Revista Brasileira de Estudos Constitucionais ‐ RBEC
Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 Inter­relações entre Constituição, Estado de Direito e sociedade –
Reflexões a partir da história do direito e do desafio da incerteza
Eduardo Henrique Lopes Figueiredo
Resumo: Na realidade, o meu artigo é um convite ao estudo, à reflexão, à meditação sobre as
coisas da história, um convite a abandonar as frases feitas, as fórmulas, os catecismos, a vaidade
dos iniciados, o doutrinamento e o tom doutoral, o falar difícil, a linguagem das escolas e das
seitas, a estudar os mecanismos do poder e não somente as ideologias que o legitimam ou o
recusam, a preferir o hábito de quem não compreendeu nada àquele de quem compreendeu
[1]
tudo.
Palavras­chave: Constituição e Poder. Estado de Direito. Constituição. História do direito. Política.
Economia. Sociedade.
Sumário: 1 Introdução – 2 Problemas de teoria da história e de história do direito – 3 A
exploração da formação do Estado de Direito – 4 Estado de Direito e sistema de direitos – 5
Conclusão – Referências
1 Introdução
Em sua “História do Constitucionalismo Moderno”, Horst Dippel afirma ser o artigo 288 da
Constituição de Portugal espécie de símbolo dos eventos mais marcantes do constitucionalismo
[2]
europeu. Forma de Estado, república como regime, separação entre Estado e Igreja, liberdades e
garantias dos cidadãos, sufrágio universal, pluralismo de opiniões políticas, existência de partidos,
direito à organização política, separação de poderes, controle de constitucionalidade,
independência da justiça e autonomia entre esferas políticas sintetizam, enquanto fontes
institucionais e normativas, as questões mais expressivas que resultaram do horizonte de ideias
políticas fundantes dos Estados constitucionais ocidentais.
[3]
Compreendidas como elementos do constitucionalismo e como instrumentos que se instituíram
entre Estado e a sociedade, considerando­se entre ambos a representação política, todas estão
relacionadas com a latitude sugerida pela figura do Estado de Direito. Para Emílio Santoro, ao
[4]
longo do século XX, o Estado de Direito foi absorvido pela jurisdição constitucional, mas não
parece ser cautelosa orientação que busque desenvolver todas as questões envolvidas neste
processo histórico e historiográfico jurídico. Por estarem na profundidade das reflexões sobre
formulações constitucionais e de suas relações com o Estado e a política, estas, são as mais difíceis.
Se tomadas cada qual de seus respectivos conteúdos e implicações, restarão sugeridas
incontornáveis mediações e, também, as variantes do Estado de Direito.
[5]
Assim, aproximar­se do macrotema Constituição e Poder destaca necessidade de (re)ordenação da
produção teórica elaborada com o propósito de refletir sobre o poder, a política, a Constituição e a
sociedade em nosso tempo, os problemas, como diagnosticados e envolvidos em “velhas e novas
noções”, retroagem à etapa das perguntas, das formulações destas.
[6]
O modo como serão postas e
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 como projetam­se na construção de caminhos insinua o propósito de “escapar”, se isso é possível,
ao diálogo que tem sido observado na produção doutrinária sobre a teoria da Constituição e o
Direito Constitucional delimitado pelas formulações que passaram a integrar o objeto deste saber.
O objetivo é tematizar Constituição e Poder não do ponto de vista das consequências, da
residualidade, da precariedade que toda crítica visualiza e escrutina no tocante aos limites dos
estados constitucionais, mas dos instantes formativos, da sedimentação histórica e também da
história que vivemos, ou ainda, do poder, do Estado de Direito e das Constituições sincronizados à
etapa do hoje e como tais se lidam, se inter­relacionam, se chocam, se autoneutralizam, se
conformam às instituições, se negam, se distorcem, se polarizam, se identificam com projeções
eleitorais e se tornam bandeiras emancipatórias.
Focado assim o exame, ele poderia se limitar à natureza específica dos direitos fundamentais, nos
pressupostos da decisão judicial face aos casos difíceis, na exploração das figuras da razoabilidade
e da proporcionalidade, dos papéis dos princípios, assim como também aos intrépidos e sinuosos
potenciais da hermenêutica, além das precariedades da democracia no ambiente histórico do
neoliberalismo político e econômico, isso apenas para destacar algumas das preocupações e
formulações mais visitadas por importantes autores. O que se buscará é ir ao encontro dos
problemas sugeridos para este número da Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC e
para tanto a premissa inicial é que as formações racionais envolvidas e envolventes da
modernidade, lançadas na totalidade das experiências econômicas, políticas e humanas e, também,
nas relações internacionais entre Estados sugerem algumas sínteses que instigaram entre outras
personalidades tão distintas quanto Carl Schmitt e Ferdinand Lassale, isso quase 90 anos após o
aparecimento de suas monografias intituladas Teoria da Constituição e A essência da Constituição:
o que é uma Constituição? O que é a existência do Estado em sua realidade a produzir unidade
social? Quais os fatores reais do poder? Como esses fatores se expressam nas relações políticas?
Essas questões valem aqui para afastar, a exemplo de Schmitt e de Lassale a análise da
[7]
Constituição enquanto fonte normativa.
Neste texto buscarei desenvolver três momentos de reflexão com auxílio da história do direito
público e das injunções políticas presentes na totalidade histórica. Esses momentos se não
preferem as sínteses normativas, consideram as fontes positivas sobre as quais incidem esforços de
análise das inter­relações existentes entre a Constituição e a sociedade. Esses esforços, se
explorados, indicam as possibilidades e limites das instituições modernas de direito público e para
tanto: a) problemas de teoria da história e de história do direito relativizam o impacto da crítica,
dado o espaço de tempo pertinente ao qual se pode analisar, por exemplo, a redemocratização
brasileira, o que se deu, não só, mas também, por meio da Constituição de 1988. Isto seria apenas
uma hipótese. Se os problemas de narração e de compreensão do historiador estão bem próximos
da compreensão do intérprete de textos legais e se, neste plano jurídico, são discutidos os sentidos
da virada hermenêutica, na história do direito a questão da hermenêutica não é menos
importante; b) parece ser fecunda, em um segundo momento, a exploração da formação do Estado
de Direito. Neste texto, o argumento de Maurízio Fioravanti auxilia a retomada de importante
período formativo da experiência política moderna. O Estado de Direito europeu, ainda que
tributário do Iluminismo e da Revolução Francesa, devido às intersecções, recortes, influências e
difusão de experiências, não se constituiu a parte das experiências alemã, inglesa e francesa. Daí
cabimento da afirmação de Oscar Vilhena Vieira, ao considerar o aspecto controverso da
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 expressão, por tratar­se de conceito que opera como slogan na desconstrução de antigos regimes,
[8]
porém “muito abstrato no momento da construção e implementação de uma ordem legal”.
Controle do poder e soberania, representação política e democracia e funções estatais delimitadas
constitucionalmente são, respectivamente, os emblemas de cada qual das tradições de Estado de
[9]
Direito que se amalgamaram e se tornaram densas experiências entre os séculos XVIII e XIX. Os
problemas do direito constitucional europeu remetem seus estudiosos de forma recorrente aos
horizontes desse tempo, o qual pode ser compreendido como o horizonte do constitucionalismo já
em etapa de solidificação das reflexões iluministas devidamente adaptados à prática política, ainda
que se possa considerar também que “o fim do regime autoritário não significa o começo
automático do governo das leis, [...] sendo etapa necessária [...] compreender o que exatamente
significa Estado de Direito e como pode ele auxiliar na construção de regimes menos opressivos e
que se estendam a todos os setores da sociedade”.
[10]
Os dois primeiros momentos foram planejados nos termos de esquematização expositiva que
privilegia a formação do Estado de Direito considerada a proposta de Emilio Santoro diante daquilo
que compreende como “desafio da incerteza”. A incerteza não será apropriada com objetivo de
inclinar a orientação do texto para o debate concernente à decisão judicial. O quadro da incerteza
será redimensionado com propósito de, por meio do exame do normativismo, retomar o ponto de
chegada à Kelsen, para quem o Estado passou a ser compreendido como abstração normativa,
sujeito de direito e sujeitado ao direito, entendimento que desmobilizou à sua época a questão do
poder irracional, ainda que tal estivesse, assim como está inegavelmente manifesto em todas as
ações mediadas legalmente. Para a leitura de Santoro, a incerteza é apenas intimidada no sistema
inglês, o que se pode observar no estudo de A.V. Dicey, exploratório da Common Law of
[11]
England. Curiosamente, o Rule of law anglo­saxônico é o ponto de fuga, o atalho, o momento
simbólico­poético relembrado em tempos de multiculturalismo. Ele opera como a contenção
resultante de compartilhamento secular que limita a ação de governos e leis, opera como
extraordinário significado social e expande­se para além das formulações mais criativas que a
especulação sociológica pode conceber até aqui, algo que vai de Roberto Mangabeira Unger a
[12]
Jürgen Habermas, vez serem proposições que se valem de leituras das sociedades pós­modernas
compreendidas como cronicamente às margens de abismos e irracionalismos. A substância do Rule
of law anglo­saxônico, por indicar determinados extratos de cultura jurídica expressivos de vida
política à qual se integra ao cotidiano da ações de governo e também dos cidadãos orienta e sugere
a crítica que se faz ao Estado de Direito e de seus instrumentos de controle racional do ponto de
vista da sua base e de seu produto, ou, noutras palavras, a ação política e a lei.
