sido grave, a vítima entendeu como “a
brincadeira do cachorrinho que o tio fazia.” Por causa da pouca
idade e da forma como o abuso foi praticado, a criança o
compreendeu como uma brincadeira.
Nos dois casos, as crianças conseguiram lidar com a violência
sofrida sem danos psicológicos graves. Isto não diminui nem um
pouco a gravidade do abuso praticado, mas é um importante
referencial para o acompanhamento psicológico e sociofamiliar da
vítima.
d) realizar a entrevista da vítima, familiares e testemunhas
Especialmente em se tratando de caso em que a vítima não
apresente ferimento ou marcas físicas da violência, é fundamental
realizar a coleta e registro adequado das declarações da vítima,
familiares e testemunhas.
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
3. A prevenção de danos pós-abuso à vítima
É necessário evitar ao máximo que a vítima seja exposta a novas
situações de violação de direitos, ainda que a pretexto de
investigar o caso ou punir o autor da violência. Por isto,
orientamos as famílias e profissionais que lidam com vítimas de
abuso sexual a seguir as seguintes orientações:
• A vítima (sempre) deve ser ouvida em ambiente reservado e
por profissional especialmente treinado para lidar com
vítimas de violência sexual.
• Jamais expressar na presença da vítima o desespero ou
tristeza pelo abuso sofrido. Isto se aplica especialmente à
família, professores ou pessoas que convivem com a criança.
Muitas vítimas sofrem um novo trauma quando são expostas
ao sofrimento dos pais ou professores pelo abuso praticado.
Elas conseguiram lidar com a violência sofrida – por mais
incrível que possa parecer – mas sofrem ainda mais ao ver o
desespero ou tristeza da família ou educadores.
• Se a vítima percebeu a gravidade do abuso sofrido e não
soube lidar emocionalmente com a situação, é importante
expressar a tristeza para a criança, como forma de empatia1.
• Preservar a intimidade da vítima e de sua família. Não
conversar com ninguém sobre o caso. Os fatos somente
devem ser comunicados ou revelados a pessoas de confiança
e que vão participar do encaminhamento ou tratamento do
caso.
• Cuidado: infelizmente, ao levar o caso a autoridades
geralmente a imprensa fica sabendo de todos os fatos. A
revelação da intimidade das pessoas e detalhes do caso a
1
Empatia é a capacidade de compreender o sentimento de outra pessoa, imaginando-se estar em seu lugar.
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
jornalistas é uma prática muito comum.
• Procure o auxílio de pessoas competentes e confiáveis. Uma
autoridade - conselheiro tutelar, delegado de polícia,
promotor de justiça - pode ser um bom conselheiro em casos
suspeitos. Se você ainda não tem confiança nela, não precisa
mencionar os dados do caso real, apenas apresente os fatos,
sem dar nomes ou identificar as pessoas. Lembre-se a
situação ainda está sendo investigada, e a suspeita pode não
se confirmar. É preciso ter cuidado para não acusar inocentes
injustamente. O fundamental é proteger a criança ou
adolescente da situação de risco.
• Não acuse suspeitos ao encaminhar um caso às autoridades. A
ênfase deve ser dada à situação de risco da criança ou
adolescente e às provas ou indícios obtidos: marcas no corpo,
alterações no comportamento, depoimento da vítima ou
testemunhas, imagens ou fotos, etc.. Não aconselho acusar
prováveis suspeitos, especialmente por escrito, pois esta
função é das autoridades (polícia, ministério público). Agindo
assim, quem encaminha o caso fica melhor protegido, em
especial, contra retaliações dos envolvidos.
• Proponha ou ajude a delegacia e conselho tutelar de sua
cidade a construir uma salinha para crianças, com o objetivo
de atender as vítimas ou testemunhas de crimes, inclusive a
realização de depoimento sem dano. O depoimento sem dano
consiste na coleta de depoimento de criança ou adolescente
sobre abuso sexual (vítima ou testemunha) com o máximo de
proteção contra humilhações ou constrangimentos. Como
todos sabem, o simples relato da violência sofrida ou
testemunhada pode gerar profunda dor.
PROGRAMA PROTEGER
www.programaproteger.com.br
Muitas crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual ficam mais
revoltadas com os pais ou professores que duvidam dela ou nada
fazem ao saber do abuso, do que com o próprio autor da violência.
Conclusão
O encaminhamento correto e cuidadoso dos casos de abuso sexual
é muito importante. Infelizmente, muitas vítimas são expostas a
novas violações de direitos a pretexto de punir o autor do crime.
Crianças e adolescentes podem ter habilidades pessoais para lidar
com a violência. O abuso sexual praticado nem sempre terá
repercussão psicológica grave. A humilhação e preconceito
decorrente da exposição de sua intimidade pode causar mais
sofrimento à vítima do que a violência sofrida.
Download

Depois do Abuso Sexual