A Educação Profissional e os desafios da formação dos técnicos em saúde nos dias atuais Profa. Dra. Marise Ramos Especialista em Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde Pública Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde – Lateps Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz Base da exposição: Saberes, Competências e Cultura Profissionais dos Trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS): o processo de reconstrução do conhecimento na relação Trabalho e Educação. Pesquisa CNPq (2012-2014) • Objeto de estudo: saberes profissionais de trabalhadores técnicos de nível médio do SUS. • Sujeitos da pesquisa: Técnicos em Saúde Bucal. Possível generalização dos resultados. • Objetivo: captar os saberes profissionais e a lógica sociocognitiva dos trabalhadores técnicos. • Questões de pesquisa: 1) Qual o significado dos conhecimentos formais aprendidos na formação profissional em situações concretas de trabalho e como combinam esses conhecimento com a experiência? 2) Poder-se-ia depreender uma vinculação entre a mobilização dos saberes dos trabalhadores no seu processo de trabalho e as experiências educacionais? • Metodologia: perspectiva das etnografias profissionais. Pressupostos • Os trabalhadores reconstroem os conhecimentos formais, articulando-os com os saberes da experiência em situações de trabalho, produzindo seus saberes profissionais. • No plano microssocial, os grupos profissionais podem criar relações baseadas em racionalidades compreensivas que se opõem, simultaneamente, à violência simbólica associada à desigualdade de poder e à simples negociação de significados nas interações. • No plano macrossocial, os grupos profissionais podem se constituir em sujeitos coletivos, cujas práticas ultrapassam interações locais em direção a relações sociais de alianças e/ou conflitos com outros sujeitos coletivos. Os conceitos: saberes e culturas profissionais; sociocognição. • Saberes profissionais: conhecimento em uso pelos sujeitos em interação, guiados por alguma motivação, em situações de trabalho. Produto de dualidades: 1. Epistemológica - ciência e experiência como fontes; tensa relação entre coerência e eficácia como critérios de validade. 2. Cognitiva – mobilização das mentes pragmática e analítica. (Eraut, 2007) Os conceitos: saberes e culturas profissionais; sociocognição • Culturas profissionais: conformadas pelo compartilhamento de saberes por um grupo profissional para: a) Manter o fluxo da interação em busca de consensos. b) Produzir novos conhecimentos e regras face à eminência de conflitos (emergentes). Possibilitada pela combinação típica de grupos profissionais: trajetórias (diversificadas – desigualdades de poder); identidades (próximas – condição da interação); reflexividades (troca de conhecimentos e experiências). A emergência surge em interações que ocorrem em sistemas abertos, pois em sistemas fechados não há interesse pelo novo. É necessário que haja uma relativa, mas não substantiva, desigualdade de poder entre os sujeitos da interação (...), de modo que o detentor de mais poder se disponha a perdê-lo e a submeter-se ao poder do outro. Esta é a racionalidade compreensiva. Trata-se de uma oposição, simultaneamente, à violência simbólica e à simples negociação de significados. Pode-se passar do fluxo corrente da interação a sistematizações que promovem soluções coletivas, a exemplo de quando se busca preservar a identidade do grupo ou se influir em um projeto institucional ou social. Nesse plano começam a se manifestar mediações entre o senso comum e o conhecimento formal; entre as interações e as relações sociais; entre as questões de poder presentes no universo micro das primeiras e as determinações históricas, econômicas e sociais das segundas. Os conceitos: saberes e culturas profissionais; sociocognição Teorias da dualidade da mente (Eraut, 2007) • Mente pragmática (1 - experiência como fonte de conhecimento): processos 1 (rápidos, automáticos, com baixo esforço). • Mente analítica (2 - ciência como fonte de conhecimento): processos 2 (lentos, controlados, elevado esforço). Processos Mente 1 1 - Pragmática (experiência) Modos de cognição (competências cognitivas) Automáticas 1 2- Analítica (ciência) Intuitivas Associativas 2 1 - Pragmática (experiência) 2 2 - Analítica (ciência) Analítica A sociocognição é a aprendizagem interativa em situação. Seu estudo, na perspectiva sociológica, buscaria captar como as mentes pragmática e analítica se articulam na cultura profissional. A possibilidade ontológica: convergência entre a pragmática do trabalho profissional e a práxis. Tipologia para o estudo dos saberes profissionais na perspectiva da ação (Ramos e Caria, 