O poder por meio da lei é o poder da política praticada no universo de cultura de um modo de
realizar a política, ou se se preferir, de uma enteléquia sobre a política. Nesta etapa, a exemplo das
explorações sobre o Estado de Direito, as relações entre o direito e democracia se especificam e
sugerem predicados sobre a natureza distinta de democracias como valor e não como organização
jurídica do poder. Essa imagem não prejudica os resultados “democráticos” originárias de
conformações diversas do Estado de Direito ou ainda o Estado de Direito abalado pelas maiorias
políticas ocasionais.
A hipótese nestes termos pensada centraliza sua atenção em termos decididamente prévios e
sugestivos de ulteriores desenvolvimentos, dos potenciais de leitura que possam auxiliar o exame
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 do nosso constitucionalismo no horizonte da passagem dos séculos XX e XXI, naquilo que resulta
de três leituras do Estado de Direito. Ainda que cada qual tenha sido desenvolvida atentando­se
para procedimentos metodológicos específicos, serão elas relacionadas sem a fratura de seus eixos
teóricos.
Nesse sentido, a leitura de Oscar Vilhena Vieira sobre as relações entre Estado de Direito e
neoliberalismo ocupou­se, no final dos anos 1990, com a formulação de Ludwig Von Hayek e com a
leitura moral de Lon Fuller sobre o direito, isso para singularizar o problema da desigualdade
econômica e de suas relações com ideais jurídico­constitucionais tais como o da liberdade. A leitura
de Emílio Santoro enriquece e potencializa a realizada por Vieira em duas dimensões, a da
particularização do paradigma legicêntrico, isso para além das constituições materiais, o que vai ao
encontro das preocupações de Vieira que tematizaram as relações entre Estado de Direito e
mercado. A hipótese formulada, como se destacou, na segunda metade da década de 1990 parece
revigorada, tendo em vista o momento econômico brasileiro em 2011­12, posterior assim ao ciclo
de valorização de suas commodities no mercado internacional, o que se dá paralelamente aos
problemas infraestruturais e compromissos financeiros assumidos no curto prazo.
Nesse sentido o Estado de Direito brasileiro compartilha desafios decorrentes da natureza de seu
crescimento econômico, exigentes da articulação insinuante do poder público na vida cotidiana, o
que não pode se materializar sem o resgate da dimensão constitucional, ainda que sejam
indiscerníveis, a cada manifestação do poder, o que se cede, se perde e se desconsidera em termos
de liberdade pública e garantias de cidadania. Da leitura de Santoro, o “outro lado da moeda”
desse Estado de Direito, o qual estaria em sua “terceira juventude”, é a presença incisiva do
Estado em razão da morfologia de instituições que compensam as formas de marginalização, mas
nem por isso podem se institucionalizar, também, sem o tecido legal. O paradoxo que tem sido
observado, o qual identifica algumas das conclusões de autores que se lançam à leitura do direito
considerando as ferramentas da sociologia e da teoria do direito, ainda que tenham partido de
premissas muito diferentes, é a perda, quase integral, do conteúdo histórico­jurídico conformador
do Estado de Direito, os quais, se por um lado, podem ser fragilizados pelo fato de serem pensados
e refletidos no altiplano da razão, por outro, é dessa mesma razão racionalizante que podem ser
pensadas alternativas. Para esta etapa específica, nossa hipótese considerará a formação dos
impasses resultantes dos limites das abstrações do Estado de Direito, tais como compreendidas por
[13]
Roberto Mangabeira Unger, nos termos das genealogias do direito moderno.
No universo das perguntas possíveis de serem formuladas às genealogias, poder e Estado de
Direito não são dissociáveis.
Há história e não narrativa da história, ainda que da análise das múltiplas formas de poder tais
como estas se insinuam sobre os cidadãos e privilegiem diferenças, sobremodo nas fontes jurídicas
perde espaço a possibilidade de compreendê­las só como veículo de certos extratos de poder ou só
como reação de extratos menos poderosos.
De modo mais detalhado, o constitucionalismo se debruça sobre as ferramentas de controle de
poder e da essencialidade das constituições, de seus riscos e limites sugerindo que questões sobre
os limites e os ajustes dessas ferramentas estão livres de contextos de poder. A exploração da
história das instituições é a imagem não histórica da sua formação e ainda que desgastadas, estão
voltadas para si mesmas como figuras modificadoras da engenharia social e da experiência
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 constitucional. Toda uma relevância, ou noutras palavras, toda uma imagem do Estado de Direito e
o que de intocabilidade vai nele se sedimentando como espécie de resíduo não é o que propõe a
instigante leitura de Roberto Mangabeira Unger. As genealogias prospectiva e retrospectiva da
análise racionalizadora das fontes do direito estabelece, a partir do universo teórico no qual
radicam importantes potenciais de análise do poder, que é algo precário redefinir ou insistir nos
potenciais cognitivos dos troncos jurídicos público e privado.
O quadro teórico elaborado constitui iniciativa, ainda que tímida, para debater nosso direito
constitucional em tempos nos quais o Brasil é tido como protagonista que compartilha, juntamente
com as mais vigorosas economias do planeta, a responsabilidade de proteger múltiplos direitos, os
quais são resultantes, inclusive, de Tratados Internacionais. Ainda que às voltas com seus desafios
histórico­econômico­políticos, nesse contexto, vê­se às voltas, também, com a redefinição de
alguns direitos no plano interno. Ambas as dimensões reforçam a constatação de tratar­se de
vivenciarmos uma cultura de direitos, em muito instituída pela Constituição de 1988. Para tanto
carecemos de interpretação e também de imaginação. Ambas, enquanto sujeitos da modernidade,
são retiradas da história de nosso tempo e é por isso que nesta etapa este trabalho considerará,
num breve interlúdio, os desafios de capturá­la.
2 Problemas de teoria da história e de história do direito
Em 1995, Eric J. Hobsbawm compartilhou com alguns brasileiros as dificuldades que enfrentou para
escrever A era dos extremos. O historiador marxista parte do problema de narrar o tempo por ele
vivido e de como sua vida moldou suas compreensões e como no tempo foram se alterando. A
fantasia pode estar na confusão entre a contemporaneidade do historiador, seu ambiente, os fatos
vivenciados e aquilo que ele mira no passado. O historiador visualiza no passado o que vivencia no
presente. O passado é seletivo e também relativo, ainda que tal seletividade tenha como embrião o
tempo do historiador. No presente este detetive do tempo e da cultura corre risco de ser
sequestrado pelas experiências coletivas. Menos ainda inconveniente que este “sequestro”, poderá
se distanciar das suas próprias. O que forma o material do historiador num primeiro olhar são
acontecimentos os quais constituem marcos consensuais, “quadros” de exploração e de referência
[14]
“construídos por nós e no qual encaixamos nossas próprias experiências”.
Hobsbawm não
deposita crédito no tocante à existência de consenso entre historiadores, consenso o qual
responderia em parte pela identidade existente do material histórico sobre o qual se debruça a
investigação histórica. Como historiador do século XIX, seus interesses sobre o século XX levaram­
no a atingir entendimentos diversos comparativamente àqueles que trabalharam o mesmo campo,
ainda mais por ter testemunhado a ascensão do nazismo sendo estudante na Alemanha. A história
[15]
do direito não constitui domínio indiferente a estes problemas. Pietro Costa entende que “a
história do direito apresenta problemas específicos que seria interessante afrontar”, contudo, ela
“pertence integralmente ao ramo do conhecimento histórico”, aspecto que primeiramente reclama
na especulação historiográfica o escrutínio de problemas que possam ser especificados na
exploração jurídica, isso à medida que a investigação sobre as fontes históricas do direito de
incrementam:
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 Uma característica atual do conhecimento histórico é, de fato, de ser não um objeto,
mas um ponto de vista: todo aspecto da realidade humana pode ser objeto do
conhecimento histórico. Pode­se fazer, e se faz, história de tudo: da política, das
religiões, da arte, da música, da agricultura, da sexualidade, do trabalho, da cultura
material, dos saberes, do direito. Cada uma destas historiografias afronta aspectos
específicos da experiência e deve, portanto, dispor de conhecimentos adequados à
compreensão de seu objeto.
[16]
Mas, e se o historiador se ocupa de seu tempo vivido e experienciado, o que pode ser ao mesmo
tempo considerado e especulado no tocante a esta temporalidade compartilhada? Hobsbawm
relembra que ao narrar aos seus alunos americanos que voltava da escola na companhia de sua
irmã quando deparou com as manchetes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha, moços e
moças reagiam como se ele “tivesse dito que estava no Teatro Ford quando o presidente Lincoln foi
[17]
assassinado em 1865”.
Ainda que separados por quase cem anos (homicídio de Abraham Lincoln
em 1865 e a nomeação de Hitler chanceler em 1933), ambos os acontecimentos pareciam “pré­
históricos” aos jovens estudantes. Os acontecimentos que uma vez pinçados ao altiplano do relevo
e da importância para a história, que não são na realidade fruto da atividade do historiador,
acabam por gerar toda uma convicção, todo um horizonte, ou melhor, espécie de atmosfera na
qual se contém elementos que aleatoriamente alimentam enteléquia de questões sobre a
realidade, tal como nos traz Hobsbawm, no tocante à sua experiência militar, vivida por ele
durante seus primeiros meses na Segunda Guerra Mundial. Nesse tempo, a Inglaterra, conta
Hobsbawm, temerosa das convicções de Winston Churchill, ainda considerava as possibilidades de
política de entendimento com o facismo, nos moldes estabelecidos por Neville Chamberlain. Mas
uma vez alistados e enviados para proteção do litoral sul inglês, todos os soldados compartilhavam
a “suposição automática, irrefletida e absoluta [...] de que iríamos guerrear”.
