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UM ESTUDO DE CASO NO SETTING TERAPÊUTICO
Lizandra Nunes Farias1*
Juliana Carmona Predebon²*
RESUMO
Este estudo surgiu a partir da realização da prática de Estágio em Processos Clínicos
realizado na CESAP – Clínica Escola Serviço de Atendimento Psicológico. Essa pesquisa
apresenta um estudo de caso discutido de acordo com a perspectiva da Teoria Psicanalítica.
Apresenta-se o caso de Cíntia, uma mulher de 31 anos, que realizou atendimento
psicoterápico nessa instituição de agosto de 2010 até julho de 2011. Como instrumento de
pesquisa foram realizadas entrevistas clinicas, relatadas e analisadas em supervisão. A
análise do material clínico permitiu levantar como uma hipótese diagnóstica o Transtorno de
Personalidade Obessivo-Compulsivo. Para se levantar tal hipótese diagnóstica fez-se
necessário integrar o conhecimento teórico psicanalítico com a prática clínica, o que
possibilitou uma melhor compreensão psicodinâmica do caso em estudo.
Palavras-chave: transtorno de personalidade obsessivo-compulsivo, prática clínica;
psicanálise.
APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO
Cíntia procurou atendimento psicoterápico devido à dificuldade em conduzir
determinadas situações com sua filha. Daiane tem 12 anos e também realiza atendimento
psicoterápico na CESAP. Cíntia relata ter dificuldades em entender a “fase” em que a filha se
encontra, assume não ser uma pessoa flexível e não conseguir ser “diferente” com Daiane,
pois apresenta-se muito controladora e rígida em sua relação com a filha.
Cíntia é uma mulher de trinta e um anos de idade, apresenta uma aparência de
cansada, geralmente veste o uniforme da empresa onde trabalha, (nesta o marido é sócio)
trabalha como assistente administrativo, gosta de usar calças jeans, dificilmente usa o cabelo
solto (um pouco descuidado), utiliza alguns acessórios e sapato baixo. Suas roupas eram
sempre limpas, mesmo quando chegava direto do trabalho e se dirigia para a clínica, a
paciente sempre dizia: “Bah, tô muito cansada, vim direto do serviço, pena que não dá tempo
de ir em casa” (sic).
A paciente tentava deixar claro que o motivo de estar indo à clínica era por motivo
exclusivo da filha e não porque ela necessitava de atendimento. Mas, por outro lado, ela
1
Acadêmica da disciplina de Estágio em Processos Clínicos II do curso de Psicologia da Universidade Luterana
do Brasil – Ulbra Guaíba
² Docente do curso de Psicologia e da Universidade Luterana do Brasil e orientadora deste trabalho.
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deixava transparecer a sua vontade, principalmente quando a filha foi liberada dos
atendimentos, que ela iria continuar, mas verbalizava com um certo descaso.
Ao falar de sua infância, a paciente inicia dizendo: “eu sempre fui o patinho feio. Sabe
aquela criança que leva a culpa de tudo, que tudo acontece (fala demonstrando um certo ódio
no olhar e sempre balançando a perna)?!”(sic). Cíntia, sempre que falava do seu passado,
ficava mais séria e irritada, pois afirmava não ter vivido como seus irmãos. Ela é a mais velha
de três filhos do casal e, segundo ela, sua avó paterna também lhe criticava muito, em
algumas vezes o seu pai a defendia, mas afirma que era difícil.
A mãe de Cíntia era uma mulher muito exigente e perfeccionista, pois não admitia que
alguma coisa não saísse do jeito dela e se algo não estivesse, solicitava que fosse feito
novamente e Cintia diz: “Ah, sempre quem levava a pior era eu, claro, minha mãe nem
pensava no que eu tinha pra dizer e também nem tinha, porque minha irmã era perfeita né..
olhos azuis, lourinha, linda e eu... nada.” (sic).