2012; adap. de Eraut, 2007) Tipo de Situação Modo de Cognição (Competências cognitivas) Automática Intuitiva associativa ou seletiva Analítica [processamento e mente 1] [processamento e mentes cruzadas] [Processamento e mente 2] Avaliação e análise O que. Linguagem comum de consenso O que. Linguagem de alerta ou dissenso. Porque. Diagnóstico formal numa em contexto. convicção de certeza. Tomada de Como. Improviso, rotina e ajustamento Como. Com comparação face a quebra Para que. Planeamento e decisão/ Situação instantâneo. de expectativas, relativas a resultados concepção da ação e avaliação da interventiva não esperados ou ação do outro não eficácia. antecipada. Aberta/ Situação Manifestação de agrado ou desagrado Intuição associativa e experiencial para Formulação de dilemas éticos Conjectural pelo ocorrido. não errar. contextualizados na experiência. Engajamento metacognitivo Intuição seletiva sobre riscos (prudência). Censura e sanção aos que fazem menos Narrativa exemplar que enuncia sistema Reformulação de orientações bem. de valores gerais e abstratas para a ação com o objetivo de ter maior satisfação Reconhecimento aos que fazem bem. com os resultados obtidos (melhoria). A pesquisa empírica. Modos de cognição do TSB Tipo de Situação Modo de Cognição (Competências cognitivas) Automática Intuitiva associativa ou seletiva Analítica [processamento e mente 1] [processamento e mentes cruzadas] [Processamento e mente 2] Avaliação e análise Sabem o que devem olhar e identificar nas visitas domiciliares, nas atividades de educação em saúde e/ou diretamente nos consultórios. - Tomada de decisão/ Situação interventiva Articulam a experiência com os conhecimentos aprendidos no curso técnico. O sentido e o valor do conhecimento formal é fonte de aprimoramento da experiência, mas é esta que comanda o êxito no trabalho. Aberta/ Situação Conjectural Apelam para a própria experiência, articulando com os conhecimentos aprendidos no curso técnico. Procuram ajuda dos mais experientes. Engajamento metacognitivo Adequam-se a constrangimentos na Reúnem-se para analisar situações e relação com os profissionais de nível saberem atuar em situações novas. superior. Percebem a necessidade de encontrar soluções para problemas e recorrem à equipe com este objetivo. Pesquisa empírica: articulação de competências práticas e cognitivas em situação (Ramos, 2011, 2015) Situações de trabalho Competências práticas Competências cognitivas Avaliação e análise Capacidade de acolher Automática Tomada de decisão/Situação interventiva Capacidade de resolver problemas Intuitiva associativa ou seletiva Aberta/Situação conjectural Capacidade de resolver problemas Intuitiva associativa ou seletiva; analítica Engajamento metacognitivo Capacidade de coordenar-se com o outro (superiores, colegas, usuários) Automática; intuitiva associativa ou seletiva Saberes profissionais e relações de poder Avaliação e análise: pouca interferência da desigualdade de poder. Tomada de decisão/Situação interventiva e Situações abertas e conjecturais: os técnicos reconhecem o poder de outrem de forma positiva quando recorrem aos mais experientes para ajudá-los, por considerarem que esses já passaram por situações semelhantes (competências intuitivas associativas) ou por que os conhecimentos desses podem articular-se aos seus na mobilização de competências analíticas. São saberes relativos ao fluxo de interações sem que se pretenda construir soluções coletivas. Engajamento metacognitivo: existência de constrangimentos na relação com os profissionais de nível superior. Os técnicos tendem a utilizar modos mais automáticos e intuitivos associativos. Os modos analíticos seriam mais frequentes com os profissionais de nível superior, que tendem a ser responsáveis pela reformulação de orientações gerais e formais para a ação. A intervenção dos técnicos pode não ser bem recebida nesta relação, demarcando-se uma diferença de poder significativa – não relativizada pelos que detêm mais poder – dificultando-se, assim, a construção de saberes profissionais por esses técnicos na perspectiva da práxis. Ao contrário, este fato tende a reiterar os saberes dos técnicos na perspectiva pragmático-utilitária. Consequências para o trabalho técnico e configuração da cultura profissional • Quanto às trajetórias: a não relativização do poder hierárquico coloca limites para a identidade do grupo, mantendo-se uma coesão somente para o funcionamento do trabalho. O uso predominante de competências automáticas pelos técnicos é coerente com esse fato, o qual contribui para se reificar o pragmatismo utilitário dos saberes profissionais. • Quanto às identidades: trajetórias semelhantes produzem uma identidade