[18]
O ambiente de irracionalismo que o regime nazista trouxe para o cenário mundial — segundo a
narrativa do historiador — levou também Josef Stalin a dar crédito à possibilidade de entendimento
entre as nações europeias, ante aos esforços de composição política expressivas de concessões às
demandas não resolvidas e resultantes do primeiro grande conflito europeu entre 1914­1918. A
história parece lançar até mesmo àqueles que compartilham determinados acontecimentos, dados
e fatos encadeados algum grau de aleatoriedade quanto à sua captura, vale dizer, o que é
catástrofe para a África subsaariana, sua fome crônica, miséria, endemias, mas principalmente
ausência de mecanismos de solução em curto e médio prazos, poderá parecer a um europeu em
pleno século XXI, aspectos de determinismo, fruto da geografia do continente, da natureza das
relações do homem africano com o meio no qual vive, entre outras peculiaridades atinentes à
cultura do local.
Nesta altura é possível recorte nos termos propostos por Hobsbawm. A questão é considerar se
esse recorte vale para a história do século XX tanto quanto para a história do direito, considerada
esta como reflexão que se deixa envolver com as fontes jurídicas escritas e consolidadas no tempo
e no ambiente político no qual se opera a caracterização, também histórica, dos estados modernos
e da moderna dinâmica das trocas econômicas.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 Gestada a partir do século XV, dos estertores da Idade Média, as primeiras formas jurídicas nas
quais se exploram raízes da racionalidade jurídica moderna se relacionaram com o comércio, com
os poderes dos príncipes. Glosadores e anotadores que tinham acesso às fontes romanas
inauguraram o hábito de relacionar aspectos vivenciados nesse tempo com os textos antigos,
coligindo deste e neste hábito materiais os quais eram interpretados como direito ou relacionados a
este. É nesse sentido que a historiografia é também condicionada pelos limites das relações que
poderá sugerir com o passado. Considera­se o estabelecimento de relações apenas partindo do
presente e nesse esforço há que se considerar também o risco de aparente paradoxo:
parece, a rigor, uma empresa impossível; parece com a tentativa de conhecer
alguma coisa que não é, não existe; alguma coisa que foi, mas não é mais. Não
inventamos ainda a máquina do tempo de Wells. Somos prisioneiros do nosso
presente. De que modo então podemos pretender conhecer o passado? De fato, não
podemos nos aproximar do passado diretamente; não podemos ter dele um
conhecimento imediato; não podemos nos relacionar com o passado como nos
relacionamos com a experiência que estamos vivendo em primeira pessoa. Podemos
conhecer o passado somente por meio daquilo que o passado deixou nas nossas
mãos.
[19]
Essa contundente lição sobre limites, ao mesmo tempo que é o diagnóstico do ofício do historiador
destacado, por Pietro Costa, pode ser ilustrada nas desmistificadoras imagens de Hobsbawm. Ao
aproximar­se ainda mais da natureza da narrativa do século XX, esta reclama algo mais, talvez
além daquilo que possa o historiador capturar, sendo época a qual reclama, “sem nenhum esforço
especial, o quanto as coisas se modificaram”:
[20]
Aqueles que são suficientemente velhos para lembrar não acham normais tais
mudanças. Os jovens não podem saber, mas os historiadores mais velhos sabem,
sem o menor esforço, que o “passado é outro país. Lá, as coisas são diferentes”. Isso
pode ter uma ligação direta com nosso julgamento sobre o passado e o presente.
Por exemplo, por haver vivenciado a ascensão de Hitler na Alemanha, sei que os
velhos nazistas da esquina se comportavam de forma muito diferente dos
neonazistas de hoje. Duvido que haja um registro de um caso no começo da década
de 30 em que uma casa de judeus, com seus habitantes, tenha sido atacada e
incendiada por jovens nazistas que agissem sem ordens específicas, como acontece
com frequência atualmente nas casas de turcos e de outros imigrantes. Os jovens
que fazem isso podem usar os símbolos da era de Hitler, mas representam um
fenômeno político diferente. O início da compreensão histórica é uma valorização da
alteridade do passado, e o maior pecado dos historiadores é o anacronismo.
Portanto, temos uma vantagem natural que compensa nossas inúmeras
[21]
desvantagens.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 Não há aspectos positivos ou negativos que unam ou afastem gerações de historiadores como
pessoas que vivem experiências em sociedade. Caberia dizer se a mesma afirmação vale para
juristas versados em história ou juristas tão só versados em fontes positivadas, ou ainda aqueles
que cultivam a filosofia e teoria do direito o que autorizaria recriminação de uns em relação aos
outros, isso em razão de serem detentores de predicados diversos. A experiência do jurista e a
formação que traz consigo está além do tempo por este vivido? Os primeiros poderão “operar” tais
fontes de modo mais aproximado ao seu tempo, resgatando os sentidos do passado e adaptando­os
ao presente consoante leitura das mudanças no texto relativamente ao presente. O jurista expert
em fontes legais e precedentes judiciais pode imprimir limites ao passado ou será isso
integralmente desnecessário ou até mesmo negativo, sendo preferível que este intérprete esteja
conectado tão só à vivência de sua época, com seus desafios e características específicas? Se a
“idade” do historiador é decisiva, partindo de certos acontecimentos que lhe impingem ranhuras
por meio das quais “lê” seu tempo, não menos relavante será o “efeito da passagem dos anos do
[22]
século sobre a perspectiva do historiador, seja qual for a sua idade”.
Se consideradas as
dimensões de certos eventos históricos, tais como as dimensões econômicas da queda do muro de
Berlim em 1989, aquilo que para alguns historiadores pareceu ser inevitável em razão da
obsolência dos meios de produção do mundo comunista, para outros nada significaria se sua
perspectiva fosse oriunda do interior da cortina de ferro. Para esse investigador, um colapso
iminente não iria além de alguma fantasia, pois seu nível de satisfação material, de acesso aos
serviços e meios de transporte, observada a história da Europa oriental, estava muito além das
gerações que o precederam. A compactação da história do século XX, para Hobsbawm, se aproxima
dos efeitos da incidência dos mecanismos de interpretação de registros do passado, ainda que estes
sejam magnificamente numerosos e diversos. Ocorre que a percepção generalizada entre
intelectuais, de que após os eventos de 1989 não seria mais possível narrar o século senão por
meio de novos mecanismos de compreensão, eclipsou o aspecto central. Ainda que seja possível
afirmar ser o aspecto econômico o decisivo no tocante à ruptura do mundo socialista, aspecto que
emergiu dessa mesma região, ainda ela, durante seu curto período de existência, foi indicativa dos
avanços democráticos obtidos no Ocidente, pois o que mais se exigiu foi a reorientação e
reorganização do capitalismo liberal. A imagem que o Ocidente compartilhou do mundo socialista
provocou também considerações de monta em seus líderes e políticas.
A teorização do direito constitucional em muito invoca o período seguinte à Segunda Guerra
Mundial como etapa do desenvolvimento de esforços capazes de moldar o Estado do Bem­estar
Social e direitos fundamentais. No mais das vezes compreendeu­se ser a construção de
mecanismos que impedissem uma vez mais a materialização dos riscos pelos quais atravessaram
os Estados liberais até o colapso de Weimar. Toma­se o contexto do mundo da era nuclear, da
guerra fria, da tecnologia e da cultura de massas segundo roupagem do fim da Belle Époque para
então destacar a necessidade de serem cogitados dispositivos de proteção social como se estes,
uma vez inexistentes, descaracterizassem uma “plumagem constitucional” específica, menos cínica,
mais atenta ao nosso tempo, ainda que tenhamos de compreendê­la num sentido e funcionalidade
[23]
marcadamente distintos. Isso é a um tempo algo mistificador e idilicamente constitucional.
Os
pressupostos sociais de outrora, se invocados como ponto de partida, não irão além de
rememoração que se por um lado constituem história, não constituem o melhor gabarito para
compreensão do “ hoje”. Nesse sentido a leitura de Hobsbawm intriga e autoriza a percepção
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 segundo a qual a insistência na dimensão social das constituições ocidentais por muito se inspirou
na experiência socialista como alternativa.
Mas a partir dos anos subsequentes ao final da década de 1980, os problemas do mundo
capitalista, ao não ter mais como antagonista os regimes do leste, foram abalados pela inexistência
de um norte a seguir. O Estado do Bem­estar, pensado como mecanismo de desativação das
necessidades da classe operária, e compreendido por alguns autores como espécie de metáfora ou
eufemismo do sistema capitalista, perdeu seu alicerce se limitando à versão ocidental alternativa
da acumulação privada do capital. Hobsbawm destaca que a inicial perspectiva de compreender o
século XX como um “díptico”, ou seja, como período anterior aos conflitos mundiais não seria mais
possível. A história do século XX parecia agora mais um “tríptico”, considerando­se dois períodos de
crise separados pelo pós­guerra, no qual se buscou resgatar, até onde foi possível, as condições do
final do século XVIII e início do século XX.
Do itinerário de Hobsbawm cabe relembrar esse ponto: o da experiência do tempo para o
historiador em singular e o da passagem do tempo para esse mesmo sujeito. Como para nós
assume substância especial o passado recente? Trata­se do imprevisível, da intensa aceleração de
[24]
certos acontecimentos, da erosão de alguns alicerces e certezas. A partir da primeira década do
século XXI é possível organizar fontes que robustecem a afirmação do historiador inglês, para
quem o mundo do século XX escondeu, sobre o manto de determinadas generalizações, tais como
mundo capitalista e mundo socialista, Ocidente e Oriente, seus modos de produzir bens materiais e
as respectivas ideologias que lhes serviram de sustentação, a diversidade que tão só explorador
atento poderia atingir, indo além dos padrões de compreensão que muito contribuíram para
edificar realidade próxima da fantasia.