Quando estava na quarta série, Cintia estava com dificuldades em matemática e sua
mãe a informou que se rodasse de ano levaria uma surra, sua avó lhe chamava de “burra” e
seu pai não dizia quase nada, pois, segundo a paciente, sempre foi muito submisso à mãe.
Cintia (chorando), com receio de contar à mãe, conversou com a professora de matemática e
esta lhe deu um abraço e disse que faria aulas de reforço no recreio sem que sua mãe ficasse
sabendo e foi quando a professora disse à ela: “Cíntia, tu pode tudo que quiser, não acredita
quando alguém te disser que não podes algo, confia sempre em ti, prova para as pessoas que
tu consegue e é o que vais fazer agora passando nesta prova de matemática” e Cíntia
respondeu: “Obrigada por confiar em mim e eu vou mostrar pra minha mãe que eu
posso”(sic). Após fazer a prova ela recebeu a confirmação de que havia sido aprovada, mas
disse que ao saber, sua mãe apenas disse: “Não fez mais que a tua obrigação, ai de ti se não
passasse”(sic).
Aos quinze anos de idade Cíntia saiu de casa devido as desavenças com a mãe e foi
morar com uma tia, onde saía em muitas festas com sua prima, iniciou os estudos à noite e
após conhecer um rapaz e engravidou e este dizia que o filho não era dele. A tia de Cíntia
informou a mãe desta, mas ela não queria saber da filha, após o nascimento da menina, Cíntia
levou Daiane (filha) para seus pais conhecerem-na e a partir daí sua mãe voltou a falar com
ela e ofereceu sua casa para elas morarem. Cíntia relatou: “Minha mãe não resistiu ao ver a
Daiane, na hora me convidou pra voltar e eu voltei, era ruim porque eu tinha parado de
trabalhar e minha mãe sabia que seria melhor na casa dela.
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Passado algum tempo, Cíntia conheceu o João e com este teve mais três filhos,
meninos. Assim, Cíntia voltou a morar com seus pais, levando os quatro filhos com ela e
continuou trabalhando em um escritório de contabilidade. Lá ela conhece o seu atual
companheiro, este era casado, mas segundo ela: “ele morava junto com a mulher, mas vivia
com várias mulheres na rua, eu só quis ele porque sabia que eles não tinham mais nada”(sic).
E pergunto: “Mas como vocês se conheceram?” e ela respondeu: ”Bom, ele era cliente na
empresa de contabilidade onde trabalhava e ficamos amigos, um dia ele me convidou pra sair
e levei meus filhos juntos, claro.. porque eu sabia o que ele queria, e me convidou pra morar
com ele, aí deixei claro que teria que assumir nós cinco e ele aceitou” (sic).
Em todos situações de sua vida, Cíntia sempre esteve no comando, controlando e caso
não estivesse de seu agrado, ela se separava ou, caso de emprego, pedia demissão.
Atualmente Cíntia reside com seu companheiro Samuel, de 52 anos e seus quatro
filhos em uma casa que ela solicitou que ele comprasse na época em que se conheceram, pois
a casa que ela exigiu deveria ter pelo menos três quartos. Ela trabalha na mesma empresa em
que Samuel é sócio (Serviços de Obras de Construção), nesta ela realiza a folha de pagamento
dos funcionários e cuida de algumas questões administrativas, mas acaba fazendo algumas
tarefas que não corresponde à sua função como: fiscalizar os funcionários e cobrá-los por
serviços realizados de modo irregular; informar a estes se poderão ou não serem demitidos
(ameaças); conversar com gerentes de bancos para tentar resolver situações de cheques sem
fundos; conversar com responsáveis por alguma obra futura e explicar (mostrando) para
funcionários como deveria ter sido feito algum serviço, pois isto tudo é de responsabilidade
do Samuel, mas em relação a isto Cíntia relata: “Se deixar pelo Samuel, as coisas não vão pra
frente....sabe isto tudo é de responsabilidade dele, mas se eu não “colocar a mão na massa”
nada acontece. Ele não cobra os funcionários e não demite os “inúteis” (sic).