no uso de competências intuitivas associativas e favorecem a busca de ajuda dos que compartilham o mesmo nível de poder; e, ainda, a convergência de saberes obtidos na formação com as experiências. Essas identidades podem levar à conformação de subgrupos no interior do grupo profissional, dificultando o seu reconhecimento como sujeito coletivo. • Do ponto de vista da reflexividade: um fortalecimento da reflexividade interativa dos técnicos é a competência analítica por eles demonstrada em situações abertas e conjecturais. Afinal, eles percebem a necessidade de encontrar soluções para problemas e recorrem à equipe com este objetivo. Uma contraposição é o fato de, em situações de engajamento metacognitivo, com destaque para as reuniões em equipe, eles viverem constrangimentos impostos pelo poder dos profissionais de nível superior. Respondendo às questões de pesquisa 1) Qual o significado dos conhecimentos formais aprendidos na formação profissional em situações concretas de trabalho e como combinam esses conhecimento com a experiência em situação? Os técnicos recorrem ao conhecimento formal na articulação com suas experiências na busca de soluções para situações novas, alimentando mais as competências intuitivas associativas do que as analíticas. Por isto, a sociocognição dos técnicos tem sido orientada mais pela pragmática utilitária do que pela práxis. 2) Poder-se-ia depreender uma vinculação entre a mobilização dos saberes dos trabalhadores no seu processo de trabalho e as experiências educacionais? Sim. O sentido que o conhecimento formal tem para a inversão da lógica pragmática é significativo, por que: a) repensar a formação técnica de nível médio com base nas ciências contribui para se estabelecer um princípio chave para o reconhecimento social dos profissionais, a saber, a existência de uma base científica especializada de conhecimento que sustenta a ação. Isto conferiria aos técnicos maior poder simbólico. b) Ao mesmo tempo, favorecer-se-ia o uso de competências analíticas nas situações de trabalho, em convergência com competências intuitivas associativas que caracterizam a pragmática do trabalho profissional. c) Assim, consciência prática e práxis seriam o mesmo fenômeno, ou seja, uma dialética entre conhecimento científico e da experiência. Sendo esta uma possibilidade ontológica da sociocognição, ela é mais potencializada quanto menos as relações de trabalho se basearem em desigualdades de poder. Os desafios da formação dos técnicos em saúde nos dias atuais por meio da educação profissional implicariam, dentre outros: a) elevar o poder simbólico dos técnicos, mediante a fundamentação científica de sua formação; b) relativizar o poder simbólico dos profissionais de nível superior. Trata-se, na verdade, de um problema produzido e a ser enfrentado: a) no âmbito da estrutura social, posto que as relações de poder externas ao grupo profissional dificultam a formação científica e cultural dos trabalhadores considerados subalternos. b) internamente ao grupo, posto que, neste, tende-se a não reconhecer os técnicos como aqueles que também são capazes de “reformular orientações gerais e abstratas para a ação com o objetivo de ter maior satisfação com os resultados obtidos” (modo de cognição típico do uso da competência analítica em situações de engajamento metacognitivo). A educação básica e profissional com base científica e o reconhecimento social mútuo construído por identidade de grupo e de classe são preceitos fundamentais para a inversão da lógica sociocognitiva pragmática dos técnicos que dificulta o trabalho em equipe baseado na práxis. Os desafios da política de educação profissional em saúde implicariam, dentre outros: a) compreender a formação técnica de nível médio dos trabalhadores de saúde como política educacional – de formação científica, técnica, cultural e ético-política – e não somente como política de Recursos Humanos; b) avançar no sentido de fortalecer as ET-SUS como instituições de formação e, assim, providas de condições para tal exercício; c) admitir que a política de educação profissional integrada ao ensino médio abrange também a formação de técnicos em saúde. Os Ifs têm ocupado este lugar, a despeito de não terem uma trajetória articulada ao SUS; trata-se, portanto, de se qualificar esta relação por intermédio de uma política nacional consistente de Educação Profissional em Saúde. d) comprometer os programas de formação profissional em saúde associados a necessidades imediatas do SUS com a formação básica dos trabalhadores, mediante propostas curriculares que sigam o princípio de que educação profissional e educação básica são epistemologicamente indissociáveis. Obrigada. [email protected]