Eis etapa importante: a história contemporânea como fantasia e a história contemporânea como
constatação de algumas projeções a partir das quais o historiador de seu tempo acaba por se
vergar. Trata­se de risco e inclinação que não são exclusivas do historiador. Mesmo que elas não
encontrem no presente qualquer possibilidade de acomodação ou viabilidade, num tempo no qual a
[25]
“a experiência fundamental foi o engano e a surpresa”
assim como o surgimento de seitas, de
movimentos sociais que professaram opções aos meios de vida urbano e de trabalho, de guerras
religiosas e étnicas, bem como desencantos face a situações imprevisíveis, o esforço de narrar se
concentra ainda mais sobre a probabilidade do engano e da incompreensão, sobre a certeza de
alterações na estreiteza desse espaço temporal que foi o século XX. Essas situações não constituem
obstáculos ao novo, à aproximação e à proposição de caminhos investigativos os quais, diante de
realidade, em tudo marcada por pouco ou alguma solidez, desafia a mente do historiador.
Válida é a preciosa afirmação de Pietro Costa, segundo a qual “presente é realmente uma prisão
[26]
sem janelas e portas”? Ou é muito mais precioso observatório?” Para o historiador do direito
italiano, do tempo e do espaço vivenciados o que resulta é a setorialização de certo ponto de vista,
algo que conta com alguns instrumentos e lança­se na aposta pascaliana da ausência de certezas.
Nada nos garante que não dispomos de instrumentos que nos dêem certezas. Nada
nos garante que não estamos projetando no passado o nosso presente, ao invés de
efetivamente entrarmos em contato com uma realidade outra com relação à nossa,
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 diferente e distante. Aposta do historiador é justamente a tentativa de dizer alguma
coisa sobre mundos distantes e perdidos; de tecer uma narrativa que se propõe a
[27]
dilatar os confins do imediatamente presente.
Essa dilatação, no horizonte do direito, deverá considerar algumas peculiaridades. Ainda que opere
sobre fontes não mais contemporâneas ao seu exame, é importante que o historiador do direito
não confunda propriedade com usufruto e o juiz instrutor com o ministério público. Se o historiador
do direito age e reage a textos, sendo eles na maioria textos de experiências jurídicas, ainda que
[28]
não mais vigentes, não mais são vivenciados, nem por isso se poderá afirmar que não existam.
A questão é como existe, como perdura no tempo a composição abstrata do Estado de Direito, algo
que sugere multiplicidade de propostas e mesmo um esboço conceitual preliminar. As investigações
sobre o Estado de Direito trazem esse desafio: que se verifique o que se materializou nas
instituições e nas constituições e o que permaneceu no plano da teoria, das proposições, das
soluções apresentadas a um mundo num intervalo cuja dilatação é cronológica (uma vez que esse
legado chegou até nossos dias) e, também, comparatística, dadas as roupagens que o Estado de
Direito acomodou. Nos tópicos que seguem o esforço é desenvolver alguns elementos sobre o
Estado de Direito no contexto de relações de poder, intimidando, tanto quanto possível, narrativa
das suas etapas formativas, prática que é fadada ao fracasso em textos que são desejosos de
afrontar questões histórico­jurídicas.
3 A exploração da formação do Estado de Direito
O Rule of law e o Rechtstaat anglo­americano e alemão conquanto sobrevivam sobre a designação
de Estado de Direito foram analisados por Max Weber como envolvidos por mecanismos erosivos
compreendidos por esse autor como processos de debilitação dos mecanismos de administração da
[29]
justiça.
O Estado de Direito alemão foi lançado aos desafios das tarefas de Weimar, não mais
sendo possível cogitar a manutenção das rígidas formas de administração prussiana.
Para Oscar Vilhena Vieira, o universo anglo­americano foi por sua vez influenciado pela re­
compreensão do Estado de Direito limitada à sua substância liberal, a qual considerou, também,
[30]
novos padrões interventivos na economia capitalista tal como pensada por Friedrich A. Hayek.
Esta é também a leitura de Emilio Santoro. Nos países capitalistas do Atlântico Norte, segundo a
formulação de Hayek, o liberalismo materializado nos direitos civis e políticos é confrontado pelos
[31]
direitos sociais. Estes, na leitura de Santoro, hoje detêm expressão biopolítica. As sociedades e
os Estados ocidentais, nos últimos vinte anos do século XX, redimensionaram seus papéis
institucionais, o que se deu pela expansão dos serviços públicos, inclusive os de segurança pública,
face ao aprofundamento de situações de marginalização de toda espécie. Os direitos privados e a
acumulação material, sempre criativas em sua proteiformidade veiculam­se, também, nas formas
jurídicas de políticas públicas, situações nas quais os Estados lhes aprimora as já importantes
conquistas históricas diferenciadoras quanto às dinâmicas sociais. Objetivamente, a manutenção
dos direitos sociais se opera segundo aspectos funcionais, isto é, resguardando apenas a
terminologia daquilo que outrora foi observado nas etapas histórico­políticas de seu surgimento.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 Tendo em vista sua conformação mais aproximada junto a outro ideal político moderno, qual seja,
a autonomia individual, os direitos sociais funcionalizam as trocas econômicas. Parece adequado
compreender as reivindicações por direitos sociais nos termos de algo constitucionalmente
independente do político.
Na exploração de Santoro, espécie de antropologia política identificadora do trabalhador nas
sociedades capitalistas se ressente de graus cada vez mais característicos de despolitização,
constituindo equívoco compreender as formas normativas de direitos sociais como fendas na figura
abstrata do Estado de Direito. Ainda para Santoro, a normatividade desses direitos, como já
destacado, está mais próxima de funções de troca econômica. Isso implica e exige do investigador
considerar que a densificação de instituições políticas e de aparatos jurídicos, por corresponderem
a dispositivos disciplinares de controle social, serão compreendidos na microestrutura de
regulamentos, de instruções, de proibições, distante, portanto, das figuras genéricas, amplas e
fundantes que as formulações do Estado de Direito contém.
A fonte doutrinária do Estado de Direito destacada por Santoro, a exemplo de Vilhena Vieira, é a
formulação de Hayek em 1944. Mas a proposta de leitura de Santoro concentra­se na preconização
hayekiana de um Estado de Direito que não traga em seus pressupostos mecanismos interventivos,
o que configura clara renúncia à perspectiva histórica à qual as democracias ocidentais haviam
chegado. Nova formulação sobre a autonomia individual, que deve ser aprofundada em termos não
necessariamente jurídicos, mas políticos, deverá encontrar no Estado mecanismos suficientes de
continuidade e proteção. Duas imagens histórico­políticas concorreram nos anos 1959 para
emprestar sustentação à versão econômica do Estado de Direito: o potencial de falha ou, o que
equivale à mesma hipótese, a precariedade dos Estados constitucionais sociais no período anterior
ao segundo conflito mundial e a ameaça do mundo socialista.
[32]
Essas imagens políticas fundadas em analogias generalizantes
alimentaram ideologia do Estado
de Direito limitado mais preponderantemente à proteção de liberdades civis. Se os estados não se
fortalecessem, estes estariam às voltas com regimes de exceção. Mesmo assim, em época na qual
parecia insustentável a retomada de versões jusnaturalistas do século XIX, surgem na cultura
[33]
jurídica as primeiras discussões sobre a moralidade do direito. Dada sua plasticidade, o Estado
de Direito, neste tempo de ameaças letais e conquistas tecnológicas impensáveis alimentou­se da
alternativa política de conteúdo social vivenciada no leste europeu, mas com a intensidade menor
e munido da tese da moralidade a informar fontes jurídicas e instituições políticas compreendidas
[34]
elevadamente como “emblema dos valores da civilização ocidental”.
A especulação de Lon Fuller sobre a legalidade destacada por Santoro exemplifica esta plasticidade.
Inspirada em John Locke, a convergência de assembleias políticas, vontade geral e abstração
qualificam a lei como bom componente dos regradores dos sujeitos em sociedade. As críticas aos
limites jurídicos que na construção normativista cedem cada vez mais espaços ao poder político e
às ações estatais tão só compensatórias constituem na leitura de Santoro uma ilusão. O Estado de
Direito na versão de Hayek é político e não jurídico kelseniano. Observava­se a versão do
liberalismo com pitadas de formas jurídicas racionais, e ainda que as etapas analíticas fossem
totalmente diversas, acentuava­se noutra etapa orientação no sentido de conter o poder em bases
racionais e legais.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 A permeabilidade do direito, deste modo, não é intimidável por toda uma arquitetura constitucional
vez que os predicados jurídicos próximos da democracia como filtro do que deve ser a legalidade
nem sempre são confiáveis. A abstração do estado de Direito destaca a certeza de organização
social, mas não a individual. A liberdade resguardada como ideal político tampouco dialoga com
questões mais delicadas da teoria jurídica e da estrutura política. Ambas, inter­relacionadas nas
funções estatais, novamente se defrontam com a necessidade de multiplicar em bases normativas
[35]
as direções que venham a instituir para que se operem as relações entre Estado e sociedade.