Cíntia verbaliza que não tem tempo para nada, que quando está em casa precisa estar
realizando atividades do serviço, pois se não fizer, não conseguirá dar conta das folhas de
pagamento do mês, pois quando está na empresa precisa realizar atividades com ele, pois se
não estiver junto “as coisas não funcionam”.
COMPREENSÃO PSICODINÂMICA
Cíntia demorou algumas sessões para falar de sua infância, percebendo-se que esta
apresentava certa resistência ao tratar deste assunto. Mas ela iniciou-o em uma sessão em que
verbalizava do estado de sua mãe, que sofre de depressão, pois lembrou alguns momentos de
criança e disse: “Com minha mãe era tudo tão difícil....digo isto porque tinha que ser tudo tão
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certo, tão do jeito dela. Com minha irmã era diferente, ela era aplaudida em tudo, se ela não
limpasse bem a casa, eu que levava a culpa por não ter supervisionado” (sic).
Em Inveja e Gratidão (KLEIN, 1998), a mesma autora menciona que as evidências de
funcionamento obsessivo podem se manifestar desde criança, como rituais na hora de dormir,
em manias de limpeza ou na alimentação. Portanto, um bom desenvolvimento do ego é
crucial na elaboração destas ansiedades orais, uretrais e anais sem que haja fixações. Estas
fixações mais primitivas são evidenciadas pelas características de rigidez e controle do
paciente.
Segundo Meltzer (1989), a trajetória do entendimento do paciente obsessivo vai desde
o relato clínico de “O Homem dos Ratos”, de Freud, até nossos dias, enfatizando que o marco
histórico de maior significado do trabalho de Freud consiste no estabelecimento do conceito
de ambivalência. No seu distinto trabalho, Freud pela primeira vez reconheceu o conflito entre
amor e ódio como uma possível base para a neurose, dando um grande passo no sentido de
reconhecer o conflito interno.
O instrumento seria a interpretação das fantasias inconscientes, percebidas pela
transferência. Nesse processo, é importante o paciente perceber que o analista aceita esses
sentimentos agressivos, principalmente a inveja, não se assustando com eles. O analista
funcionaria como um superego mais tolerante, abrindo caminho para que o paciente pudesse
aceitar esses sentimentos como seus, possibilitando a reparação (EIZIRIK, 2005).
Cíntia demonstra, em todos os momentos em que verbaliza sobre seu trabalho, ser uma
pessoa insubstituível, não deixando que ninguém exerça nada de seu setor quando ela está
ausente. Mesmo com os insistentes pedidos do marido, a paciente relata: “O Samuel não sabe
nem mexer no programa da empresa, só eu que sei, por isso não posso ficar longe, se eu não
faço, ele espera por mim e atrasa tudo...” Pergunto: “Mas tu já tentaste explicar para ele?”, ela
responde: “Sim, já ensinei várias vezes, mas não sei o que ele tem, não aprende nunca. Agora
ele deu pra pediu para que eu mostre como é, mesmo eu dizendo que eu farei, ele diz que se
um dia eu não estiver lá ele pode fazer...” (sic).
Freud (1913) descreveu uma primitiva organização pré-genital da libido, caracterizada
por uma preponderância dos componentes instintivos anais e sádicos, e considerou que os
sintomas do paciente obsessivo eram o resultado da regressão da libido a esse estágio anal
como uma tentativa de evitar a ansiedade de castração. Freud (1908), em sua descrição do que
denominou caráter anal, evidenciou três traços importantes: amor à ordem (leva ao
formalismo), parcimônia (leva à avareza) e obstinação (pode tornar-se uma irada rebeldia)
(EIZIRIK, 2005).
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Segundo o Manual diagnóstico e estatístico de transtorno mentais (DSM-IV-TR,
2002) propõe critérios objetivos para o diagnóstico do transtorno de personalidade obsessiva.