Nota­se que a crítica do Estado de Direito de Hayek implica retomada das principais ideias sobre o
tema como foram desenvolvidas nos séculos XVIII e XIX. Ainda que isso tenha sugerido, por sua
vez, debate livre da confrontação ideológica em razão dos eventos de 1989, este é confuso, uma
vez que direitos subjetivos que não apenas os sociais coexistem com a progressiva insinuação de
mecanismos normativos também sociais, sejam disciplinares ou biopolíticos.
Portanto, foi a falta de alternativas aos modelos político­jurídicos das democracias
ocidentais que colocou novamente a noção de “Estado de Direito” na ribalta. Apelou­
se a esta noção por sua capacidade de evocar uma estrutura de poder estatal capaz
de assegurar aos indivíduos aquela possibilidade de organizar autonomamente a
própria vida que, como vimos, era almejada por Hayek, e que os atuais
ordenamentos do mundo ocidental não parecem garantir satisfatoriamente.
[36]
A utilização da expressão nesta etapa deve considerar sua “terceira juventude” e assim passar a
conter não os efeitos evocativos e retóricos. Compreender o Estado a favor de liberdades e como
obstáculo às técnicas de soberanas e disciplinares institui, sobremodo como relação às duas últimas
tarefas constitucionais, algo imaginoso. A proliferação contemporânea à peculiarização de situações
controladas e controláveis exige estrutura de serviços estatais, as quais multiplicam tarefas
envolvendo pessoas. O que outrora, na abstrata face do ideal político­jurídico do Estado de Direito,
constituiu o esboço claro de organização social, nutre­se hoje de atmosfera na qual fontes
normativas, regulamentos, instituição de medidas de tempo, tributação desvinculada e insegurança
urbana são as respostas estatais necessárias e permanentes.
A formulação singela de Klaus Stern, a qual rememora a análise das Constituições como
mecanismo de controle e definição do poder, ou melhor, o das constituições como Estado de Direito
e do Estado de Direito como constituições é meio de considerar as relações existentes entre lei e
[37]
liberdade. A dimensão social da autolimitação racional não é mais síntese coletiva de liberdade
construída por representantes do povo. Devidamente coimplicados não garantiram a existência de
cidadãos autônomos atenciosos para com a cidadania. A existência de leis conformadoras do poder
tão só apreensíveis das suas reduções abstratas esvaneceu­se na multiplicidade de variantes do
estado de leis, explicitando mais intensamente a fragilidade de indivíduos.
Na ambientação histórica que detém a lei como fonte da liberdade e reconhece nela limites para
interações humanas desenhou­se, como salienta Pietro Costa, o desencontro entre
fundamentalidade de direitos e défice democrático para sua consolidação. O Estado de Direito
requer a partir desse ponto a exploração de seus elementos componentes, considerando esforços
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 que partam das funções estatais, embora resgatadas as advertências de Otto Bahr e Lorenz Von
Stein sobre a intocabilidade recorrente do problema da nomogênese.
É que na etapa posterior às investigações de Hans Kelsen, o Estado voluntarista cedeu lugar ao
Estado sujeito de direito e se para tê­lo enquanto abstração normativa restou ensejado o
desenvolvimento da jurisdição constitucional, qual progressão qualitativa pode advir da atividade
de juízes que interpretam a lei e juízes que interpretam a Constituição. Conquanto a relação
imediata a partir daí seja a dinâmica entre lei e Constituição e não mais lei e representação
política, trata­se de outra construção formal racional a qual busca acomodar o poder contando com
o a premissa de tê­lo juridicizado. O substancialismo da lei produto da atividade legislativa
confrontada com as conquistas de sociais teria obtido ganhos, fruto do impasse quanto à soberania
legislativa. Mas, em não mais de quarenta anos, passou a fazer sentido uma vez mais: o que é
essencialmente constitucional? O que é digno de estar nas constituições. Como aprofundar
[38]
teoricamente o núcleo material das constituições? Aspectos essenciais e secundários às
constituições não se prestam a responder o que exige a integração estatal. Há nisso relevo que
atinge período histórico que, se negligenciado, compromete a compreensão do constitucionalismo.
4 Estado de Direito e sistema de direitos
É possível falar, neste tópico, em congruência aos elementos desenvolvidos nos anteriores, que a
existência de variantes do Estado de Direito desafiaram, ao longo de suas formulações e
institucionalizações, a implicação Law in action x Law in books, e em medidas distintas, também
suas respectivas narrações, deram operatividade e plasticidade a conteúdos políticos sugestivos de
formas de equilíbrio e dinamização do poder controláveis e exitosas.
O Estado de Direito parece ocupar lugar especial, nesses termos. Ele é formação racional e
persuasiva, dados seus elementos políticos indissociáveis, fato que sugere a cautela de toda e
qualquer tomada de posicionamento face às suas formulações, realidade que requer as cautelas
que apenas a interpretação pode ofertar.
[39]
Uma delas é a de Roberto Mangabeira Unger.
Perry Anderson compreende o trabalho de Roberto Mangabeira Unger como a combinação de dois
objetivos bem claros: pode­se observar uma teoria explicativa de sociedade e um programa de
reconstrução social. Ambas dialogam por serem alternativa radial ao marxismo e à social
democracia. O Estado de Direito no contexto maior da social democracia é indício de processo de
redefinição de hierarquias sociais. Embora sua perenidade seja desafio, trata­se do mais bem
acabado modelo de “organização social” do mundo de hoje, o “menos opressivo, o mais respeitoso
das necessidades conhecidas, o melhor que a sociedade pode esperar, por um período indefinido de
[40]
tempo”.
Ainda assim, a crítica que propõe não é de aperfeiçoamento e ajustes, mas de
reconstrução uma vez que a social democracia não impediu que “o projeto liberal do iluminismo —
a causa da liberdade, igualdade e fraternidade — em refém de uma ordem institucional transitória
e substituível. Os pilares desta ordem são um Estado que exige e produz uma cidadania
quiescente; mercados dominados por direitos de propriedade absolutos em duração e alcance;
processos de trabalho desnecessariamente imbecilizantes e inflexíveis. A social democracia
persegue seus objetivos no limite dos parâmetros definidos por eles”.
[41]
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 Nesses parâmetros os sujeitos poderão compreender a sociedade na qual vivem e se relacionam e
movimentar­se em uma comunidade de direitos que requer análise racionalizadora das fontes.
Essa análise, se tida e lida enquanto ferramenta do programa de Unger, não se confunde com a
análise lida e compreendida que qualquer intérprete poderá desenvolver na etapa da teoria
explicativa. Na etapa do programa Unger propõe versão das fontes do direito sob a influência
daquilo que denomina de genealogias, algo que é inconfundível com a compreensão dos direitos
enquanto fontes históricas positivas.
Diante das genealogias prospectiva e retrospectiva solidamente configuradas histórica e
politicamente um sistema fechado de direitos poderá minimizar o excesso de generalização da
legalidade e o arbítrio de escolhas discricionárias se reorientado por políticas públicas e princípios
que traduzam opções coletivas. A integralidade do sistema de direitos — a exemplo do brasileiro —
ao se valer dos predicados da analogia, ainda que as situações fáticas sejam convidativas às
variações das consequências legais, não detém armas para aferir se decisões assim obtidas se
conformam a pautas de comparação e distinção. A ferramenta da analogia, conquanto invoque os
sistemas de direitos, liberta o intérprete para manejá­lo arbitrariamente. Se esse procedimento
não restar abalado, a integridade jurídica compartilhada pelas fontes costumeiras e
jurisprudenciais, pois ambos são materiais também jurídicos, corre­se o risco de serem gerados
“horrores” ou mesmo novas etapas para a valorização do sistema de direitos e do Estado de
Direito.
Se estivéssemos na situação de uma tribo estereotipada, unida em visão e valores
vivamente definidos e partilhados, não precisaríamos de estado de direito, ou nem o
desejaríamos. O estado de direito pertence a uma circunstância histórica coerente
dos constrangimentos que tornaram a prática da analogia previsível.
[42]
Os sistemas de direitos do civil law não dispõem de mecanismos que possam conter situações
arbitrárias e nem mesmo absorver em decisões jurídicas corretivas o conflito ideológico latente nas
relações sociais. Tal se faz por meio da política e de regimes que aproximam o direito dessas
situações apenas indiretamente. Se os direitos previstos no sistema de direitos contivessem em
seu teor formas expressivas da política, vale dizer, do poder de decisão em último grau, os
eventuais litígios se reportariam não a sínteses jurídicas, mas a compromissos ideológicos que
sistemas jurídicos não poderiam manejar. A impossibilidade dessa conexão retiraria do regime
democrático seus alicerces e, também, os direitos resultantes desse regime, uma vez que não
haveria sentido a representação política como antecâmara na qual se moldam os direitos.
Os predicados do sistema de direito os quais são enfrentados e provocados pela análise oferecida
nos termos de seus próprios mecanismos conta com proibições à elaboração livre de normas que
não lhe guardem correspondência, ainda que tolere formas distintas de interpretação. Dois
aspectos eclodem do sistema de direitos, assim compreendido: o direito não se dobra à luta
ideológica imanente à sociedade (muito embora normas de direito sejam para alguns sínteses
ideológicas), mas oferece, para aqueles que dele venham a se valer, espécie de figura depressiva e
gratuita, vez não corrigir, tal como pensa o cidadão comum, as distorções que foram praticadas
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 contra a normalidade social.