São eles:
1. Preocupação tão extensa com detalhes, regras, listas, ordem, organização ou
horários, que o alvo principal da atividade é perdido;
2. Perfeccionismo que interfere na conclusão de tarefas;
3. Devotamento excessivo ao trabalho e à produtividade, em detrimento de atividades
de lazer e amizades;
4. Excessiva conscienciosidade, escrúpulos e inflexibilidade em assuntos de
moralidade, ética ou valores;
5. Incapacidade de desfazer-se de objetos usados ou inúteis, mesmo quando não tem
valor sentimental;
6. Relutância em delegar tarefas ou trabalhar em conjunto com outras pessoas, a
menos que estas se submetam a seu modo exato de fazer as coisas;
7. Adoção de um estilo miserável quanto a gastos pessoais e com outras pessoas;
8. Rigidez e teimosia;
Cíntia apresenta grande preocupação com organização, perfeccionismo e controle
mental e intelectual, à custa de flexibilidade, abertura e eficácia. A constante necessidade de
perfeição em tudo que realiza e a não permissão de invasão de seu espaço evidenciavam suas
ideias obsessivas. Outro fator de grande importância, que deve ser levado em consideração,
percebeu-se nas entrevistas iniciais, onde a paciente apresentava comportamentos de
resistência e a todo momento querendo obter o controle das sessões.
A paciente em sua última sessão chegou à sessão completamente “desarmada”, muito
diferente das outras sessões e nesta chorou muito, como se fosse uma criança pedindo o colo
de sua mãe e informou não ter mais forças para continuar sendo como era, reconheceu não ser
capaz de faz tudo que dizia fazer, que tinha falhas como qualquer ser humano, não sendo a
pessoa “forte”que sempre afirmava. Neste momento, foi possível perceber que suas defesas
foram desarmadas e que a paciente percebia seu comportamento, enfim, que o tratamento
estava apresentando seus resultados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A construção desse estudo possibilitou uma melhor compreensão do caso de Cíntia.
Neste foram descritos dados importantes da vida pregressa e atual da paciente, aspectos muito
relevantes para o desenvolvimento deste trabalho e para o aprendizado de estágio,
principalmente por esta paciente mostrar-se extremamente resistente e desafiadora no setting
terapêutico.
Além disso, o fator assiduidade na psicoterapia foi de grande importância para o
entendimento do caso, uma vez que a paciente não faltava às sessões e com isto, facilitou o
reconhecimento dos sintomas e o funcionamento da mesma. A partir dessa análise, levantouse como Hipótese Diagnóstica o Transtorno de Personalidade Obsessivo-compulsivo, a qual
foi alcançada com as supervisões realizadas e com o referencial teórico utilizado no decorrer
do estudo.
Os autores utilizados na revisão bibliográfica também proporcionaram um adequado
embasamento e análise das informações, possibilitando perceber de maneira mais detalhada as
características de personalidade de Cintia, resultando em um tratamento psicoterápico mais
eficaz.
Destaca-se ainda que esse Estudo de Caso teve como experiência fundamental o
momento em que a paciente Cíntia, em sua última sessão, chorou copiosamente. Esse choro,
talvez não esperado por ela, possibilitou o reconhecimento de diversas fraquezas, necessidade
de ser ajudada e necessidade de manter o tratamento, não parecendo ser aquela mulher tão
rígida, concreta e inflexível que dizia ter orgulho de ser no início do processo psicoterápico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAHAM, K. Teoria psicanalítica da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
EIZIRIK, Claúdio L; et al. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e
técnicos. Porto Alegre: 2005.
FENICHEL, Otto. Teoria psicanalítica das neuroses. São Paulo: Atheneu, 1997.
FREUD, Sigmund. História de Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1990.
GABBARD, Glen O. Psicoterapia psicodinâmica de longo prazo. Porto Alegre: 2005.
GABBARD, Glen O. Psiquiatria psicodinâmica. Porto Alegre: 1998.
KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
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KLEIN, Melanie. Psicanálise da criança. São Paulo: Mestre Jou, 1969.
DSM-IV: Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: 2002.
ZIMERMAN, David E. Bion, da Teoria à Prática. Porto Alegre: Artmed, 1995.
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