O Estado de Direito, na leitura de Unger, é face mais importante do sistema de direitos, tendo em
vista sua composição elementar associada aos vínculos que os detentores do poder devem
considerar relativamente aos direitos. A interpretação, a aplicação e a execução das leis estão tão
próximas ao Estado de Direito quanto compreensíveis forem ao público ao qual se destinam. Ocorre
que a erosão da racionalidade da administração da justiça detectada por Max Weber permitiu o
exame casuístico de interesses cujo conteúdo traduz estratégias de poder em sociedade, exame tal
que resguarda relações de pertinência enfraquecida com as normas. Nesse aspecto específico o
direito fica confinado à dimensão unicamente persuasiva, o que não significa que não se operou
nele alguma técnica de interpretação, ainda que esta não tenha se aproximado de finalidades
coletivas nas quais, até mesmo o conteúdo moral possa ser considerado.
Não se trata então de conceber o Estado de Direito nos termos de uma abstração a informar o
sistema de direitos. Compreendido em sua operacionalidade, fontes normativas, doutrina e
decisões judiciais confrontam­se aos sentidos mais comuns das palavras, as quais veiculam
atribuições impessoais, por sua vez “atribuídas racionalmente direito que todos podem
entender”.
[43]
Para Unger o Estado de Direito que tenha desencadeado essas e outras
transformações no sistema de direitos poderá resistir aos abalos da democracia uma vez que as
conquistas desse regime político, compreendidos sobremodo a igualdade das formas de participação
política e de acolhimento dos direitos terá se materializado. Qual é a premissa vabilizadora daquilo
que podemos abstrair como interseccionamento constante entre Estado de Direito e sistema de
direitos? Trata­se de compreender o direito em sua arena pública, a qual deve ensejar sua
compreensão em termos de uma preocupação constante com a generalidade do entendimento e
sua aplicação soberana. Nessa altura o leitor não familiarizado com a exploração de Unger, a qual
remonta à Law in modern society e Knowledge and politics poderá indagar: a análise jurídica
racionalizadora incide sobre fontes jurídicas compreendidas sob quais ferramentas
epistemológicas?
O direito, para Unger, é algo arbitrário, não necessariamente disposto e organizado em campos ou
disciplinas que resguardem graus diversos de especificidade. A arbitrariedade no seu sentido mais
negativo expõe­se em decisões subjetivas e radicais impraticáveis e, no sentido menos negativo,
em orientações e formações contextuais cuja discricionariedade exige autoridade e ilegítima no
Estado de Direito, recaindo, assim, na vagueza. A análise racionalizadora, mesmo que conduza o
intérprete ao lugar confortável no qual este pensa ter cumprido com seu dever, “gera formas de
arbitrariedade que são pelo menos tão problemáticas, intelectual e politicamente, como as de seus
rivais conhecidos. Sua alegação de que é necessária, ao estado ou ao sistema de direitos, portanto,
[44]
não se sustenta”.
A história do Estado de Direito na compreensão de Unger diverge das mais conhecidas pelo fato de
destacar que a reconstrução racional de direitos no ambiente liberal, cuja conexão a limites
também construídos pela razão poderá ser mais profundamente explorada se consideradas duas
genealogias. O que podemos ter em mente ao considerá­las em seus sentidos prospectivo e
retrospectivo é o esforço compreensivo no qual se vislumbram aproximações do materialismo
dialético, da apreensão da história do poder em ruptura e em interferência constantes nas relações
sociais, interferência na qual, por um lado, resgata em Weber esferas distintas e autônomas de
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 racionalidade, de outro, essas racionalidades projetam­se e cristalizam­se aleatoriamente em
figuras inespecíficas que não necessariamente poder político.
Prospectivamente, o direito é o produto de conflito real, conduzido por longo período
de tempo, entre vontades e imaginações, interesses e visões muito diferentes.
Quando o estado de direito é estabelecido na forma de democracia, esse pluralismo
adquire valor explícito e positivo: tornar possível a escolha relativa de estruturas
sociais em face de um pluralismo profundamente arraigado e organizar o conflito de
modo a revigorar em vez de reprimir é uma maneira de definir o objeto da
democracia.
[45]
A democracia é então algo simples que deriva de pluralismo instituído e também garantido pela
ordem política. A democracia não é forma de organização racional cujo resultado seja a
especulação teórica de estudiosos e sábios. Pelo fato de os conflitos gerados no pluralismo serem
relevantes e pertinentes à totalidade dos cidadãos, suas conquistas não se tornarão apanágio de
grupos que usarão sua liderança temporária para, em ocasiões diferentes, interpretá­la como
atributo meritocrático. A genealogia prospectiva de Unger, conquanto prefira as democracias,
poderá existir e não se enfraquecerá se purificada pela doutrina jurídica, se não perder o seu
extrato social em situações autoritárias que tenham continuidade no tempo.
O autoritarismo se singulariza nesta hipótese por uma flexibilidade paradoxal, pois é livre em
escolhas, porém impeditivo de mudança das leis e de sua aplicação. Uma ordem social hipotética
com tais características de análise é tão patológica quanto as sociedades primitivas que vivem de
consensos provenientes de superstições, sendo estas negativas ao conflito.
As genealogias prospectiva e retrospectiva abandonaram suas principais características no
[46]
imaginário do direito por meio de “vocabulários convencionais”
de discussão do direito: a
linguagem dos grupos de interesse, do direito como acordos e a linguagem realizadora do direito
como políticas públicas e princípios. Nenhum dos vocabulários é descrição precisa das práticas
concernentes ao direito em que são aplicados. Sua coexistência desconfortável, não obstante,
fornece testemunho indireto do problema de ambas as genealogias. A genealogia prospectiva
precisa ser novamente escrita sob influência da generalização que contenha orientações coletivas.
Neste ponto não possuem restrições as interpretações que afastam os entendimentos da cultura
jurídica dominante que deverá ceder posições aos esquemas jurídicos cuja tessitura traga em seu
bojo proposições para problemas coletivos. De outro modo, diante de “propósitos, argumentos e
distinções” que estabilizam a permanência de fontes restrospectivas, obtém­se “uma aparência de
[47]
razão ordenada” e se razões de convencimento se instalam, preconiza­se ainda mais as
hipóteses legítimas que determinam a permanência de fontes retrospectivas. Devem ser
consideradas duas etapas em uma só abstração: todo conhecimento do direito está livre dos
sentidos que se imprimem a ele para seu acatamento. A interpretação é a atividade de revisão a
qual não deixa de ser persuasiva, pois está às voltas com variadas tentativas de persuasão. É a
adaptação prática aos incômodos do momento que a fazem mais honesta.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 O Estado de Direito nesse universo teórico corresponde a objetivos e políticas, ambos relacionados
“a fragmentos de uma concepção prescritiva mais abrangente de áreas internas e de práticas
sociais”.
[48]
Reunidos em termos de modelos teóricos, segmentos extensos do direito existente que
não se conformem à orientação contida nas políticas públicas deverão ser tidos como inadequados.
Os teóricos que se dedicam ao estudo da hermenêutica do direito pressupõem estarem em campo
desafiador. Portanto, os modelos teóricos que veiculem concepções prospectivas deverão ocupar
lugar estratégico, acalentando como ideal ou possível de ser realizado, espécie de pressuposição de
mudança.
O que deve ser entendido por fragmentos de concepções prescritivas similares a modelos teóricos
está além de bases que orientem raciocínios analógicos. Seja para subverter a multiplicação de
entendimentos sobre o alcance dos objetivos públicos, seja para impedir seu desvirtuamento, a
analogia como possibilidade está além do trato com fontes legais.
Se princípios e políticas públicas não são ancorados, por baixo, a analogias
contextualizadas, eles devem ser atrelados, por cima, a teorias prescritivas. Esse
atrelamento acentua ainda mais o contraste entre as genealogias prospectiva e
retrospectiva do direito: entre o direito como o produto do conflito relativamente
[49]
desordenado e o direito como expressão de teoria ordenada.
A ambivalência das genealogias não é clara. Se o esforço reside, também, em o intérprete
compreender o Estado de Direito imerso no projeto moderno, não há possibilidade de renúncia à
possibilidade de considerar “áreas substanciais” que dão coesão “teorias prescritivas
[50]
abrangentes”.
A redefinição de direitos é um poder, não uma solicitação ao poder que calcule as
possibilidades socioinstitucionais das fontes jurídicas, o que vem fazendo segundo procedimentos
enfraquecidos e que remetem sempre o intérprete ao vacilo entre o risco da inovação e a
manutenção dos entendimentos mais atrelados à normatividade. No intérprete do Estado de Direito
se instala a premissa que não corresponde à vagueza da razão autônoma, mas da razão pública
resultante da análise que não irá formar­se em desate dos componentes da modernidade
sociopolítica. Sejam consideradas as figuras da responsabilidade, da democracia, das teorias sobre
o mercado, a interpretação se dá um pouco aquém dos fatos, e por isso, é preferível a eles.
Essas duas dimensões se tornaram reais na história, o que sugere a redefinição e a reorientação
que residem na interpretação, dada sua natureza. Ocorre que em se tratando de um poder, o
intérprete protagoniza algo mais. Ele extrairá, sob os mecanismos da interpretação, o poder
existente nos potenciais democráticos, minando o caráter conservador que reside na ideia de
permanência de direito. Compreendida como poder, a interpretação exigirá limites, mas estes
desencadearão medidas não muito rigorosas. Isso é bom e preferível a duas situações: o
experimentalismo que atrai a sociedade não está definido, como jamais esteve, porém, o retorno a
certos episódios e ciclos de frustração passa a ressentir de maior resistência.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 5 Conclusão
O processo de elaboração da Constituição de 1988 foi longo, nada harmônico, quase caricatural. Os
direitos sociais coexistiram com uma economia precária, incapaz de sustentá­los no tempo. O
Estado passou a estar no limite da prestacionalidade de direitos sem a contrapartida econômica e
mesmo assim, quando desses eventos, seus extratos políticos hegemônicos em nada consideraram
as dificuldades instituídas por esse novo sistema de direitos.
Ainda que desde 1994 o Brasil esteja, assim como está, imerso na experimentação de plano de
estabilidade monetária, fator que reordenou as finanças públicas e o Estado brasileiro, ainda
exploramos uma Constituição que não tributa o grande capital, que define as funções sociais de
propriedade, mas estas dependem da boa vontade de governos para se implementarem. Em poucas
palavras, esse foi o retrato de alguns elementos da Constituição brasileira do final do século XX no
entendimento de Perry Anderson. A promulgação da Constituição fechou o ciclo de reabertura
democrática planejada pelos governos militares, isso a partir do Gal. Ernesto Geisel e, conquanto
marcada como texto, no qual variados horizontes se desenharam, na sequência desses eventos foi
a crítica das instituições que assumiu espaço e relevância.
A tematização do Estado de Direito e de suas conformações políticas e jurídicas, neste texto, foi
articulada com dois problemas. O problema da narração pelo sujeito que coexiste aos eventos
narrados, mas esse sujeito e daí a justificativa do texto de Hobsbawm, está no limite de uma
experiência, de sua experiência política e também jurídica, suas liberdades e faculdades individuais
que se resolvem na coletividade. O Estado de Direito em confronto com a sua história envolvida e
envolvente das relações sociais reside por vezes na dimensão de procurar por alternativas e de por
vezes não encontrá­las. Se a dimensão das proposições do Estado de Direito não encontrar no
imaginativo manancial teórico que a razão humana construiu, como estruturar liames junto à
percepção do tempo e da realidade. E como ordenar o tempo e a realidade sem a dimensão
imaginativa. Os liames são políticos e a modernidade jurídica é política:
as formas de economia descentralizada e de democracia pluralista (mercados
baseados em direitos absolutos de propriedade e democracias baseadas na
passividade dos cidadãos) não são expressão necessária, nem a melhor, dos ideais
herdados de liberdade e igualdade. Elas frustram justamente os objetivos pelos
[51]
quais nós as defendemos.
O Estado de Direito e o constitucionalismo foram edificados pelos pilares modernos, para lembrar a
rica expressão de Boaventura de Sousa Santos e por ele foram absorvidos.
No sentido de indicar possibilidades de experiências de igual dimensão às experiências modernas,
ainda que se trate de algo apenas aproximável, o propósito de superar alguns costumes e de
intimidarmos algumas compulsões encontra na investigação histórica do Estado de Direito variados
momentos.
Seres humanos e instituições políticas não são hoje etapas contemporâneas cujo projeto outrora
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 admitiria qualquer possibilidade de alteração. Compreender o Estado de Direito sem as suas
identidades mais características corresponderá a equívoco, por dobrar o investigador às lógicas
mais fortes e capazes de reproduzi­lo indefinidamente, em distanciamento das suas formações.
Ainda que esse investigador — e não poderá ser diferente — esteja confinado ao hoje, ao tempo da
mudança e da imprevisibilidade, narrá­lo sem o descaso pelas formações é o desafio daqueles que
buscam, também, reimaginá­lo.
Inter­relationship between Constitution, Rule of Law and Society – Reflections from the
Perspective of Legal History and the Challenge of Uncertainty
Abstract: In fact, my article is an invitation to study, reflection, meditation concerning things of
history, an invitation to abandon clichés, formulas, catechisms, the vanity of the initiates,
indoctrination and doctoral tone, rhetorical language, language schools and sects, to study the
mechanisms of power and not only the ideologies that legitimize or deny, to prefer the habit of
those who did not understand anything than one who understood everything.
Key words: Constitution and Power. Rule of law. Constitution. Legal History. Policy. Economics.
Society.
Referências
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Boitempo, 2002.
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Recebido em: 10.09.2012
Aprovado em: 18.09.2012
[1]
Cf. BOBBIO. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa, p. 91.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 [2]
[3]
DIPPEL. História do constitucionalismo moderno: novas perspectivas, p. 77.
NOVAIS. Contributo para uma teoria do Estado de Direito, p. 22­27.
[4]
SANTORO. Estado de Direito e interpretação: por uma concepção jusrealista e antiformalista do
Estado de Direito.
[5]
FIORAVANTI. Lo stato di diritto come forma di estato. notazioni preliminari sulla tradizione
europeo­continentali. In: FIORAVANT. La scienza del diritto púbblico: dottrine dello stato e della
constituzione tra ottocento e novecento, p. 855­869.
[6]
Breve exemplo pode ser ilustrado pela apropriação que a teoria constitucional fez da
compreensão do poder em bases racionais resultantes das investigações de Max Weber. Não se
pode afirmar, contudo, que há divórcio entre esses autores e aqueles que cultivam suas pesquisas
sobre direito constitucional, atualmente interessados na leitura arquegenealógica de Michel
Foucault. É de se notar a predisposição para a exploração do poder em termos gerais e não
específicos, correlacionados com os aspectos da normatividade limitada ao âmbito jurídico, tais
como igualdade, abstração, generalidade. Os objetivos deste texto encontram no ensaio de
Raymond Aron alguma correspondência: “Quaisquer que sejam as gradações de significado entre
Herrschaft, domínio e rule, o sociólogo, mesmo tomando como ponto de partida a noção de
potência, na acepção mais vasta ou na mais vaga, encontrarão a dimensão própria da política: a
‘potência integral’, na expressão de Th. ( sic) Geiger, a potência da sociedade considerada como um
todo e exercida sobre os membros ou ainda a potência de um ou de alguns concentrada sobre
todos e não a relação recíproca de dependência entre dirigentes e os membros de uma
organização, partido ou sindicato profissional. Em troca, desde que se passe da relação elementar
de potência, cujas modalidades e manifestações são inumeráveis, para a ordem social imposta
(imperative control), corre­se o risco de desconhecer a especificidade do político enquanto tal. De
fato, representemos o conjunto de uma sociedade como um sistema no qual estejam integrados
indivíduos e grupos. Cada um destes indivíduos ou grupos tende a assegurar para si certa potência
(no sentido mais amplo de capacidade de fazer, ou no mais estreito, de capacidade de influir sobre
a conduta alheia). Ninguém que ser puro objeto de uma potência externa, cada um quer ser
também, em certa medida, sujeito. A competição por dinheiro, e domínio da política passa a ser
comparável a um mercado” (ARON. Estudos sociológicos, p. 19).
[7]
CALDWELL. Popular Sovereignty and the Crisis o German Constitutional Law: theory & Pratice of
Weimar Constitutionalism, p. 82.
[8]
VIEIRA. Neoliberalismo e Estado de Direito. In: CLÈVE; BARROSO (Org.). Direito constitucional,
p. 642.
[9]
VIEIRA. Neoliberalismo e Estado de Direito. In: CLÈVE; BARROSO (Org.). Direito constitucional,
p. 642.
[10]
VIEIRA. Neoliberalismo e Estado de Direito. In: CLÈVE; BARROSO (Org.). Direito constitucional,
p. 642.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 [11]
Trata­se de Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de A.V. Dicey.
[12]
Para Perry Anderson o esforço de Unger se concentra em Politics, a Work in Constructive
Theory, Social Theory – Its Situation and Task, False Necessity e Plasticity into Power. O de Jürgen
Habermas permite estabelecer liame entre Teoria y Práxis, Teoria da la Acción Comunicativa e
Direito e Democracia – Entre Faticidade e Validade.
[13]
UNGER. O direito e o futuro da democracia, p. 91­97.
[14]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 103.
[15]
COSTA. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de Direito da
UFPR, p. 22.
[16]
COSTA. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de Direito da
UFPR, p. 22.
[17]
HOBSBAWM. O Presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 105.
[18]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 106.
[19]
COSTA. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de Direito da
UFPR, p. 22­23.
[20]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 107.
[21]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 107.
[22]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, 108.
[23]
Sobre os mundos construídos e existentes a partir das atividades de juristas, Pietro Costa
considera que todo o século XIX nutriu e viveu este peculiar aspecto: “O uso político­legitimante do
passado não é, porém, o seu único emprego possível na formação do jurista: também à preparação
técnica — ao saber fazer — do operador jurídico o passado pode tornar­se funcional. O passado ao
qual recorrer para esta finalidade é, porém, um ‘outro’ passado, cultivado por uma disciplina
diversa: o direito romano. A cultura jurídica ainda dominante entre os séculos XIX e XX parece
cultivar duas imagens diferentes do passado: um passado esgotado ou salvo somente enquanto
aufgehoben no novo Estado unitário — a experiência medieval e moderna — e um passado não
ainda inteiramente tal, um passado — o direito romano — ligado ao presente por uma relação
peculiar e direta”. Nesse sentido: COSTA. Pra que serve a história do direito? Um humilde elogio à
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 inutilidade In: COSTA. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento
jurídico, p. 73.
[24]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 110.
[25]
HOBSBAWM. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo. Novos
Estudos Cebrap, p. 111.
[26]
COSTA. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de Direito da
UFPR, p. 25.
[27]
COSTA. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de Direito da
UFPR.
[28]
Para Pietro Costa, especificamente no direito público, o argumento historicista, que não é, para
os teóricos da história, método vigoroso bastante, nem mesmo cultivado em nossos dias, vem
trazer em si o cientificismo causalista do século XIX que acaba por desencadear e provocar, no
tocante ao conhecimento das constituições, a respectiva cronologia. Se por um lado isso acaba por
resultar a existência de linha histórico­institucional do direito público, essa mesma linearidade não
é apta para destacar quais etapas são mais ou menos relevantes. Em nossa experiência
constitucional recente, todavia, parece que a alteração tão profunda do texto desde sua
promulgação em 1988, ou seja, apenas 24 anos, sugere pelo menos duas imagens, quais sejam, a
da profunda alteração pela qual o Estado brasileiro passou desde a implantação entre nós,
sobretudo de um plano de estabilização da economia, bem como, e por que não, da limitação do
texto cujo momento “capturou” sobremodo o período autoritário anterior, instituindo equilíbrios
institucionais e mirando imagem futura na qual o Estado brasileiro deveria se inserir em razão da
instituição, também, de direitos os quais não detinham correspondência na estrutura política para
se tornarem socialmente fruíveis. Para Costa, “Se, portanto, (e.g.) o constitucionalista persegue o
objetivo de compreender a constituição vigente, ele pode atingir este fim somente aceitando
completar uma longa viagem no tempo; uma viagem que não pode parar no momento da
assembleia constituinte, não pode parar nos mais imediatos precedentes da ordem normativa
vigente, mas deve estender­se pela inteira conjuntura histórica que constitua a condição de
possibilidade e de sentido, também, da constituição vigente. A história constitucional e o direito
constitucional permanecem, portanto, como disciplinas diferentes, mas reciprocamente
indispensáveis: o jurista tem necessidade do historiador para perceber a unidade do processo e o
historiador tem necessidade do jurista para colocar em questão o problema”.
[29]
O estudo é sempre lembrado, quando Max Weber explora as qualidades formais do direito
moderno, conquanto já visualize esses atributos face do desenvolvimento capitalista. “En resumen,
una administración de justicia que el la esencial peculiaridad formal del derecho material y del
procedimiento, que, em la medida posible dentro del ámbito de una administración de justicia
mundana, se aparta de la estructura del derecho continental. Pues em todo caso la administración
inglesa de la justicia no es em lo esencial, como la del Continente, ‘aplicación’ de ‘preceptos
jurídicos’ sublimados con ayuda de la lógica, partiendo del contenido de las prescripciones legales.
También em lo económico y social estas variantes aisladas, no que aquellas capaces de influir em
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 la estructura total de la economía. Para el desenvolvimiento del capitalismo hubo dos
circunstancias favorables: por una parte el hecho de que la educación jurídica se hallaba
principalmente em manos de los abogados, de cuyo grupo salían los jueces; es decir, em manos de
una capa que ejerce su actividad al servicio de los particulares que tienen bienes de fortuna,
especialmente los capitalistas, y que viven materialmente de ellos. [...] Así pues, no hay em el
capitalismo, como tal, ningún motivo decisivo de esa forma de racionalización del derecho que
desde la época de la educación romanística de la Edad Media es característica del Occidente
continental. Por el contrario, el desenvolvimiento social moderno ha desarrollado, además de los
motivos políticos que fueron mencionados y de las razones internas jurídico­estamentales que
acabamos de ver, otros motivos de índole general que debilitan el racionalismo formal del derecho”
(WEBER. Economia y sociedad, Cidade do México, p. 657­658).
[30]
Trata­se do conhecido livro de Friedrich Von Hayek intitulado A caminho da servidão, publicado
no Brasil pelo Instituto Liberal.
[31]
No desenvolvimento de suas investigações Michel Foucault passa a considerar a biopolítica
como expressão de poder que controla a vida e a morte, que propõe composições sociais
preserváveis e matáveis. Capturando esta etapa das investigações de Michel Foucault, Giorgio
Agambem desenvolveu seu estudo conhecido no Brasil intitulado Homo Sacer – o poder soberano e
a vida nua, publicado pela editora da UFMG.
[32]
VIEIRA. Neoliberalismo e Estado de Direito. In: CLÈVE; BARROSO (Org.). Direito constitucional,
p. 646.
[33]
Trata­se dos trabalhos de Lon Fuller. Fuller defende uma posição que definiria de
neojusnaturalista ou de jusnaturalismo formal: o Direito possui uma moralidade intrínseca, pelo
fato de ele ser claro, geral, não retroativo, abstrato: as normas emanadas de forma correta,
quanto ao procedimento, mas que são desprovidas de tais requisitos não são “direito”. Em outras
palavras, segundo Fuller, o “Direito”, por definição, ou melhor, por sua moralidade intrínseca,
satisfaz os cânones do rule of law, tais como foram fixados por Hayek. Nos anos 50 e 60, esta
posição permitia defender a nulidade de grande parte das leis nazistas (por exemplo aquelas que
sancionaram o confisco dos bens dos judeus, para citar um tema ainda hoje atual). Hart rejeitou
esta posição como jusnaturalista, mas o fez com grande dificuldade. Afirmou como é notório, que o
Direito “tem”, mas não “deve necessariamente ter”, um conteúdo moral mínimo. Nesse sentido:
FULLER, Lon. Positivism and Fidelity to moral: a Reply to Professor Hart, Harvard Law Review,
1 9 5 8 apud SANTORO. Estado de Direito e interpretação: por uma concepção jusrealista e
antiformalista do Estado de Direito, p. 31, nota 12.
[34]
Cf. SANTORO, op. cit., p. 31.
[35]
“É um problema trazido à baila já no debate weimariano — consoante afirma Pietro Costa —
pelos críticos do formalismo kelseniano. Insiste Erich kaufmann, para quem não é possível se livrar
do impasse formalístico multiplicando ad infinitum os níveis normativos. É melhor saltar um plano,
encontrar vínculos ‘objetivos’ substantivos e não formais, para serem opostos às assembleias
parlamentares. O vício de fundo do formalismo kelseniano parece, de fato, residir no subjetivismo
epistemológico do jurista de Praga, na delimitação, ou melhor, na ‘desteleogização’ das entidades
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 coletivas (a partir do Estado) em prejuízo dos indivíduos singulares que concretamente agem e
interagem. É preciso, então, procurar uam nova ‘objetividade’, tomar na fenomelogia histórico­
social o florescer de estruturas constantes, de institutos radicados na dinâmica profunda da vida
associada, geneticamente estranhos (e justamente por isso resistentes) à vontade do legislador. Já
havia caminhado por esta estrada um jurista como Hariou (a quem Kaufmann declara abertamente
sua dívida), que propunha ver nos direitos um momento de uma complexa instituição social capaz
de conter e condicionar o polo estatal”. Para maiores desenvolvimentos, consultar: COSTA.
Democracia Política e Estado Constitucional. In: COSTA. Soberania, representação, democracia:
ensaios de história do pensamento jurídico, p. 260.
[36]
SANTORO. Estado de Direito e interpretação: por uma concepção jusrealista e antiformalista do
Estado de Direito, p. 32­33.
[37]
STERN. Derecho del estado de la Republica Federal Alemana, p .232.
[38]
STERN. Derecho del estado de la Republica Federal Alemana, p.231­232.
[39]
“É sugestivo, neste ponto de vista, a proximidade entre dois especialistas da interpretação
aparentemente muito diferentes entre si: o historiador e o juiz. Foi o filósofo Guido Calogero que,
nos anos trinta, chamou atenção sobre a analogia que transcorre entre operações hermenêuticas
do historiador e do juiz recentemente. Carlo Ginzburg desenvolveu brilhantemente este tema
sublinhado, para ambos, a importância dada pela tensão entre verdade e a retórica da prova. E
vale, para ambos, consequentemente, o caráter conjectural e incerto de suas afirmações: as suas
argumentações se fundam entre sinais e indícios: é assimilável, como escreve Ginzburg, à lógica
de Sherlock Holmes ou ao comportamento do caçador que pelos rastros chega ao animal; exerce­
se não sobre o caráter incontroverso da dedução racional, mas sobre o caráter persuasivo do
razoável” (COSTA. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, p. 26­27). São dois os trabalhos de Ginzburg lembrados evocados por Pietro Costa
e indicados por Ricardo Marcelo Fonseca. Respectivamente Il Giudice e lo storico;considerazioni in
margini al processo Sofrie, e Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e
sinais: morfologia e história.
[40]
ANDERSON. Afinidades seletivas, p. 187.
[41]
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 187.
[42]
UNGER. O direito e o futuro da democracia, p. 85.
[43]
UNGER. O direito e o futuro da democracia, p. 91.
[44]
UNGER, op. cit., p. 87.
[45]
Idem, p. 88.
[46]
UNGER, op. cit., p. 87.
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Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2012 [47]
UNGER, op. cit., p. 89.
[48]
UNGER, op. cit., p. 90.
[49]
UNGER, op. cit., p. 90.
[50]
UNGER, op. cit., p. 91.
[51]
UNGER. Social Theory, p. 78­79 apud ANDERSON. Afinidades seletivas, p. 177.
Como citar este artigo na versão digital:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto
científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. Inter­relações entre Constituição, Estado de Direito e
sociedade: reflexões a partir da história do direito e do desafio da incerteza. Revista Brasileira de
Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul./set. 2012. Disponível em:
<http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=82025>. Acesso em: 2 ago. 2013.
Como citar este artigo na versão impressa:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto
científico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma:
FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. Inter­relações entre Constituição, Estado de Direito e
sociedade: reflexões a partir da história do direito e do desafio da incerteza. Revista Brasileira de
Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 6, n. 23, p. 697­727, jul./set. 2012.
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